Com qual desses tipos de crônica o texto Amai o próximo, etc... tem mais proximidade

A semana

Texto-fonte:

Obra Completa de Machado de Assis.

Rio de Janeiro: Nova Aguilar, Vol. III, 1994.

Publicado originalmente na Gazeta de Not�cias, Rio de Janeiro, de 24/04/1892 a 11/11/1900.

�NDICE

1892

1893

1894

1895

1896

1897

1900

1892

24 de abril

Na segunda feira da semana que findou, acordei cedo, pouco depois das galinhas, e dei-me ao gosto de propor a mim mesmo um problema. Verdadeiramente era uma charada; mas o nome de problema d� dignidade, e excita para logo a aten��o dos leitores austeros. Sou como as atrizes, que j� n�o fazem benef�cio, mas festa art�stica. A coisa � a mesma, os bilhetes crescem de igual modo, seja em n�mero, seja em pre�o; o resto, com�dia, drama, opereta, uma polca entre dois atos, uma poesia, v�rios ramalhetes, lampi�es fora, e os colegas em grande gala, oferecendo em cena o retrato � beneficiada.

Tudo pede certa eleva��o. Conheci dois velhos estim�veis, vizinhos, que esses tinham todos os dias a sua festa art�stica. Um era Cavaleiro da Ordem da Rosa, por servi�os em rela��o � guerra do Paraguai; o outro tinha o posto de tenente da guarda nacional da reserva, a que prestava bons servi�os. Jogavam xadrez, e dormiam no intervalo das jogadas. Despertavam-se um ao outro desta maneira: �Caro major!� -�Pronto, comendador!� � Variavam �s vezes: � �Caro comendador!� -�A� vou, major�. Tudo pede certa eleva��o.

Para n�o ir mais longe, Tiradentes. Aqui est� um exemplo. Tivemos esta semana o centen�rio do grande m�rtir. A pris�o do her�ico alferes � das que devem ser comemoradas por todos os filhos deste pa�s, se h� nele patriotismo, ou se esse patriotismo � outra coisa mais que um simples motivo de palavras grossas e rotundas. A capital portou-se bem. Dos estados est�o vindo boas not�cias. O instinto popular, de acordo com o exame da raz�o, fez da figura do alferes Xavier o principal dos Inconfidentes, e colocou os seus parceiros a meia ra��o da gl�ria. Merecem, decerto, a nossa estima��o aqueles outros; eram patriotas. Mas o que se ofereceu a carregar com os pecados de Israel, o que chorou de alegria quando viu comutada a pena de morte dos seus companheiros, pena que s� ia ser executada nele, o enforcado, o esquartejado, o decapitado, esse tem de receber o pr�mio na propor��o do mart�rio, e ganhar por todos, visto que pagou por todos.

Um dos oradores do dia 21 observou que se a Inconfid�ncia tem vencido, os cargos iam para os outros conjurados, n�o para o alferes. Pois n�o � muito que, n�o tendo vencido, a hist�ria lhe d� a principal cadeira. A distribui��o � justa. Os outros t�m ainda um belo papel; formam, em torno de Tiradentes, um coro igual ao das Oce�nides diante de Prometeu encadeado. Relede �squilo, amigo leitor. Escutai a linguagem compassiva das ninfas, escutai os gritos terr�veis, quando o grande tit�o � envolvido na conflagra��o geral das coisas. Mas, principalmente, ouvi as palavras de Prometeu narrando os seus crimes �s ninfas amadas: �Dei o fogo aos homens; esse mestre lhes ensinar� todas as artes�. Foi o que nos fez Tiradentes.

Entretanto, o alferes Joaquim Jos� tem ainda contra si uma coisa a alcunha. H� pessoas que o amam, que o admiram, patri�ticas e humanas, mas que n�o podem tolerar esse nome de Tiradentes. Certamente que o tempo trar� a familiaridade do nome e a harmonia das s�labas; imaginemos, por�m, que o alferes tem podido galgar pela imagina��o um s�culo e despachar-se cirurgi�o-dentista. Era o mesmo her�i, e o of�cio era o mesmo; mas traria outra dignidade. Podia ser at� que, com o tempo, viesse a perder a segunda parte, dentista, e quedar-se apenas cirurgi�o.

H� muitos anos, um rapaz � por sinal que bonito � estava para casar com uma linda mo�a �, a aprazimento de todos, pais e m�es, irm�os, tios e primos. Mas o noivo demorava o cons�rcio; adiava de um s�bado para outro, depois quinta-feira, logo ter�a, mais tarde s�bado; � dois meses de espera. Ao fim desse tempo, o futuro sogro comunicou � mulher os seus receios. Talvez o rapaz n�o quisesse casar. A sogra, que antes de o ser j� era, pegou do pau moral, e foi ter com o esquisito genro. Que hist�rias eram aquelas de adiamentos?

� Perd�o, minha senhora, � uma nobre e alta raz�o; espero apenas...

� Apenas...?

� Apenas o meu t�tulo de agrimensor.

� De agrimensor? Mas quem lhe diz que minha filha precisa do seu of�cio para comer? Case, que n�o morrer� de fome; o t�tulo vir� depois.

� Perd�o, mas n�o � pelo t�tulo de agrimensor, propriamente dito, que estou demorando o casamento. L� na ro�a d�-se ao agrimensor, por cortesia, o t�tulo de doutor, e eu quisera casar j� doutor...

Sogra, sogro, noiva, parentes, todos entenderam esta sutileza, e aprovaram o mo�o. Em boa hora o fizeram. Dali a tr�s meses recebia o noivo os t�tulos de agrimensor, de doutor e de marido.

Daqui ao caso eleitoral � menos que um passo; mas, n�o entendendo eu de pol�tica, ignoro se a aus�ncia de t�o grande parte do eleitorado na elei��o do dia 20 quer dizer descren�a, como afirmam uns, ou absten��o como outros juram. A descren�a � fen�meno alheio � vontade do eleitor: a absten��o � prop�sito. H� quem n�o veja em tudo isto mais que ignor�ncia do poder daquele fogo que Tiradentes legou aos seus patr�cios. O que sei, � que fui � minha se��o para votar, mas achei a porta fechada e a urna na rua, com os livros e of�cios. Outra casa os acolheu compassiva, mas os mes�rios n�o tinham sido avisados e os eleitores eram cinco. Discutimos a quest�o de saber o que � que nasceu primeiro, se a galinha, se o ovo. Era o problema, a charada, a adivinha��o de segunda-feira. Dividiram-se as opini�es; uns foram pelo ovo outros pela galinha; o pr�prio galo teve um voto. Os candidatos � que n�o tiveram nem um, porque os mes�rios n�o vieram e bateram dez horas. Podia acabar em prosa, mas prefiro o verso:

Sara, belle d'indolence,

Se balance

Dans un hamac...

30 de abril

Uma folha di�ria, recordando que as quermesses tinham sido fechadas por serem verdadeiras casas de tavolagens, noticiou que elas come�am a reaparecer. J� h� uma na Rua do Teatro; o pretexto � uma festa de caridade. E a folha chama a aten��o da pol�cia.

A not�cia � dizemo-lo sem ofensa � � mui pr�pria de um s�culo utilit�rio e pr�tico. N�o se poderia achar exemplo mais vivo do esp�rito da nossa idade, que p�e a alma das coisas de lado para s� admirar a face das coisas. Invertemos a caridade; ela n�o �, para n�s, o m�vel da a��o, o sentimento da esmola e do benef�cio; � o resul­tado da coleta. Dou cinco mil r�is para comprar uns sapatos de crian�a (se h� ain­da sapatos de cinco mil r�is); o mundo, se os sapatos n�o s�o comprados, grita contra a especula��o. Queremos a caridade escriturada, legalizada, regulamentada, com relat�rio anual, contas, receita e despesa, saldo. Onde est� aqui o esp�rito crist�o?

A quermesse � tavolagem. Que tenho eu com isso, se me convida a fazer bem? N�o se trata (reflita o colega), n�o se trata de beneficiar a um estranho, mas a minha al­ma. V� o dinheiro para um faminto, para a escola, ou simplesmente para as algibei­ras do empres�rio, nada tem com isso a mi­nha salva��o. A caridade n�o � um efeito, � uma causa. As quermesses s�o ocasi�es in­ventadas para a pr�tica do evangelho. O fim dessas institui��es � exercitar a virtu­de, e tanto melhor se o dinheiro recolhido alimentar um v�cio. � o preceito de Hor�cio e do gas�metro: Ex fumo dare lucem.

Um exemplo. H� em certa rua, por onde passo todos os dias, um homem senta­do na soleira de uma porta, chap�u na m�o, a pedir uma esmolinha. Esse homem, que deve andar por cinq�enta e tantos anos, padece de um p� sujo, � creio que o es­querdo. Quando lhe descobri essa �nica mol�stia, travou-se em minha consci�ncia um terr�vel conflito. Darei o meu vint�m ao homem ou n�o? Fui ao meu grande S. Paulo, ao meu Santo Agostinho, fui princi­palmente aos casu�stas mais c�lebres, e achei em todos que n�o se tratava do p� de um homem, mas da alma de outro. A rigor, pode-se dar at� a um p� lavado. Da� em diante, dou ao homem o meu vint�m certo. E n�o se diga que � porque fui estudar a solu��o do problema nos livros moralistas. Tenho visto pobres mulheres que passam com o vestidinho desbotado, a sua cor doen­tia, pararem adiante, e, �s escondidas, tirarem do bolso o vintenzinho ganho � for�a de agulha ou de goma, e irem deposit�-lo no chap�u do homem. Este, em bemol: �Os anjos a acompanhem, minha santa senhora!�

A quermesse pode ter os p�s sujos. N�o me cabe verificar se os vai lavar; cabe-me, sim, dar o dinheiro (e, quanto mais, me­lhor), para cumprir o preceito de Jesus: �N�o queirais entesourar para v�s tesouros na terra, onde a ferrugem e a tra�a os consome; mas entesourai para v�s te­souros no c�u, onde n�o os consome a fer­rugem nem a tra�a�.

A terra fez-se para entesourar algu­mas coisas, mas s� as que n�o entendem com a nossa consci�ncia moral, os atos que n�o v�m do cora��o, mas da cabe�a. Que rico tesouro da terra nos deu a comiss�o de instru��o p�blica do conselho munici­pal! No meio dos debates daquela casa, � tantas vezes acres e apaixonados, � � doce e consolador elevar o esp�rito a senten�as como esta: �Foi esta lei (a instru��o) que organizou as sociedades primitivas, que re­geu seus principais destinos, que domina as condi��es de exist�ncia dos primeiros povos e que os obrigou a esse longo pere­grinar dos s�culos�. E, depois de comparar a instru��o a um elo que liga o passado ao presente e o presente ao futuro, escreve es­ta ousada e forte imagem, seguida de outra n�o menos ousada nem menos forte: �A hu­manidade, por�m, � como a hiena faminta e insaci�vel. � como o Ahasverus da lenda que n�o pode parar, � tem de caminhar e caminhar sempre!� N�o se pode pintar melhor a necessidade crescente da instru��o da esp�cie humana.

Ao mesmo tempo, lembra-me os dias da mocidade. � Ahasverus! Tamb�m eu te vi caminhar, caminhar, caminhar sempre, naquela madrugada dos meus anos, t�o linda, e t�o remota! De noite, quando a ins�nia me arregalava os olhos com os seus dedos magros, � ou de manh�, quando eles se abriam ao sol, via o eterno andador, andando, andando... L� me saiu um ver­so; h� de ser algum que n�o me chegou a sair da cabe�a.

Via o eterno andador, andando, andan­do. Justamente, um verso. A� est� o que � ter metrificado lendas em crian�a; n�o se pode falar delas sem vir � m�trica de per­meio. � inf�ncia, � versos! E as associa­��es? Havia algumas nesse tempo em que se discutiam e votavam teses hist�ricas e filos�ficas. Qual foi maior: C�sar ou Napole�o? Esta era a mais comum dos debates; e se alguma coisa pode consolar esses dois grandes homens da morte que os tomou, � a certeza de que t�m c� em cima da terra verdadeiros amigos e certo equil�brio de sufr�gios.

Tamb�m agora h� teses, mas s�o ou­tras. Esta semana o Instituto dos Advoga­dos debateu um ponto interessante, a saber, se, em face da Constitui��o e das leis, os t�tulos nobili�rios dados por governos es­trangeiros fazem perder a qualidade de ci­dad�o. A maioria adotou a afirmativa: 16 votos contra 8. Mas, examinando a tese, o Instituto esqueceu uma hip�tese. O Sr. Geminiano Maia, do Estado do Cear�, recebeu de um governo estrangeiro o t�tulo de bar�o de Camocim. Pergunto; esta hip�tese entra acaso na tese do Instituto? O t�tulo pelo doador, � estrangeiro, mas � nacional pela localidade. Camocim � no territ�rio do Brasil. Para mim, que n�o tenho preparos jur�dicos, este t�tulo n�o ti­ra a qualidade de cidad�o ao Sr. Maia: an­tes o faz mais brasileiro, se � poss�vel. Maia � um nome comum. Camocim � um nome nacional. Examine o Instituto essa hip�tese.

1 de maio

V�s este tapume? Digo-vos que n�o fi­car� t�bua sobre t�bua. E assim se cum­priu esta palavra do Dr. Barata Ribeiro, que imitou a Jesus Cristo, em rela��o ao templo de Jerusal�m. Olhai, por�m, a diferen�a e a vulgaridade do nosso s�culo. A palavra de Jesus era prof�tica: os tempos tinham de cumpri-la. A do presidente da intend�ncia, que era um simples despacho, n�o precisou mais que de alguns trabalha­dores de boa vontade, um advogado e vin­te e quatro horas de espera. Ao cabo do prazo, reapareceu o nosso chafariz da Cario­ca, o velho monumento que tem o mesmo no­me que n�s outros, filhos da cidade, o nosso xar�, com as suas bicas sujas e quebradas, � certo, mas eu confio que o Dr. Barata Ri­beiro, assim como destruiu o tapume, assim reformar� o bicume. E poder� ser preso, a�oitado, crucificado; ressurgir� no tercei­ro minuto, e ficar� � direita de Gomes Freire de Andrade.

J� que se foi o tapume, n�o calarei uma anedota, que ao mesmo tempo n�o posso contar. Valham-me Gulliver e o seu inven­to para apagar o inc�ndio do pal�cio do rei de Lilliput. Recordam-se, n�o? Pois sai­bam que uma noite lavrava um princ�pio de inc�ndio no tapume, � algum f�sforo lan�ado por descuido ou perversidade. Um Gulliver casual, que ia passando, correu a apag�-lo. Pobre grande homem! Esbarrou com um soldado de sentinela, ao lado da Imprensa Nacional, que n�o consentiu na obra de caridade daquele corpo de bom­beiro. Perseguido pela vis�o do inc�ndio (h� desses fen�menos), o nosso Gulliver viu fogo onde o n�o havia, isto �, no pr�prio edif�cio da Imprensa Nacional, lado opos­to, e correu a apag�-lo. N�o achou sombra de sentinela! Disseram-lhe mais tarde que a sentinela do tapume era a mesma que o governador Gomes Freire mandara p�r ao chafariz, em 1735, e que a Metropolitana, por descuido, n�o fez recolher. Vitalidade das institui��es!

Mas esse finado tapume faz lembrar um tempo alegre e agitado, t�o alegre e agi­tado qu�o triste e quieto � o tempo presente. Ent�o � que era bailar e cantar. Dan�avam-se as modas de todas as na��es; n�o era s� o fadinho brasileiro, nem a quadrilha fran­cesa; t�nhamos o fandango espanhol, a ta­rantela napolitana, a valsa alem�, a habanera, a polca, a mazurca, n�o contando a dan�a macabra, que � a s�ntese de todas elas. Cessou tudo por um efeito m�gico.

Os m�sicos foram-se embora, e os pares vol­taram para casa.

S� o acionista ficou, � o acionista moderno, entenda-se, o que n�o, paga as a­��es. Tinham-lhe dito: � aqui tem um pa­pel que vale duzentos, o senhor d� apenas vinte, e n�o falemos mais nisso.

� Como n�o falemos?

� Quero dizer, falemos semestralmente; de seis em seis meses, o senhor re­cebe dez ou doze por cento, talvez quinze.

� Do que dei?

� Do que deu e do que n�o deu.

� Que n�o dei, mas que hei de dar?

� Que nunca h� de dar.

� Mas, senhor, isso � quase um deb�n­ture.

� Por ora, n�o; mas l� chegaremos.

Desta no��o recente tivemos, h� dias, um exemplo claro e brilhante. Uma assembl�ia, tomando contas do ano, deu com tr�s mil contos de despesas de incorpora��o. Na­da mais justo. Entretanto, um acionista prop�s que se reduzissem aquelas despesas; outro, percebendo que a medida n�o era simp�tica, lembrou que ficasse a direto­ria autorizada a entender-se com os incorporadores para dar um corte na soma. A assembl�ia levantou-se como um s� homem. Que reduzir? que entender-se? E, por cerca de cinco mil votos contra dez ou onze, aprovou os tr�s mil contos de r�is. A raz�o adivinha-se. A assembl�ia compreendeu que a incorpora��o, como a a��o, devia ter sido paga pelo d�cimo, e conseguintemente que os incorporadores teriam recebido, no m�ximo, trezentos contos. Pedir-lhes re­du��o da redu��o seria econ�mico, mas n�o era razo�vel, e instituiria uma justi�a de dois pesos e duas medidas. Votou os tr�s mil contos, votaria trinta mil, votaria trinta milh�es.

H�o de ter notado a facilidade com que meneio algarismos, posto n�o seja este o meu of�cio; mas desde que Cam�es & C. puseram uma ag�ncia de loterias no beco das Cancelas, creio que, ainda sem ser Cam�es, posso muito bem brincar com cifras e n�meros. Na explica��o do Sr. Dr. Ferro Cardoso, por exemplo, acerca da n�o elei��o, o que mais me interessou, foram os oito mil eleitores que deixaram de votar no candidato, j� porque eram milhares, j� por‑ que o argumento era irrespond�vel. Com efeito, ningu�m obriga um homem a aceitar a c�dula de outro; se a aceita e n�o vota, � porque cede a uma for�a superior.

Tudo � algarismo debaixo do sol. A pr�pria circular do bispo aos vig�rios, acerca dos padres e sacrist�os associados para vender caro as missas, reduz-se, como v�em, a somas de dinheiro. Grande rumor nas sacristias. Grande rumor na imprensa an�nima. Pelo que me toca, n�o sendo padre nem sacrist�o, cito este acontecimento da semana, n�o s� por causa dos algarismos, mas ainda por notar que o bispo adotou neste caso o lema positivista; Viver �s claras. Em vez de circular reservada, f�-la p�blica. Mas como, por outro lado, j� algu�m disse que o positivismo era �um catolicismo sem cristianismo�, a quest�o pode explicar-se por uma simpatia de ori­gem, e os padres que se queixem ao bispo dos bispos.

Onde n�o creio que haja muitos milha­res de contos � na Rep�blica Transatl�ntica de Mato Grosso. O dinheiro � o nervo da guerra, diz um velho amigo; mas um fi­no e grande pol�tico desmente o axioma, afirmando que o nervo da guerra est� nas boas tropas. Haver� este nervo em Mato Grosso? Quanto a mim, creio que a jovem rep�blica n�o � mesmo rep�blica. Aquele nome de Transatl�ntica d� id�ia de um gra­cejo ou de um enigma. � talvez o que fi­que de toda a campanha. Tamb�m pode ser que a palavra, como outras, tenha sentido particular naquele Estado, e traga uma significa��o nova e profunda. �s vezes, de onde n�o se espera, da� � que vem. H� dias, dei com um verbo novo na tabuleta de uma casa da Cidade Nova: �Opacam-se vidros�. Digam-me em que dicion�rio viram pala­vra t�o apropriada ao caso.

8 de maio

Mato Grosso foi o assunto principal da semana. Nunca ele esteve menos Mato, nem mais Grosso. Tudo se esperava daquelas paragens, exceto uma rep�blica, se s�o exatas as not�cias que o afirmam, porque h� outras que o negam; mas neste caso a minha regra � crer, principalmente se h� telegrama. Ningu�m imagina a f� que te­nho em telegramas. Demais, folhas europ�ias de 13 a 14 do m�s passado, falam da nova rep�blica transatl�ntica como de coisa feita e acabada. Algumas descrevem a bandeira.

Duas dessas folhas (por sinal que lon­drinas) chegam a aconselhar ao governo da Uni�o que abandone Mato Grosso, por lhe dar muito trabalho e ficar longe, sem real proveito. Se eu fosse governo, aceitava o conselho, e pregava uma boa pe�a � nova rep�blica, abandonando-a, n�o � sua sorte, como dizem as duas folhas, mas � Inglater­ra. A Inglaterra tamb�m perdia no neg�cio, porque o novo territ�rio ficava-lhe mui­to mais longe; mas, sendo sua obriga��o n�o deixar terra sem amanho, tinha de suar o topete s� em extrair minerais, desbastar, colonizar, pregar, fazer em suma de Mato Grosso um mato fino.

Eu, rigorosamente, n�o tenho nada com isto. N�o perco uma unha do p� nem da m�o, se perdermos Mato Grosso. E n�o � melhor que me fique antes a unha que Mato Grosso? Em que � que Mato Grosso � meu? N�o nego que a id�ia da p�tria deve ser acatada. Mas a nova rep�blica n�o bra­dou: abaixo a p�tria! como um rapaz que fez a mesma coisa em Fran�a, h� tr�s meses, e foi condenado � pris�o por um tri­bunal. Mato Grosso disse apenas: Anch'io son pittore, e pegou dos pinc�is. N�o des­truiu a oficina ao p�, organizou a sua. Uma vez que pague, al�m das d�cimas, as tintas, pode pintar a seu gosto, e tanto melhor se fizer obras-primas.

P�tria brasileira (esta compara��o � melhor) � como se diss�ssemos manteiga nacional, a qual pode ser excelente, sem impedir que outros fa�am a sua. Se a nova f�brica j� est� montada (estilo dos estatu­tos de companhias e dos an�ncios de teatros), fa�a a sua manteiga, segundo lhe parecer, e, para falar pela l�ngua argentina, vizinha dela e nossa: con su pan se la coma.

Vede bem que a nova rep�blica � una e indivis�vel. Aqui h� dente de coelho; pa­rece que o fim � tolher a soberania a Co­rumb�, a Cuiab�, que poderiam fazer as suas constitui��es particulares, como os di­versos Estados da Uni�o fizeram as suas. Eu s� havia notado, em rela��o a estes, a diferen�a dos t�tulos dos chefes, que uns s�o governadores, como nos Estados Uni­dos da Am�rica, outros presidentes, como o presidente da Rep�blica. A princ�pio supus que a fatalidade do nosso nascimento (que � de chefe para cima) obrigava a n�o chamar governador um homem que tem de reger uma parte soberana da Uni�o; mas, consultando sobre isso uma pessoa grave do interior, ouvi que a raz�o era outra e hist�rica, isto �, que a prefer�ncia de presidente a governador provinha de ser este t�tulo odioso aos povos, por causa dos antigos go­vernadores coloniais. N�o s� compreendi a explica��o, mas ainda lhe grudei outra, observando que, por motivo muito mais an­tigo, foi acertado n�o adotar o t�tulo de juiz, como usaram algum tempo em Israel (fedor judaico) � justamente!

Entretanto, outra pessoa, sujeita ao terror pol�tico, tem escrito esta semana que alguns Estados, em suas constitui��es e legisla��es, foram al�m do que lhes cabia; que um deles admitia a anterioridade do casamento civil, outro j� lan�ou impostos gerais, etc. Assim ser�; mas obra feita n�o � obra por fazer. Se o exemplo de Mato Grosso tem de pegar, melhor � que cada pin­tor tenha j� as suas telas prontas, tintas mo�das e pinc�is lavados: � s� pintar, expor e vender. A Uni�o, que n�o tem terri­t�rio, n�o precisa de soberania; basta ser um simples nome de fam�lia, um apelido, meia alcunha.

Depois de Mato Grosso, o neg�cio em que mais se falou esta semana (n�o con­tando a reuni�o do Congresso), foi o pro­cesso da Geral. Os diretores presos tive­ram habeas-corpus. Apareceu um relat�rio contra os mesmos, e contra outros, mas apareceu tamb�m a contesta��o, depoimen­tos e desmentidos, al�m de v�rios artigos, os quais pap�is todos, juntos com o que se tem escrito desde come�o, cortados em ti­ras de um cent�metro de largura, e unidos tira a tira, d�o uma fita que, s� por falta de cinco l�guas, n�o cinge a terra toda; mas, como n�o � neg�cio que se acabe com soltu­ras nem relat�rios, calculam os matem�ti­cos do Clube de Engenharia que as cinco l�guas que faltam, estar�o preenchidas at� quinta-feira pr�xima, e antes de outubro pode muito bem

Dar outra volta completa

Ao nosso belo planeta.

Tudo isso para se n�o saber nada! Eu, pelo menos, de tudo o que tenho lido a res­peito desta Geral, s� uma coisa me ficou clara (aqui os credores arregalam os olhos) e foi a legaliza��o, e portanto a legitima��o da palavra zang�o, com o seu plural zang�es. Aquele nome fora adotado antigamente com a pros�dia verdadeira, � a que tinha, que era z�ng�o, e conseguintemente fazia no plural z�ng�os. Mas o povo achou mais f�cil ir carregando para diante, e p�r o acento na segunda s�laba, fazendo zang�o e zang�es. Nunca os tinha visto escritos; achei-os agora judicialmente, e n�o me irri­to com isso. O Sr. Dr. Castro Lopes, que h� pouco tratou de ben�am, querendo que se diga ben��o, e b�n��es, � que h� de explicar por que raz�o o povo em um caso escorrega para diante e em outro para traz. Eu creio que tudo prov�m da situa��o da casca de banana, que, se est� mais pr�xima do bico do sapato, faz cair de ventas, se mais perto do tac�o, faz cair de costas. Zang�o, ben�am. Creiam, meus amigos, � a �nica id�ia que h� de ficar dos autos.

15 de maio

N�o h� abertura de Congresso Nacional, n�o h� festa de Treze de Maio, que resista a uma adivinha��o. A sess�o legislativa era esperada com �nsia e ser� acompanhada com interesse. A festa de Treze de Maio comemorava uma p�gina da hist�ria, uma grande, nobre e pac�fica revolu��o, com este pico de ser descoberta uma preta Ana ainda escrava, em uma casa de S. Paulo. Ap�s quatro anos de liberdade, � de se lhe tirar o chap�u. Epim�nides tamb�m dormiu por longu�ssimos anos, e quando acordou j� corria outra moeda; mas dormia sem pancadas. A preta Ana dormiu na escravid�o, n�o sabendo at� ontem que estava livre; mas como o sono da escravid�o s� se prolonga com a dormideira do chicote, a preta Ana para n�o acordar e saber casualmente que a liberdade come�ara, bebia de quando em quando a miraculosa po��o. O caso produziu imenso abalo; o tel�grafo transmitiu a not�cia e todos os nomes.

Mas tudo isso teve de ceder ao simples X do problema. Um distinto e antigo parlamentar, ao cabo de quatro artigos, esta semana, fez a divulga��o de um rem�dio a todas as nossas dificuldades.

Sem dissimular as suas velhas tend�ncias republicanas, nem contestar os benef�cios mon�rquicos, o autor entende que a na��o ainda n�o disse o que queria, como n�o disse em 1824 com o outro reg�men, por falta de uma c�mara especial; e prop�e que se convoque uma assembl�ia de quinhentos deputados, gratuitos, a qual avocar� a si todas as atribui��es do poder executivo e escolher� uma forma de governo.

Como a minha obriga��o n�o � discutir a semana, mas t�o somente cont�-la, e, por outro lado, n�o entendo eu de medicina pol�tica ou de qualquer outra, aqui me fico, sem acrescentar mais que uma palavra, a saber, que a assembl�ia dos quinhentos, longe de ser o ovo de Colombo, parece um simples ovo de Conven��o Nacional. Agora, se o ovo traz dentro de si uma �guia ou um peru, � o que n�o sei; por vontade minha, traria um peru, � n�o porque eu desestime aquele nobre animal, mas por esta raz�o gulosa. �guia n�o se come, e a assembl�ia dos quinhentos seria um excelente prato, lardeado de fac��es, de impreca��es, de confus�es, de conspira��es, tudo no plural, exceto a dissolu��o, que seria no singular. Por for�a que entre quinhentos son�mbulos havia de haver um homem acordado, forte e ambicioso, que contentasse a todos dizendo: � Meus filhos, podem ir descansados; eu fico sendo democrata e imperador. Juntam-se assim as duas formas de governo, como as rosas de Garrett:

Ei-las aqui bem iguais,

Mas n�o rivais.

Se h�, por�m, ilus�o da minha parte, e se a assembl�ia dos quinhentos pode fazer o que o autor promete, ent�o retiro a palavra e assino a proposta. Aparentemente � pouco pr�tica, mas a teoria tamb�m � deste mundo. Os seus fins, ainda que �rduos, s�o sublimes: trata-se de recome�ar a hist�ria. Bacon n�o recome�ou o entendimento humano? Assim, a assembl�ia ter� sido o ovo da felicidade p�blica.

Tudo � ovo. Quando o Sr. deputado Vinhais, no intuito de canalizar a torrente socialista, criou e disciplinou o partido oper�rio, estava longe de esperar que os patr�es e negociantes iriam ter com ele um dia, nas suas dificuldades, como aconteceu agora na quest�o dos carrinhos de m�o. Assim, o partido oper�rio pode ser o ovo de um bom partido conservador. Amanh� ir�o procur�-lo os diretores de bancos e companhias, quando menos para protestar contra a proposta de um acionista de certa sociedade an�nima, cujo t�tulo me escapa. Sei que o acionista chama-se Maia. O Sr. Maia prop�s, e a assembl�ia aprovou, que ao conselho diretor fosse vedado subscrever ou comprar a��es de outras companhias, de qualquer natureza. Realmente, n�o se pode fazer pior servi�o aos outros e a si mesmo. Viva aquele padre que, pregando um serm�o de quaresma, dizia que as velas com que se alumiava o Alt�ssimo eram de cera e sebo, e que as almas pias deviam compr�-las na casa de um seu irm�o, que era o �nico que as fabricava de cera pura. O padre salvava explicitamente o irm�o; mas o que � que salva o Sr. Maia?

Da� pode ser que eu entenda tanto de economia pol�tica, como de medicina pol�tica. Efetivamente, vereador era o meu sonho. Quando mudaram o nome para intendente, n�o gostei a princ�pio, porque trocaram uma palavra vern�cula por outra cosmopolita; mas, como ficava sempre o cargo, ficou a ambi��o e continuei a namorar a casa da c�mara. Dizem que h� l� barulho; tanto melhor, eu nunca amei a conc�rdia. Conc�rdia e p�ntano � a mesma fonte de miasmas e de mortes. Um grego d� a guerra como o ovo d� vida.

Aqui volta o ovo aos bicos da pena. Se esta cr�nica n�o � uma fritada, � s� porque lhe falta cozinheiro. Tudo � ovo, repito. A armada em que Pedro �lvares Cabral descobriu esta parte da Am�rica, foi o ovo da Rua do Ouvidor e da conseq�ente casa Ketele. Noto a casa Ketele, n�o porque lhe tenha nenhuma afei��o, particular; nunca l� fui. Se l� fosse, nunca a citaria. � meu velho prop�sito n�o citar os amigos, deix�-los em uma relativa obscuridade. Tudo � ovo, amigo. A carta que est�s escrevendo � tua namorada, pode ser o ovo de dois galhardos rapazes, que antes de 1920 estejam secret�rios de lega��o. Pode ser tamb�m o ovo de quatro sopapos que te fa�am mudar de rumo. Tudo � ovo. O pr�prio ovo da galinha, bem considerado, � um ovo.

22 de maio

Este Tiradentes, se n�o toma cuidado em si, acaba inimigo p�blico. Pessoa, cujo nome ignoro, escreveu esta semana algumas linhas com o fim de retificar a opini�o que vingou durante um longo s�culo acerca do grande m�rtir da Inconfid�ncia. �Parece; (diz o artigo no fim), parece injusti�a dar-se tanta import�ncia a Tiradentes, porque morreu logo, e n�o prestar a menor considera��o aos que morreram de mol�stias e mis�rias na costa d��frica�. E logo em seguida chega a esta conclus�o: �N�o ser� poss�vel imaginar que, se n�o fosse a indiscri��o de Tiradentes, que causou o seu supl�cio, e o dos outros, que o empregaram, teria realidade o projeto?�

Daqui a espi�o de pol�cia � um passo. Com outro passo chega-se � prova de que nem ele mesmo morreu; o vice-rei mandou enforcar um furriel muito parecido com o alferes, e Tiradentes viveu, at� 1818, de uma pens�o que lhe dava D. Jo�o VI. Morreu de um antraz na antiga Rua dos Latoeiros entre as do Ouvidor e do Ros�rio, em uma loja de barbeiro, dentista e sangrador, que ali abriu em 1810, a conselho do pr�prio D. Jo�o, ainda pr�ncipe regente, o qual lhe disse (formais palavras):

� Xavier, j� que n�o podes ser alferes, toma por of�cio o que fazias antes por curioso; vou mandar dar-te umas casas da Rua dos Latoeiros.

� Oh! meu senhor.

� Mas n�o digas quem �s. Muda de nome, Xavier; chama-te Barbosa. Compreendes, n�o? O meu fim � criar a lenda de que tu � que foste o m�rtir e o her�i da Inconfid�ncia e diminuir assim a gl�ria de Jo�o Alves Maciel.

� Pr�ncipe seren�ssimo, n�o h� d�vida que esse � que foi o chefe da detest�vel conjura��o.

� Bem sei, Barbosa, mas � do meu real agrado pass�-lo ao segundo plano; para fazer crer que, apesar dos servi�os que prestou, das qualidades que tinha, e das cartas de J�ferson, pouco valeu, e que tu � que vales tudo. � um plano maquiav�lico, para desmoralizar a conjura��o. Compreendes agora?

� Tudo, meu senhor.

� Assim, � bem poss�vel que, se algum dia, quiserem levantar um monumento � Inconfid�ncia, v�o buscar por s�mbolo o m�rtir, dando assim excessiva import�ncia ao alferes indiscreto, que p�s tudo de pernas para o ar, a pretexto de haver morrido logo. N�o abanes a cabe�a; tu n�o conheces os homens. Adeus; passa pela ucharia, que te d�em um caldo de vaca, e pede por Sua Real Majestade e por mim nas tuas ora��es. Consinto que tamb�m rezes pelo furriel. Como se chamava? Esquece-me sempre o nome.

� Marcolino.

� Reza pelo Marcolino.

� Ah! Senhor, os meus cru�is remorsos, nunca ter�o fim!

� Barbosa, tem sempre os remorsos de um real vassalo!

E assim ficar� retificada a hist�ria antes de 1904 ou 1905. Tiradentes ser� apeado do pedestal que lhe deu um sentimentalismo mofento, que se lembra de glorificar um homem s� porque morreu logo, como se algu�m n�o morresse sempre antes de outros, e, demais, enforcado, que � morte pronta. Quanto ao esquartejamento e exposi��o da cabe�a, est� provado emp�rica e cientificamente que cad�ver n�o padece, e tanto faz cortar-lhe as pernas como dar-lhe umas cal�as. Mas ainda restar� alguma coisa ao alferes; pode-se-lhe expedir a patente de capit�o honor�rio. Se est� no c�u, e se os m�rtires formam l� em cima, pode comandar uma companhia. Antes isso que nada. Antes mandar na morte do que ser mandado na vida.

Dispenso o leitor da disserta��o que podia fazer sobre este assunto, assim como o dispenso de ouvir-me falar das casas desabadas e do lixo.

Tudo foi tristeza no desabamento da Rua do Carmo e n�o quero ser triste; tudo foi admira��o para os valentes que correram ao trabalho e para os piedosos que acudiram a vivos e a mortos, e eu n�o quero admirar coisa nenhuma.

No lixo quase tudo � porco. Um s� reparo fa�o, e sem exemplo. Todos viram os mont�es daquele detrito ao p� do barrac�o onde o nosso artista Victor Meirelles mostra o panorama do Rio de Janeiro. Suspeito que aquilo foi id�ia do pr�prio Victor Meireles. Conta-se de um empres�rio de teatro, que para dar mais perfeita sensa��o de certo trecho musical, cujo assunto eram flores, mandou encher a sala do espet�culo de ess�ncia de violetas. Talvez a id�ia do nosso artista fosse proporcionar aos nossos visitantes a vantagem de ver e cheirar o Rio de Janeiro, ao mesmo tempo, tudo por dois mil r�is.

Cor local, aroma local, vem a dar no mesmo princ�pio est�tico. O pior � que a empresa Gary, que n�o pode ser suspeita de est�tica, desfez a grande pir�mide em uma noite.

E quem sabe se a escolha daquele lugar para exibi��o do panorama, n�o traria l� em si, inconscientemente, a id�ia do lixo ao p�? Quem tiver ouvidos, ou�a.

Eu tenho uma teoria das id�ias, que � a coisa mais consp�cua deste fim de s�culo. N�o a publico t�o cedo, porque ainda preciso completar as verifica��es, aperfei�oar os estudos, a fim de n�o dar estouvadamente ao p�blico um trabalho obscuro e manco. Quando muito, posso indicar alguns vagos lineamentos.

Pela minha teoria, as id�ias dividem-se em tr�s classes, umas votadas � perfeita virgindade, outras destinadas � procria��o e outras que nascem j� de barriga. Esta divis�o explica toda a civiliza��o humana. Para onde quer que lancemos os olhos, qualquer que seja a ra�a, o meio e o tempo, acharemos a genealogia distinta destas tr�s classes de id�ias, isto desde o princ�pio do mundo at� a hora em que a folha sair do prelo. Assim, a id�ia de Eva, quando se resolveu a desobedecer ao Senhor, vinha j� gr�vida da id�ia de Caim.

Ao contr�rio, a minha id�ia de possuir duzentos contos, morre com o v�u de donzela, a menos que algum leitor opulento a queira fecundar. Ela n�o pede outra coisa.

Mas tomemos um exemplo da semana.

Vamos a um artigo an�nimo e bem escrito, com o t�tulo � Uma id�ia, que at� por esta circunst�ncia nos serve. A id�ia de que se trata � precedida de uma exposi��o relativa � Companhia Geral de Estradas de Ferro, exposi��o que, sem negar o exagero que houve acerca do estado da companhia, tem por certo que o mal � grav�ssimo, e que a queda da companhia acarretar� incalcul�veis damos ao Brasil: �O dinheiro do povo (diz o artigo), � sangue que n�o corre ilesamente�. E depois de estabelecer que, com as estradas que possui, a companhia pode dar muito dinheiro, prop�e a id�ia, que � esta: O governo fica com as estradas e com as d�vidas.

S�o bem achadas e expostas com clareza as condi��es de encampa��o. Duas parecem ser as principais. A primeira � que quem pagou o pre�o integral das a��es n�o recebe nada, e quem s� pagou uma parte, digamos um d�cimo � n�o paga nada. A diferen�a est� nos verbos receber e pagar; o mais � nada. A segunda � trocar o Governo os deb�ntures por t�tulos de cem mil r�is, com juro de 6%, n�o ao m�s, mas ao ano, que � sempre um prazo mais largo. Feito isto, sobe o c�mbio.

Ora bem, esta id�ia, que aparentemente aguarda um esposo, j� nasceu gr�vida. A id�ia que vive dentro dela, sem que ela o saiba, nem o autor, � em tudo igual � m�e, posto traga apar�ncia contr�ria. Tem-se visto senhoras morenas darem de si filhas loiras. A filha loira aqui seria esta: em vez do tesouro pegar na companhia, a companhia pega no tesouro. Refiro-me �s garantias, est� claro, �s responsabilidades, ao endosso do Estado. Mas isto pede c�lculos infinitos, e eu tenho mais que fazer. Adeus.

29 de maio

O velho Dumas, ou Dumas I, em uma daquelas suas deliciosas fantasias escreveu esta frase: �Um dia, os anjos viram uma l�grima nos olhos do Senhor: essa l�grima foi o dil�vio.�

Uma l�grima! Ai, uma l�grima! Quem nos dera essa l�grima �nica! Mas o mundo cresceu do dil�vio para c�, a tal ponto que um l�grima apenas chegaria a alagar Sergipe ou a B�lgica. Agora, quando os anjos v�em alguma coisa nos olhos do Senhor, j� n�o � aquela gota solit�ria, que tombou e alagou um mundo nascente e mal povoado. Caem as l�grimas �s quatro e quatro, �s vinte e vinte, �s cem e cem, � um pranto desfeito, uma lamenta��o cont�nua, um gemer que se desfaz em ventos impetuosos, contra os quais nada podem os homens, nem as minhas �rvores, que se estorcem com desespero.

Maio fez-se abril. Diz-se que de um a outro n�o h� muito que rir. H� que rir, mas � abril que se riu de maio, este ano, ele que era o m�s das �guas, enquanto o outro era chamado das flores. Abril n�o quis ir buscar as l�grimas do Senhor, certo de que este of�cio caberia a outro, e n�o seria junho, m�s dos santos folgaz�es, das fogueiras, dos bal�es, que no meu tempo eram chamados m�quinas.

L� vai a m�quina! Olha a m�quina! E todos os dedos ficavam espetados no ar, indicando o bal�o vermelho que subia, at� perder-se entre as estrelas. Outras vezes (a tal ponto os bal�es imitam os homens), ardiam a meio caminho, ou logo acima dos telhados.

Bom tempo! Nem sei se choveu alguma vez por aqueles anos. Creio que n�o. Houve um largo intervalo de riso no c�u, de olhos enxutos, que fez tudo azul, perpetuamente azul.

Cresci, mudou tudo. Agora � �gua e mais �gua, apenas interrompidas por um triste sol p�lido e constipado, em que n�o confio muito. Vento e mais vento. Cerra��o e naufr�gios.

Pobre Solim�es! Uma s� daquelas gotas e um s� daqueles gemidos bastaram a lan�ar no fundo do mar tantas vidas preciosas. H� ainda quem espere algum desmentido; outros descr�em de tudo e n�o esperam nada. Talvez n�o seja o melhor. A esperan�a � longa, e pode fazer por muito o of�cio de verdade.

A vi�va de um comandante, cujo navio naufragou h� tempos, gastou dois anos a esper�-lo. Quando chegou o desespero, a alma estava acostumada.

Seja como for, os vivos acudiram aos mortos, a piedade abriu a bolsa, por toda a parte houve um movimento, que � justo assinalar.

A dor � humana, e os nossos h�spedes mostram-se tamb�m compassivos. Oxal� seja sempre patri�tica.

Ao tempo em que perd�amos o Solim�es, o presidente da Rep�blica Argentina anunciava em sua mensagem ao Congresso: �A marinha aumenta, e a esquadra possui torpedeiras, de modo a ser ela a primeira da Am�rica�. Mudo de assunto, para obedecer ao poeta: �Glissez, mortels, n�appuyez pas�.

Que outro assunto?

O primeiro que se oferece � a c�mara dos deputados, que, ap�s longos dias de aus�ncia e interrup��es, come�ou a trabalhar, e parece que com for�a, calor, verdadeira guerra. Alguns jornais tinham notado as faltas de sess�es, infligindo � c�mara uma censura, que a rigor n�o lhe cabe. � certo que a elei��o da meia arrastou-se, por dias, e a da comiss�o do or�amento durou uma sess�o inteira. Mas n�o basta censurar, � preciso explicar. Se bastassem cr�ticas, j� eu tinha carro, porque uma das tristezas dos meus amigos � este espet�culo que dou, todos os dias, calcante pede. N�o se pode julgar uma institui��o, sem estudar o meio em que ela funciona.

Ora, � certo que n�s n�o damos para reuni�es. N�o me repliquem com teatros nem bailes; a gente pode ir ou n�o a eles, e se vai � porque quer, e quando quer sair, sai. H� os ajuntamentos de rua, quando algu�m mostra um assovio de dois sopros, ou um frango de quatro cristas. Uma facada re�ne gente em torno do ferido, para ouvir a narra��o do crime, como foi que a v�tima vinha andando, como recebeu o empurr�o, e se sentiu logo o golpe. Quando algum bonde pisa uma pessoa, s� n�o acode o cocheiro, porque tem de evadir-se; mas todos cercam a v�tima. H� dias, na Rua do Ouvidor, um gatuno agarrou os pulsos de uma senhora, abriu-lhe as pulseiras, meteu-as em si, e fez como, os cocheiros. Mas n�o faltaram pessoas que rodeassem a senhora, apitando muito.

Tudo por qu�? Porque s�o atos volunt�rios, n�o h� calend�rios, nem rel�gio, nem ordem do dia; n�o h� regimentos. O que n�o podemos tolerar � a obriga��o. Obriga��o � eufemismo de cativeiro: tanto que os antigos escravos diziam sempre que iam � sua obriga��o, para significar que iam � casa dos senhores. N�s fazemos tudo por vontade, por escolha, por gosto; e, de duas uma: ou isto � a perfei��o final do homem, ou n�o passa das primeiras verduras. N�o � preciso desenvolver a primeira hip�tese; � clara de si mesma. A segunda � a nossa virgindade, e, quando menos em mat�ria de amofina��es pol�ticas ou municipais, � preciso aceitar a teoria de Rousseau: o homem nasce puro. Para que corromper-nos?

H� um costume que prova ainda a minha tese. Quando uma assembl�ia de acionistas acaba os seus trabalhos, levanta-se um deles e prop�e que a Mesa fique autorizada a assinar a ata por todos. A assembl�ia concorda sempre, e dissolve-se. Parece nada, e � muito; � ind�cio de que, enquanto se tratava de ouvir ler as contas, a tarefa podia ser tolerada, posto nada haja mais enfadonho que algarismos; mas aquilo de assinar um, assinar outro, passar a pena de m�o em m�o, guarda-chuva entre as pernas, confessemos que � para vexar a gente, que deu o seu dinheiro.

Eu c�, posso n�o dar aten��o a pareceres e outras prosas; mas a proposta de assinatura pela diretoria, em assembl�ia a que eu perten�a, � minha.

5 de junho

N�o � s� o inferno que est� cal�ado de boas inten��es. O c�u emprega os mesmos paralelep�pedos. Assim que, a id�ia de organizar um Club C�vico, destinado a desenvolver o sentimento de patriotismo, entre n�s, merece o aplauso dos bons cidad�os. Apareceu esta semana, e vai ser posta em pr�tica.

Pode acontecer que o resultado valha menos que o esfor�o; nem por isso perde de pre�o o impulso dos autores. A boa inten��o cal�a, neste caso, o caminho do c�u. Se cada um entender que o seu neg�cio vale mais que o de todos, e que antes perder a p�tria que as botas, nem por isso desmerece a inten��o dos que se puserem � testa da propaganda contr�ria. Levem as botas os que se contentarem com elas; os que amam alguma coisa mais que a si mesmos, ainda que poucos, salvar�o o futuro.

H� um patriotismo local, que n�o precisa ser desenvolvido, � o das antigas circunscri��es pol�ticas, que passaram � rep�blica com o nome de Estados. Esse desenvolve-se por si mesmo, e poderia at� prejudicar o patriotismo geral, se fosse excessivo, isto �, se a id�ia de soberania e independ�ncia dominasse a de organismo e depend�ncia rec�proca; mas � de crer que n�o. Haver� exce��es, � verdade. Nesta semana, por exemplo, vimos todos um telegrama de um Estado (n�o me ocorre o nome) resumindo a resposta dada pelo presidente a um ministro federal, que lhe recomendara n�o sei que, em aviso. Disse o presidente que n�o reconhecia autoridade no ministro para recomendar-lhe nada. N�o sei se � verdadeira a not�cia, mas tudo pode acontecer debaixo do c�u. Por isso mesmo � que ele � azul: � para dar esta cor �s superf�cies mais arrenegadas do nosso mundo.

E da� pode ser que a raz�o esteja do lado do presidente (presidente ou governador, que eu j� n�o sei a quantas ando). Crer que o ministro federal fala em nome do presidente da Uni�o, e que a Uni�o � a vontade geral dos Estados, � neg�cio de sentido t�o sutil, que n�o passa dos sub�rbios ou da barra; arrebenta logo no Engenho Velho, ou em Santa Cruz. O que chega l� fora, � o antigo modo de ver o centro, o opressor, o Rio de Janeiro, a vontade pessoal, o capricho, o sorvedouro, e o diabo. Que culpa tem o governador (salvo seja) de ler pela cartilha velha?

Tudo isso se modificar� com o tempo, e os Estados acabar�o de acordo sobre o que � soberania. Pela minha parte, s� uma coisa me d�i na composi��o dos Estados: � o nascimento da palavra co-estaduano. N�o � mal feita, e admito at� que seja bonita; mas eu sou como certas crian�as que estranham muito as caras novas, e n�o raro acabam importunando os respectivos donos com brincos. Pode ser que eu ainda trepe aos joelhos de co-estaduano, que lhe tire o rel�gio da algibeira e que lhe puxe os dedos e o nariz. Por enquanto, escondo-me nas saias da ama seca. Co-estaduano tem os olhos muito arregalados. Co-estaduano quer comer eu.

Podem retorquir-me que � pior, que eu sou carioca, e dentro em pouco, organizado o Distrito Federal, fico com milhares de co-distritanos. Concordo que � mais duro; mas ser� o que for, tomara eu j� ver organizado o distrito. A nova assembl�ia local acabar� provavelmente com a mania de condenar casas � demoli��o. S� no m�s passado foram condenadas mais de quarenta. Ora, eu pergunto se o direito de propriedade acabou. Eu, dono de duas daquelas casas, a quem recorrerei? Para tudo h� limite, defesa, explica��o. Uma casa sem livros ou com livros mal escriturados, outra sem dinheiro, outra sem ordem, acham amparo nas leis, ou, quando menos, na vontade dos homens. Por que n�o ter�o igual fortuna as casas de pedra ou de tijolo? Que certeza h� de que uma casa venha a cair, pela opini�o do engenheiro X, se eu tenho a do engenheiro Z, que me afirma a sua perfeita solidez, e ambos estudaram na mesma escola? J� admito que o meu engenheiro desse aquela opini�o com o fim exclusivo de me ser agrad�vel; mas onde � que a delicadeza de sentimentos de um homem destr�i o direito anterior e superior de outro?

Estas quest�es pessoais irritam-me de maneira que n�o posso ir adiante. Sacrifico o resto da semana.

N�o trato sequer da reuni�o de propriet�rios e oper�rios, que se realizou quinta-feira no sal�o do Centro do Partido Oper�rio, a fim de protestar contra uma postura; fato importante pela defini��o que d� ao socialismo brasileiro. Com efeito, muita gente, que julga das coisas pelos nomes, andava aterrada com a entrada do socialismo na nossa sociedade, ao que eu respondia: 1�, que as id�ias diferem dos chap�us, ou que os chap�us entram na cabe�a mais facilmente que as id�ias, � e, a rigor, � o contr�rio, � a cabe�a que entra nos chap�us; 2�, que a necessidade das coisas � que traz as coisas, e n�o basta ser batizado para ser crist�o. �s vezes nem basta ser provedor de Ordem Terceira.

Outrossim, n�o me refiro ao pugilato paraguaio, que ali�s dava para vinte ou trinta linhas. A influenza argentina (mol�stia) com os quatorze mil atacados de Buenos Aires merecia outras tantas linhas, para o �nico fim de dizer que um afilhado meu, doutor em medicina, pensa que o homem � o condutor pronto e seguro do bacilo daquela terr�vel peste, mas que eu n�o acredito, nem no bacilo do mal, nem na balela, que � alem�. Gente alem�, quando n�o tem que fazer, inventa micr�bios.

Excluo os neg�cios de Mato Grosso, o servi�o dos bondes de Botafogo e Laranjeiras, as liquida��es de companhias, os editais, as pris�es, as incorpora��es e as desincorpora��es. Uma s� coisa me levar� algumas linhas, e poucas em compara��o com o valor da mat�ria. Sim, chegou, est� a�, n�o tarda... N�o tarda a aparecer ou a chegar a companhia l�rica. Tudo cessa diante da m�sica. Pol�tica, Estados, finan�as, desmoronamentos, trabalhos legislativos, narc�ticos, tudo cessa diante da bela �pera, do belo soprano e do belo tenor. � a nossa �nica paix�o, � a maior, pelo menos. Tout finit par des chansons, em Fran�a. No Brasil, tout finit par des op�ras, et m�me un peu par des operettes... Tiens! J�ai oubli� ma langue.

12 de junho

Estava eu muito descansado, lendo as atas das sociedades an�nimas, quando dei com a Companhia F�brica de Biscoitos Internacional. Nada mais natural, uma vez que ela estava impressa; mas ningu�m me h� de ver contar nada sem um pensamento, uma descoberta, uma solu��o, um mist�rio, algo que valha a pena ocupar a aten��o do leitor. Vamos aos biscoitos.

A diretoria deu conta dos seus trabalhos, e do grande inc�ndio que destruiu a f�brica: tratou da reconstru��o e dos novos aparelhos, e continuou: �At� o lament�vel sinistro da noite de 17 de dezembro, as latas para o acondicionamento dos biscoitos nos eram fornecidas pela Companhia de Artefatos de Folha de Flandres...�

Ecco il problema e a solu��o. Est� achado o segredo do torvelinho econ�mico dos �ltimos anos. As sociedades an�nimas, que nos pareciam uma enxurrada, formavam assim um sistema, e as inaugura��es n�o eram tantas, sen�o porque a cada Companhia F�brica de Biscoitos correspondesse uma Companhia de Artefatos de Folha de Flandres. N�o posso fazer aqui uma lista de exemplos, estou escrevendo a cr�nica; mas o leitor, que apenas se d� ao trabalho de l�-la, considere se � poss�vel admitir um Banco dos Pobres sem um Banco da Bolsa, a fim de que os acionistas do primeiro v�o buscar dinheiro ao segundo. O Banco Construtor tem o seu natural complemento no Banco dos Oper�rios, e vice-versa. A Companhia Farmac�utica �, por assim dizer, a primeira parte da Companhia Manufatora de Caix�es, e assim por diante. Da� a conseq�ente redu��o das sociedades an�nimas a metade do que parecem � primeira vista.

Creiam-me, n�o h� problemas insol�veis. Tudo neste mundo nasce com a sua explica��o em si mesmo; a quest�o � cat�-la. Nem tudo se explicar� desde logo, � verdade; o tempo do trabalho varia, mas haja paci�ncia, firmeza e sagacidade, e chegar-se-� � decifra��o. Eu se algum dia for promovido de cr�nica a hist�ria, afirmo que, al�m de trazer um estilo b�rbaro pr�prio do of�cio, n�o deixarei nada por explicar, qualquer que seja a dificuldade aparente, ainda que seja o caso sucedido quarta-feira, na C�mara, onde, feita a chamada, responderam 103 membros, e indo votar-se, acudiram 96, havendo assim um d�ficit de sete. Como simples cr�nica, posso achar explica��es f�ceis e naturais; mas a hist�ria tem outra profundeza, n�o se contenta de coisas pr�ximas e simples. Eu iria ao passado, eu penetraria...

A prop�sito, lembra-me um costume que havia na C�mara dos Comuns de Inglaterra, quando a sess�o n�o era interrompida, nem para jantar, como agora. Os deputados, saindo para jantar, formavam casais, isto �, um conservador e um liberal obrigavam-se mutuamente a n�o voltar ao recinto sen�o juntos. Cosas de Espa�a, diria eu, se o costume fosse espanhol. O fim disto era impedir que um partido jantasse mais depressa que o outro, e fizesse passar uma lei ou mo��o. Mas n�o cuideis que a cautela produzisse sempre o mesmo efeito; era preciso que os ingleses n�o fossem homens, e os ingleses s�o homens, e �s vezes grandes homens. Na noite de 13 do m�s passado, um membro da C�mara dos Comuns prop�s a revoga��o de um artigo de lei que admitia o voto de cidad�os analfabetos. Outro membro, Fu�o Lawson, apoiou a proposta, e disse, entre outras coisas: �Este artigo que admite o voto dos analfabetos, passou aqui na hora do jantar, quando n�o havia liberais na casa, e passou com grande g�udio de um velho conservador, que literalmente dan�ou no recinto, exclamando: �Agora que temos o artigo dos analfabetos, tudo vai andar muito direito�.

Por isso, e por outras raz�es, n�o dou de conselho que imitemos o costume dos casais parlamentares. Convenhamos antes, que cada terra tem seu uso. Olhai, fez outro dia um ano que se instalou o Congresso de um dos nossos Estados, e, para comemorar o fato, fecharam-se o Congresso e as reparti��es p�blicas. Realmente, o fato tem import�ncia local, tanta quanta, para os ingleses, tem o anivers�rio da rainha Victoria; mas cada roca com seu fuso. No parlamento ingl�s, quando a rainha faz anos, o presidente levanta-se e profere algumas palavras em honra da soberana; o leader do governo e o leader da oposi��o fazem a mesma coisa: ao todo, cem linhas impressas, e come�am os trabalhos, at� Deus sabe quando, meia noite, uma, duas horas da madrugada.

Cada terra com seu uso. Se tal costume existisse aqui, no tempo do imp�rio, as coisas n�o se passariam talvez com tanta simplicidade. Era naturalmente um regalo para a oposi��o, cujo leader desfecharia dois ou tr�s epigramas contra o imperador, se fosse homem alegre; se fosse l�gubre, daria uma tradu��o de Jeremias em dialeto parlamentar. Por outro lado, o leader do governo dificilmente chegaria ao fim do discurso, muitas vezes interrompido: �Diz V. Exa. muito bem; Sua Majestade � a opini�o coroada�. E logo um oposicionista: �H� dois anos V. Exa. dizia justamente o contr�rio�. O presidente da C�mara: �Aten��o!�

N�o sei bem onde t�nhamos ficado, antes desta digress�o. Fosse onde fosse, vamos ao fim, que � mais �til, n�o sem dizer que esta cr�nica alegra-se com o restabelecimento do governador do Par�, Dr. Lauro Sodr�, cuja recep��o naquele Estado foi brilhante. Creio que disse governador; disse, disse governador. Governador como o da Virg�nia, o da Pensilv�nia, o de New York, o de todos os Estados da outra Uni�o. � esquisito! Dizem que o esp�rito latino � essencialmente sim�trico, ao contr�rio do anglo-sax�nico, e � aqui que se d� este transtorno no t�tulo do primeiro magistrado de cada Estado. � um desvio de regra, que se pode corrigir, dando ao pequeno resto de governadores o t�tulo de presidentes Siete tutti fatti marchesi! E n�o se oponha o governador do Par�. Conta o nosso velho Drummond que, quando se tratou da bandeira do Imp�rio, Jos� Bonif�cio propunha o verde claro, mas Pedro I queria o verde escuro, por ser a cor da casa de Bragan�a; ao que Jos� Bonif�cio cedeu logo, mais ocupado com o miolo que com a casca. Penso que o texto n�o diz casca (li-o h� muitos anos), mas no fim d� certo.

Post-scriptum. � Recebi algumas linhas mui corteses, assinadas Roland, autor do artigo Uma id�ia, em que se propunha a encampa��o das estradas de ferro da Companhia Geral. Aludi a essa proposta em uma das minhas cr�nicas, � com ironia, diz o meu correspondente, e pode ser que sim; mas a ironia n�o alcan�ava a sinceridade do projeto, e sim os seus efeitos. Posso estar em erro; entretanto, devo ressalvar dois pontos da carta: 1�, que n�o tenho nenhum parti-pris; 2�, que n�o possuo deb�ntures. Nem �dio nem interesse.

19 de junho

O Banco Iniciador de Melhoramentos acaba de iniciar um melhoramento, que vem mudar essencialmente a composi��o das atas das assembl�ias gerais de acionistas.

Estes documentos (toda a gente o sabe) s�o o resumo das delibera��es dos acionistas, quer dizer uma narra��o sum�ria, em estilo indireto e seco, do que se passou entre eles, relativamente ao objeto que os congregou. N�o d�o a menor sensa��o dos movimentos e da vida dos debates. As narra��es liter�rias, quando se regem por esse processo, podem vencer o t�dio, � for�a de talento, mas � evidentemente melhor que as coisas e pessoas se exponham por si mesmas, dando-se a palavra a todos, e a cada um a sua natural linguagem.

Tal � o melhoramento a que aludo. A ata que aquela associa��o publicou esta semana, � um modelo novo, de extraordin�rio efeito. Nada falta do que se disse, e pela boca de quem disse, � maneira dos debates congressionais.� �Pe�o a palavra pela ordem� � �Est� encerrada a discuss�o e vai-se proceder � vota��o. Os senhores que aprovam queiram ficar sentados.� Tudo assim, qual se passou, se ouviu, se replicou e se acabou.

E basta um exemplo para mostrar a vantagem da reforma. Tratando-se de resolver sobre o balan�o, consultou o presidente � assembl�ia se a vota��o seria por a��es, ou n�o. Um s� acionista adotou a afirmativa; e tanto bastava para que os votos se contassem por a��es, como declarou o presidente; mas outro acionista pediu a palavra pela ordem. �Tem a palavra pela ordem.� E o acionista: �Pe�o a V. Exa., Sr. presidente, que consulte ao Sr. acionista que se levantou, se ele desiste, visto que a vota��o por a��es, exigindo a chamada, tomar� muito tempo�. Consultado o divergente, este desistiu, e a vota��o se fez per capita. Assim ficamos sabendo que o tempo � a causa da supress�o de certas formalidades exteriores; e assim tamb�m vemos que cada um, desde que a mat�ria n�o seja essencial, sacrifica facilmente o seu parecer em benef�cio comum.

O pior � se corromperem este uso, e se come�arem a fazer das sociedades pequenos parlamentos. Ser� um desastre. N�s pecamos pelo ruim gosto de esgotar todas as novidades. Uma frase, uma f�rmula, qualquer coisa, n�o a deixamos antes de posta em molambo. Casos h� em que a pr�pria refer�ncia cr�tica ao abuso perde a gra�a que tinha, � for�a da repeti��o; e quando um homem quer passar por ins�pido (o interesse toma todas as formas), alude a uma dessas chatezas p�blicas. Assim morrem afinal os usos, os costumes, as institui��es, as sociedades, o bom e o mau. Assim morrer� o Universo, se se n�o renovar freq�entemente.

Quando, por�m, acabar� o nome que encima estas linhas? N�o sei quem foi o primeiro que comp�s esta frase, depois de escrever no alto do artigo o nome de um cidad�o. Quem inventou a p�lvora? Quem inventou a imprensa, descontando Gutenberg, porque os chins a conheciam? Quem inventou o bocejo, excluindo naturalmente o Criador, que, em verdade, n�o h� de ter visto sem algum t�dio as impaci�ncias de Eva? Sim, pode ser que na alta mente divina estivesse j� o primeiro cons�rcio e a conseq�ente humanidade. Nada afirmo, porque me falta a devida autoridade teol�gica; uso da forma dubitativa. Entretanto, nada mais poss�vel que a Cria��o trouxesse j� em g�rmen uma longa esp�cie superior, destinada a viver num eterno para�so.

Eva � que atrapalhou tudo. E da�, razoavelmente, o primeiro bocejo.

� Como esta esp�cie corresponde j� � sua �ndole! diria Deus consigo. H� de ser assim sempre, impaciente, incapaz de esperar a hora pr�pria. Nunca os rel�gios, que h� de inventar, andar�o todos certos. Por um exato, contar-se-�o milh�es divergentes, e a casa em que dois marcarem o mesmo minuto, n�o apresentar� igual fen�meno vinte e quatro horas depois. Esp�cie inquieta, que formar� reinos para devor�-los, rep�blicas para dissolv�-las, democracias, aristocracias, oligarquias, plutocracias, autocracias, para acabar com elas, � procura do �timo, que n�o achar� nunca.

E, bocejando outra vez, ter� Deus acrescentado:

� O bocejo, que em mim � o sinal do fastio que me d� este espet�culo futuro, tamb�m a esp�cie humana o ter�, mas por impaci�ncia. O tempo lhe parecer� a eternidade. Tudo que lhe durar mais de algumas horas, dias, semanas, meses ou anos (porque ela dividir� o tempo e inventar� almanaques), h� de torn�-la impaciente de ver outra coisa e desfazer o que acabou de fazer, �s vezes antes de o ter acabado.

Compreender� as vacas gordas, porque a gordura d� que comer, mas n�o entender� as vacas magras; e n�o saber� (exceto no Egito, onde porei um mancebo chamado Jos�) encher os celeiros dos anos gra�dos, para acudir � pen�ria dos anos mi�dos. Falar� muitas l�nguas, beresith, anank�, habeas-corpus, sem se fixar de vez em uma s�, e quando chegar a entender que uma l�ngua �nica � precisa, e inventar o volapuck, sucessor do parlamentarismo, ter� come�ado a decad�ncia e a transforma��o. Pode ser ent�o que eu povoe o mundo de can�rios.

Mas se assim explicarmos o primeiro bocejo divino, como acharmos o primeiro bocejo humano? Trevas tudo. O mesmo se d� com o nome que encima estas linhas. Nem me lembra em que ano apareceu a f�rmula. Bonita era, e o verbo encimar n�o era feio. Entrou a reproduzir-se de um modo infinito. Toda a gente tinha um nome que encimar algumas linhas. N�o havia anivers�rio, nomea��o, embarque, desembarque, esmola, inaugura��o, n�o havia nada que n�o inspirasse algumas linhas a algu�m, � �s vezes com o maior fim de encim�-las por um nome. Como era natural, a f�rmula foi-se gastando � mas gastando pelo mesmo modo por que se gastam os sapatos econ�micos, que envelhecem tarde. E todos os nomes do calend�rio foram encimando todas as linhas; depois, repetiram-se:

Si cette histoire vous emb�te

Nous allons la recommencer.

26 de junho

�O minist�rio grego pediu demiss�o. O Sr. Tricoupis foi encarregado de organizar novo minist�rio, que ficou assim composto: Tricoupis, presidente do conselho e Ministro da Fazenda...�

Basta! N�o, n�o reproduzo este telegrama, que teve mais poder em mim que toda a mole de acontecimentos da semana. O minist�rio grego pediu demiss�o! Certo, os minist�rios s�o organizados para se demitirem e os minist�rios gregos n�o podem ser, neste ponto, menos minist�rios que todos os outros minist�rios. Mas, por V�nus! foi para isso que arrancaram a velha terra �s m�os turcas? Foi para isso que os poetas a cantaram, em plena manh� do s�culo, Byron, Hugo, o nosso Jos� Bonif�cio, autor da bela Ode aos Gregos? �Sois helenos! sois homens!� conclui uma de suas estrofes. Homens, creio, porque � pr�prio de homens formar minist�rios; mas helenos!

Sombra de Arist�teles, espectro de Licurgo, de Draco, de S�lon, e tu, justo Aristides, apesar do ostracismo, e todos v�s, legisladores, chefes de governo ou de ex�rcito, fil�sofos, pol�ticos, acaso sonhastes jamais com esta imensa banalidade de um gabinete que pede demiss�o? Onde est�o os homens de Plutarco? Onde v�o os deuses de Homero? Que � dos tempos em que Asp�sia ensinava ret�rica aos oradores? Tudo, tudo passou. Agora h� um parlamento, um rei, um gabinete e um presidente de conselho, o Sr. Tricoupis, que ficou com a pasta da Fazenda. Ouves bem, sombra de P�ricles? Pasta da Fazenda. E notai mais que todos esses movimentos pol�ticos se fazem, metidos os homens em casacas pretas, com sapatos de verniz ou cordov�o, ao cabo de mo��es de desconfian�a...

Oh! mil vezes a domina��o turca! Horr�vel, decerto, mas pitoresca. Aqueles pax�s, perseguidores do giaour, eram deliciosos de poesia e terror. Vede se a Turquia atual j� aceitou minist�rios. Um gr�o-vizir, nomeado pelo padix�, e alguns ajudantes, tudo sem c�mara, nem votos. A R�ssia tamb�m est� livre da lepra ocidental. Tem o niilismo, � verdade; mas n�o tem o bimetalismo, que passou da Am�rica � Europa, onde come�a a grassar com intensidade. O niilismo possui a vantagem de matar logo. E depois � misterioso, dram�tico, �pico, l�rico, todas as formas da poesia. Um homem est� jantando tranq�ilo, entre uma senhora e uma pilh�ria, deita a pilh�ria � senhora, e, quando vai a erguer um brinde... estala uma bomba de dinamite. Adeus, homem tranq�ilo: adeus, pilh�ria; adeus, senhora. � violento; mas o bimetalismo � pior.

Do bimetalismo ao nosso velho amigo pluripapelismo n�o � curta a dist�ncia, mas daqui ao c�mbio � um passo; pode parecer at� que n�o falei do primeiro sen�o para dar a volta ao mundo. Engano manifesto. Hoje s� trato de telegramas, que a� est�o de sobra, norte e sul. Aqui v�m alguns de Pernambuco, dizendo que as intend�ncias municipais tamb�m est�o votando mo��es de confian�a e desconfian�a pol�tica. Haver� quem as censure; eu compreendo-as at� certo ponto.

A mo��o de confian�a, ou desconfian�a no passado reg�men, era uma ambrosia dos deuses centrais. Era aqui na C�mara dos Deputados, que um honrado membro, quando desconfiava do governo, pedia a palavra ao presidente, e, obtida a palavra, erguia-se. Curto ou extenso, mas geralmente t�trico, proferia um discurso em que resumia todos os erros e crimes do minist�rio, e acabava sacando um papel do bolso. Esse papel era a mo��o. De confid�ncias que recebi, sei que h� poucas sensa��es na vida iguais � que tinha o orador, quando sacava o papel do bolso. A alguns tremiam os dedos. Os olhos percorriam a sala, depois baixavam ao papel e liam o conte�do. Em seguida a mo��o era enviada ao presidente, e o orador descia da tribuna, isto �, das pernas que s�o a �nica tribuna que h� no nosso parlamento, n�o contando uns dois p�lpitos que l� puseram uma vez, e n�o serviram para nada.

A� t�m o que era a mo��o. Nunca as assembl�ias provinciais tiveram esse regalo; menos ainda as tristes C�maras Municipais. Mudado o reg�men, acabou a mo��o; mas, n�o se morre por decreto. A mo��o n�o s� vive ainda, mas passou dos deuses centrais aos semideuses locais, e viver� algum tempo, at� que acabe de todo, se acabar algum dia. O caso grego � sintom�tico; o caso japon�s n�o menos. H� mo��es japonesas. Quando as houver chinesas, chegou o fim do mundo; n�o haver� mais que fechar as malas e ir para o diabo.

Outro telegrama conta-nos que alguns clavinoteiros de Canavieiras (Bahia) foram a uma vila pr�xima e arrebataram duas mo�as. A gente da vila ia armar-se e assaltar Canavieiras. Parece nada, e � Homero; � ainda mais que Homero, que s� contou o rapto de uma Helena: aqui s�o duas. Essa luta obscura, escondida no interior da Bahia, foi singular contraste com a outra que se trava no Rio Grande do Sul, onde a causa n�o � uma, nem duas Helenas, mas um s� governo pol�tico. Apuradas as contas, vem a dar nesta velha verdade que o amor e o poder s�o as duas for�as principais da Terra. Duas vilas disputam a posse de duas mo�as; Bag� luta com Porto Alegre pelo direito do mando. � a mesma Il�ada.

Dizem telegramas de S�o Paulo que foi ali achado, em certa casa que se demolia, um esqueleto algemado. N�o tenho amor a esqueletos; mas este esqueleto algemado diz-me alguma coisa, e � dif�cil que eu o mandasse embora, sem tr�s ou quatro perguntas. Talvez ele me contasse uma hist�ria grave, longa e naturalmente triste, porque as algemas n�o s�o alegres. Alegres eram umas m�scaras de lata que vi em pequeno na cara de escravos dados � cacha�a; alegres ou grotescas, n�o sei bem, porque l� v�o muitos anos, e eu era t�o crian�a, que n�o distinguia bem. A verdade � que as m�scaras faziam rir, mais que as do recente carnaval. O ferro das algemas, sendo mais duro que a lata, a hist�ria devia ser mais sombria.

H� um telegrama... Diabo! acabou-se o espa�o, e ainda aqui tenho uma d�zia. Cesta com eles! V�o para onde foi a quest�o do benzimento da bandeira, os guarda-livros que fogem levando a caixa (outro telegrama), e o resto dos restos, que n�o dura mais de uma semana, nem tanto. V�o para onde j� foi esta cr�nica. Fale o leitor a sua verdade, e diga-me se lhe ficou alguma coisa do que acabou de ler. Talvez uma s�, a palavra clavinoteiros, que parece exprimir um costume ou um of�cio. C� vai para o vocabul�rio.

3 de julho

Na v�spera de S�o Pedro, ouvi tocar os sinos. Poucos minutos depois, passei pela igreja do Carmo, catedral provis�ria, ouvi o cantoch�o e orquestra; entrei. Quase ningu�m. Ao fundo, os ilustr�ssimos prebendados, em suas cadeiras e bancos, vestidos daquele roxo dos c�negos e monsenhores, t�o meu conhecido. Cantavam louvores a S�o Pedro. Deixei-me estar ali alguns minutos escutando e dando gra�as ao pr�ncipe dos ap�stolos por n�o haver na igreja do Carmo um carrilh�o.

Explico-me. Eu fui criado com sinos, com estes pobres sinos das nossas igrejas. Quando um dia li o cap�tulo dos sinos em Chateaubriand, tocaram-me tanto as palavras daquele grande esp�rito, que me senti (desculpem a express�o) um Chateaubriand desencarnado e reencarnado. Assim se diz na igreja esp�rita. Ter desencarnado quer dizer tirado (o esp�rito) da carne, e re-encarnado quer dizer metido outra vez na carne. A lei � esta: nascer, morrer, tornar a nascer e renascer ainda, progredir sempre.

Conv�m notar que a desencarna��o n�o se opera como nas outras religi�es, em que a alma sai toda de uma vez. No espiritismo, h� ainda um esfor�o humano, uma cerim�nia, para ajudar a sair o resto. N�o se morre ali com esta facilidade ordin�ria, que nem merece o nome de morte. Ningu�m ignora que h� caso de inuma��es de pessoas meio vivas. A regra esp�rita, por�m, de auxiliar por palavras, gestos e pensamentos a desencarna��o impede que um supro de alma fique metido no inv�lucro mortal.

Posso afirmar o que a� fica, porque sei. S� o que eu n�o sei, � se os sacerdotes esp�ritas s�o como os br�manes, seus av�s. Os br�manes... N�o, o melhor � dizer isto por linguagem cl�ssica. Aqui est� como se exprime um velho autor: �Tanto que um dos pensamentos por que os br�manes t�m tamanho respeito �s vacas, � por haverem que no corpo desta alim�ria fica uma alma melhor agasalhada que em nenhum outro, depois que sai do humano; e assim p�em sua maior bem-aventuran�a em os tomar a morte com as m�os nas ancas de uma vaca, esperando se recolha logo a alma nela.�

Ah! se eu ainda vejo um amigo meu, sacerdote esp�rita, metido dentro de uma vaca, e um homem, n�o desencarnado, a vender-lhe o leite pelas ruas, seguidos de um bezerro magro... N�o; lembra-me agora que n�o pode ser, porque o princ�pio esp�rita n�o � o mesmo da transmigra��o, em que as almas dos valentes v�o para os corpos dos le�es, a dos fracos para os das galinhas, a dos astutos para os das raposas, e assim por diante. O princ�pio esp�rita � fundado no progresso. Renascer, progredir sempre; tal � a lei. O renascimento � para melhor. Cada esp�rita, em se desencarnando, vai para os mundos superiores.

Entretanto, pergunto eu: n�o se dar� o progresso, algumas vezes, na pr�pria Terra? Citarei um fato. Conheci h� anos um velho, bastante alquebrado e assaz culto, que me afirmava estar na segunda encarna��o. Antes disso, tinha existido no corpo de um soldado romano, e, como tal, havia assistido � morte de Cristo. Referia-me tudo, e at� circunst�ncias que n�o constam das escrituras. Esse bom velho n�o falava da terceira e pr�xima encarna��o sem grande alegria, pela certeza que tinha de que lhe caberia um grande cargo. Pensava na coroa da Alemanha... E quem nos pode afirmar que o Guilherme II que a� est�, n�o seja ele? H�, repetimos, coisas na vida que � mais acertado crer que desmentir; e quem n�o puder crer, que se cale.

Voltemos ao carrilh�o. J� referi que entrara na igreja, n�o contei; mas entende-se, que na igreja n�o entram revolu��es, por isso n�o falo da do Rio Grande do Sul. Pode entrar a anarquia, � verdade, como a daquele singular p�roco da Bahia, que, mandado calar e declarado suspenso de ordens, segundo dizem telegramas, n�o obedece, n�o se cala, e continua a paroquiar. Os clavinoteiros tamb�m n�o entram; por isso amea�am Porto Seguro, conforme outros telegramas. N�o entram discursos parlamentares, nem lutas �talo-santistas, nem aux�lios �s ind�strias, nem nada. H� ali um ref�gio contra os tumultos exteriores e contra os boatos, que recome�am. Voltemos ao carrilh�o.

Criado, como ia dizendo, com os pobres sinos das nossas igrejas, n�o provei at� certa idade as aventuras de um carrilh�o. Ouvia falar de carrilh�o, como das ilhas Filipinas, uma coisa que eu nunca havia de ver nem ouvir.

Um dia, anuncia-se a chegada de um carrilh�o. T�nhamos carrilh�o na terra. Outro dia, indo a passar por uma rua, ou�o uns sons alegres e animados. Conhecia a toada, mas n�o lembrava a letra.

Perguntei a um menino, que me indicou a igreja pr�xima e disse-me que era o carrilh�o. E, n�o contente com a resposta, p�s a letra na m�sica: era o Amor tem fogo. Geralmente, n�o dou f� a crian�as. Fui a um homem que estava � porta de uma loja, e o homem confirmou o caso, e cantou do mesmo modo; depois calou-se e disse convencidamente: parece incr�vel como se possa, sem o prest�gio do teatro, as saias das mulheres, os requebrados, etc., dar uma impress�o t�o exata da opereta. Feche os olhos, ou�a-m e a mim e ao carrilh�o, e diga-me se n�o ouve a opereta em carne e osso:

Amor tem fogo,

Tem fogo amor.

� Carne sem osso, meu rico senhor, carne sem osso.

10 de julho

S�o Pedro, ap�stolo da circuncis�o, e S�o Paulo, ap�stolo de outra coisa, que a Igreja Cat�lica traduziu por gentes, e que n�o � preciso dizer pelo seu nome, dominaram tudo esta semana. Eu, quando vejo um ou dois assuntos puxarem para si todo o cobertor da aten��o p�blica, deixando os outros ao relento, d�-me vontade de os meter nos bastidores, trazendo � cena t�o-somente a arraia-mi�da, as pobres ocorr�ncias de nada, a velha anedota, o sopapo casual, o furto, a facada an�nima, a estat�stica mortu�ria, as tentativas de suic�dio, o cocheiro que foge, o notici�rio, em suma.

� que eu sou justo, e n�o posso ver o fraco esmagado pelo forte. Al�m disso, nasci com certo orgulho, que j� agora h� de morrer comigo. N�o gosto que os fatos nem os homens se me imponham por si mesmos. Tenho horror a toda superioridade. Eu � que os hei de enfeitar com dois ou tr�s adjetivos, uma reminisc�ncia cl�ssica, e os mais gal�es de estilo. Os fatos, eu � que os hei de declarar transcendentes; os homens, eu � que os hei de aclamar extraordin�rios.

Da� o meu amor �s chamadas chapas. Orador que me quiser ver aplaudi-lo, h� de empregar dessas belas frases feitas, que, j� estando em mim, ecoam de tal maneira, que me parece que eu � que sou o orador. Ent�o, sim, senhor, todo eu sou m�os, todo eu sou boca, para bradar e palmejar. Bem sei que n�o � chapista quem quer. A educa��o faz bons chapistas, mas n�o os faz sublimes. Aprendem-se as chapas, � verdade, como Rafael aprendeu as tintas e os pinc�is; mas s� a voca��o faz a Madona e um grande discurso. Todos podem dizer que �a liberdade � como a f�nix, que renasce das pr�prias cinzas�; mas s� o chapista sabe acomodar esta frase em fina moldura. Que dificuldade h� em repetir que �a imprensa, como a lan�a de T�lefo, cura as feridas que faz�? Nenhum; mas a quest�o n�o � de ter facilidade, � de ter gra�a. E depois, se h� chapas anteriores, frases servidas, id�ias enxovalhadas, h� tamb�m (e nisto se conhece o g�nio) muitas frases que nunca ningu�m proferiu, e nascem j� com cabelos brancos. Esta inven��o de chapas originais distingue mais positivamente o chapista nato do chapista por educa��o.

Voltemos aos ap�stolos. Que direito tinha S�o Pedro de dominar os acontecimentos da semana? Estava escrito que ele negaria tr�s vezes o divino Mestre, antes de cantar o galo. Cantou o galo, quando acabava de o negar pela terceira vez, e reconheceu a verdade da profecia. Quanto a S�o Paulo, tendo ensinado a palavra divina �s igrejas de Sic�lia, de G�nova e de N�poles, viu que alguns a sublevaram para torn�-las ao pecado (ou para outra coisa), e lan�ou uma daquelas suas ep�stolas exortativas; concluindo tudo por ser levado o conflito a Roma e a Jerusal�m, onde os magistrados e doutores da lei estudavam a verdade das coisas.

S�o neg�cios graves, convenho; mas h� outros que, por serem leves, n�o merecem menos. Na C�mara dos Deputados, por exemplo, deu-se uma pequena diverg�ncia, de que apenas tive vaga not�cia, por n�o poder ler, como n�o posso escrever; o que os senhores est�o lendo, vai saindo a olhos fechados. Ah! meus caros amigos! Ando com uma vista (isto � grego; em portugu�s diz-se um olho) muito inflamada, a ponto de n�o poder ler nem escrever. Ouvi que na c�mara surdiu diverg�ncia entre a maioria e a minoria, por causa da anistia. A quest�o rimava nas palavras, mas n�o rimava nos esp�ritos. Da� confus�o, difus�o, absten��o. Dizem que um jornal chamou ao caso um beco sem sa�da; mas um amigo meu (pessoa dada a aventuras amorosas) diz-me que todo beco tem sa�da; em caso de fuga, salta-se por cima do muro, trepa-se ao morro pr�ximo, ou cai-se do outro lado. Coragem e pernas. N�o entendi nada.

A falta de olhos � tudo. Quando a gente l� por olhos estranhos entende mal as coisas. Assim � que, por telegrama, sabe-se aqui haver o governador de um estado presidido � extra��o da loteria. A princ�pio, cuidei que seria para dignificar a loteria; depois, supus que o ato fora praticado para o fim de inspirar confian�a aos compradores de bilhetes.

� A segunda hip�tese � a verdadeira, acudiu o amigo que me lia os jornais. N�o v� como as ag�ncias s�rias s�o obrigadas a mandar anunciar que, se as loterias n�o correrem no dia marcado, pagar�o os bilhetes pelo dobro?

� � verdade, tenho visto.

� Pois � isto. Ningu�m confia em ningu�m, e � o nosso mal. Se h� quem desconfie de mim!

� N�o me diga isso.

� N�o lhe digo outra coisa. Desconfiam que n�o ponho o selo integral aos meus pap�is: � verdade (e n�o sou �nico); mas, al�m de que revalido sempre o selo, quando � necess�rio levar os pap�is a ju�zo, a quem prejudico eu, tirando ao Estado? A mim mesmo, porque o tesouro, nos governos modernos, � de todos n�s. Verdadeiramente, tiro de um bolso para meter no outro. Lu�s XIV dizia: �O Estado sou eu!� Cada um de n�s � um tronco mi�do de Lu�s XIV, com a diferen�a de que n�s pagamos os impostos, e Lu�s XIV recebia-os... Pois desconfiam de mim! S�o capazes de desconfiar do diabo. Creio que come�o a escrever no ar e...

17 de julho

Um dia desta semana, farto de vendavais, naufr�gios, boatos, mentiras, pol�micas, farto de ver como se descomp�em os homens, acionistas e diretores, importadores e industriais, farto de mim, de ti, de todos, de um tumulto sem vida, de um an�ncio sem quieta��o, peguei de uma p�gina de an�ncios, e disse comigo:

� Eia, passemos em revista as procuras e ofertas, caixeiros desempregados, pianos, magn�sias, sabonetes, oficiais de barbeiro, casas para alugar, amas de leite, cobradores, coqueluche, hipotecas, professores, tosses cr�nicas...

E o meu esp�rito, estendendo e juntando as m�os e os bra�os, como fazem os nadadores, que caem do alto, mergulhou por uma coluna abaixo. Quando voltou � tona, trazia entre os dedos esta p�rola:

�Uma vi�va interessante, distinta, de boa fam�lia e independente de meios, deseja encontrar por esposo um homem de meia idade, s�rio, instru�do, e tamb�m com meios de vida, que esteja como ela cansado de viver s�; resposta por carta ao escrit�rio desta folha, com as iniciais M. R..., anunciando, a fim de ser procurada essa carta�.

Gentil vi�va, eu n�o sou o homem que procuras, mas desejava ver-te, ou, quando menos, possuir o teu retrato, porque tu n�o �s qualquer pessoa, tu vales alguma coisa mais que o comum das mulheres. Ai de quem est� s�! dizem as sagradas letras; mas n�o foi a religi�o que te inspirou esse an�ncio. Nem motivo teol�gico, nem metaf�sico. Positivo tamb�m n�o, porque o positivismo � infenso �s segundas n�pcias. Que foi ent�o, sen�o a triste, longa e aborrecida experi�ncia? N�o queres amar; est�s cansada de viver s�.

E a cl�usula de ser o esposo outro aborrecido, farto de solid�o, mostra que tu n�o queres enganar, nem sacrificar ningu�m. Ficam desde j� exclu�dos os sonhadores, os que amem o mist�rio e procurem justamente esta ocasi�o de comprar um bilhete na loteria da vida. Que n�o pedes um di�logo de amor, � claro, desde que imp�es a cl�usula da meia idade, zona em que as paix�es, arrefecem, onde as flores v�o perdendo a p�r purp�rea e o vi�o eterno. N�o h� de ser um n�ufrago, � espera de uma taboa de salva��o, pois que exiges que tamb�m possua. E h� de ser instru�do, para encher com as luzes do esp�rito as longas noites do cora��o, e contar (sem as m�os presas) a tomada de Constantinopla.

Vi�va dos meus pecados, quem �s tu, que sabes tanto? O teu an�ncio lembra a carta de certo capit�o da guarda de Nero. Rico, interessante, aborrecido, como tu, escreveu um dia ao grave S�neca, perguntando-lhe como se havia de curar do t�dio que sentia, e explicava-se por figura: �N�o � a tempestade que me aflige, � o enj�o do mar�. Vi�va minha, o que tu. queres realmente, n�o � um marido, � um rem�dio contra o enj�o. V�s que a travessia ainda � longa � porque a tua idade est� entre trinta e dois e trinta e oito anos, � o mar � agitado, o navio joga muito; precisas de um preparado para matar esse mal cruel e indefin�vel. N�o te contentas com o rem�dio de S�neca, que era justamente a solid�o �a vida retirada, em que a alma acha todo o seu sossego�. Tu j� provaste esse preparado; n�o te fez nada. Tentas outro; mas queres menos um companheiro que uma companhia.

Pode ser que a esta hora j� tenha achado o esposo nas condi��es definidas. N�o est�s ainda casada, porque � preciso fazer correr os preg�es, e tens alguns dias diante de ti, para examinar bem o homem. Lembra-te de Xisto V, amiga minha; n�o v� ele sair, em vez de um cora��o arrimado � bengala, um cora��o com pernas, e umas pernas com m�sculos e sangue; n�o v�s tu ouvir, em vez da tomada de Constantinopla, a queda de Margarida nos bra�os de Fausto. H� desses cora��es, nevados por cima, como est�o agora as serras do Itatiaia e de Itajub�, e contendo em si as lavas que o Etna est� cuspindo desde alguns dias.

Mas, se ele te sair o que queres, que grande pr�mio de loteria! Junto � amurada do navio, vendo a f�ria do mar e dos ventos, tu ouvir�s muitas coisas s�rias. Ele te contar� a retirada de uma parte da C�mara dos Deputados, muito menos interessante que a dos Dez Mil, e muito menos h�bil. Dir-te-� que a anistia foi votada, depois que parte daquela parte voltou �s suas cadeiras, para n�o demorar mais a situa��o dos que ela defendia; e recitar� f�bulas de Lafontaine, porque todos os. homens s�rios recitam f�bulas, e dir-te-� com a melop�ia natural dos que se n�o contentam com a m�sica dos versos:

Rien n�est plus dangereux qu�un maladroit ami:

Mieux vaut un franc ennemi.

E tu, querida inc�gnita, far-lhe-�s outras perguntas, e mais outras, se gosta de espinafres, se j� leu o �ltimo livro de Zola. Quanto ao livro, a primeira resposta ser� que n�o; a segunda ser� que sim, tir�-lo-� do bolso, e ler-te-� logo os primeiros cap�tulos. Como todo homem s�rio gosta de compara��es, ele dir� que esses regimentos e corpos de ex�rcito que v�o e v�m, sem saber nada, d�o id�ia de outras campanhas de esp�ritos, que andam na mesma desorienta��o; e que assim como os ex�rcitos franceses levavam consigo, em 1870, as cartas topogr�ficas da Alemanha, e nenhuma da Fran�a, que nem conheciam, assim n�s temos andado desde 1840 com as cartas de Inglaterra, da B�lgica e dos Estados Unidos da Am�rica, e mal sabemos onde fica Marapicu.

Neste ponto, vi�va amiga, � natural que lhe perguntes, a prop�sito de Inglaterra, como � que se explica a vit�ria eleitoral de Gladstone, e a sua pr�xima subida ao poder. E ele enfiando os dedos pela mais s�ria das suas duas su��as, responder� que � a coisa mais natural do mundo, e que logo que tenhamos rep�blica parlamentar isto nos h� de acontecer freq�entes vezes; que a oposi��o, como agora na Inglaterra, instar� para que a C�mara seja dissolvida; que o minist�rio, receoso de cair, levar� a negar a dissolu��o, como se deu na Inglaterra; que, alcan�ada a dissolu��o, o povo eleger� os oposicionistas, e o minist�rio ir� pedir a demiss�o ao presidente; finalmente, que assim aconteceu at� 1889 com a monarquia, e n�o h� raz�o para que aconte�a depois de 1889, com a Rep�blica.

E ir�s por esse modo ouvindo mil coisas s�rias e graciosas a um tempo, seguindo com os olhos a f�ria dos ventos e o tumulto das ondas, livre do enj�o, como pedia aquele capit�o de Nero, e por diferente reg�men do que lhe aconselhou o fil�sofo. E a tua conclus�o ser� como a tua premissa; em caso de t�dio, antes um marido que nada.

24 de julho

H� uma vaga na deputa��o da Capital Federal... Eu digo Capital Federal, que � um simples modo de qualificar esta cidade, sem nome pr�prio, pela raz�o de ser a designa��o adotada constitucionalmente. Antes de 15 de novembro dizia-se Corte, n�o sendo verdadeiramente Corte, sen�o o pa�o do imperador e o respectivo pessoal; mas tinha o seu nome de Rio de Janeiro, que n�o � bonito nem exato, mas era um nome. Guanabara, Carioca, s� eram usados em poesia. Niter�i, que tanto podia caber a esta como � cidade fronteira, foi distribu�do � outra, que o n�o largou nem larga mais, apesar da antonom�sia familiar de Praia Grande. A �nica esperan�a que podemos ter, � que se fa�a a capital nova; segue-se naturalmente a devolu��o do nosso nome antigo ou decreta��o de outro.

Como ia dizendo, h� uma vaga na nossa deputa��o, e os candidatos trabalham j� com afinco, embora sem rumor. Alguns parece que n�o trabalham, como vai acontecer, creio eu, ao Sr. Dr. Ant�o de Vasconcelos, apresentado � �ltima hora. O Sr. Code�o, espiritista, convidou os seus confrades � uni�o, para que os votos do espiritismo recaiam no candidato espiritista, Dr. Ant�o de Vasconcelos. E conclui: �Todas as classes t�m o seu representante; n�s devemos ter o nosso�.

Eu que sou n�o s� pela liberdade espiritual, mas tamb�m pela igualdade espiritual, entendo que todas as religi�es devem ter lugar no Congresso Nacional, e votaria no Sr. Dr. Ant�o de Vasconcelos, se fosse espiritista; mas eu sou anabatista. No dia em que houver nesta cidade um n�mero suficiente de anabatistas, que possa dar com um homem na C�mara dos Deputados, nesse dia apresento-me, com igual direito aos dos espiritistas e todos os demais religion�rios. N�o reparem se escrevo espiritista com e, sei que a ortografia daquela igreja elimina o e, � ou porque h� nisso um mist�rio insond�vel, ou simplesmente para fazer exerc�cio de l�ngua francesa ou latina. Em qualquer das hip�teses, atenho-me � forma profana.

E que faria eu se entrasse na C�mara? Levaria comigo uma por��o de id�ias novas e fecundas, propriamente cient�ficas. Entre outras proporia que se cometesse a uma comiss�o de pessoas graves a quest�o de saber se o dinheiro tem sexo ou n�o. Quest�o absurda para os ignorantes, mas racional para todos os esp�ritos educados. Qual destes n�o sabe que a quest�o do sexo vai at� os sapatos, isto �, que o sapato direito � masculino e o esquerdo � feminino, e que � por essa sexualidade diferente que eles produzem os chinelos? Na casa do pobre a gesta��o � mais tardia, mas tamb�m os chinelos acompanham o dono dos pais. Os ricos, apenas h� sinal de concep��o, entregam os pais e os fetos aos criados.

A minha quest�o � saber se o dinheiro � aumentado por meio de conjuga��es naturais, e o fato que me trouxe ao esp�rito esta dire��o, foi o que sucedeu esta semana em Uberaba. Um tal Otto Helm roubou em S. Paulo ao patr�o a quantia de quarenta contos de r�is, e fugiu para aquela cidade de Minas. O chefe de pol�cia de S. Paulo telegrafou imediatamente para ali t�o a ponto que o gatuno, mal foi chegando, estava preso; revistadas as algibeiras, acharam-se-lhe, n�o quarenta, mas quarenta e um contos de r�is.

Este acr�scimo de um conto aos quarenta roubados parece revelar a lei do juro e a da simples acumula��o. O conhecimento que temos do juro, � todo emp�rico. Por que � que um credor me leva sete por cento ao m�s. Talvez por n�o poder levar oito; talvez por n�o querer levar seis. Os economistas, querendo explicar o fen�meno, acabam por descrev�-lo apenas, e ningu�m d� com a verdadeira lei. A sexualidade do dinheiro explica tudo.

N�o me digas que o gatuno de que trato, podia levar consigo, al�m dos quarenta contos roubados, um ou dois contos de economias pr�prias, ou de outro furto ainda n�o descoberto. Podia; mas n�o est� provado, nem sequer alegado, e, antes, da prova material, valem as conclus�es do esp�rito. Quando, por�m, se descubra e se prove, nem por isso risco as linhas escritas. Ei-las servir�o de guia ao investigador futuro. H� sempre um Colombo para cada Vesp�cio.

Outra coisa que eu faria vencer na C�mara era a declara��o da necessidade das loterias, e conseguintemente derrubava o projeto do meu amigo Pedro Am�rico, que quer � fina for�a acabar com elas. Depois daqueles mil contos, que sa�ram a um banco daqui, n�o se pode duvidar que a Provid�ncia � acionista oculta de algumas associa��es, e que n�o h� outro meio de cobrar-lhe as entradas sen�o comprando bilhetes. As ag�ncias lot�ricas devem fazer correr esta id�ia. H� de achar incr�dulos (que verdade os n�o teve?), mas a grande maioria dos homens � inclinada � verdade por um instinto superior. J� alguns deles, ao que me dizem, compraram a��es do dito banco, pela esperan�a de que com tal aux�lio, ca�do do c�u, n�o havia obriga��o de efetuar as restantes entradas. Quando lhes declararam que os mil contos n�o eram um lance da Fortuna, mas o pagamento volunt�rio da Provid�ncia, eles aceitaram gostosos a explica��o, e se um primo meu (em 2� grau) passou adiante as a��es, foi por urg�ncia de dinheiro, n�o por impiedade.

Vou acabar. Como ainda n�o estou na C�mara, n�o posso reduzir a leis todas as id�ias que trago na cabe�a. O melhor � cal�-las. Da semana s� me resta (salvo as vota��es legislativas) a traslada��o do corpo do glorioso Os�rio. N�o trato dela. Os�rio � grande demais para as p�ginas min�sculas de um triste cronista.

Mas aqui v�m coisas pequenas. Pombas, tr�s casais de pombas, no dia em que o corpo do her�ico general foi levado para a cripta do monumento, esvoa�avam na frente da igreja, em cima, onde est�o os nichos de dois ap�stolos. N�o esvoa�avam s�, pousavam, andavam, tornavam a abrir as asas e a pousar nos nichos. Voltei no dia seguinte, � mesma hora, l� as achei; voltei agora, e ainda ali estavam, voando, pousando, andando de um para outro lado.

H� ali ninhos por for�a. N�o sendo morador da rua, n�o sei se elas vivem ali h� muito ou pouco; mas, pouco ou muito, pe�o � irmandade que as deixe onde est�o. Os ap�stolos n�o se mostram incomodados com os intrusos. A �guia pousada aos p�s de S. Jo�o, com o seu ar simb�lico e tranq�ilo, parece n�o dar por elas, e, ali�s, bastava-lhe um gesto para as reduzir a nada. Pomba � bicho sagrado. Da arca de No� sa�ram duas, uma que n�o voltou, e outra trouxe o raminho verde, e o Esp�rito Santo � representado por uma pomba de asas abertas. Com�-las � pecado; mas impedir que elas d�em outras de si para que outros as comam, � atalhar os pecados alheios � coisa em si pecaminosa, porque sem pecadores n�o h� inferno, nem purgat�rio, e sem estes dois lugares o c�u valeria menos.

31 de julho

Esta semana furtaram a um senhor que ia pela rua mil deb�ntures; ele providenciou de modo que p�de salv�-los. Confesso que n�o acreditei na not�cia, a princ�pio; mas o respeito em que fui educado para com a letra redonda fez-me acabar de crer que se n�o fosse verdade n�o seria impresso. N�o creio em verdades manuscritas. Os pr�prios versos, que s� se fazem por medida, parecem errados, quando escritos � m�o. A raz�o por que muitos mo�os enganam as mo�as e vice-versa � escreverem as suas cartas, e entreg�-las de m�o a m�o, ou pela criada, ou pela prima ou por qualquer outro modo, que no meu tempo, era ainda in�dito. Quem n�o engana � o namorado da folha p�blica: �Querida X, n�o foste hoje ao lugar do costume; esperei at� �s tr�s horas. Responde ao teu Z.� E a namorada: �Querido Z. N�o fui ontem por motivos que te direi � vista. S�bado, com certeza, � hora costumada; n�o faltes. Tua X�. Isto � s�rio, claro, exato, cordial.

A raz�o que me fez duvidar a princ�pio foi a no��o que me ficou dos neg�cios de deb�ntures. Quando este nome come�ou a andar de boca em boca, at� fazer-se um coro universal, veio ter comigo um chacareiro aqui da vizinhan�a e confessou que, n�o sabendo ler, queria que lhe dissesse se aqueles pap�is valiam alguma coisa. Eu, verdadeiro eco da opini�o nacional, respondi que n�o havia nada melhor; ele pegou nas economias e comprou uma centena delas. Cresceu ainda o pre�o e ele quis vend�-las; mas eu acudi a tempo de suspender esse desastre. Vender o qu�? Deixasse estar os pap�is que o pre�o ia subir por a� al�m. O homem confiou e esperou. Da� a tempo ouvi um rumor; eram as deb�ntures que ca�am, ca�am, ca�am... Ele veio procurar-me, debulhado em l�grimas; ainda o fortaleci com uma ou duas par�bolas, at� que os dias correram, e o desgra�ado ficou com os pap�is na m�o. Consolou-se um pouco quando eu lhe disse que metade da popula��o n�o tinha outra atitude.

Pouco tempo depois (vejam o que � o amor a estas coisas!) veio ter comigo e proferiu estas palavras:

� Eu j� agora perdi quase tudo o que tinha com as tais deb�ntures; mas ficou-me sempre um cobrinho no fundo do ba�, e como agora ou�o falar muito em habeas-corpus, vinha, sim, vinha perguntar-lhe se esses t�tulos s�o bons, e se est�o caros ou baratos.

� N�o s�o t�tulos.

� Mas o nome tamb�m � estrangeiro.

� Sim, mas nem por ser estrangeiro, � t�tulo; aquele doutor que ali mora defronte � estrangeiro e n�o � t�tulo.

�Isso � verdade. Ent�o parece-lhe que os habeas-corpus n�o s�o pap�is?

� Pap�is s�o; mas s�o outros pap�is.

A id�ia de deb�nture ficou sendo para mim a mesma coisa que nada, de modo que n�o compreendia que um senhor andasse com mil deb�ntures na algibeira, que outro as furtasse, e que ele corresse em busca do ladr�o. Acreditei por estar impresso. Depois mostraram-me a lista das cota��es. Vi que n�o se vendem tantas como outrora, nem pelo pre�o antigo, mas h� algum negociozinho, pequeno, sobre alguns lotes. Quem sabe o que elas ser�o ainda algum dia? Tudo tem altos e baixos.

O certo � que mudei de opini�o. No dia seguinte, depois do almo�o, tirei da gaveta algumas centenas de mil-r�is, e caminhei para a Bolsa, encomendando-me (� in�til diz�-lo) ao Deus Abra�o, Isaac e Jac�. Comprei um lote, a pre�o baixo, e particularmente prometi uma deb�nture de cera a S�o Lucas, se me fizer ganhar um cobrinho grosso. Sei que � imitar aquele homem que, h� dias, deu uma chave de cera a S�o Pedro, por lhe haver deparado casa em que morasse; mas eu tenho outra raz�o. Na semana passada falei de uns casais de pombas, que vivem na igreja da Cruz dos Militares, aos p�s de S�o Jo�o e S�o Lucas. Uma delas, vendo-me passar, quando voltava da Bolsa, desferiu o v�o, e veio pousar-me no ombro; mostrou-se meio agastada com a publica��o, mas acabou dizendo que naquela rua, t�o perto dos bancos e da pra�a, tinham elas uma grande vantagem sobre todos os mortais. Quaisquer que sejam os neg�cios, � arrulhou-me ao ouvido, � o c�mbio para n�s est� sempre a 27.

N�o pe�o outra coisa ao ap�stolo; c�mbio a 27 para mim como para elas, e ter� a deb�nture de cera, com inscri��es e alegorias. Veja que nem lhe pe�o a cura da tosse e do coriza que me afligem, desde algum tempo. O meu talentoso amigo Dr. Pedro Am�rico disse outro dia na C�mara dos Deputados, propondo a cria��o de um teatro normal, que, por um milagre de higiene, todas as mol�stias desaparecessem, �n�o haveria faculdade, nem artif�cios de ret�rica capazes de convencer a ningu�m das belezas da patologia nem da utilidade da terap�utica�. Ah! meu caro amigo! Eu dou todas as belezas da patologia por um nariz livre e um peito desabafado. Creio na utilidade da terap�utica; mas que deliciosa coisa � n�o saber que ela existe, duvidar dela e at� neg�-la! Felizes os que podem respirar! bem-aventurados os que n�o tossem! Agora mesmo interrompi o que ia escrevendo para tossir; e, continuo a escrever de boca aberta para respirar. E falam-me em belezas da patologia... Francamente, eu prefiro as belezas da Batalha de Ava�.

A rigor, devia acabar aqui; mas a not�cia que acaba de chegar do Amazonas obriga-me a algumas linhas, tr�s ou quatro. Promulgou-se a Constitui��o, e, por ela, o governador passa-se a chamar presidente do Estado. Com exce��o do Par� e Rio Grande do Sul, creio que n�o falta nenhum. Sono tutti fatti marchesi. Eu, se fosse presidente da Rep�blica, promovia a reforma da Constitui��o, para o �nico fim de chamar-me governador. Ficava assim um governador cercado de presidentes, ao contr�rio dos Estados Unidos da Am�rica, e fazendo lembrar o imperador Napole�o, vestido com a modesta farda lend�ria, no meio dos seus marechais em grande uniforme.

Outra not�cia que me obriga a n�o acabar aqui, � a de estarem os rapazes do com�rcio de S�o Paulo fazendo reuni�es para se alistarem na guarda nacional, em desacordo com os daqui, que acabam de pedir dispensa de tal servi�o. Quest�o de meio; o meio � tudo. N�o h� exalta��o para uns nem depress�o para outros. Duas coisas contr�rias podem ser verdadeiras e at� leg�timas conforme a zona. Eu, por exemplo, execro o mate chimarr�o, os nossos irm�os do Rio Grande do Sul acham que n�o h� bebida mais saborosa neste mundo. Segue-se que o mate deve ser sempre uma ou outra coisa? N�o; segue-se o meio; o meio � tudo.

7 de agosto

Toda esta semana foi empregada em comentar a elei��o de domingo. � sabido que o eleitorado ficou em casa. Uma pequena minoria � que se deu ao trabalho de enfiar as cal�as, pegar do t�tulo e da c�dula e caminhar para as urnas. Muitas se��es n�o viram mes�rios, nem eleitores, outras, esperando cem, duzentos, trezentos eleitores, contentaram-se com sete, dez, at� quinze. Uma delas, uma escola p�blica, fez melhor, tirou a urna que a autoridade lhe mandara, e p�s este letreiro na porta: A urna da 8� se��o est� na padaria dos Srs. Alves Lopes & Teixeira, � rua de S. Salvador n...�. Alguns eleitores ainda foram � padaria; acharam a urna, mas n�o viram mes�rios. Melhor que isso sucedeu na elei��o anterior, em que a urna da mesma escola nem chegou a ser transferida � padaria, foi simplesmente posta na rua, com o papel, tinta e penas. Como pequeno sintoma de anarquia, � valioso.

Variam os coment�rios. Uns querem ver nisto indiferen�a p�blica, outros descren�a, outros absten��o. No que todos est�o de acordo, � que � um mal, e grande mal. N�o digo que n�o; mas h� um abismo entre mim e os comentadores; � que eles dizem o mal, sem acrescentar o rem�dio, e eu trago um rem�dio, que h� de curar o doente. Tudo est� em acertar com a causa da mol�stia.

Comecemos por excluir a absten��o. L� que houvesse algumas absten��es, creio; dezenas e at� centenas, � poss�vel; mas n�o concedo mais. N�o creio em vinte e oito mil absten��es solit�rias, por inspira��o pr�pria; e se os eleitores se concertassem para alguma coisa, seria naturalmente para votar em algu�m, � no leitor ou em mim.

Excluamos tamb�m a descren�a. A descren�a � explica��o f�cil, e nem sempre sincera. Conhe�o um homem que despendeu outrora vinte anos da exist�ncia em falsificar atas, trocar c�dulas, quebrar urnas, e que me dizia ontem, quase com l�grimas, que o povo j� n�o cr� em elei��es. �Ele sabe � acrescentou fazendo um gesto consp�cuo � que o seu voto n�o ser� contado�. Pessoa que estava conosco, muito lida em ci�ncias e meias ci�ncias, vendo-me um pouco apatetado com essa contradi��o do homem, restabeleceu-me, dizendo que n�o havia ali verdadeira contradi��o, mas um simples caso de �altera��o da personalidade�.

Resta-nos a indiferen�a; mas nem isto mesmo admito. Indiferen�a diz pouco em rela��o � causa real, que � a in�rcia. In�rcia, eis a causa! Estudai o eleitor; em vez de andardes a trocar as pernas entre tr�s e seis horas da tarde, estudai o eleitor. Ach�-lo-eis bom, honesto, desejoso da felicidade nacional. Ele enche os teatros, vai �s paradas, �s prociss�es, aos bailes, aonde quer que h� pitoresco e verdadeiro gozo pessoal. Fa�am-me o favor de dizer que pitoresco e que esp�cie de gozo pessoal h� em uma elei��o? Sair de casa sem almo�o (em domingo, note-se!), sem leitura de jornais, sem sof� ou rede, sem chambre, sem um ou dois pequerruchos, para ir votar em algu�m que o represente no Congresso, n�o � o que vulgarmente se chama cacetea��o?

Que tem o eleitor com isso? Pois n�o h� governo? O cidad�o, al�m dos impostos, h� de ser perseguido com elei��o?

Ou�o daqui (e a voz � do leitor) que elei��es se fizeram em que o eleitorado, todo, ou quase todo, sa�a � rua, com �nimo, com ardor, com prazer, e o vencedor celebrava a vit�ria � for�a de foguete e m�sica; que os partidos... Ah! os partidos! Sim, os partidos podem e t�m abalado os nossos eleitores; mas partidos s�o coisas palp�veis, agitam-se, escrevem, distribuem circulares e opini�es; os chefes locais respondem aos centrais, at� que no dia do voto todas as in�rcias est�o vencidas; cada um vai movido por uma raz�o suficiente. Mas que fazer, se n�o h� partidos?

Que fazer? Aqui entra a minha medica��o soberana. H� na trag�dia Nova Castro umas palavras que podem servir de marca de f�brica deste produto. N�o quiseste ir, vim eu. Creio que � D. Afonso que as diz a D. Pedro; mas n�o insisto, porque posso estar em erro, e n�o gosto de quest�es pessoais. Ora, tendo lido lia alguns dias (e j� vi a mesma coisa em situa��es an�logas) declara��es de eleitores do Estado do Rio de Janeiro, afirmando que votam em tal candidato, creio haver achado o rem�dio na sistematiza��o desses acordos pr�vios, que ficar�o definitivos. N�o quiseste ir, vim eu. O eleitor n�o vai � urna, a urna vai ao eleitor.

Uma lei curta e simples marcaria o prazo de sete dias para cada elei��o. No dia 24, por exemplo, come�ariam as listas a ser levadas �s casas dos eleitores. Eles estendidos na chaise-longue, liam e assinavam. Algum mais esquecido poderia confundir as coisas.

� Subscri��o? N�o assino.

� N�o, senhor...

� O g�s? Est� pago.

� N�o, senhor, � a lista dos votos para uma vaga na C�mara dos Deputados; eu trago a lista do candidato Ramos...

� Ah! j� sei... Mas eu assinei ainda h� pouco a do candidato �vila.

A alma do agente era, por dois minutos, teatro de um formid�vel conflito, cuja vit�ria tinha de caber ao Mal.

� Pois, sim, senhor; mas V. S. pode assinar esta, e n�s provaremos em tempo que a outra lista foi assinada amanh�, por distra��o de Vossa Senhoria.

O eleitor, sem sair da in�rcia, apontava a porta ao agente. Mas tais casos seriam raros; em geral, todos procederiam bem.

No dia 31 recolhiam-se as listas, publicavam-se, a C�mara dos Deputados somava, aprovava e empossava. Tal � o rem�dio; se acharem melhor, digam; mas eu creio que n�o acham.

H� sempre uma sensa��o deliciosa quando a gente acode a um mal p�blico; mas n�o � menor, ou � pouco menor a que se obt�m do obs�quio feito a um particular, salvo empr�stimos. Assim, ao lado do prazer que me trouxe a achada do rem�dio pol�tico, sinto o gozo do servi�o que vou prestar ao Sr. deputado Alcindo Guanabara. Este distinto representante, em discurso de anteontem, declarou que temia falar com liberdade, � vista do governo armado contra o Sr. Dr. Miguel Vieira Ferreira, pastor evang�lico e acusado de mandante no desacato feito � imagem de Jesus Cristo no j�ri. Perdoe-me o digno deputado; vou restituir-lhe a quieta��o ao esp�rito.

Depois que o Sr. deputado Alcindo Guanabara falou, foi publicada a senten�a de pron�ncia. Que consta dela? Que havia dois denunciados, o Dr. Miguel Vieira Ferreira, pastor da igreja evang�lica, dado como mandante do desacato, e Domingos Heleodoro, denunciado mandat�rio. A senten�a estabelece claramente dois pontos capitais: 1�, que Domingos Heleodoro, embora ningu�m visse quebrar a imagem, ao perguntarem-lhe o que fora aquilo, respondera: � a lei que se cumpre; 2�, que o pastor Miguel V. Ferreira, na v�spera do desacato, afirmando a algumas pessoas que a imagem havia de sair, acrescentou que, se n�o acabasse por bem, acabaria por mal. Tudo visto e considerado, a senten�a proferiu a criminalidade de Domingos Heleodoro, e n�o admitiu a do Dr. Miguel V. Ferreira. Veja o meu distinto patr�cio a diferen�a, e fa�a isto que lhe vou dizer.

Quando houver de discutir mat�rias espirituais, evite sempre dizer: � a lei que se cumpre, � frase clar�ssima, a respeito de um certo nariz posti�o, vago e obscuro.

Ao contr�rio, diga: H� de sair por bem ou por mal, � express�o obscura e frouxa, apesar do aspecto amea�ador que inadvertidamente se lhe pode atribuir. Fale S. Exa. como pastor, e n�o como ovelha.

A verdade � que os desacatos podem reproduzir-se, sem que Deus saia da alma do homem. Ainda ultimamente no senado, tomados de p�nico, muitos senadores n�o tiveram outra invoca��o. O Sr. senador Ubaldino do Amaral analisara o projeto de um grande banco emissor, em que havia este artigo: �Fica autorizado por antecipa��o a fazer uma emiss�o de trezentos mil contos de r�is (300.000:000$000.)�

� Santo Deus! exclamaram os senadores aterrados.

Crede-me. Deus � a natural exclama��o diante de um grande perigo. Um abismo que se abre aos p�s do homem, um terremoto, um flagelo, um ciclone, qualquer efeito terr�vel de for�as naturais ou humanas, arranca do imo do peito este grito de pavor e de desespero:

� Santo Deus!

14 de agosto

Semana e finan�as s�o hoje a mesma coisa. E t�o graves s�o os neg�cios financeiros, que escrever isto s�, pingar-lhe um ponto e mandar o papel para a imprensa, seria o melhor modo de cumprir o meu dever. Mas o leitor quer os seus poetas menores. Que os poetas magnos tratem os sucessos magnos; ele n�o dispensa aqui os assuntos m�nimos, se os houve, e, se os n�o houve, a reflex�es leves e curtas. For�a � reproduzir o famoso Marche! Marche! de Bossuet... Perd�o, leitor! Bossuet! eis-me aqui mais grave que nunca.

E por que n�o sei eu finan�as? Por que, ao lado dos dotes nativos com que aprouve ao c�u distinguir-me entre os homens, n�o possuo a ci�ncia financeira? Por que ignoro eu a teoria do imposto, a lei do c�mbio, e mal distingo dez mil-r�is de dez tost�es? Nos bondes � que me sinto vexado. H� sempre tr�s e quatro pessoas (principalmente agora) que tratam das coisas financeiras e econ�micas, e das causas das coisas, com tal ardor e autoridade, que me oprimem. � ent�o que eu leio algum jornal, se o levo, ou r�o as unhas, � v�cio dispens�vel; mas antes vicioso que ignorante.

Quando n�o tenho jornal, nem unhas, atiro-me �s tabuletas. Miro ostensivamente as tabuletas, como quem estuda o com�rcio e a ind�stria, a pintura e a ortografia. E n�o � novo este meu costume, em casos de aperto. Foi assim que um dia, h� anos, n�o me lembra em que loja, nem em que rua, achei uma tabuleta que dizia: Ao Planeta do Destino. Intencionalmente obscuro, este t�tulo era uma nova edi��o da esfinge. Pensei nele, estudei-o, e n�o podia dar com o sentido, at� que me lembrou vir�-lo do avesso: Ao Destino do Planeta. Vi logo que, assim virado, tinha mais senso; porque, em suma, pode admitir-se um destino ao planeta em que pisamos... Talvez a ci�ncia econ�mica e financeira seja isto mesmo, o avesso do que dizem os discutidores de bondes. Quantas verdades escondidas em frases trocadas! Quanto fiz esta reflex�o, exultei. Grande consola��o � persuadir-se um homem de que os outros s�o asnos.

E a� est�o quatro tiras escritas, e aqui vai mais uma, cujo assunto n�o sei bem qual seja, tantos s�o eles e t�o opostos. Vamos ao Senado. O Senado discutiu o chim, o arroz, e o ch�, e naturalmente tratou da quest�o da ra�a chinesa, que uns defendem e outros atacam. Eu n�o tenho opini�o; mas nunca ouso falar de ra�as, que me n�o lembre do Hon�rio Bicalho. Estava ele no Rio Grande do Sul, perto de uma cidade alem�. Iam com ele mo�as e homens a cavalo � viram uma flor muito bonita no alto de uma �rvore, Bicalho ou outro quis colh�-la, apoiando os p�s no dorso do cavalo, mas n�o alcan�ava a flor. Por fortuna, vinha da povoa��o um moleque, e o Bicalho foi ter com ele.

� Vem c�, trepa �quela �rvore, e tira a flor que est� em cima...

Estacou assombrado. O moleque respondeu-lhe em alem�o, que n�o entendia portugu�s. Quando Bicalho entrou na cidade, e n�o ouviu nem leu outra l�ngua sen�o a alem�, a rica e forte l�ngua de Goethe e de Heine, teve uma impress�o que ele resumia assim: �Achei-me estrangeiro no meu pr�prio pa�s!� Lembram-se dele? Grande talento, todo ele vida e esp�rito.

Isto, por�m, n�o tem nada com os chins, nem os judeus, nem particularmente com aquela mo�a que acaba de impedir a canoniza��o de Colombo. H�o de ter lido o telegrama que d� not�cia de haver sido posta de lado a id�ia de canoniza��o do grande homem, por motivo de uns amores que ele trouxera com uma judia. Todos os escr�pulos s�o respeit�veis, e seria impertin�ncia querer dar li��es ao Santo Padre em mat�ria de economia cat�lica. Colombo perdeu a canoniza��o sem perder a gl�ria, e a pr�pria Igreja o sublima por ela. Mas...

Mas, por mais que a gente fuja com o pensamento ao caso, o pensamento escapa-se, rompe os s�culos e vai farejar essa judia que tamanha influ�ncia devia ter na posteridade. E comp�e a figura pelas que conhece. H�-as de olhos negros e de olhos gar�os, umas que deslizam sem pisar no ch�o, outras que atam os bra�os ao descuidado com a simples corda das pestanas infinitas. Nem faltam as que embebedam e as que matam. O pensamento evoca a sombra da filha de Mois�s, e pergunta como � que aquele grande e pio genov�s, que abriu � f� crist� um novo mundo, e n�o se abalan�ou ao descobrimento sem encomendar-se a Deus, podia ter consigo esse pecado mofento, esse fedor judaico, � deleitoso, se querem, mas de entontecer a perder uma alma por todos os s�culos dos s�culos.

Eu ainda quero crer que ambos, sabendo que eram incompat�veis, fizeram um acordo para dissimular e pecar. Combinaram em ler o C�ntico dos C�nticos; mas Colombo daria ao texto b�blico o sentido espiritual e teol�gico, e ela o sentido natural e molemente hebraico.

� O meu amado � para mim como um cacho de Chipre, que se acha nas vinhas de Engadi.

� Os teus olhos s�o como os das pombas, sem falar no que est� escondido dentro. Os teus dois peitos s�o como dois filhinhos g�meos da cabra montesa, que se apascentam entre as a�ucenas.

� Eu me levantei para abrir ao meu amado; as minhas m�os destilavam mirra.

� Os teus l�bios s�o como uma fita escarlate, e o teu falar � doce.

� O cheiro dos teus vestidos � como o cheiro do incenso.

Quantas uni�es danadas n�o se mant�m por acordos semelhantes, em consci�ncia, �s vezes! H� uma grande palavra que diz que todas as coisas s�o puras para quem � puro.

Tornemos � gente crist�, �s elei��es municipais, � senatorial, aos italianos de S�o Paulo que deixam a terra, a D. Carlos de Bourbon que aderiu � Rep�blica Francesa, em obedi�ncia ao Papa, aos bondes el�tricos, � subida ao poder do old great man, a mil outras coisas que apenas indico, t�o aborrecido estou. Pena da minha alma, vai afrouxando os bicos; diminui esse ardor, n�o busques adjetivos, nem imagens, n�o busques nada, a n�o ser o repouso, o descanso f�sico e mental, o esquecimento, a contempla��o que prende com o cochilo que expira no sono...

21 de agosto

Ex fumo dare lucem. Tal seria a ep�grafe desta semana, se a m� fortuna n�o perseguisse as melhores inten��es dos homens. Velha ep�grafe, mais velha que a s� de Braga, pois que nos veio da poesia latina para a f�brica do g�s; mas, velha embora, nenhuma outra quadrava t�o bem ao imposto dos charutos e ao fechamento das portas das charutarias. Ex fumo dare lucem.

Lucem ou legem, n�o me lembra bem o texto, e n�o estou para ir daqui � estante, e menos ainda � f�brica do g�s. Seja como for, quando eu vi as portas fechadas, na segunda-feira, imaginei que �amos ter uma semana inteira de protesto, e preparei-me para contar as origens do tabaco e do imposto, o uso do charuto e o do rap�, e subsidiariamente a hist�ria de Havana e a de Espanha, desde os �rabes.

Vinte e quatro horas depois, abriam-se novamente as charutarias, e os fumantes escaparam a uma coisa pior que o naufr�gio da Medusa. Os n�ufragos comiam-se, quando j� n�o havia que comer; mas como se haviam de fumar os n�ufragos? Vinte e quatro horas apenas; quase ningu�m deu pela festa; eu menos que ningu�m, porque n�o fumo. N�o fumo, n�o votei o imposto, n�o sou ministro. Sou desinteressado na quest�o. Um amigo meu, companheiro de inf�ncia, diz-me sempre que, quando a gente n�o tem interesse em um pleito, n�o se mete nele, seja particular ou p�blico; e acrescenta que n�o h� nada p�blico. De onde resulta (palavras suas) que no dia em que vi os jornais darem not�cia do d�ficit, nem por isso as caras andaram mais abatidas. Uma coisa � o Estado, outra � o particular. O Estado que se ag�ente.

Quando um homem influi sobre outro, como este amigo em mim, � dif�cil ou ainda imposs�vel recusar-lhe as opini�es. A pr�pria not�cia do d�ficit, que me afligira tanto, parece-me agora que nem a li. Realmente, se me n�o incumbe cobri-lo, para que meter o d�ficit entre as minhas preocupa��es, que n�o s�o poucas? Se houvesse saldo, viria o Estado dividi-lo comigo?

E disse adeus ao d�ficit, que afinal de contas n�o me amofinou tanto como a parede das charutarias, n�o propriamente a parede, mas o contr�rio, a abertura das portas. As causas desta amofina��o s�o t�o profundas, que eu prefiro deix�-las � perspic�cia do leitor. N�o; n�o as digo. Acabemos com este costume do escritor dizer tudo, � laia de alvissareiro. A discri��o n�o h� de ser s� virtude das mulheres amadas, nem dos homens mal servidos. Tamb�m os var�es da pena, os pol�ticos, os parentes dos pol�ticos e outras classes devem calar alguma coisa. No presente caso, por exemplo, vamos ver se o leitor adivinha as causas do meu t�dio, quando as charutarias abriram as portas, ap�s um dia de manifesta��o. Diga o que lhe parecer; diga que era a minha ferocidade que se pascia no mal dos outros; diga at� que tudo isto n�o passa de uma maneira mais expedita para acabar um per�odo e passar a outro.

Em verdade, aqui est� outro; mas, se pensas que vou falar da carne verde, n�o me conheces. J� bastou a aborrecida incumb�ncia feita ao Sr. deputado Vinhais para comunicar ao povo a parede dos boiadeiros. Por fortuna recaiu a escolha em pessoa que tomou sobre si os interesses e o bem-estar da classe prolet�ria; mas sup�e que reca�a em mim, cuja repugn�ncia aos estudos sociais � tamanha, que n�o a pode vencer a natural e profunda simpatia que essa classe merece de todos os cora��es bons. Talvez eu esteja fazendo injusti�a a mim pr�prio; h� pessoas (e j� me tenho apanhado em lances desses) que levam o empenho de dizer mal ao ponto de maldizer de si mesmas. Outras t�m a virtude do louvor, e cometem igual excesso. Pode ser que de ambos os lados haja muita mentira. A mentira � a carne verde do dem�nio, abundante e de gra�a.

N�o procures isso em Bourdaloue nem Mont�Alverne. Isso � meu. Quando a id�ia que me acode ao bico da pena � j� velhusca, atiro-lhe aos ombros um capote axiom�tico, porque n�o h� nada como uma senten�a para mudar a cara aos conceitos.

Tamb�m n�o procures em nenhum grande orador cat�lico, franc�s ou brasileiro, este pequeno trecho: Ecce iterum Crispinus. Nem o aceites no mesmo sentido deprimente com que Alencar o foi buscar ao sat�rico romano. Crispim aqui � o parlamentarismo, cuja orelha reapareceu esta semana, por baixo de uma circular pol�tica. Ainda bem que reapareceu; ela h� de trazer o corpo inteiro; v�-lo-emos surgir, crescer, dominar, n�o s� pelo esfor�o dos seus partid�rios, mas pelo dos indiferentes e at� dos adversos. N�o ser� f�cil grud�-lo ao federalismo, � certo; mas basta que n�o seja imposs�vel, para esperar que o bom �xito coroe a obra. A dissolu��o da C�mara ser� necess�ria? Dissolva-se a C�mara.

Com o parlamentarismo tivemos longos anos de paz p�blica. Certo � que o imperador, n�o vendo pa�s que lhe enviasse C�maras contr�rias ao governo, tomou a si alternar os partidos, para que ambos eles pudessem mandar alguma vez. Quando lhe acontecia ser maltratado, era pelo que ficava de baixo; mas, como nada � eterno, o que estava de baixo tornava a subir, transmitia a c�lera ao que ent�o ca�a, e recitava por sua vez a ode de Hor�cio: �Aplaca o teu esp�rito; eu buscarei mudar em versos doces os versos amargos que compus�.

Agora, como a opini�o h� de estar em alguma parte, desde que n�o esteja nos eleitores, nem no chefe do Estado, � prov�vel que passe ao �nico lugar em que fica bem, nos corredores da C�mara, onde se planear�o as quedas e as subidas dos ministros, � poucas semanas para tocar a todos, � e assim chegaremos a um bom governo olig�rquico, sem excessos, nem afronta, e, natural, como as verdadeiras p�rolas.

28 de agosto

Para um triste escriba de coisas mi�das, nada h� pior que topar com o cad�ver de um homem c�lebre. N�o pode julg�-lo por lhe faltar investidura; para louv�-lo h� de trocar de estilo, sair do comum da vida e da semana. N�o bastam as qualidades pessoais do morto, a bravura e o patriotismo, virtudes nem defeitos, grandes erros nem a��es lustrosas. Tudo isso pede estilo solene e grave, justamente o que falta a um escriba de coisas mi�das.

Na dificuldade em que me acho, o melhor � fitar o morto, calar-me e adeus. Um s� passo neste �bito p�blico me faria deter alguns instantes. Refiro-me �s declara��es parlamentares do dia 23 e 25 e ao art. 8� das Disposi��es transit�rias da Constitui��o de 24 de fevereiro de 1891. Segundo o art. 8�, o fundador da rep�blica foi Benjamin Constant; mas, segundo os discursos parlamentares, foi o Marechal Deodoro. Tendo sa�do do mesmo Congresso os discursos e o art. 8�, pode algu�m n�o saber qual deles � o fundador, uma vez que a rep�blica h� de ter um fundador. A imprensa mostrou igual diverg�ncia. S� o Rio News adotou um meio termo e chamou ao finado marechal um dos fundadores da rep�blica. A origem anglo-sax�nica da folha pode explicar essa avers�o � bela unidade latina, mas bem latina � a Igreja cat�lica, e eis aqui o que ela fez.

A Igreja, obra da doutrina de Jesus Cristo e do apostolado de S. Paulo, n�o querendo desligar uma coisa de outra, meteu S. Paulo e S. Pedro no mesmo credo, com o fim de completar o Tu �s Pedro e sobre esta pedra etc. Saulo, Saulo, por que me persegues? Foi um modo de dizer que a doutrina imp�e-se pela a��o, e a a��o vive da doutrina.

Eu, por�m, que n�o sou Igreja cat�lica, nem folha anglo-sax�nica, n�o tenho a autoridade de uma, nem a �ndole da outra; pelo que, n�o me detenho ante a contradi��o das opini�es. Quando muito podia apelar para a Hist�ria. Mas a Hist�ria � pessoa entrada em anos, gorda, pachorrenta, meditativa, tarda em recolher documentos, mais tarda ainda em os ler e decifrar. Assim, pode ser que, entre 1930 e 1940, tendo cotejado a Constitui��o de 91 com os discursos de 92, e os artigos de jornais com os artigos de jornais, decida o ponto controverso, ou adote a id�ia de dois fundadores, se n�o de tr�s; mas onde estarei eu ent�o? Se guardar mem�ria da vida, terei ainda de cor os hinos de ambas as capelas. N�o terei visto a catedral �nica.

N�o basta, para que um edif�cio exista, haver fundadores dele; � de for�a que se levantem paredes e escadas, se rasguem portas e janelas, e finalmente se lhe ponham cumeeira e telhado. Sobre isto falou esta semana o Sr. deputado Glic�rio, lastimando que a c�mara dos deputados n�o se esforce na medida da responsabilidade que lhe cabe. Creio que a responsabilidade � grande; mas, quanto � primeira parte, se � certo que o esfor�o n�o corresponde � segunda, importa acrescentar que o melhor desejo deste mundo n�o faz criar vontades. O patriotismo � que pode muito, e o exemplo do passado vale alguma coisa.

J� agora vou falando gravemente at� o fim. Finan�as, por exemplo, aqui est� um assunto de ocasi�o, se � certo, como acabo de ler, que o ministro da fazenda pediu demiss�o. Eu nada tenho com a fazenda, a n�o ser a impress�o que deixa esta bela palavra. Entretanto, ocorre-me uma anedota de C�cero, e custa muito a um homem lembrar-se de um grande homem e n�o tentar ombrear com ele. Foi quando aquele c�nsul tomou conta do poder, vago pela morte do colega, vinte e quatro horas antes de expirar o consulado. �Depressa, dizia C�cero aos demais senadores, � depressa, antes que achemos outro c�nsul no lugar�.

Depressa, depressa, antes que haja outro ministro, e me estenda e complique o assunto desta semana. Se eu nem falo do d�ficit do Piau�, e mais � objeto digno de considera��o. Deixo o monop�lio dos n�queis, que dizem ser grande e valioso; s� um compadre meu recolheu oitocentos contos de r�is, que vende com pequeno juro. Excluo a briga dos intendentes municipais, excluo as bruxas do Maranh�o, alguns assassinatos e outras coisas alegres.

4 de setembro

Nem sempre respondo por pap�is velhos; mas aqui est� um que parece aut�ntico; e, se o n�o �, vale pelo texto, que � substancial. � um peda�o do evangelho do Diabo, justamente um serm�o da montanha, � maneira de S. Mateus. N�o se apavorem as almas cat�licas. J� Santo Agostinho dizia que �a igreja do Diabo imita a igreja de Deus�. Da� a semelhan�a entre os dois evangelhos. L� vai o do Diabo:

�1. E vendo o Diabo a grande multid�o de povo, subiu a um monte, por nome Corcovado, e, depois de se ter sentado, vieram a ele os seus disc�pulos.

�2. E ele abrindo a boca, ensinou, dizendo as palavras seguintes:

�3. Bem-aventurados aqueles que emba�am, porque eles n�o ser�o emba�ados.

�4. Bem-aventurados os afoitos, porque eles possuir�o a terra.

�5. Bem-aventurados os limpos das algibeiras, porque eles andar�o mais leves.

�6. Bem-aventurados os que nascem finos, porque eles morrer�o grossos.

�7. Bem-aventurados sois, quando vos injuriarem e disserem todo o mal, por meu respeito.

�8. Folgai e exultai, porque o vosso galard�o � copioso na terra.

�9. V�s sois o sal do money market. E se o sal perder a for�a, com que outra coisa se h� de salgar?

�10. V�s sois a luz do mundo. N�o se p�e uma vela acesa debaixo de um chap�u, pois assim se perdem o chap�u e a vela.

�11. N�o julgueis que vim destruir as obras imperfeitas, mas refazer as desfeitas.

�12. N�o acrediteis em sociedades arrebentadas. Em verdade vos digo que todas se concertam, e se n�o for com remendo da mesma cor, ser� com remendo de outra cor.

�13. Ouvistes que foi dito aos homens: Amai-vos uns aos outros. Pois eu digo-vos: Comei-vos uns aos outros; melhor � comer que ser comido; o lombo alheio � muito mais nutritivo que o pr�prio.

�14. Tamb�m foi dito aos homens: n�o matareis a vosso irm�o, nem a vosso inimigo, para que n�o sejais castigados. Eu digo-vos que n�o � preciso matar o vosso irm�o para ganhardes o reino da terra; basta arrancar-lhe a �ltima camisa.

�15. Assim, se estiveres fazendo as tuas contas, e te lembrar que teu irm�o anda meio desconfiado de ti, interrompe as contas, sai de casa, vai ao encontro de teu irm�o na rua, restitui-lhe a confian�a, e tira-lhe o que ele ainda levar consigo.

�16. Igualmente ouvistes que foi dito aos homens: N�o jurareis falso, mas cumpri ao Senhor os vossos juramentos.

�17. Eu, por�m, vos digo que n�o jureis nunca a verdade, porque a verdade nua e crua, al�m de indecente, � dura de roer; mas jura e sempre e a prop�sito de tudo, porque os homens foram feitos para crer antes nos que juram falso, do que nos que n�o juram nada. Se disserdes que o sol acabou, todos acender�o velas.

�18. N�o fa�ais as vossas obras diante de pessoas que possam ir cont�-lo � pol�cia.

�19. Quando, pois, quiserdes tapar um buraco, entendei-vos com algum sujeito h�bil, que fa�a treze de cinco e cinco.

�20. N�o queirais guardar para v�s tesouros na terra, onde a ferrugem e a tra�a os consomem, e donde os ladr�es os tiram e levam.

�21. Mas remetei os vossos tesouros para algum banco de Londres, onde nem a ferrugem, nem a tra�a os consomem, nem os ladr�es os roubam, e onde ireis v�-los no dia do ju�zo.

�22. N�o vos fieis uns nos outros. Em verdade vos digo, que cada um de v�s � capaz de comer o seu vizinho, e boa cara n�o quer dizer bom neg�cio.

�23. Vendei gato por lebre, e concess�es ordin�rias por excelentes, a fim de que a terra se n�o despovoe das lebres, nem as m�s concess�es pare�am nas vossas m�os.

�24. N�o queirais julgar para que n�o sejais julgados; n�o examineis os pap�is do pr�ximo para que ele n�o examine os vossos, e n�o resulte irem os dois para a cadeia, quando � melhor n�o ir nenhum.

�25. N�o tenhais medo �s assembl�ias de acionistas, e afagai-as de prefer�ncia �s simples comiss�es, porque as comiss�es amam a vangl�ria e as assembl�ias as palavras.

�26. As percentagens s�o as primeiras flores do capital; cortai-as logo para que as outras flores brotem mais vi�osas e lindas.

�27. N�o deis conta das contas passadas, porque passadas s�o as contadas, e perp�tuas as contas que se n�o contam.

�28. Deixai falar os acionistas progn�sticos; uma vez aliviados, assinam de boa vontade.

�29. Podeis excepcionalmente amar a um homem que vos arranjou um bom neg�cio; mas n�o at� o ponto de o n�o deixar com as cartas na m�o, se jogardes juntos.

�30. Todo aquele que ouve estas minhas palavras, e as observa, ser� comparado ao homem s�bio, que edificou sobre a rocha e resistiu aos ventos; ao contr�rio do homem sem considera��o, que edificou sobre a areia, e fica a ver navios...�

Aqui acaba o manuscrito que me foi trazido pelo pr�prio Diabo, ou algu�m por ele; mas eu creio que era o pr�prio. Alto, magro, barb�cula ao queixo, ar de Mefist�feles. Fiz-lhe uma cruz com os dedos e ele sumiu-se. Apesar de tudo, n�o respondo pelo papel, nem pelas doutrinas nem pelos erros de c�pia.

J� agora parece que estou em dia de fantasmas. Mal pingava o ponto final do outro par�grafo, quando me apareceu um senhor, que me disse ser defunto e haver-se chamado Bar�o Luis.

� Conhe�o muito, disse-lhe eu: tenho ouvido a sua c�lebre m�xima: �Dai-me boa pol�tica e eu vos darei finan�as�.

� Ah! meu caro senhor, acudiu o bar�o; essa m�xima tem-me tirado o sono da eternidade. J� n�o a posso ouvir, sem t�dio. Quer ajudar-me a publicar uma troca de palavras que fiz, mudando o sentido, a ver se pegam na segunda forma e deixam-me em descanso a primeira?

� Senhor bar�o...

� Escute-me.

� Em vez de: �dai-me boa pol�tica e eu vos darei boas finan�as�, arranjei esta outra forma: �Dai-me boas finan�as e eu vos darei boa pol�tica�. Promete-me?

� Pois n�o!

� N�o esque�a: �Dai-me boas finan�as e eu vos darei boa pol�tica�.

11 de setembro

J� uma vez dei aqui a minha teoria das id�ias gr�vidas. Vou agora � das a��es gr�vidas, n�o menos interessante, posto que mais dif�cil de entender.

Em verdade, h� de custar a crer que uma a��o nas�a pejada de outra, e, todavia, nada mais certo. Para n�o nos perdermos em exemplos estranhos, meditemos no caso de Chaucer. O Chaucer vinha entrando a nossa barra, quando da fortaleza de Santa Cruz lhe fizeram alguns sinais, a que ele n�o atendeu e veio entrando. A fortaleza disparou um tiro de p�lvora seca, ele veio entrando; depois outro, e ele ainda veio entrando; terceiro tiro, e ele sempre entrando. Quando vinha j� entrando de uma vez, a fortaleza soltou a bala do estilo, que lhe furou o costado. Correram a socorr�-lo, mas j� a gente de bordo tinha por si mesma tapado o buraco, e a companhia escreveu aquela carta, declarando protestar e esperar que tudo acabasse bem e depressa, sem interven��o diplom�tica. P�lvora seca, � espera de bala.

Nega o Chaucer que visse sinais nem ouvisse tiros. Devo crer que fala verdade, pois que nada o obriga a mentir, tanto mais quanto, antes de ser navio, Chaucer era um velh�ssimo poeta ingl�s, que j� perdeu a vista e as orelhas, tendo perdido a sa�de e a vida. Mas nem todos pensam assim; e, para muita gente, a a��o do navio foi antes de pouco caso da terra e seus moradores. Ora, tal a��o ainda que sem esse sentido, desde que parecia t�-lo, podia nascer gr�vida de outra, e foi o que aconteceu; da� a dias, dava-se a ocorr�ncia da bandeira da rua da Assembl�ia. Desd�m chama desd�m. Um homem a quem se puxa o nariz, acaba recebendo um rabo de papel. A��o pejada de a��o. Felizmente o movimento de indigna��o p�blica e as palavras patri�ticas que produziu, e mais a pena do culpado, far�o esperar que esta outra a��o haja nascido virgem e est�ril.

Podia citar mais exemplos, e de primeira qualidade; mas, se o leitor n�o entende a teoria com um, n�o a entender� com tr�s. Direi s� um caso, por estar, como l� se diz, no tapete da discuss�o. A emiss�o banc�ria nasceu t�o grossa, que era de adivinhar a gravidez da encampa��o. Nem falta quem diga que estes gritos que estamos ouvindo, s�o as dores do parto. Uns cr�em nele, mas afirmam que a crian�a nasce morta. Outros pensam que nasce viva, mas aleijada. H� at� um novo encilhamento, onde as apostas crescem e se multiplicam, como nos belos dias de 1890. Eu, sobre esse neg�cio de encampa��o, sei pouco mais que o leitor, porque sei duas coisas, e o leitor saber� uma ou nenhuma. Sei, em primeiro lugar, que � uma medida urgente e necess�ria, para que se restaure o nosso cr�dito; e, em segundo lugar, sei tamb�m que � um erro e um crime. Aristote dit oui et Galien dit non.

Quiseram explicar-me porque � que era crime; mas eu ando t�o aflito com a simples not�cia dos narcotizadores, que n�o quis ouvir a explica��o do crime. Basta de crimes. Demais, s�o finan�as. E as finan�as v�o chegando ao estado da jurisprud�ncia. Muitas fam�lias, quando viram que os bachar�is em Direito eram em demasia, come�aram a mandar ensinar Engenharia aos filhos. Hoje, fam�lia precavida n�o deve esperar que venha o excesso de financeiros. A concorr�ncia � j� extraordin�ria. Antes a medicina. Antes a pr�pria jurisprud�ncia.

Demais, eu gosto de explica��es palp�veis, concretas. Desde que um homem come�a a raciocinar e quer que eu o acompanhe pelos corredores do esp�rito, digo-lhe adeus. Deb�ntures, por exemplo. Um deputado disse h� dias na c�mara que certo banco do interior os emitira clandestinamente. N�o lhe dei cr�dito. Mas uma senhora, que jantou comigo ontem, disse-me rindo e agitando uns pap�is entre os dedos: Aqui est�o deb�ntures. O cr�dito que neguei ao deputado, dei-o � minha boa amiga. A raz�o � que, sobre este g�nero de pap�is, tive duas id�ias consecutivas antes da �ltima. A primeira � que deb�nture era uma simples express�o, uma senha, uma palavra convencional, como a da conjura��o mineira: Amanh� � o batizado. A segunda � que era efetivamente um bilhete, mas um bilhete que seria entregue pelo agente policial, por pessoa de fam�lia, ou pelo pr�prio alienista, um atestado, em suma, para legalizar a reclus�o. Quando vi, por�m, que aquela senhora tinha tais pap�is consigo, e peguei neles, e os li, adquiri uma terceira id�ia, exata e positiva, que a minha amiga completou dizendo com rara magnanimidade: � O que l� vai, l� vai.

E agora, adeus, querida semana! Adeus, c�lculos do Sr. Oiticica, que dizem estar errados! adeus, feriados! adeus, n�queis!

Os n�queis voltam certamente; mas h� de ser dif�cil. Ou estar�o sendo desamoedados, como suspeita o governo, ou andam nas m�os de alguma tribo, que pode ser a dos narcotizadores, e tamb�m pode ser a de Shylock. Creio antes em Shylock. Se assim for, � n�queis, n�o h� para v�s habeas-corpus, nem tomadas da Bastilha. N�o perdeis com a reclus�o, meus velhos; ficais luzindo, fora das m�os untadas do trabalho, que vos enxovalham. Para sairdes � rua, � preciso alguma coisa mais que boas raz�es ou necessidades p�blicas; e n�o saireis em tumulto, nem todos, mas devagarinho e aos poucos, conforme a taxa. �Trezentos ducados, bem!�

Tamb�m n�o digo adeus aos chins, porque � poss�vel que eles venham, como que n�o venham. O Di�rio de Not�cias, contando os votos da C�mara prov�veis e desfavor�veis, d� 64 para cada lado. Numa quest�o intrincada era o que melhor podia acontecer; as opini�es entestavam umas com outras, na ponte, como as cabras da f�bula. Mas pode haver altera��es, e h� de hav�-las. Para isso mesmo � que se discute. E a balan�a est� posta em tal maneira, que a menor palha far� pender uma das conchas. Nunca um s� homem teve em suas m�os tamanho poder, isto �, o futuro do Brasil, que ou h� de ser pr�spero com os chins, conforme opinam uns, ou desgra�ado, como querem outros. Espada de Breno, bengala de Breno, guarda-chuva de Breno, l�pis, um simples l�pis de Breno, agora ou nunca � a tua ocasi�o.

A v�s, sim, tumultos de circo, a v�s digo eu adeus, porque se adotarem o que proponho aos homens, n�o h� mais tumultos nesse g�nero de espet�culos, ou seja nos pr�prios circos, ou seja nas casas c� de baixo, onde se aposta e se espera a vit�ria pelo telefone; modo que me faz lembrar umas senhoras do meu conhecimento, que t�m ouvido todas as �peras desta esta��o l�rica, indo para a praia de Botafogo ver passar as carruagens das senhoras assinantes. N�o haver� tumultos, porque fa�o evitar a fraude ou suspeita dela aposentando os cavalos e fazendo correr os apostadores com os seus pr�prios p�s. Cansa um pouco mais que estar sentado, mas cada um ganha o seu p�o com o suor do seu rosto.

18 de setembro

Quando a China souber que a vinda dos seus naturais (votada esta semana em segunda discuss�o) tem dado lugar a tanto barulho, tanta animosidade, tanto ep�teto feio, � prov�vel que mande fechar os seus portos e n�o deixe sair ningu�m. Eu conhe�o a China. A China tem brios. A China n�o � s� a terra de porcelanas, leques, ch�, sedas, mandarins e guarda-s�is de papel. N�o, a China manda-nos plantar caf� e deixa-se ficar em casa.

E o Jap�o? O Jap�o, que sabe estarem os japoneses no projeto e n�o v� descompor japoneses nem malsin�-lo a ele, o Jap�o cuida que entra no projeto s� para dar fundo ao quadro, e fecha igualmente os seus portos. Eu conhe�o tamb�m o Jap�o. O Jap�o � muito desconfiado, mais desconfiado ainda que parlamentar.

Porque o Jap�o � parlamentar, como sabem; copiou do ocidente as C�maras e os condes. O atual presidente do conselho de ministros � o Conde Ito, um homem que, tanto quanto se pode deduzir de uma gravura que vi h� pouco, � das mais galhardas figuras deste fim de s�culo. Mas, como vai muito do vivo ao pintado, dou que seja menos belo; n�o quer dizer que n�o tenha talento e pulso.

Quando � planta parlamentar, n�o creio que seja t�o vi�osa como na Inglaterra. N�o; mas � original, e basta. Tem uma cor particular ao clima. Se � verdade o que li, h� l� um costume nas C�maras assaz interessante. Deputado que vota contra o governo, � restitu�do aos seus eleitores; deputado que vota a favor do governo, � desancado pela oposi��o. Quer dizer que, em cada vota��o pol�tica, os advers�rios do governo p�em os ministerialistas em len��is de vinho e v�o ver depois se o conde de Ito est� nos seus respectivos distritos eleitorais. Se os eleitores (isto agora � conjetura minha) os aprovam, revalidam os diplomas, e eles tornam ao parlamento.

Este sistema, se vier nas malas japonesas, pode ser experimental; mas a d�vida � se vir�o malas japonesas, ou sequer chinesas, pela raz�o acima dita. For�a � confessar que os filhos daquelas bandas t�m grandes vantagens. Italianos entram aqui com o seu irridentismo, franceses com os princ�pios de 89, ingleses com o Foreign Office e a C�mara dos Comuns, espanh�is com todas las Espa�as, caramba! alem�es com uma casa sua, uma cidade sua, uma escola sua, uma igreja sua, uma vida sua. Chim n�o traz nada disso, traz bra�o, for�a e paci�ncia. N�o chega a trazer nome, porque � imposs�vel que a gente o chame por aqueles espirros que l� lhe p�em. O primeiro artigo de um bom contrato deve ser impor-lhe um nome da terra, � escolha, Manuel, Bento, pai Jo�o, pai Jos�, pai Francisco, pai Ant�nio...

Depois, o trabalho. Que outro bicho humano iguala o Chim? Um cego, entre n�s, pega da viola e vai pedir esmola cantando. Ora, o padre Jo�o de Lucena refere que na China todos os cegos trabalham de um modo original. S�o distribu�dos pelas casas particulares e postos a moer arroz ou trigo, mas de dois em dois, �porque fique assim a cada um menos pesado o trabalho com a companhia e conversa��o do outro�. Os aleijados, se n�o t�m pernas, trabalham de m�os; os que n�o tem bra�os, andam ao ganho com uma cesta pendurada ao pesco�o, para levar compras �s casas dos que os chamam, � ou servem de correio a p�. Aproveita-se ali at� o �ltimo caco de homem.

N�o alegueis serem estas not�cias de um velho escritor, porque uma das vantagens da China � ser a mesma. Os s�culos passam, mudam-se os costumes, as institui��es, as leis, as id�ias, tudo padece desta instabilidade que o Sr. Senador Manuel Victorino atribuiu anteontem �s nossas coisas; mas a China n�o passa.

J� que falei no Sr. senador Manuel Victorino, devo completar um ponto do seu discurso. � certo que o finado imperador recusou uma est�tua que lhe quiseram erigir, quando acabou a Guerra do Paraguai, dizendo preferir que o dinheiro fosse aplicado a escolas; mas o Sr. senador n�o disse o resto. Talvez n�o estivesse aqui. Eu estava aqui; vi as coisas de perto. A est�tua n�o foi um simples e desornado oferecimento. Fez-se grande reuni�o, com pessoas not�veis � frente, comiss�o aclamada, que ia marchar para S. Crist�v�o. O imperador, lendo a not�cia nos jornais, escreveu uma carta ao ministro do imp�rio, declarando o que o Sr. senador Manuel Victorino referiu agora. Mas o resto? Onde est� o resto? Onde est� o dinheir�o que eu gastei depois em an�ncios, pedindo not�cias da comiss�o? Nem s� dinheiro, gastei amigos, encomendei a uma dezena deles que fossem a todos os bairros, que interrogassem os lojistas, que levantassem as almofadas dos carros, que chegassem ao interior das casas, e espiassem por baixo das camas ou dentro dos arm�rios. Pode ser que houvesse da minha parte algum excesso de zelo; mas nem por isso mere�o ficar no escuro. N�o achei a comiss�o, � certo, mas podia t�-la achado.

Entretanto, n�o nego que h� por a� edif�cios bem arquitetados para escolas e por conta do Estado. Um chegou a destruir em mim certo erro pol�tico. Dizia ele, no alto, em letra grossa, como dedicat�ria: �O governo ao povo�. A minha id�ia � que �ramos, politicamente, uma na��o representativa, e que tanto fazia dizer povo como governo, n�o sendo o governo mais que o povo governado. Demais o dinheiro da constru��o era dos pr�prios contribuintes, e... Mas vamos adiante, que o tempo escasseia.

Tempo, espa�o e papel, tudo vai faltando debaixo das m�os. Paci�ncia tamb�m falta. Concluamos com uma boa not�cia. Cansado desta obriga��o de dar uma semana por semana, entendi convidar um colaborador, e a quem pensais que convidei? Um senador, ex-ministro e pensador, tudo de Fran�a, o velho Julio Simon, que me respondeu nestes termos:

Mon cher ami. � Je r�ponds � votre bonne lettre. Ne comptez pas sur moi, ni r�guli�rement, ni m�me directement. Vous �tes trop loin, et moi je suis trop vi�ux. Je vous autorise � couper dans les articles que je publie en France, les morceaux qui vous plairont, et � les donner dans cette aimable Gazeta de Not�cias, avant que votre Congr�s n�approuve le trait�, dont M. Nilo Pe�anha est le rapporteur � ce que l�on rapporte. Pardonez-moi ce m�chant calembourg et croyez � ma vieille amiti�. � Jules Simon.

N�o imaginam o prazer com que li esta cartinha. Quis logo dar algum trecho do grande homem; mas sobre que? Era preciso um fato da semana, alguma coisa a que o trecho se adequasse. Que coisa? Justamente aqui est� um telegrama de Ouro Preto, em que os empregados p�blicos pedem miseric�rdia contra os cortes de que est�o amea�ados por um projeto pendente do Congresso Nacional. Sobre isto, escreve o meu velho amigo no Temps, de 20 de agosto:

Lembra-me ainda o tempo, o feliz tempo em que a guerra aos grandes ordenados era toda a pol�tica dos membros da oposi��o que n�o sabiam pol�tica... A guerra subsiste. O Sr. Chassaing vem renov�-la, acompanhado de quarenta colegas... Eles devem saber que o ordenado dos funcion�rios n�o � renda; � produto do trabalho. N�o � justo nem h�bil diminuir a parte dos trabalhadores do Estado, quando tanta gente reclama a remunera��o mais eq�itativa do trabalho.

Suponho que o trecho transcrito acode bem �s ang�stias dos funcion�rios de Ouro Preto e de outros lugares menos remotos. Daqui em diante, quando me faltarem id�ias, corro ao meu velho amigo Simon, o velho amigo do meu velho amigo Thiers. Tr�s velhos amigos!

25 de setembro

Esta semana come�ou mal. Nos primeiros tr�s dias recebi vinte e seis cartas agradecendo a maneira engenhosa por que defendi, na outra cr�nica, a introdu��o do Chim. Eu n�o sou homem que recuse elogios. Amo-os; eles fazem bem � alma e at� ao corpo. As melhores digest�es da minha vida s�o as dos jantares em que sou brindado. Mas confesso que desta vez nem tive tempo de saborear os louvores; fiquei espantado, porque eu n�o defendi nada, nem ningu�m. N�o fiz mais que apontar as qualidades do Chim e as de outros imigrantes, para significar que, entrado o Chim, os outros somem-se. N�o defendi, nem acusei. N�o me deitem louros nem grilh�es.

Francisco Belis�rio, por exemplo, era da mesma opini�o, e n�o me consta que o elogiassem por ela. Ia mais longe, porque dizia coisas duras, e eu n�o estou aqui para dizer coisas duras. Al�m disso, e do mais, h� entre n�s um abismo; � que eu sou um simples eleitor, e ele era um homem de Estado. N�o lhe pese a terra por isso. E n�o falo daquela observa��o fina e profunda que, ainda aplicada a assuntos pr�ticos, era um dos encantos do seu esp�rito. Confesso tudo isso, mas n�o o imitarei jamais nos duros conceitos que exprimiu, posto que revestidos daquele estilo af�vel que era um relevo do patriota e do pol�tico.

H�o de lembrar-se que era de estatura baixa. Da� o costume que tinha de subir alto para ver longe. Uma de suas id�ias � que mais vale o todo que a parte, mais um s�culo que um ano, mais cinq�enta milh�es de homens que meia d�zia deles. Se n�o s�o estas as textuais palavras, advirtam que foram transcritas por mim, cujo falar ou escrever tem o v�cio de ser torto, truncado ou brusco; mas o sentido a� est�. Fique o sentido, e vamos ao arroz.

Quando vierem as maldi��es ou as b�n��os, � cerca de 1914 � os que estivermos enterrados, n�o nos importaremos com elas. Morto, se n�o fala, tamb�m n�o ouve. Que nos chamem todos os nomes sublimes ou todos os nomes feios, valer� tanto como nada. Palavras, palavras, palavras. Tamb�m n�o se nos dar� de agita��es sociais ou outros desconsolos; menos ainda se o Imp�rio do Meio fizer da nossa terra uma Rep�blica do Meio. Teremos vivido.

Mas a semana continuou mal. Tratei na cr�nica da reuni�o que se fez para levantar uma est�tua ao imperador, depois da guerra do Paraguai. O Jornal do Com�rcio lembrou que a coleta foi promovida por uma comiss�o de respeit�veis membros da Associa��o Comercial e com ela se construiu o belo edif�cio do Campo de S�o Crist�v�o, doado ao governo e ocupado por duas escolas.

Dou uma das m�os � palmat�ria, e n�o h� de ser a esquerda, chamada do cora��o, porque este cora��o, que n�o calunia ningu�m, n�o o faria a pessoas honradas, que prestaram um bom servi�o p�blico.

N�o, senhor. A m�o direita � que h� de apanhar, por n�o haver sabido escrever claro. E posto seja verdade que eu n�o falei em subscri��o, mas em comiss�o, dizendo que, escolhida esta em um dia, desapareceu no outro (o que exclui a id�ia de dinheiros recebidos) concordo que o meu vezo de falar por meias palavras pode muito bem dar um sentido ao que o tem diverso.

Tinha em lembran�a que a comiss�o escolhida, � a primeira comiss�o, � perdera o entusiasmo, desde que o servi�o ao imperador devia trocar o modo pessoal e direto pelo modo indireto e impessoal: est�tua por escola. Este � que era o ponto da cr�tica. N�o houve primeira comiss�o? Bem; limitemos a a��o aos iniciadores, ou a alguns deles, ou a pessoas que estiveram na reuni�o, e a quem se deu lugar proeminente. O erro foi atribuir � comiss�o o que apenas coube a alguns, se � que coube a algu�m, porque a minha triste mem�ria avoluma os casos passados e pode fazer uma batalha de uma simples escaramu�a.

E a� tens o que fizeste, pena de trinta mil diabos, a� tens o que acabas de fazer; gastaste o tempo todo em explica��es, gra�as ao sestro de n�o arranhar o papel, mas descer ao de leve por ele abaixo. Glissez, mortels, n'appuyez pas. � gracioso, mas para outros of�cios. Aqui, meu bem, h�s de ter o desamor a murros, e o amor a beijos, mas a beijos grandes e sonoros.

Todavia, como h� um limite para tudo, n�o ames como outros amaram aquela Maria de Macedo, cujo cad�ver apareceu no Largo do Dep�sito. Digam o que quiserem; o homem gosta dos grandes crimes. Esta sociedade estava expirando de t�dio. Uma ou outra senten�a sobre neg�cios an�nimos e a��es nominais mal satisfazia a curiosidade, e n�o de todos, porque h� muita gente que n�o conta de cem contos para cima; eu nem creio em milhares de contos. Ratonices de queijos e outras miudezas s�o como os biscoitos velhos e poucos; enganam o est�mago, n�o matam a fome. E a fome vivia e crescia, sem nada que lhe pusesse termo, at� que um gato descobriu no largo do Dep�sito aquele tronco de gente. Foi um banquete pantagru�lico. Um simples peda�o de cad�ver, ensopado em mist�rio, bastou a fartar toda a cidade. Os mais gulosos pediam ainda a cabe�a, as pernas e os bra�os. O mar, imensa panela, despejou esse manjar �ltimo. Agora pedimos os cozinheiros; venham os cozinheiros.

N�o sabemos tudo; n�o basta haver comido e perguntado pelos cozinheiros. H� muito mais que saber, � o processo e as min�cias da cozinha. E quando houvermos not�cia da culin�ria e dos seus oficiais, restar� ainda entrar fundo no estudo dessa mescla de lubricidade e ferocidade, rins de macaco e goela de hiena; fitar bem a imbecilidade do criminoso que vai vender uma parte da ca�a. Chegaremos assim aos abismos da inconsci�ncia. N�o importa a camada dos personagens para achar interesse num drama l�brico. Visgueiro era um magistrado. H� muitos anos, junto aos canos da Carioca, S�crates matou Alcib�ades.

Agora, o mal que resulta deste grande crime, � n�o sabermos se ficar� bastante curiosidade para acudir � elei��o dos intendentes. Talvez n�o. Eleitor n�o � gato de sete f�legos. Deixa-se ficar almo�ando; os intendentes v�o ser eleitos a cinq�enta votos. Poucas semanas depois, trinta mil eleitores sair�o de casa murmurando que a intend�ncia n�o presta para nada.

2 de outubro

Tannh�user e bondes el�tricos. Temos finalmente na Terra essas grandes novidades. O empres�rio do Teatro L�rico fez-nos o favor de dar a famosa �pera de Wagner, enquanto a Companhia de Botafogo tomou a peito transportar-nos mais depressa. Cair�o de uma vez o burro e Verdi? Tudo depende das circunst�ncias.

J� a esta hora algumas das pessoas que me l�em, sabem o que � a grande �pera. Nem todas; h� sempre um grande n�mero de ouvintes que far�o ao grande maestro a honra de n�o perceber tudo desde logo, e entend�-lo melhor � segunda, e de vez � terceira ou quarta execu��o. Mas n�o faltam ouvidos acostumados ao seu of�cio, que distinguir�o na mesma noite o belo do sublime, e o sublime do fraco.

Eu, se l� fosse, n�o ia em jejum. Pegava de algumas opini�es s�lidas e francesas e metia-as na cabe�a com facilidade; s� n�o me valeria das muletas do bom Larousse, se ele n�o as tivesse em casa; mas havia de t�-las. Cai aqui, cai acol�, faria uma opini�o pr�via, e � noite iria ouvir a grande partitura do mestre. Um amigo:

� Afinal temos o Tannh�user; eu conhe�o um trecho, que ouvi h� tempos...

� Eu n�o conhe�o nada, e quer que lhe diga? � melhor assim. Fa�o de conta que assisto � primeira representa��o que se deu no mundo. Tudo novo.

� O que eu ouvi, � soberbo.

� Creio; mas n�o me diga nada, deixe-me virgem de opini�es. Quero julgar por mim, mal ou bem...

E iria sentar-me e esperar, um tanto nervoso, irrequieto, sem atinar com o bin�culo para a revista dos camarotes. Talvez nem levasse bin�culo; diria que as grandes solenidades art�sticas devem ser estremes de quaisquer outras preocupa��es humanas. A arte � uma religi�o. O g�nio � o sumo sacerdote. Em v�o, Am�lia, posta no camarote, em frente � m�e, lan�aria os olhos para mim, assustada com a minha indiferen�a e perguntando a si mesma que me teria feito. Eu, teso, espero que as portas do templo se abram, que as harmonias do C�u me chamem aos p�s do divino mestre; n�o sei de Am�lia n�o quero saber dos seus olhos de turquesa.

Era assim que eu ouviria o Tannh�user. Nos intervalos, visita aos camarotes e cr�tica. Aquela entrada dos fagotes, lembra-se? Admir�vel! Os coros, o duo, os violinos, oh! o trabalho dos violinos que coisa ador�vel, com aquele motivo obrigado: la la la tra la, la, la, tra la la... H� neste ato inspira��es que s�o, com certeza, as maiores do s�culo. De resto, os pr�prios franceses emendaram a m�o, dando a Wagner o preito que lhe cabe, como um criador genial... As senhoras ouvem-me encantadas; a linda Am�lia sente-se honrada com a indiferen�a de h� pouco, vendo que ela e a arte s�o o meu culto �nico.

Ao fundo, o pai e um homem de su��as falam da fus�o do Banco do Brasil com o da Rep�blica. O irm�o, encostado � divis�o do camarote, conversa com uma dama vizinha, casada de fresco, ombros magn�ficos. Que tenho eu com ombros, nem com bancos? la la la, tra la la la, tra la la...

Feitas as despedidas, passaria a outro camarote, para continuar a minha cr�tica. Dois homens, sempre ao fundo, conversam baixo, um recitando os versos de Garrett sobre a Guerra das Duas Rosas, o outro esperando a aplica��o. A aplica��o � a C�mara Municipal de S�o Paulo, que acaba de tomar posse solene, com assist�ncia do presidente e dos secret�rios do Estado... Interrup��o do segundo: �Pode comparar-se o caso dos dois secret�rios � concilia��o que o poeta fez das duas rosas?� Explica��o do primeiro: �N�o; refiro-me � inaugura��o que a C�mara fez dos retratos de Deodoro e Benjamim Constante. Uniu os dois rivais p�stumos em uma s� comemora��o, e a hist�ria ou a lenda que fa�a o resto.�

N�o espero pelo resto; falo �s senhoras no duo e na entrada dos fagotes. Bela entrada de fagotes. Os coros admir�veis, e o trabalho dos violinos simplesmente espl�ndido. H�o de ter notado que a m�sica reproduz perfeitamente a lenda, como o espelho a figura; prendem-se ambas em uma s� inspira��o genial. Aquele motivo obrigado dos violinos � a mais bela inspira��o que tenho ouvido: la la la tra la la la tra...

Terceiro camarote, violinos, fagotes, coros e o duo. Pormenores t�cnicos. Ao fundo, dois homens, que falam de um congresso psicol�gico em Chicago, dizem que os nossos esp�ritas v�o ter ocasi�o de aparecer, porque o convite estende-se a eles. Tratar-se-� n�o s� dos fen�menos psicof�sicos, como sejam as pancadas, as oscila��es em mesas, a escrita, e outras manifesta��es esp�ritas, como ainda da quest�o da vida futura. Um dos interlocutores declara que os �nicos esp�ritas que conhece, s�o dois, moram ao p� dele e j� n�o pertencem a este mundo; est�o nos interm�ndios de Epicuro. Andam c� os corpos, por efeito do movimento que traziam quando habitados pelos esp�ritos, como aqueles astros cuja luz ainda vemos hoje, estando apagados h� muitos s�culos...

A orquestra chama a postos, sobe o pano, assisto ao ato, e fa�o a mesma peregrina��o no intervalo; mudo s� as cita��es, mas a cr�tica � sempre verdadeira. Ou�o os mesmos homens, ao fundo, conversando sobre coisas alheias ao Wagner. Eu, entregue � cr�tica musical, n�o dou pelas rusgas da intend�ncia, n�o atendo �s candidaturas municipais agarradas aos eleitores, n�o dou por nada que n�o seja a grande �pera. E sento-me, recordo prontamente o que li sobre o ato, oh! um ato espl�ndido!

Fim do espet�culo. Corro a encontrar-me com a fam�lia de Am�lia, para acompanh�-la � carruagem. Dou o bra�o � m�e e critico o �ltimo ato, depois resumo a cr�tica dos outros atos. Elas e o pai entram na carruagem; despedidas � portinhola; aperto a bela m�o da minha querida Am�lia... Pormenores t�cnicos.

9 de outubro

Eis a� uma semana cheia. Projetos e projetos banc�rios, debates e debates financeiros, pris�o de diretores de companhias, den�ncia de outros, dois mil comerciantes marchando para o Pal�cio Itamarati, a p�, debaixo d'�gua, processo Maria Ant�nia, fus�o de bancos, al�a r�pida de c�mbio, tudo isso grave, soturno, tr�gico ou simplesmente enfadonho. Uma s� nota id�lica entre tanta coisa grave, soturna, tr�gica ou simplesmente enfadonha; foi a morte de Renan. A de Tennyson, que tamb�m foi esta semana, n�o trouxe igual car�ter, apesar do poeta que era, da idade que tinha. Uma gravura inglesa recente d�, em dois grupos, os anos de 1842 e 1892, meio s�culo de separa��o. No primeiro era Southey que fazia o papel de Tennyson, e o poeta laureado de 1842, como o de 1892, acompanhava os demais personagens oficiais do ano respectivo, o chefe dos tories, o chefe dos whigs, o arcebispo de Cantu�ria. A rainha � que � a mesma. Tudo institui��es. Tennyson era uma institui��o, e h� belas institui��es. Os seus oitenta e tr�s anos n�o lhe tinham arrancado as plumas das asas de poeta; ainda agora anunciava-me um novo escrito seu. Mas era uma gl�ria brit�nica; n�o teve a influ�ncia nem a universalidade do grande franc�s.

Renan, como Tennyson, despegou-se da vida no espa�o de dois telegramas, algumas horas apenas. N�o penso em agonias de Renan. Afigura-se-me que ele voltou o corpo de um lado para outro e fechou os olhos. Mas agonia que fosse, e por mais longa que haja sido, ter-lhe-� custado pouco ou nada o �ltimo adeus daquele grande pensador, t�o pl�cido para com as fatalidades, t�o prestes a absolver as coisas irremiss�veis.

Comparando este glorioso desfecho com aquele dia em que Renan subiu � cadeira de professor e soltou as famosas palavras: �Alors, un homme a paru...�, podemos crer que os homens, como os livros, t�m os seus destinos. Recordo-me do efeito, que foi universal; a aud�cia produziu esc�ndalo, e a puni��o foi pronta. O professor desceu da cadeira para o gabinete. Passaram-se muitos anos, as institui��es pol�ticas tombaram, outras vieram, e o professor morre professor, ap�s uma obra vasta e luminosa, universalmente aclamado como s�bio e como artista. Os seus pr�prios advers�rios n�o lhe negam admira��o, e porventura lhe far�o justi�a. �J'ai tout critiqu� (diz ele em um dos seus pref�cios) et quoi qu'on en dise, y j'ai tout maintenu.� O s�culo que est� a chegar, criticar� ainda uma vez a cr�tica, e dir� que o ilustre exegeta definiu bem a sua a��o.

A morte n�o pode ter aparecido a esse magn�fico esp�rito com aqueles dentes sem boca e aqueles furos sem olhos, com que os demais pecadores a v�em, mas com as fei��es da vida, coroada de flores simples e graves. Para Renan a vida nem tinha o defeito da morte. Sabe-se que era desejo seu, se houvesse de tornar � terra, ter a mesma exist�ncia anterior, sem altera��o de tr�mites nem de dias. N�o se pode confessar mais vivamente a bem-aventuran�a terrestre. Um poeta daquele pa�s, o velho Ronsard, para igual hip�tese, preferia vir tornado em p�ssaro, a ser duas vezes homem. Eu (falemos um pouco de mim), se n�o fossem as armadilhas pr�prias do homem e o uso de matar o tempo matando p�ssaros, tamb�m quisera regressar p�ssaro.

N�o voltou o p�ssaro Ronsard, como n�o voltar� o homem Renan. Este ir� para onde est�o os grandes do s�culo, que come�ou em Fran�a como o autor de Ren�, e acaba com o da Vida de Jesus, p�ginas t�o caracter�sticas de suas respectivas datas.

N�o fa�o aqui an�lises que me n�o competem, nem cito obras, nem componho biografia. O jornalismo desta capital mostrou j� o que valia o autor de tantos e t�o ador�veis livros, falou daquele estilo incompar�vel, puro e s�lido, feito de cristal e melodia. Nada disso me cabe. A rigor, nem me cabe cuidar da morte. Cuidei desta por ser a �nica nota id�lica, entre tanta coisa grave, soturna, tr�gica ou simplesmente enfadonha.

Em verdade, que posso eu dizer das coisas pesadas e duras de uma semana, remendada de c�digos e praxistas, a ponto de algarismo e cita��o? Pris�es, que tenho eu com elas? Processos, que tenho eu com eles? N�o dirijo companhia alguma, nem an�nima, nem pseud�nima; n�o fundei bancos, nem me disponho a fundi-los; e, de todas as coisas deste mundo e do outro, a que menos entendo, � o c�mbio. N�o � que lhe negue o direito de subir; mas tantas l�stimas ouvi pela queda, quantas ou�o agora pela ascens�o, � n�o sei se �s mesmas pessoas, mas com estes mesmos ouvidos.

Finan�as das finan�as, s�o tudo finan�as. Para onde quer que me volte, dou com a incandescente quest�o do dia. Conhe�o j� o vocabul�rio, mas n�o sei ainda todas as id�ias a que as palavras correspondem, e, quanto aos fen�menos, basta dizer que cada um deles tem tr�s explica��es verdadeiras e uma falsa. Melhor � crer tudo. A d�vida n�o � aqui sabedoria, porque traz debate r�spido, debate traz balan�a de com�rcio, por um lado, e excesso de emiss�es por outro, e, afinal, um fastio que nunca mais acaba.

16 de outubro

N�o tendo assistido a inaugura��o dos bondes el�tricos, deixei de falar neles. Nem sequer entrei em algum, mais tarde, para receber as impress�es da nova tra��o e cont�-las. Da� o meu sil�ncio da outra semana. Anteontem, por�m, indo pela Praia da Lapa, em um bonde comum, encontrei um dos el�tricos, que descia. Era o primeiro que estes meus olhos viam andar.

Para n�o mentir, direi o que me impressionou, antes da eletricidade, foi o gesto do cocheiro. Os olhos do homem passavam por cima da gente que ia no meu bonde, com um grande ar de superioridade. Posto n�o fosse feio, n�o eram as prendas f�sicas que lhe davam aquele aspecto. Sentia-se nele a convic��o de que inventara, n�o s� o bonde el�trico, mas a pr�pria eletricidade. N�o � meu of�cio censurar essas meias gl�rias, ou gl�rias de empr�stimo, como lhe queiram chamar esp�ritos vadios. As gl�rias de empr�stimo, se n�o valem tanto como as de plena propriedade, merecem sempre algumas mostras de simpatia. Para que arrancar um homem a essa agrad�vel sensa��o? Que tenho para lhe dar em troca?

Em seguida, admirei a marcha serena do bonde, deslizando como os barcos dos poetas, ao sopro da brisa invis�vel e amiga. Mas, como �amos em sentido contr�rio, n�o tardou que nos perd�ssemos de vista, dobrando ele para o Largo da Lapa e Rua do Passeio, e entrando eu na Rua do Catete. Nem por isso o perdi de mem�ria. A gente do meu bonde ia saindo aqui e ali, outra gente entrava adiante e eu pensava no bonde el�trico. Assim fomos seguindo; at� que, perto do fim da linha e j� noite, �ramos s� tr�s pessoas, o condutor, o cocheiro e eu. Os dois cochilavam, eu pensava.

De repente ouvi vozes estranhas, pareceu-me que eram os burros que conversavam, inclinei-me (ia no banco da frente); eram eles mesmos. Como eu conhe�o um pouco a l�ngua dos Houyhnhnms, pelo que dela conta o famoso Gulliver, n�o me foi dif�cil apanhar o di�logo. Bem sei que cavalo n�o � burro; mas reconheci que a l�ngua era a mesma. O burro fala menos, decerto; � talvez o trapista daquela grande divis�o animal, mas fala. Fiquei inclinado e escutei:

� Tens e n�o tens raz�o, respondia o da direita ao da esquerda.

O da esquerda:

� Desde que a tra��o el�trica se estenda a todos os bondes, estamos livres, parece claro.

� Claro parece; mas entre parecer e ser, a diferen�a � grande. Tu n�o conheces a hist�ria da nossa esp�cie, colega; ignoras a vida dos burros desde o come�o do mundo. Tu nem refletes que, tendo o salvador dos homens nascido entre n�s, honrando a nossa humildade com a sua, nem no dia de Natal escapamos da pancadaria crist�. Quem nos poupa no dia, vinga-se no dia seguinte.

� Que tem isso com a liberdade?

� Vejo, redarg�iu melancolicamente o burro da direita, vejo que h� muito de homem nessa cabe�a.

� Como assim? bradou o burro da esquerda estacando o passo.

O cocheiro, entre dois cochilos, juntou as r�deas e golpeou a parelha.

� Sentiste o golpe? perguntou o animal da direita. Fica sabendo que, quando os bondes entraram nesta cidade, vieram com a regra de se n�o empregar chicote. Espanto universal dos cocheiros: onde � que se viu burro andar sem chicote? Todos os burros desse tempo entoaram c�nticos de alegria e aben�oaram a id�ia os trilhos, sobre os quais os carros deslizariam naturalmente. N�o conheciam o homem.

�Sim, o homem imaginou um chicote, juntando as duas pontas das r�deas. Sei tamb�m que, em certos casos, usa um galho de �rvore ou uma vara de marmeleiro.

� Justamente. Aqui acho raz�o ao homem. Burro magro n�o tem for�a; mas, levando pancada, puxa. Sabes o que a diretoria mandou dizer ao antigo gerente Shannon? Mandou isto: �Engorde os burros, d�-lhes de comer, muito capim, muito feno, traga-os fartos, para que eles se afei�oem ao servi�o; oportunamente mudaremos de pol�tica, all right!�

� Disso n�o me queixo eu. Sou de poucos comeres; e quando menos trabalho, quando estou repleto. Mas que tem capim com a nossa liberdade, depois do bonde el�trico?

� O bonde el�trico apenas nos far� mudar de senhor.

� De que modo?

� N�s somos bens da companhia. Quando tudo andar por arames, n�o somos j� precisos, vendem-nos. Passamos naturalmente �s carro�as.

� Pela burra de Bala�o! exclamou o burro da esquerda. Nenhuma aposentadoria? nenhum pr�mio? nenhum sinal de gratifica��o? Oh! mas onde est� a justi�a deste mundo?

� Passaremos �s carro�as � continuou o outro pacificamente � onde a nossa vida ser� um pouco melhor; n�o que nos falte pancada, mas o dono de um s� burro sabe mais o que ele lhe custou. Um dia, a velhice, a lazeira, qualquer coisa que nos torne incapaz, restituir-nos-� a liberdade...

� Enfim!

� Ficaremos soltos, na rua, por pouco tempo, arrancando alguma erva que a� deixem crescer para recreio da vista. Mas que valem duas dentadas de erva, que nem sempre � vi�osa? Enfraqueceremos; a idade ou a lazeira ir-nos-� matando, at� que, para usar esta met�fora humana, � esticaremos a canela. Ent�o teremos a liberdade de apodrecer. Ao fim de tr�s, a vizinhan�a come�a a notar que o burro cheira mal; conversa��o e queixumes. No quarto dia, um vizinho, mais atrevido, corre aos jornais, conta o fato e pede uma reclama��o. No quinto dia sai a reclama��o impressa. No sexto dia, aparece um agente, verifica a exatid�o da not�cia; no s�timo, chega uma carro�a, puxada por outro burro, e leva o cad�ver.

Seguiu-se uma pausa.

� Tu �s l�gubre, disse o burro da esquerda. N�o conheces a l�ngua da esperan�a.

� Pode ser, meu colega; mas a esperan�a � pr�pria das esp�cies fracas, como o homem e o gafanhoto; o burro distingue-se pela fortaleza sem par. A nossa ra�a � essencialmente filos�fica. Ao homem que anda sobre dois p�s, e provavelmente � �guia, que voa alto, cabe a ci�ncia da astronomia. N�s nunca seremos astr�nomos. Mas a filosofia � nossa. Todas as tentativas humanas a este respeito s�o perfeitas quimeras. Cada s�culo...

O freio cortou a frase ao burro, porque o cocheiro encurtou as r�deas, e travou o carro. T�nhamos chegado ao ponto terminal. Desci e fui mirar os dois interlocutores. N�o podia crer que fossem eles mesmos. Entretanto, o cocheiro e o condutor cuidaram de desatrelar a parelha para lev�-la ao outro lado do carro; aproveitei a ocasi�o e murmurei baixinho, entre os dois burros:

� Houyhnhnms!

Foi um choque el�trico. Ambos deram um estreme��o, levantaram as patas e perguntaram-me cheios de entusiasmo:

� Que homem �s tu, que sabes a nossa l�ngua?

Mas o cocheiro, dando-lhes de rijo na lambada, bradou para mim, que lhe n�o espantasse os animais. Parece que a lambada devera ser em mim, se era eu que espantava os animais; mas como dizia o burro da esquerda, ainda agora: � Onde est� a justi�a deste mundo?

23 de outubro

Todas as coisas t�m a sua filosofia. Se os dois anci�os que o bonde el�trico atirou para a eternidade esta semana, houvessem j� feito por si mesmos o que lhes fez o bonde, n�o teriam entestado com o progresso que os eliminou. � duro dizer; duro e ing�nuo, um pouco � La Palisse; mas � verdade. Quando um grande poeta deste s�culo perdeu a filha, confessou, em versos doloridos, que a cria��o era uma roda que n�o podia andar sem esmagar algu�m. Por que negaremos a mesma fatalidade aos nossos pobres ve�culos?

H� terras, onde as companhias indenizam as v�timas dos desastres (ferimentos ou mortes) com avultadas quantias, tudo ordenado por lei. � justo; mas essas terras n�o t�m, e deviam ter, outra lei que obrigasse os feridos e as fam�lias dos mortos a indenizarem as companhias pela perturba��o que os desastres trazem ao hor�rio do servi�o. Seria um equil�brio de direitos e de responsabilidades. Felizmente, como n�o temos a primeira lei, n�o precisamos da segunda, e vamos morrendo com a �nica despesa do enterro e o �nico lucro das ora��es.

Falo sem interesse. Dado que venhamos a ter as duas leis, jamais a minha vi�va indenizar� ou ser� indenizada por nenhuma companhia. Um precioso amigo meu, hoje morto, costumava dizer que n�o passava pela frente de um bonde, sem calcular a hip�tese de cair entre os trilhos e o tempo de levantar-se e chegar ao outro lado. Era um bom conselho, como o Doutor Sovina era uma boa farsa, antes das farsas do Pena. Eu, o Pena dos cautelosos, levo o c�lculo adiante: calculo ainda o tempo de escovar-me no alfaiate pr�ximo. Pr�ximo pode ser longe, mas muito mais longe � a eternidade.

Em todo caso, n�o vamos concluir contra a eletricidade. Logicamente, ter�amos de condenar todas as m�quinas, e, visto que h� naufr�gios, queimar todos os navios. N�o, senhor. A necrologia dos bondes tirados a burros � assaz comprida e l�gubre para mostrar que o governo de tra��o n�o tem nada com os desastres. Os jornais de quinta-feira disseram que o carro ia apressado, e um deles explicou a pressa, dizendo que tinha de chegar ao ponto � hora certa, com prazo curto. Bem; poder-se-iam combinar as coisas, espa�ando os prazos e aparelhando carros novos, el�tricos ou muares, para acudir � necessidade p�blica. Digamos mais cem, mais duzentos carros. Nem s� de p�o vive o acionista, mas tamb�m da alegria e da integridade dos seus semelhantes.

Convenho que, durante uns quatro meses, os bondes el�tricos andem muito mais aceleradamente que os outros, para fugir ao riso dos vadios e � toleima dos ignaros. Uns e outros imaginam que a eletricidade � uma vers�o do processo culin�rio � la minute, e podem vir a enlamear o ve�culo com alcunhas feias. Lembra-me (era bem crian�a) que, nos primeiros tempos do g�s no Rio de Janeiro, houve uns dias de luz frouxa, de onde os moleques sacaram este dito: o g�s virou lamparina. E o dito ficou e imp�s-se, e eu ainda o ouvi aplicar aos amores expirantes, �s belezas murchas, a todas as coisas deca�das.

Ah! se eu for a contar mem�rias da inf�ncia, deixo a semana no meio, remonto os tempos e fa�o um volume. Paro na primeira esta��o, 1864, famoso ano da suspens�o de pagamentos (minist�rio Furtado); respiro, subo e paro em 1867, quando a febre das a��es atacou a esta pobre cidade, que s� arribou � for�a do quinino do desengano. Remonto ainda e vou a...

Aonde? Posso ir at� antes do meu nascimento, at� Law. Grande Law! Tamb�m tu tiveste um dia de celebridade; depois, viraste embromador e ca�ste na casinha da hist�ria, o lugar dos lava-pratos. E assim irei de s�culo a s�culo, at� o para�so terrestre, forma rudiment�ria do encilhamento, onde se vendeu a primeira a��o do mundo. Eva comprou-a � serpente, com �gio, e vendeu-a a Ad�o, tamb�m com �gio, at� que ambos faliram. E irei ainda mais alto, antes do para�so terrestre, ao Fiat lux, que, bem estudado ao g�s do entendimento humano, foi o princ�pio da fal�ncia universal.

N�o; cuidemos s� da semana. A simples amea�a de contar as minhas mem�rias diminuiu-me o papel em tal maneira, que � preciso agora apertar as letras e as linhas.

Semana quer dizer finan�as. Finan�as implicam financeiros. Financeiros n�o v�o sem projetos, e eu n�o sei formular projetos. Tenho id�ias boas, e at� bonitas, algumas grandiosas, outras complicadas, muito 2%, muito lastro, muito resgate, toda a t�cnica da ci�ncia; mas falta-me o talento de compor, de dividir as id�ias por artigos, de subdividir os artigos em par�grafos, e estes em letras a b c; sai-me tudo confuso e atrapalhado. Mas por que n�o farei um projeto financeiro ou banc�rio, lan�ando-lhe no fim as palavras da velha praxe: salva a reda��o? Poderia baralhar tudo, � certo; mas n�o se joga sem baralhar as cartas; de outro modo � embara�ar os parceiros.

Adeus. O melhor � ficar calado. Sei que a semana n�o foi s� de finan�as, mas tamb�m de outras coisas, como a crise de transportes, a carne, discursos extraordin�rios ou explicativos, um projeto de estrada de ferro que nos p�e �s portas de Lisboa, e a mulher de C�sar, que reapareceu no seio do parlamento. Vi entrar esta c�lebre senhora por aquela casa, e, depois de alguns minutos, via-se sair. Corri � porta e detive-a: � �Ilustre Pomp�ia, que vieste fazer a esta casa?� � �Obedecer ainda uma vez � cita��o da minha pessoa. Que queres tu? meu marido lembrou-se de fazer uma bonita frase, e entregou-me por todos os s�culos a amigos, conhecidos e desconhecidos.�

30 de outubro

Tempos do papa! tempos dos cardeais! N�o falo do papa cat�lico, nem dos cardeais da santa Igreja Romana, mas do nosso papa e dos nossos cardeais. F. Otaviano, ent�o jornalista, foi quem achou aquelas designa��es para o Senador Eus�bio e o estado-maior do Partido Conservador. Era eu pouco mais que menino...

Fica entendido que, quando eu falar de fatos ou pessoas antigas, estava sempre na inf�ncia, se � que seria nascido. N�o me fa�am mais idoso do que sou. E depois, o que � idade? H� dias, um distinto nonagen�rio apertava-me a m�o com for�a e contava-me as vivas impress�es que lhe deixara a obra de Bryce acerca dos Estados Unidos; acabava de l�-la, � dois grossos volumes, como sabem. E despediu-se de mim, e l� se foi a andar seguro e l�pido. Realmente, os anos nada valem por si mesmos. A quest�o � saber ag�ent�-los, escov�-los bem, todos os dias, para tirar a poeira da estrada, traz�-los lavados com �gua de higiene e sab�o de filosofia.

Repito, era pouco mais que um menino, mas j� admirava aquele escritor fino e s�brio, destro no seu of�cio. A atual mocidade n�o conheceu Otaviano; viu apenas um homem avelhantado e enfraquecido pela doen�a, com um resto p�lido daquele riso que Voltaire lhe mandou do outro mundo. Nem resto, uma sombra de resto, talvez uma simples reminisc�ncia deixada no c�rebro das pessoas que o conheceram entre trinta e quarenta anos.

Um dia, um domingo, havia elei��es, como hoje. Papa e cardeais tinham o poder nas m�os, e, sendo o reg�men de dois graus, entraram eles pr�prios nas chapas de eleitores, que eram escolhidos pelos votantes. Os liberais resolveram lutar com os conservadores, apresentaram chapas suas e os desbarataram. O pont�fice, com todos os membros do consist�rio, mal puderam sair suplentes. E Otaviano, f�rtil em met�foras, chamou-lhes esquifes. Mais um esquife, dizia ele no Correio Mercantil, durante a apura��o dos votos. Luta de energias, luta de motejos. Rocha, jornalista conservador, ria causticamente do lencinho branco de Te�filo Otoni, o c�lebre len�o com que este conduzia a multid�o, de par�quia em par�quia, aclamando e aclamado. A multid�o seguia, alegre, tumultuosa, levada por sedu��o, por um instinto vago, por efeito da palavra, � um pouquinho por of�cio. N�o me lembra bem se houve alguma urna quebrada; � poss�vel que sim. Hoje mesmo as urnas n�o s�o de bronze. N�o vou ao ponto de afirmar que n�o as houve pejadas. Que � a pol�tica sen�o obra de homens? Crescei e multiplicai-vos.

Hoje, domingo n�o h� a mesma multid�o, o eleitorado � restrito; mas podia e devia haver mais calor. Trata-se n�o menos de que eleger o primeiro conselho municipal do Distrito Federal, que � ainda e ser� a capital verdadeira e hist�rica do Brasil. N�o � elei��o que apaixone, concordo; n�o h� paix�es puramente pol�ticas. Nem paix�es s�o coisas que se encomendem, como partidos n�o s�o coisas que se evoquem. Mas (permitam-me esta velha banalidade) h� sempre a paix�o do bem e do interesse p�blico. Eia, animai-vos um pouco, se n�o � tarde; mas, se � tarde, guardai-vos para a primeira elei��o que vier. Contanto que n�o quebreis urnas, nem as fecundeis � a conselho meu, � agitai-vos, meus caros eleitores, agitai-vos um tanto mais.

Por hoje, leitor amigo, vai tranq�ilamente dar o teu voto. Vai anda, vai escolher os intendentes que devem representar-nos e defender os interesses comuns da nossa cidade. Eu, se n�o estiver meio adoentado, como estou, n�o deixarei de levar a minha c�dula. N�o leias mais ainda, porque � bem poss�vel que eu nada mais escreva, ou pouco. Vai votar; o teu futuro est� nos joelhos dos deuses, e assim tamb�m o da tua cidade; mas por que n�o os ajudar�s com as m�os?

Outra coisa que est� nos joelhos dos deuses � saber se a terceira prorroga��o que o Congresso Nacional resolveu decretar � a �ltima e definitiva. Pode haver quarta e quinta. Daqui a censurar o Congresso � um passo, e passo curto; mas eu prefiro ir � Constituinte, que � o mesmo Congresso avant la lettre. Por que diabo fixou a Constituinte, em quatro meses a sess�o anual legislativa, isto �, o mesmo prazo da Constitui��o de 1824? Devia atender que outro � o tempo e outro o reg�men.

Felizmente, li esta semana que vai haver uma revis�o de Constitui��o no ano pr�ximo. Boa ocasi�o para emendar esse ponto, e ainda outros, se os h�, e creio que h�. Nem faltar� quem proponha o governo parlamentar. Dado que esta �ltima id�ia passe, � preciso ter j� de encomenda uma casaca, um par de colarinhos, uma gravata branca, uma pequena mala com alocu��es brilhantes e an�dinas, para as grandes festas oficiais, � e um Carnot, mas um Carnot aut�ntico, que vista e profira todas aquelas coisas sem significa��o pol�tica. Salvo se arranjarmos um meio de combinar os presidentes e os ministros respons�veis, um Congresso que mande um minist�rio seu ao presidente, para cumprir e n�o cumprir as ordens opostas de ambos. Enfim, esperemos. O futuro est� nos joelhos dos deuses.

Mas n�o me fa�as ir adiante, leitor amado. Adeus, vai votar. Escolhe a tua intend�ncia e ficar�s com o direito de gritar contra ela. Adeus.

6 de novembro

Vou contar �s pressas o que me acaba de acontecer.

Domingo passado, enquanto esperava a chamada dos eleitores, sa� � Pra�a do Duque de Caxias (vulgarmente Largo do Machado) e comecei a passear defronte da igreja matriz da Gl�ria. Quem n�o conhece esse templo grego, imitado da Madalena, com uma torre no meio, imitada de coisa nenhuma? A impress�o que se tem diante daquele singular con�bio, n�o � crist� nem pag�; faz lembrar, como na com�dia, �o casamento do Gr�o-Turco com a rep�blica de Veneza�. Quando ali passo, desvio sempre os olhos e o pensamento. Tenho medo de pecar duas vezes, contra a torre e contra o templo, mandando-os ambos ao diabo, com esc�ndalo da minha consci�ncia e dos ouvidos das outras pessoas.

Daquela vez, por�m, n�o foi assim. Olhei, parei e fiquei a olhar. Entrei a cogitar se aquele ajuntamento h�brido n�o ser� antes um s�mbolo. A irmandade que mandou fazer a torre, pode ter escrito, sem o saber, um coment�rio. Sup�s batizar uma sinagoga (devia crer que era uma sinagoga), e fez mais, comp�s uma obra representativa do meio e do s�culo. N�o h� ali s� um sino para repicar aos domingos e dias santos, com afronta dos pag�os de Atenas e dos crist�os de Paris, � h� talvez uma p�gina de psicologia social e pol�tica.

Sempre que entrevejo uma id�ia, uma significa��o oculta em qualquer objeto, fico a tal ponto absorto, que sou capaz de passar uma semana sem comer. Aqui, h� anos, estando sentado � porta de casa, a meditar no c�lebre axioma do Dr. Pangloss � que os narizes fizeram-se para os �culos, e que � por isso que usamos �culos, sucedeu cair-me a vista no ch�o, exatamente no lugar em que estava uma ferradura velha. Que haveria naquele sapato de cavalo, t�o comido de dias e de ferrugem?

Pensei muito, � n�o posso dizer se uma ou duas horas, � at� que um clar�o s�bito espancou as trevas do meu esp�rito. A figura � velha, mas n�o tenho tempo de procurar outra. Cresci diante de Pangloss. O grande fil�sofo, achando a raz�o dos narizes, n�o advertiu que, ainda sem eles, pod�amos trazer �culos. Bastava um pequeno aparelho de barbantes, que fosse por cima das orelhas at� � nuca. Outro era o caso da ferradura. S� o duro casco do animal podia destinar-se � ferradura, uma vez que n�o h� meio de faz�-la aderir sem pregos. Aqui a finalidade era evidente. De conclus�o em conclus�o, cheguei �s ave-marias; tinham-me j� chamado para jantar tr�s vezes; comi mal, digeri mal, e acordei doente. Mas tinha descoberto alguma coisa.

Fica assim explicada a minha longa medita��o diante da torre e do templo, e o mais que me aconteceu. Cruzei os bra�os nas costas, com a bengala entre as m�os, apoiando-me nela. Algumas pessoas que iam passando, ao darem comigo, paravam tamb�m e buscavam descobrir por si o que � que chamava assim a aten��o de um homem t�o grave. Foram-se deixando estar; outras vieram tamb�m e foram ficando, at� formarem um grupo numeroso, que observava tenazmente alguma coisa dign�ssima da aten��o dos homens. � assim que eu admiro muita m�sica; basta ver o Artur Napole�o parado.

Nem por isso interrompi as reflex�es que ia fazendo. Sim, aquela jun��o da torre e do templo n�o era somente uma opini�o da irmandade.

N�o tenho aqui papel para notar todos os fen�menos hist�ricos, pol�ticos e sociais que me pareceram explicar o edif�cio do Largo do Machado; mas, ainda que o tivesse de sobra, calar-me-ia pela incerteza em que ainda estou acerca das minhas conclus�es. Dois exemplos estremes bastam para justifica��o da d�vida. A nossa independ�ncia pol�tica, que os poetas e oradores, at� 1864, chamavam grito de Ipiranga, n�o se pode negar que era um belo templo grego. O tratado que veio depois, com algumas de suas cl�usulas, e o seu imperador honor�rio, al�m do efetivo, poder� ser comparado � torre da matriz da Gl�ria? N�o ouso afirm�-lo. O mesmo digo do quiosque. O quiosque, apesar da origem chinesa, pode ser comparado a um templo grego, copiado de Paris; mas o charuto, o bom caf� barato e o bilhete de loteria que ali se vendem, ser�o acaso equivalentes daquela torre? N�o sei; nem tamb�m sei se os foguetes que ali estouram, quando anda a roda e eles tiram pr�mios, representam os repiques de sinos em dias de festa. H� hesita��es grandes e nobres, minha pobre alma as conhece.

Pelo que respeita especialmente ao caso da matriz da Gl�ria, concordo que ele exprima a rea��o do sentimento local contra uma inova��o apenas elegante. N�s mamamos ao som dos sinos e somos desmamados com eles; uma igreja sem sino �, por assim dizer, uma boca sem fala. Da� nasceu a torre da Gl�ria. A quest�o n�o � achar esta explica��o, � complet�-la.

N�o me tragam aqui o mestre Spencer com os seus aforismos sociol�gicos. Quando ele diz que �o estado social � o resultado de todas as ambi��es, de todos os interesses pessoais, de todos os medos, venera��es, indigna��es, simpatias, etc. tanto dos antepassados, como dos cidad�os existentes� � n�o serei eu que o conteste. O mesmo farei se ele me disser, a prop�sito do templo grego: �Posto que as id�ias adiantadas, uma vez estabelecidas, atuem sobre a sociedade e ajudem o seu progresso ulterior, ainda assim o estabelecimento de tais id�ias depende da aptid�o da sociedade para receb�-las. Na pr�tica, � o car�ter popular e o estado social que determinam as id�ias que h�o de ter curso; n�o s�o as id�ias correntes que determinam o estado social e o car�ter...�

Sim, concordo que o templo grego sejam as id�ias novas, e o car�ter e o estado social a torre, que h� de sobrepor-se por muito tempo �s belas colunas antigas, ainda que a gente se oponha com toda a for�a ao voto das irmandades...

Neste ponto das minhas reflex�es, o sino da torre bateu uma pancada, logo depois outra... Estreme�o, acordo, eram ave-marias. Sem saber o que fazia, corro � igreja para votar.

� Para qu�? diz-me o sacrist�o.

� Para votar.

� Mas elei��o foi domingo passado.

� Que dia � hoje?

� Hoje � s�bado.

� Deus de miseric�rdia!

Senti-me fraco, fui comer alguma coisa. Sete dias para achar a explica��o da torre da Gl�ria, uma semana perdida. Escrevo este artigo a trouxe-mouxe, em cima dos joelhos, servindo-me de mesa um exemplar da B�blia, outro de Cam�es, outro de Gon�alves Dias, outro da Constitui��o de 1824 e outro da Constitui��o de 1889, � dois templos gregos, com a torre do meu nariz em cima.

13 de novembro

�Quem se n�o preocupar com saber (escreveu Grimm) que tal estava o tempo em Roma quando C�sar foi assassinado, nunca h� de saber hist�ria�. H� aqui uma grande verdade. Quando n�o a haja para o resto do mundo, poderemos crer que h� para n�s. Um exemplo: O senado rejeitou na sess�o noturna de sexta-feira o projeto da C�mara dos Deputados, prorrogando a sess�o legislativa at� o dia 22 do corrente. Era um duelo entre os dois ramos do Congresso. A C�mara queria prorroga��o para discutir a quest�o financeira e os cr�ditos militares. O senado que n�o queria quest�o financeira rejeitou o projeto de prorroga��o.

Os superficiais contentam-se em ler a not�cia do voto; os curiosos ir�o at� a leitura dos nomes dos senadores favor�veis e diversos. Os esp�ritos profundos, desde que aceitem a doutrina de Grimm, procurar�o saber se na noite da sexta-feira chovia ou ventava.

Ventava e chovia. Vou contar-lhes o que se passou. De tarde, perto das seis horas, estando eu na Rua do Ouvidor, soube que o senado faria sess�o noturna para resolver sobre a prorroga��o, isto �, rejeit�-la, como lhe parecia bem. Resolvi ir ao senado. Corri para casa, jantei �s pressas, e mal come�ava a beber o caf�, o vento, que j� era rijo alguns minutos antes, entrou a soprar com viol�ncia; logo depois principiou a chover grosso, uma noite r�spida. Tr�s vezes tentei sair; recuei sem �nimo.

Suponhamos agora que n�o chovia; eu ia ao senado, trepava a uma das galerias para assistir aos debates. Ouviria as melhores raz�es dos adversos � prorroga��o e, no meio do pasmo de todos, fazia de cima este breve discurso:

� Senhores, ou�o que recusais a prorroga��o por falta de tempo necess�rio ao debate do projeto financeiro.

Realmente, dez dias n�o parecem muito para mat�ria t�o relevante. Permiti, por�m, que vos cite um velho parlamentar. Uma folha europ�ia, n�o h� muitas semanas, lembrava este dito de Disraeli: �Tenho ouvido muitos discursos na minha vida; alguns conseguiram mudar a minha opini�o; nenhum mudou o meu voto�. Basta, pois uma prorroga��o de cinco minutos, dez, vinte, o tempo de votar, verificar a vota��o e arquivar o projeto. N�o fa�amos correr mundo o boato falso que os debates alteram o voto pr�-existente. Disraeli, com todo o seu talento, n�o era �nico.

Este simples discurso mudaria a orienta��o dos esp�ritos. N�o o fiz porque n�o sa� de casa, e n�o sa� de casa porque choveu. E assim se podem explicar muitos outros sucessos pol�ticos.

Com certeza, n�o choveu em Ouro-Preto, por ocasi�o da revolu��o e da contra revolu��o municipal. As �guas do c�u, ou por serem do c�u, ou por qualquer raz�o meteorol�gica que me escapa, n�o deixam sair as revolu��es � rua.

Em verdade, o guarda-chuva n�o � revolucion�rio, nem est�tico. O �nico homem que venceu com ele foi o rei Luiz Filipe, e da� lhe vem o apoio dos chapeleiros e toda a grande e pequena burguesia. Mais tarde, n�o tendo querido unir o martelo ao guarda-chuva, perdeu este e o cetro.

Mas tudo isto � hist�ria antiga. Moderno e antigo a um tempo � o novo desastre produzido pelo bonde el�trico, n�o por ser el�trico, mas por ser bonde.

Parece que contundiu, esmagou, fez n�o sei que les�o a um homem. O cocheiro evadiu-se.

O cocheiro evadiu-se. H� estribilhos mais animados que este: n�o creio que nenhum o alcance na regularidade e na gra�a do ritmo. O cocheiro evadiu-se. O bonde mata uma pessoa; dou que n�o a mate, que a v�tima perca simplesmente uma perna, um dedo, ou os sentidos. O cocheiro evadiu-se. Ningu�m ignora que todas as revis�es de jornais t�m ordem de traduzir por aquelas palavras um sinal posto no fim das not�cias relativas a desastres veiculares. V�, aceite, o adjetivo; � novo, mas � l�gico. Pat�bulo, ve�culo. Patibulares, veiculares.

H� tempos (ponhamos cinq�enta anos), um cocheiro de bonde descuidou-se e foi preso; mas o p�blico teve not�cia de que, al�m das qualidades t�cnicas que o recomendavam, o automedonte, ensinava um sobrinho a ler e escrever, e foi esta afirma��o dom�stica do grande princ�pio da instru��o gratuita e obrigat�ria que o salvou. Talvez n�o fosse bem assim; eu mal era nascido; ouvi a hist�ria entre outras da minha inf�ncia. Tamb�m n�o sei se o bonde era el�trico. N�o se diga que h� culpa da parte das testemunhas, em n�o prender os delinq�entes e entreg�-los � primeira pra�a que acudiu. Estudemos o esp�rito dos tempos. H� trinta anos, dado um delito, o grito dos populares era este: pega! pega!

Nos �ltimos dez ou quinze anos o grito em caso de pris�o � este: N�o pode! n�o pode! Tudo est� nestes dois clamores. No primeiro caso, o povo constitu�a-se gratuita e estouvadamente em auxiliar da for�a. No segundo converteu-se em protesto vivo e baluarte das liberdades p�blicas.

Entenda-se bem que, falando de cocheiros, n�o me restrinjo aos modestos funcion�rios que t�m exclusivamente este nome, nem particularmente �s companhias de bondes. H� outras companhias, cujos cocheiros tamb�m fogem, logo que h� desastre, � ou desde que os passageiros descobrem que andam sentados, mas que h� muito tempo perderam as cal�as e as pernas. H� ainda outra esp�cie de cocheiros mais alevantados. Agora mesmo, em Venezuela, quando o general Crespo tomou conta do carro do Estado, o cocheiro intruso que l� estava evadiu-se com dois milh�es.

Fugir, afinal de contas, � um instinto universal.

20 de novembro

Cariocas, meus patr�cios, meus amigos, coroai-vos de flores, trazei palmas nas m�os e dan�ai em torno de mim, com p� alterno, � maneira antiga. Sus, triste gente mal vista e malquista da outra gente brasileira, que n�o adora a vossa frouxid�o, a vossa apatia, a vossa personalidade perdida no meio deste grande e infinito bazar! Sus! Aqui vos trago alguma coisa que repara as lacunas da hist�ria, o mau gosto dos homens e o equ�voco dos s�culos. Eia, amigos meus, patr�cios meus, escutai!

Depois de um ex�rdio destes, � imposs�vel dizer nada que produza efeito; pelo que � e para imitar os pregadores, que depois do ex�rdio ajoelham-se no p�lpito, com cabe�a baixa, como a receber a inspira��o divina, � inclino-me por alguns instes, at� que a impress�o passe: direi pois a grande not�cia. Ajoelhai-vos tamb�m, e pensai em outra coisa.

Pensai nas festas de 15 de novembro na esp�cie de julgamento eg�pcio, que toda a imprensa fez nesse dia acerca da Rep�blica. Houve acordo em reconhecer a aceita��o geral das institui��es, e a necessidade de esfor�o para evitar erros cometidos. As festas estiveram brilhantes. Notou-se, � verdade, a aus�ncia do corpo diplom�tico no pal�cio do governo. Esp�ritos desconfiados chegaram a crer em algum acordo pr�vio; mas esta id�ia foi posta de lado, por absurda.

N�o importa! Cr�dulo, quando teima, teima. N�o faltou quem citasse o fato da nota coletiva acerca de uns tristes lazaretos, para concluir que n�o somos amados dos outros homens, e dar assim � aus�ncia coletiva um ar de nota coletiva. Explica��o que nada explica, porque se a gente fosse a amar a todas as pessoas a quem tem obriga��o de tirar o chap�u, este mundo era vale de amores, em vez de ser um vale de l�grimas.

N�o penseis mais nisso. Pensai antes nas festas nacionais dos Estados, posto seja dif�cil, a respeito de alguns, saber a verdade dos telegramas. Aqui est�o dois da Fortaleza, Cear�, datados de 16. Um: �Foi imenso o regozijo pelo anivers�rio da proclama��o da Rep�blica�. Outro: �O dia 15 de novembro correu frio, no meio da maior indiferen�a p�blica�. V� um homem crer em telegramas! A mim custa-me muito; Bismarck n�o cria absolutamente, tanto que confessa agora haver alterado a not�cia de um, para obrigar � guerra de 1870. Assim o diz um telegrama publicado aqui, sexta-feira; mas � verdade que isto, dito por telegrama, n�o pode merecer mais f� que o dizer de outros telegramas. O melhor � esperar cartas.

Aqui est� uma delias, e com tal not�cia que, antes de inspirar piedade, encher-nos-� de orgulho. N�o h� telegrafices, nem para bem, nem para mal. Refiro-me �quele engenheiro Bacelar e �quele empreiteiro Dion�sio, que em Aiuruoca foram presos por um grupo de calabreses, trabalhadores da linha f�rrea. O pagamento andava atrasado; os calabreses, para haver dinheiro, pegaram dos dois pobres diabos, que iam de viagem, e disseram a um terceiro que, antes de pagos, n�o lhes dariam liberdade, e dar-lhe-iam a morte, se vissem aparecer for�a. O companheiro veio aqui ver se h� meio de os resgatar. O caso � de meter piedade.

Sobretudo, como disse, � de causar orgulho. Maom� chamou a montanha, e, n�o querendo ela vir, foi ele ter com ela. N�s chamamos a Cal�bria, e a Cal�bria acudiu logo. Vivam as regi�es d�ceis! � certo que pagamos-lhe a passagem; mas era o menos que pedia a justi�a. O ato agora praticado difere sensivelmente dos velhos costumes, porque a Cal�bria, desta vez, era e � credora; trabalhou e n�o lhe pagaram. Mas, enfim, o uso de prender gente at� que ela lhe pague, com amea�a de morte, � assaz duro. Antes a cita��o pessoal e a senten�a impressa; porque, se o devedor tem certo pejo, faz o diabo para pagar a divida, por um ou por outro modo: se n�o o tem, que vale a publicidade do caso e do nome? Talvez a publicidade traga vantagens especiais ao condenado: perde os dedos e ficam-lhe os an�is. Napole�o dizia: On est consider� � Paris, � cause de sa voiture, et non � cause de sa vertu. Por que n�o h� de suceder a mesma coisa na Cal�bria?

Outro assunto que merece particularmente a vossa aten��o, � a reuni�o da intend�ncia, a primeira eleita, a que vem inaugurar o reg�men constitucional da cidade. Corresponder� �s esperan�as p�blicas? Vamos crer que sim; crer faz bem, crer � honesto. Quando o mal vier, se vier, dir-se-� mal dele. Se vier o bem, como � de esperar, hosanas � intend�ncia. Por ora, boa viagem!

E agora, patr�cios meus, cariocas da minha alma, vamos concluir o serm�o, cujo ex�rdio l� ficou acima.

Sabeis que o nosso distrito � a capital interina da Uni�o. J� se est� trabalhando em medir e preparar a capital definitiva. Eis a disposi��o constitucional; � o art. 5�, t�tulo F: �Fica pertencendo � Uni�o, no planalto central da Rep�blica, uma zona de 14.400 quil�metros quadrados, que ser� oportunamente demarcada, para nela estabelecer-se a futura capital federal. � Par�grafo �nico. Efetuada a mudan�a da capital, o atual distrito federal passar� a constituir um Estado�.

Eis o ponto do serm�o. Temos de constituir em breve um Estado. O nome de capital federal, que ali�s n�o � propriamente um nome, mas um qualificativo legal, ir-se-� com a mudan�a para a capital definitiva. Haveis de procurar um nome. Rio de Janeiro n�o pode ser, j� porque h� outro Estado com esse nome, j� porque n�o � verdade; basta de ag�entar com um rio que n�o � rio. Que nome h� de ser? A primeira id�ia que pode surgir em alguns esp�ritos distintos, mas pregui�osos, � aplicar ao Estado o uso de algumas ruas, � Estado do Dr. Jo�o Mariz, por exemplo, � uso que, na Am�rica do Norte, � limitado aos chamados homens-sandwichs, uns sujeitos metidos entre duas t�buas, levando escrita em ambas esta ou outra not�cia: �Dr. Dix�s celebrated female powders; guaranted superior to ali others�. N�o � bom sistema para intitular Estados.

Tamb�m n�o vades fabricar nomes grandiosos: Nova Londres ou Nov�ssima York. Prata de casa, prata de casa.

N�o me cabe a escolha; sou duas vezes incompetente, por lei e por natureza. E depois, dou para piegas: podia adotar Carioca mesmo, � ou Guanabara, usado pelos poetas da outra gera��o. Dir-me-eis que � preciso contar com o mundo, que s� conhece o antigo Rio de Janeiro e n�o se acostumar� � troca. Isso � convosco, patr�cios meus. Nem eu vos anunciei a princ�pio uma grande descoberta sen�o para ter o gosto de trazer-vos at� aqui, coluna abaixo, ansioso, � espera do segredo, e olhando apenas um fim de semana, um adeus e um ponto final.

27 de novembro

Um dos meus velhos h�bitos � ir, no tempo das C�maras, passar as horas nas galerias. Quando n�o h� C�maras, vou � municipal ou intend�ncia, ao j�ri, onde quer que possa fartar o meu amor dos neg�cios p�blicos, e mais particularmente da eloq��ncia humana. Nos intervalos, fa�o algumas cobran�as, � ou qualquer servi�o leve que possa ser interrompido sem dano, ou continuado por outro. J� se me t�m oferecido bons empregos, largamente retribu�dos, com a condi��o de n�o freq�entar as galerias das C�maras. Tenho-os recusado todos; nem por isso ando mais magro.

Nas galerias das C�maras ocupo sempre um lugar na primeira fila dos bancos; leva-se mais tempo a sair, mas como eu s� saio no fim, e �s vezes depois do fim, importa-me pouco essa dificuldade. A vantagem � enorme; tem-se um parapeito de pau, onde um homem pode encostar os bra�os e ficar a gosto. O chap�u atrapalhou-me muito no primeiro ano (1857), mas desde que me furtaram um, meio novo, resolvi a quest�o definitivamente. Entro, ponho o chap�u no banco e sento-me em cima. Venham c� busc�-lo!

N�o me perguntes a que vem esta p�gina dos meus h�bitos. � ler, se queres. Talvez haja alguma conclus�o. Tudo tem conclus�o neste mundo. Eu vi concluir discursos, que ainda agora suponho estar ouvindo.

Cada coisa tem uma hora pr�pria, leitor feito �s pressas. Na galeria, � meu costume dividir o tempo entre ouvir e dormir. At� certo ponto, velo sempre. Da� em diante, salvo rumor grande, apartes, tumulto, cerro os olhos e passo pelo sono. H� dias em que o guarda vem bater-me no ombro.

� Que �?

� Saia da�, j� acabou.

Olho, n�o vejo ningu�m, recompondo o chap�u e saio. Mas estes casos n�o s�o comuns.

No Senado, nunca pude fazer a divis�o exata, n�o porque l� falassem mal; ao contr�rio, falavam geralmente melhor que na outra C�mara. Mas n�o havia barulho. Tudo macio. O estilo era t�o apurado, que ainda me lembro certo incidente que ali se deu, orando o finado Ferraz, um que fez a lei banc�ria a de 1860. Creio que era ent�o Ministro da Guerra, e dizia, referindo-se a um senador: �Eu entendo, Sr. presidente, que o nobre senador n�o entendeu o que disse o nobre Ministro da Marinha, ou fingiu que n�o entendeu�. O Visconde de Abaet�, que era o presidente, acudiu logo: �A palavra fingiu acho que n�o � pr�pria.� E o Ferraz replicou: �Pe�o perd�o a V. Exa., retiro a palavra.�

Ora, d�em l� interesse �s discuss�es com estes passos de minuete! Eu, mal chegava ao Senado, estava com os anjos. Tumulto, saraivada grossa, caluniador para c�, caluniador para l�, eis o que pode manter o interesse de um debate. E que � a vida sen�o uma troca de cacha��es?

A Rep�blica trouxe-me quatro desgostos extraordin�rios; um foi logo remediado; os outros tr�s n�o. O que ela mesma remediou, foi a desastrada id�ia de meter as c�maras no pal�cio da Boa Vista. Muito pol�tico e muito bonito para quem anda com dinheiro no bolso; mas obrigar-me a pagar dois n�queis de passagem por dia, ou a ir a p�, era um desprop�sito. Felizmente, vingou a id�ia de tornar a p�r as C�maras em contato com o povo, e descemos da Boa Vista.

N�o me falem nos outros tr�s desgostos. Suprimir as interpela��es aos ministros, com dia fixado e anunciado; acabar com a discuss�o da resposta � fala do trono; eliminar as apresenta��es de minist�rios novos...

Oh! as minhas belas apresenta��es de minist�rios! Era um regalo ver a C�mara cheia, agitada, febril, esperando o novo gabinete. Mo�as nas tribunas, algum diplomata, meia d�zia de senadores. De repente, levantava-se um sussurro, todos os olhos voltavam-se para a porta central, aparecia o minist�rio com o chefe � frente, cumprimentos � direita e � esquerda. Sentados todos, erguia-se um dos membros do gabinete anterior e expunha as raz�es da retirada; o presidente do conselho erguia-se depois, narrava a hist�ria da subida, e definia o programa. Um deputado da oposi��o pedia a palavra, dizia mal dos dois minist�rios, achava contradi��es e obscuridades nas explica��es, e julgava o programa insuficiente. R�plica, tr�plica, agita��o, um dia cheio.

Justi�a, justi�a. H� usos daquele tempo que ficaram. �s vezes, quando os debates eram calorosos, � e principalmente nas interpela��es, � eu da galeria entrava na dan�a, dava palmas. N�o sei quando come�ou este uso de dar palmas nas galerias. Deve vir de muitos anos. O presidente da C�mara bradava sempre: �As galerias n�o podem fazer manifesta��es!� Mas era como se n�o dissesse nada. Na primeira ocasi�o, tornava a palmear com a mesma for�a. Vieram vindo depois os bravos, os apoiados, os n�o-apoiados, uma bonita agita��o. Confesso que eu nem sempre sabia das raz�es do clamor, e n�o raro me aconteceu apoiar dois contr�rios. N�o importa; liberdade, antes confusa, que nenhuma.

Esse costume prevaleceu, n�o acompanhou os que perdi, felizmente. Em verdade, seria l�gubre, se, al�m de me tirarem as interpela��es e o resto, acabassem metendo-me uma rolha na boca. Era melhor assassinar-me logo, de uma vez. A liberdade n�o � surda-muda, nem paral�tica. Ela vive, ela fala, ela bate as m�os, ela ri, ela assobia, ela clama, ela vive da vida. Se eu na galeria n�o posso dar um berro, onde � que o hei de dar? Na rua, feito maluco?

Assim continuei a intervir nos debates, e a fazer crescer o meu direito pol�tico; mas estava longe de esperar o reconhecimento imediato, pleno e absoluto que me deu a intend�ncia nova. Tinha ganho muito na outra galeria; enriqueci na da intend�ncia, onde o meu direito de gritar, apupar e aplaudir foi bravamente consagrado. N�o pe�o que se ponha isto por lei, porque ent�o, gritando, apupando ou aplaudindo, estarei cumprindo um preceito legal, que � justamente o que eu n�o quero. N�o que eu tenha �dio � lei; mas n�o tolero opress�es de esp�cie alguma, ainda em meu benef�cio.

O melhor que h� no caso da intend�ncia nova, � que ela mesma deu o exemplo, excitando-se de tal maneira, que fez esquecer os mais belos dias da C�mara. Em minha vida de galeria, que j� n�o � curta, tenho assistido a grandes dist�rbios parlamentares; raro se ter� aproximado das estr�ias da nova representa��o do munic�pio. N�o desmaie a nobre corpora��o. Berre, ainda que seja preciso trabalhar.

Pela minha parte, fiz o que pude, e estou pronto a fazer o que puder e o que n�o puder. Embora n�o tenha a supersti��o do respeito, quero que me respeitem no exerc�cio de um jus adquirido pela vontade e confirmado pelo tempo. J'y suis, j'y reste, como tenho ouvido dizer nas C�maras. Creio que � latim ou franc�s. Digo, por linguagem, que ainda posso ir adiante; e finalmente que, se h� por a� alguma frase menos incorreta, � reminisc�ncia da tribuna parlamentar ou judici�ria. N�o se arrasta uma vida inteira de galeria em galeria sem trazer algumas amostras de sintaxe.

4 de dezembro

Os acontecimentos parecem-se com os homens. S�o melindrosos, ambiciosos, impacientes, o mais p�fio quer aparecer antes do: mais id�neo, atropelam tudo, sem justi�a nem mod�stia... E quando todos s�o graves? Ent�o � que � ver um miser�vel cronista, sem saber em qual pegue primeiro. Se vai ao que lhe parece mais grave de todos, ouve clamar outro que lhe n�o parece menos grave, e hesita, escolhe, torna a escolher, larga, pega, come�a e recome�a, acaba e n�o acaba...

Justamente o que ora me sucede. Toda esta semana falou-se na invas�o do Rio Grande do Sul. Realmente, a not�cia era grave, e, embora n�o se tivesse dado invas�o, falou-se dela por v�rios modos. Alguns t�m como iminente, outros prov�vel, outros poss�vel, e n�o raros a cr�em simples conjetura. Trouxe naturalmente sustos, ansiedade, curiosidade, e tudo o mais que aquela parte da Rep�blica tem o cond�o de acarretar para o resto do pa�s. Imaginei que era assunto leg�timo para abrir as portas da cr�nica.

Mal come�o, chega-me aos ouvidos o clamor dos banqueiros que voltam do pal�cio do governo, aonde foram conferenciar sobre a crise do dinheiro. E dizem-me eles que a quest�o financeira e banc�ria afeta a toda a Rep�blica, ao passo que a invas�o, grave embora, toca a um s� Estado. A prioridade � da crise, al�m do mais, porque existia e existir�, at� que algu�m a decifre e resolva.

Bem; atendamos � crise financeira. Mas, eis aqui, ou�o a voz do general Pego dizendo que a crise pol�tica do sul afeta a todos os Estados, e pode p�r em risco as pr�prias institui��es. Uma folha desta capital, o Tempo, pesando palavras daquele ilustre chefe, declara que qualquer que seja o desenlace da luta (se luta houver) �n�o cr� que a federa��o fique perdida, e com ela a forma republicana�. De onde se infere que depende a Rep�blica da federa��o, � ao contr�rio de outra folha desta mesma capital, o Rio News, que acha a Rep�blica pratic�vel, e a federa��o impratic�vel. Eu, sempre divergente do g�nero humano, quisera adotar uma opini�o, mas n�o posso, � ao menos, por ora; esperemos que os acontecimentos me d�em lugar.

Como n�o me d�o lugar, vou fazer com eles o que o senado n�o quis fazer com a quest�o financeira; resolv�-los, liquid�-los. Talvez algu�m prefira ver-me calar, como o senado, e ir para casa dormir. Mas, ai! uma coisa � ser legislador, outra � ser narrador. O senado tem o poder de fechar os olhos, esperar o sono, n�o ver as coisas, nem sonhar com elas; tem at� o poder de ficar admirado, quando acordar e vir que elas cresceram, tais como crescem as plantas, quando dormimos, � ou como n�s crescemos tamb�m. Todos estes poderes faltam ao simples contador da vida.

V�, liquido tudo. Liquido a jovem intend�ncia, que aqui vem eleita e verificada. Grave sucesso, relativamente ao distrito federal, pede, reclama o seu posto, e eu respondo que ela o tem a�, ao p� dos maiores. N�o parece logo, por causa do nosso m�todo de escrever seguido. Felizes os povos que escrevem por linhas verticais! Podem arranjar as cr�nicas de maneira que os acontecimentos fiquem sempre em cima; a parte inferior das linhas cabe �s considera��es de menor monta, ou absolutamente estranhas. Moralmente, � assim que escrevo.

Fica a�, intend�ncia amiga, onde te ponho, para que todos te vejam e te perguntem o que sair� de ti. Responde que s� desejas o bem e o acertado; mas que tu mesma n�o sabes se h� de sair o bem, se o mal. O futuro a Deus pertence, dizem os crist�os. Os pag�os diziam mais poeticamente: � o futuro repousa nos joelhos dos deuses. E sendo certo que, por uma lei de linguagem, figuram as deusas entre os deuses, � doce crer que o futuro esteja tamb�m nos joelhos das mo�as celestes. Antes a nossa cabe�a que o futuro. A Intend�ncia, deusa desta cidade, tem nos seus joelhos o futuro dela. Cabe-lhe ensai�-la a governar-se a si pr�pria � ou a confessar que n�o tem voca��o representativa.

E a� chegam outros acontecimentos graves da semana. Para longe, caf� falsificado, caf� composto de milho podre e carna�ba! Gera��es de lavradores, que dormis na terra m�e do caf�; lavradores, que ora suais trabalhando, portos de caf�, alf�ndegas, saveiros, navios que levais este produto rei para toda a terra, ficai sabendo que a capital do caf� bebe caf� falsificado. Como faremos elei��es puras, se falsificamos o caf�, que nos sobra? Esp�rito da fraude, talento da emba�adela, voca��o da mentira, for�a � engolir-vos tamb�m de mistura com a honestidade de tabuleta.

Outro acontecimento grave, o anarquismo, tamb�m aqui fica mencionado, com o seu lema: Chi non lavora non mangia. H� diverg�ncias, sobre os limites da propaganda de uma opini�o. O positivismo, por �rg�o de um de seus mais ilustres e austeros corifeus, veio � imprensa defender o direito de propagar as id�ias anarquistas, uma vez que n�o cheguem � execu��o. Acrescenta que s� a religi�o da humanidade pode resolver o problema social, e conclui que os maus constituem uma pequena minoria...

Uma pequena minoria! Est�s bem certo disso, positivismo ilustre? Uma pequena minoria de maus � e tudo o mais puro, santo e ben�fico... Talvez n�o seja tanto, amigo meu, mas n�o brigaremos por isso. Para ti, que prometes o reino da Humanidade na terra, deve ser assim mesmo. Jesus, que prometia o reino de Deus nos c�us, achava que muitos seriam os chamados e poucos os escolhidos. Tudo depende da regi�o e da coroa. Em um ponto est�o de acordo a igreja positivista e a igreja cat�lica. �Estas (assustadoras utopias) s� podem ser suplantadas pelas teorias cient�ficas sobre o mundo, a sociedade e o homem, que acabar�o por fazer com que a raz�o reconhe�a a sua impot�ncia, e a necessidade de subordinar-se � f�...� Que f�? Eis a conclus�o do trecho de Teixeira Mendes: �n�o mais em Deus; mas na Humanidade�. Eis a� a diferen�a.

Pelo que me toca, eterno divergente, n�o tenho tempo de achar uma opini�o m�dia. Temo que a Humanidade, vi�va de Deus, se lembre de entrar para um convento; mas tamb�m posso temer o contr�rio. Quest�o de humor. H� ocasi�es em que, neste fim de s�culo, penso o que pensava h� mil e quatrocentos anos um autor eclesi�stico, isto �, que o mundo est� ficando velho. H� outras ocasi�es em que tudo me parece verde em flor.

11 de dezembro

Dizem as sagradas letras que o homem nasceu simples, mas que ele pr�prio se meteu em infinitas quest�es. O mesmo direi das quest�es. Nascem simples; depois complicam-se... Vede a quest�o Chopim.

A quest�o Chopim � a mais antiga de todas as quest�es deste mundo. Nasceu com o primeiro homem. Toda gente sabe que o para�so terreal foi obra de um sindicato composto de Ad�o e Eva, para o fim de p�r a caminho a concess�o da vida. O servi�o da organiza��o era gratuito; mas a serpente persuadia aos dois organizadores da companhia que o art. 3.� � 3.� do decreto n� 8 do primeiro ano da cria��o (data transferida mais tarde para 17 de janeiro de 1890) autorizava a tirar as vantagens e pr�mios do capital realizado, e n�o dos lucros l�quidos. Ad�o e Eva recusaram crer, a princ�pio; achavam o texto claro. N�o desanimou a serpente, e provou-lhes: 1.� que as publica��es do Senhor eram incorretas pela aus�ncia obrigada da imprensa; 2.� que muitas outras companhias se tinham organizado, de acordo com a explica��o que ela dava, a das abelhas, a dos castores, a das pombas, a dos elefantes, e a dos lobos e cordeiros; estes fizeram uma sociedade juntos, assaz engenhosa, porque n�o havia dividendos, mas divididos.

Ad�o e Eva cederam � evid�ncia. N�o fa�o, ao crist�o que me l�, a injusti�a de supor que n�o conhece as palavras do Senhor a Ad�o: �Pois que comeste da �rvore que eu te havia ordenado que n�o comeces (o art. 3� � 3�), a terra te produzir� espinhos e abrolhos.� Da� as calamidades deste mundo; e, para s� falar de Chopim, um processo, uma reuni�o, uma desuni�o, lutas, capotes rasgados, capotes cerzidos, capotes outra vez rasgados, o diabo!

Agora, se notarmos que ao p� de uma tal quest�o teve esta semana muitas outras de v�rio g�nero... Melhor � n�o falar de nenhuma. Que direi do conflito Paula Ramos, se o n�o entendo? H� telegramas que atribuem o n�o desembarque daquele cavalheiro a agentes da autoridade; outros afirmam que foi o povo. Os primeiros dizem que a indigna��o � geral; outros que, ao contr�rio, s� � geral a alegria.

Outra quest�o complicada � (ornitologicamente falando) a dos pica-paus e dos vira-bostas, que s�o os nomes populares dos partidos do Rio Grande do Sul. Eu, quanto � pol�tica daquela regi�o, sei unicamente um ponto, � que a Constitui��o pol�tica do Estado admite o livre exerc�cio da medicina. Conquanto seja lei somente no Estado, n�o faltar� quem deseje v�-la aplicada, quando menos ao distrito federal; eu, por exemplo. Neste caso, entendo que n�o se pode cumprir a not�cia dada pelo Tempo de hoje, a saber, que vai ser preso um curandeiro conhecid�ssimo, do qual � v�tima uma pessoa de posi��o e popular entre n�s.

N�o h� curandeiros. O direito de curar � equivalente ao direito de pensar e de falar. Se eu posso extirpar do esp�rito de um homem certo erro ou absurdo, moral ou cient�fico, por que n�o lhe posso limpar o corpo e o sangue das corrup��es? A eventualidade da morte n�o impede a liberdade do exerc�cio. Sim, pode suceder que eu mande um doente para a eternidade; mas que � a eternidade se n�o uma extens�o do convento, ao qual posso muito bem conduzir outro enfermo pela cura da alma? N�o h� curandeiros, h� m�dicos sem medicina, que � outra coisa.

N�o menos complexa foi a ressaca. Deixem-me confessar um pecado; eu gosto de ver o mar agitado, encapelado, comendo e vomitando tudo diante de si. Compreendo a observa��o de Lucr�cio. H� certo prazer em ver de terra os n�ufragos lutando com o temporal. Nem sempre, � verdade; agora, por exemplo, n�o gostei de ver naufragar uma parte da ponte da Companhia de Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro, � n�o porque seja acionista, nem por qualquer sentimento est�tico; mas, porque tenho particular amor �s obras paradas. As montanhas russas da Gl�ria s�o a minha consola��o. O tapume da Carioca deu-me horas deliciosas.

E n�o param aqui as quest�es complicadas. Um telegrama de Fran�a, noticiando os trabalhos da comiss�o de inqu�rito parlamentar acerca do canal do Panam�, acrescenta: �Documentos achados por ela constituem novas provas da pirataria exercida em torno daquele extraordin�rio empreendimento. Os jornais de maior circula��o bradam que os crimes cometidos precisam de um castigo correspondente � les�o enorme que sofre o povo com o processo da empresa�.

Tudo o que abala aquele pa�s, pode dizer-se que abala tamb�m o nosso. Pelo que respeita especialmente � patifaria Panam�, repitamos, com o Times de 16 do m�s passado, que a decis�o que mandou meter em processo Lesseps e outros diretores da companhia, �� um choque para o mundo civilizado�.

Na verdade, ser� triste e duro que Lesseps, carregado de gl�rias e de anos (oitenta e oito!) v� acabar os seus dias na cadeia. Esperemos que nada lhe seja achado. Oremos pelo autor de Suez. Oxal� que, no meio das provas descobertas e das que vierem a descobrir-se, nada haja que obrigue a justi�a a puni-lo. A lei que se desafronte com outros, saindo ileso e sem m�cula o nome do grande homem, que a folha londrina considera o maior dos franceses vivos. N�o faltam r�us na porcaria Panam�; sejam eles castigados, como merecem. O que eu desejo, e o que a Fran�a n�o me pode levar a mal, porque n�o lhe aconselho frouxid�es pr�prias de uma sociedade inconsciente, � que Lesseps saia puro. Quando um homem tem a gl�ria de Suez e o perp�tuo renome, � triste v�-lo metido com papeluchos falsos.

18 de dezembro

Ontem, querendo ir pela Rua da Candel�ria, entre as da Alf�ndega e Sab�o (velho estilo), n�o me foi poss�vel passar, tal era a multid�o de gente. Cuidei que havia briga, e eu gosto de ver brigas; mas n�o era. A massa de gente tomava a rua, de uma banda a outra, mas n�o se mexia; n�o tinha a ondula��o natural dos cacha��es. Prociss�o n�o era; n�o havia tochas acessas nem sobrepelizes. Sujeito que mostrasse artes de macaco ou vendesse drogas, ao ar livre, com discursos, tamb�m n�o.

Estava neste ponto, quando vi subir a Rua da Alf�ndega um digno anci�o, a quem expus as minhas d�vidas.

� N�o � nada disso, respondeu-me cortesmente. N�o h� aqui prociss�o nem macaco. Briga, no sentido de murros trocados, tamb�m n�o h�, � pelo menos, que me conste. Quanto � suposi��o de estar a� alguma pessoa apregoando medalhinhas e vidrinhos, como os bufarinheiros da Rua do Ouvidor, esquina da do Carmo ou da Primeiro de mar�o, menos ainda.

� J� sei, � uma seita religiosa que se re�ne aqui para meditar sobre as vaidades do mundo, � um tro�o de budistas...

� N�o, n�o.

� Adivinhei: � um meeting.

� Onde est� o orador?

� Esperam o orador.

� Que orador? que meeting? Ou�a calado. O senhor parece ter o mau costume de vir apanhar as palavras dentro da boca dos outros. Sossegue e escute.

� Sou todo ouvidos.

� Este � o c�lebre encilhamento.

� Ah!

� V�? H� mais tempo teria tido o gosto dessa admira��o, se me ouvisse calado. Este � o encilhamento.

� N�o sabia que era assim.

� Assim como?

� Na rua. Cuidei que era uma vasta sala ou um terreno fechado, particular ou p�blico, n�o este peda�o de rua estreita e aborrecida. E olhe que nem h� meio de passar; eu quis romper, pedi licen�a... Entretanto, creio que temos a liberdade de circula��o.

� N�o.

� Como n�o?

� Leia a Constitui��o, meu senhor, leia a Constitui��o. O art. 72 � o que compendia os direitos dos nacionais e estrangeiros; s�o trinta e um par�grafos; nenhum deles assegura o direito de circula��o... O direito de reuni�o, por�m � positivo. Est� no � 8�: �A todos � l�cito reunirem-se livremente e sem armas, n�o podendo intervir a pol�cia, sen�o para manter a ordem p�blica�. Estes homens que aqui est�o trazem armas?

� N�o as vejo.

� Est�o desarmados, n�o perturbam a ordem p�blica, exercem um direito, e, enquanto n�o infringirem as duas cl�usulas constitucionais, s� a viol�ncia os poder� tirar daqui. Houve j� uma tentativa disso. Eu, se fosse comigo, recorria aos tribunais, onde h� justi�a. Se eles ma negassem, pedia o j�ri, onde ela � indefect�vel, como na velha Inglaterra. Note que a viol�ncia da pol�cia j� deu algum lucro. Como as mol�culas do encilhamento, por uma lei natural, tendiam a unir-se logo depois de dispersados, a pol�cia, para impedir a recomposi��o, fazia disparar de quando em quando duas pra�as de cavalaria. Mal sabiam elas que eram simples animais de corrida. As pessoas que as viam correr, apostavam sobre qual chegaria primeiro a certo ponto. � � a da esquerda. � � a da direita. � Quinhentos mil-r�is. � Aceito. � Pronto. � Chegou a da esquerda: d� c� o dinheiro.

� De maneira que a pr�pria autoridade...

� Exatamente. Ah! meu caro, dinheiro � mais forte que amor. Veja o neg�cio do chocolate. Chocolate parece que n�o convida � falsifica��o; tem menos uso que o caf�. Pois o chocolate � hoje t�o duvidoso como o caf�. Entretanto, ningu�m dir� que os falsificadores sejam homens desonestos nem inimigos p�blicos. O que os leva a falsificar a bebida n�o � o �dio ao homem. Como odiar o homem, se no homem est� o fregu�s? � o amor da pec�nia.

� Pec�nia? chocolate?

� Sim, senhor, um neg�cio que se descobriu h� dias. O senhor, ao que parece, n�o sabe o que se passa em torno de n�s. Aposto que n�o teve not�cia da revolu��o de Niter�i?

� Tive.

� Eu tive mais que not�cia, tive saudades. Quando me falaram em revolu��o de Niter�i, lembrei-me dos tempos da minha mocidade, quando Niter�i era Praia Grande. N�o se faziam ali revolu��es, faziam-se patuscadas. Ia-se de falua, antes e ainda depois das primeiras barcas. Quem ligou nunca Niter�i e S�o Domingos a outra id�ia que n�o fosse noite de luar, descantes, mo�as vestidas de branco, versos, uma ou outra charada? Havia presidente, como h� hoje; mas morava do lado de c�. Ia ali �s onze horas, almo�ado, assinava o expediente, ouvia uma d�zia de sujeitos cujos neg�cios eram todos a salva��o p�blica, metia-se na barca, e vinha ao Teatro L�rico ouvir a Zecchini. Havia tamb�m uma assembl�ia legislativa; era uma esp�cie do antigo Col�gio de Pedro II, onde os mo�os tiravam carta de bacharel pol�tico, e marchavam para S�o Paulo, que era a assembl�ia geral. Tempos! tempos!

� Tudo muda, meu caro senhor. Niter�i n�o podia ficar eternamente Praia Grande.

� De acordo; mas a l�grima � livre.

� � talvez a coisa mais livre deste mundo, sen�o a �nica. Que � a liberdade pessoal? O senhor vinha andando, rua acima, encontra-me, fa�o-lhe uma pergunta, e aqui est� preso h� vinte minutos.

� Pelo amor de Deus! Tomara eu destes grilh�es! S�o grilh�es de ouro.

� Agrade�o-lhe o favor. Nunca o favor � t�o honroso e grande como quando sai da boca ungida pelo saber e pela experi�ncia; porque a bondade � pr�pria dos altos esp�ritos.

� Julga-me por si; � o modo certo de engrandecer os pequenos.

� O que engrandece os pequenos � o sentimento da mod�stia, virtude extraordin�ria; o senhor a possui.

� Nunca me esquecerei deste feliz encontro.

� Na verdade, � bom que haja encilhamento; se o n�o houvesse, a rua era livre, como a l�grima, eu teria ido o meu caminho, e n�o receberia este favor do C�u, de encontrar uma intelig�ncia t�o culta. Aqui est� o meu cart�o. Aqui est� o meu cart�o.

� Aqui est� o meu. Sempre �s suas ordens.

� Igualmente.

� (� parte) Que homem distinto!

� (� parte) Que estim�vel anci�o!

25 de dezembro

� desenganar. Gente que mamou leite rom�ntico, pode meter o dente no rosbife naturalista; mas em lhe cheirando a teta g�tica e oriental, deixa o melhor peda�o de carne para correr � bebida da inf�ncia. Oh! Meu doce de leite rom�ntico! Meu licor de Granada! Como ao velho Goethe, aparecem novamente as figuras a�reas que outrora vi ante os meus olhos turvos.

Com efeito, enquanto v�s outros cuid�veis da reforma financeira e tantos fatos da semana, enquanto percorr�eis as salas da nossa bela exposi��o preparat�ria da de Chicago, eu punha os olhos em um telegrama de Constantinopla; publicado por uma das nossas folhas. N�o s�o raros os telegramas de Constantinopla, temos sabido por eles como vai a quest�o dos Dardanelos; mas desta vez alguma coisa me dizia que n�o se tratava de pol�tica. Tirei os �culos, limpei-os, fitei o telegrama. Que dizia o telegrama?

�Cinco odaliscas...� Parei; lidas essas primeiras palavras, senti-me necessitado de tomar f�lego. Cinco odaliscas! Murmura esse nome, leitor: faze escorrer da boca essas quatro s�labas de mel, e lambe depois os bei�os, ladr�o. Pela minha parte, achei-me, em esp�rito, diante de cinco lindas mulheres, como o v�u transparente no rosto, as cal�as largas e os p�s metidos nas chinelas de marroquim amarelo, � babuchas, que � o pr�prio nome. Todas as orientais de Hugo vieram chover sobre mim as suas rimas de ouro e s�ndalo. Cinco odaliscas! Mas que fizeram essas cinco odaliscas? N�o fizeram nada. Tinham sido mandadas de presente ao sult�o. Pobres mo�as! Entraram no har�m, l� estiveram n�o sei quanto tempo, at� que foram agora assassinadas... Sim, leitor compassivo, assassinadas por mandado das outras mulheres que j� l� estavam, e por ci�mes...

N�o, aqui � for�a interromper o cap�tulo, por um instante. N�o continuo sem advertir que o ano � bissexto, ano de espantos. M�seras odaliscas! Assassinadas por ci�mes, � n�o do sult�o, que tem mais que fazer com o grande urso eslavo: � por ci�mes dos eunucos. Singulares eunucos! eunucos de ano bissexto! Todo o har�m posto em �dio, em tumulto, em sangue, por causa de meia d�zia de guardas que o sult�o tinha o direito de supor fi�is ao trono e � cirurgia.

O mundo caduca � reflexionou tristemente um dia n�o sei que cardeal da Santa Igreja Romana; e fez bem em morrer pouco depois, para n�o ouvir da parte do oriente este desmentido de incr�us: � O mundo reconstitui-se. O sult�o tem ainda um recurso, dissolver o corpo dos seus guardas, como fizemos aqui com o corpo de pol�cia de Niter�i, e recomp�-lo com os companheiros de Maom� II. Eles acudir�o � chamada do imperador; os velhos ossos cumprir�o o seu dever, atarraxando-se uns nos outros, e, com as �rbitas vazias, com o alfanje pendente dos dedos sem carne. Correr�o a vigiar e defender as odaliscas antigas e recentes.

Ossos embora, h�o de ouvir as vozes femininas, e, pois que tiveram outra fun��o social, estremecer�o ao eco dos s�culos extintos. A frase vai-me saindo com tal ou qual ritmo que parece verso. Talvez por causa do assunto. Falemos de um triste leit�o, que ouvi grunhir agora mesmo no Largo da Carioca. Ia atado pelos p�s, dorso para baixo, seguro pela m�o de um criado, que o levava de presente a algu�m; � v�spera de Natal. Presente crist�o, costume cat�lico, parece que adotado para fazer figa ao juda�smo. Ser� comido amanh�, domingo; ir� para a mesa com a antiga rodela de lim�o, � maneira velha. Pobre leit�o! Berrava como se j� o estivessem assando. Talvez o desgra�ado houvesse not�cia do seu destino, por algumas rela��es verbais que passem entre eles de pais a filhos. Pode ser que eles ainda aguardem uma desforra. Tudo se deve esperar na terra. Tout arrive, como dizem os franceses.

N�o quero dizer dos franceses o que me est� caindo da pena. Melhor � cal�-lo. Como se n�o bastassem a essa briosa na��o os delitos de Panam�, est� a desmoralizar-se com o esc�ndalo de tantos processos. Corrup��o escondida vale tanto como p�blica; a diferen�a � que n�o fede. Que � que se ganha em processar? Fulano corrompeu Sicrano. Pedro e Paulo uniram-se para emba�ar uma rua inteira, fizeram vinte discursos, trinta an�ncios, e deixaram os ouvintes sem passo que o sil�ncio, al�m de ser outro, conforme o ad�gio �rabe, tem a vantagem de fazer esquecer mais depressa. Toda a quest�o � que os empulhados n�o se deixem embair outra vez pelos empulhadores.

1893

1� de janeiro

Inventou-se esta semana um crime. O nosso s�culo tem estudado criminologia como gente. Os italianos est�o entre os que mais trabalham. Um dos meus vizinhos fronteiros, velho advogado, com as reminisc�ncias que lhe ficaram do antigo teatro Provis�rio (O� bel�alma innamorata! � Gran Dio, morir si giovane � Eccomi in Babilonia, etc, etc.), vai entrando pelos livros florentinos e napolitanos, como o leitor e eu entramos por um almanaque. Pois assegurou-me esse homem, h� poucos minutos, que o crime agora inventado n�o existe em tratadista algum moderno, seja de Parma ou da Sic�lia.

Julgue o leitor por si mesmo. O crime foi inventado em sess�o p�blica do conselho municipal. Tr�s intendentes, n�o concordando com a verifica��o de poderes, a qual se estava fazendo entre os demais eleitos, tinham recorrido ao presidente da Rep�blica e aos tribunais judici�rios, os quais todos se declararam incompetentes para decidir a quest�o. N�o alcan�ando o que pediam, resolveram tomar assento no conselho municipal. Um deles, em discurso cordato, moderado e elogiativo, declarou que, no ponto a que as coisas chegaram, ele e os companheiros tinham de adotar um destes dois alvitres: renunciar ou tomar posse das cadeiras. �Renunciar (disse), entendemos que n�o pod�amos faz�-lo, porquanto seria um crime...�

Deus me � testemunha de ter vivido at� hoje na persuas�o de que renunciar um mandato qualquer, pol�tico ou n�o pol�tico, era um dos direitos do homem. Cincinatus foi o primeiro que me meteu esta id�ia na cabe�a, quando renunciou, ao cabo de seis dias, a ditadura que lhe deram por seis meses. Agora mesmo, um deputado ingl�s, e dos melhores, Balfour, sendo presidente de uma companhia que faliu, julgou-se inabilitado para a C�mara dos Comuns, e renunciou a cadeira, como se fal�ncia e parlamento fossem incompat�veis; mas cada um tem a sua opini�o.

Hoje, n�o digo que tenha mudado inteiramente de parecer, mas vacilo. Talvez a ren�ncia seja realmente um crime. Os crimes nascem, vivem e morrem como as outras criaturas. Matar, que � ainda hoje uma bela a��o nas sociedades b�rbaras, � um grande crime nas sociedades polidas. Furtar pode n�o ser punido em todos os casos; mas em muitos o �. Nunca me h� de esquecer um sujeito que, com o pretexto (ali�s honesto) de estar chovendo, levou um guarda-chuva que vira � porta de uma loja; o j�ri provou-lhe que a propriedade � coisa sagrada, ao menos, sob a forma de um guarda-chuva e condenou-o n�o sei a quantos meses de pris�o.

Pode ter havido excesso no grau da pena; mas a verdade � que de ent�o para c� n�o me lembra que se haja furtado um s� guarda-chuva. As amostras vivem sossegadas �s portas das fabricas. � assim que os crimes morrem; � assim que a pr�pria id�ia de furto ou fraude (sin�nimos neste escrito) ir� acabando os seus dias de labuta��o na terra. Um publicista ingl�s, tratando do rec�m-finado Jay Gould, rei das estradas de ferro, aplica-lhe o dito atribu�do a Napole�o Bonaparte: �Os homens da minha estofa n�o cometem crimes�. Dito autocr�tico: a democracia, que invade tudo, h� de p�-lo ao alcance dos mais modestos esp�ritos.

N�o falando na ren�ncia atribu�da ao presidente do Estado do Rio de Janeiro, not�cia desmentida, � tivemos esta semana a do Banco da Rep�blica, relativamente � sua personalidade, e vamos ter, na que entra, a do Banco do Brasil, para formarem o banco do Estado. J� se fala na fus�o de outros, n�o porque os alcance o recente decreto, mas porque um p�o com um peda�o � p�o e meio. Primo vivere. Crer que tornar� o banquete de 1890-1891 � grande ilus�o. �Acabaram-se os belos dias de Aranjuez�. Sintamos bem a melancolia dos tempos. Compreendamos a inutilidade das brigas di�rias e p�blicas entre companhias e trechos de companhia, entre diretorias e trechos de diretoria. Melhor � ajuntar os restos do festim, mandar fazer o que a arte culin�ria chama roupa velha, e com�-la com os amigos, sem vinho. Caf� sim, mas de carna�ba e milho podre.

H� fatos mais extraordin�rios que a desola��o de Babil�nia. H� o fato de um preto de Uberaba, que, fugindo agora da casa do antigo senhor, veio a saber que estava livre desde 1888, pela lei da aboli��o. Faz lembrar o velho ad�gio ingl�s: �Esta cabana � pobre, est� toda esburacada; aqui entra o vento, entra a chuva, entra a neve, mas n�o entra o rei�. O rei n�o entrou na casa do ex-senhor de Uberaba, nem o presidente da Rep�blica. O que completa a cena, � que uns oito homens armados foram buscar o Jo�o (chama-se Jo�o) � casa do engenheiro Tavares, onde achara abrigo. Que ele fosse agarrado, arrastado e espancado pelas ruas, n�o acredito; s�o floreios telegr�ficos. Ainda se fosse de noite, v�; mas �s 2 horas da tarde... Creio antes que a pol�cia prendesse j� dois dos sujeitos armados e esteja procedendo com energia. Agora, se a energia ir� at� o fim, � o que n�o posso saber, porque (emendemos aqui o nosso Schiler), os belos dias de Aranjuez ainda n�o acabaram.

Renunciar ao escravo � um crime, ter� dito o senhor de Uberaba, e j� � outro voto para a opini�o do nosso intendente. Tamb�m os mortos n�o renunciam ao seu direito de voto, como parece que sucedeu na elei��o da Junta Comercial. Vieram os mortos, pontuais como na bailada, e sem necessidade de tambor. Bastou a voz da chamada; ergueram-se, derrubaram a laje do sepulcro e apresentaram-se com a c�dula escrita. Se assinaram o livro de presen�a, ignoro; a letra devia ser tr�mula, � tr�mula, mas bem pensante.

Quem me parece que renuncia, sem admitir que comete um crime, � o Senhor Deus Sabbaoth, tr�s vezes santo, criador do c�u e da terra. Consta-me que abandonou completamente este mundo, desgostoso da obra, e que o passou ao diabo pelo custo. O diabo pretende organizar uma sociedade an�nima, dividindo a propriedade em infinitas a��es e prazo eterno. As a��es, que ele dir� nos an�ncios serem excelentes, mas que n�o podem deixar de ser execr�veis, conta vend�-las com grande �gio. H� quem presuma que ele fuja com a caixa para outro planeta, deixando o nosso sem diabo nem Deus. Outros pensam que ele reformar� o mundo, contraindo um empr�stimo com Deus, sem lhe pagar um ceitil. Adeus, boas sa�das do outro e melhores entradas deste.

8 de janeiro

Quem houver acompanhado, durante a semana, as recapitula��es da imprensa, ter-se-� admirado de ver o que foi aquele ano de 1892.

A igreja recomenda a confiss�o, ao menos, uma vez cada ano. Esta pr�tica, al�m das suas virtudes espirituais, � �til ao homem, porque o obriga a um exame de consci�ncia. Vivemos a retalho, dia por dia, esquecendo uma semana por outra, e os onze meses pelo �ltimo. Mas o exame de consci�ncia evoca as lembran�as idas, congrega os sucessos distanciados, recorda as nossas malevol�ncias, uma ou outra dentada nos amigos e at� nos simples indiferentes. Tudo isso junto, em poucas horas, traz � alma um espet�culo mais largo e mais intenso que a simples vida seguida de um ano.

O mesmo sucede ao povo. O povo precisa fazer anualmente o seu exame de consci�ncia: � o que os jornais nos d�o a t�tulo de retrospecto. A imprensa di�ria dispersa a aten��o. O seu of�cio � contar, todas as manh�s, as not�cias da v�spera, fazendo suceder ao homic�dio c�lebre o grande roubo, ao grande roubo a �pera nova, � �pera o discurso, ao discurso o estelionato, ao estelionato a absolvi��o, etc. N�o � muito que um dia pare, e mostre ao povo, em breve quadro, a multid�o de coisas que passaram, crises, atos, lutas, sangue, ascens�es e quedas, problemas e discursos, um processo, um naufr�gio. Tudo o que nos parecia long�nquo aproxima-se; o apagado revive; quest�es que levavam dias e dias s�o narradas em dez minutos; pol�micas que se estenderam das c�maras � imprensa e da imprensa aos tribunais, cansando e atordoando, ficam agora claras e precisas. As como��es passadas tornam a abalar o peito...

Mas vamos ao meu of�cio, que � contar semanas. Contarei a que ora acaba e foi mui triste. A desola��o da rua Primeiro de Mar�o � um dos espet�culos mais sugestivos deste mundo. J� ali n�o h� turcas, ao p� das caixas de bugigangas; os engraxadores de sapatos com as suas cadeiras de bra�os e os demais aparelhos desapareceram; n�o h� sombra de tabuleiro de quitanda, n�o h� sambur� de fruta. Nem ali nem alhures. Todos os passeios das cal�adas est�o despejados delas. Foi o prefeito municipal que mandou p�r toda essa gente fora do olho da rua, a pretexto de uma postura, que se n�o cumprira.

Eu de mim confesso que amo as posturas, mas de um amor desinteressado, por elas mesmas, n�o pela sua execu��o. O prefeito � da escola que d� � arte um fim �til, escola degradante, porque (como dizia um est�tico) de todas as coisas humanas a �nica que tem o seu fim em si mesmo � a arte. Municipalmente falando, � a postura. Que se cumpram algumas, � j� uma concess�o � escola utilit�ria; mas deixai dormir as outras todas nas cole��es edis. Elas t�m o sono das coisas impressas e guardadas. Nem se pode dizer que s�o feitas para ingl�s ver.

Em verdade, a posse das cal�adas � antiga. H� vinte ou trinta anos, n�o havia a mesma gente nem o mesmo neg�cio. Na velha Rua Direita, centro do com�rcio, dominavam as quitandas de um lado e de outro, africanas e crioulas. Destas, as baianas eram conhecidas pela trunfa, � um len�o interminavelmente enrolado na cabe�a fazendo lembrar o famoso retrato de Mme. de St�el. Mais de um lord Oswald do lugar, achou ali a sua Corina. Ao lado da igreja da Cruz vendiam-se folhetos de v�ria esp�cie, pendurados em barbantes. Os pretos minas teciam e cosiam chap�us de palha. Havia ainda... Que � que n�o havia na Rua Direita?

N�o havia turcas. Naqueles anos devotos, ningu�m podia imaginar que gente de Maom� viesse quitandar ao p� de gente de Jesus. Afinal um turco descobriu o Rio de Janeiro e tanto foi descobri-lo como domin�-lo. Vieram turcos e turcas. Verdade � que, estando aqui dois padres cat�licos, do rito maronita, disseram missa e pregaram domingo passado, com assist�ncia de quase toda a coloria turca, se � certa a not�cia que li anteontem. De maneira que os nossos pr�prios turcos s�o crist�os. Compensam-nos dos muitos crist�os nossos, que s�o meramente turcos, mas turcos de lei.

Crist�os ou n�o, os turcos obedecem � postura, como os demais mercadores das cal�adas. Os italianos, patr�cios do grande Nicolau, t�m o maquiavelismo de a cumprir sem perder. Foram-se, levando as cadeiras de bra�os, onde o fregu�s se sentava, em quanto lhe engraxavam os sapatos; levaram tamb�m as escovas da graxa, e mais a escova particular que transmitia a poeira das cal�as de um fregu�s �s cal�as de outro � tudo por dois vint�ns.

O tost�o era pre�o recente; n�o sei se anterior, se posterior � geral. Creio que anterior. Em todo caso, posterior � Revolu��o Francesa. Mas aqui est� no que eles s�o finos; os filhos, introdutores do uso de engraxar os sapatos ao ar livre, j� sa�ram � rua com a caixeta �s costas, a servir os necessitados. Ir�o pouco a pouco estacionando; depois, ir�o os pais, e, quando se for embora o prefeito, tornar�o � rua as cadeiras de bra�os, as caixas das turcas e o resto.

Assim renascem, assim morrem as posturas. Est� prestes a nascer a que restitui o Carnaval aos seus dias antigos. O ensaio de fazer dan�ar, mascarar e pular no inverno durou o que duram as rosas: l�espace d�un matin. N�o me cortem esta frase batida e piegas; a falta de carne ao almo�o e ao jantar desfibra um homem; preciso ser chato como esta folha de papel que recebe os meus suspiros. Felizmente uma not�cia compensa a outra. A volta do carnaval � uma li��o cient�fica. O conselho municipal, em grande parte composto de m�dicos, desmente assim a ilus�o de serem os folguedos daqueles dias incompat�veis com o ver�o. A� est� uma postura que vai ser cumprida com del�rio.

15 de janeiro

Onde h� muitos bens, h� muitos que os comam, diz o Eclesiastes, e eu n�o quero outro manual de sabedoria. Quando me afligirem os passos da vida, vou-me a esse velho livro para saber que tudo � vaidade. Quando ficar de boca aberta diante de um fato extraordin�rio, vou-me ainda a ele, para saber que nada � novo debaixo do sol.

Nada � novo debaixo do sol. Onde h� muitos bens, h� muitos que os comam. Quer dizer que j� por essas centenas de s�culos atr�s os homens corriam ao dinheiro alheio; em primeiro lugar para ajuntar o que andava disperso pelas algibeiras dos outros; em segundo lugar, quando um metia o dinheiro no bolso, corriam a dispersar o ajuntado. Apesar deste risco, o conselho de Iago � que se meta dinheiro no bolso. Put money in thy purse.

Esta semana tivemos boatos falsos, e not�cias que podem ser verdadeiras, tudo relativo a dinheiro, n�o falando na moeda falsa, cujos fabricantes afinal foram descobertos, nem nos atos que v�rios cidad�os, em folhas p�blicas, lan�am em rosto uns aos outros, os clamores por dividendos que n�o aparecem, os pedidos de liquida��o, os protestos contra ela, as insinua��es, as acusa��es, os murm�rios. Hoje, diz um telegrama de Londres, que Balfour, complicado em quest�es de bancos, embarcou de nome trocado para o Rio de Janeiro. H�o de lembrar-se que h� duas semanas dei not�cia de haver esse homem pol�tico renunciado a cadeira que tinha na c�mara dos Comuns; mas estava longe de crer na fuga, se h� fuga. Menos ainda que viesse para a nossa capital. Mas ent�o, por que � que outros de igual nome saem daqui? Mist�rio dos mist�rios, tudo � mist�rio.

No meio de tantos sucessos, ou � sombra deles, o parlamentarismo quis fazer uma entrada no conselho municipal. Felizmente, o Sr. Oscar Godoy deu alarma a tempo. �Isto � parlamentarismo, � disse o Sr. Godoy ao Sr. Franklin Dutra, � e o parlamentarismo foi abolido; V. Exa. j� n�o v� interpela��o nem nas c�maras�. O Sr. Franklin Dutra, se levava a id�ia de propor uma interpela��o ao prefeito, abriu m�o dela e limitou-se a uma simples indica��o. O assunto era a quest�o das carnes verdes; mas eu n�o falo de carnes verdes, como n�o falo das congeladas, que algumas pessoas comparam �s carnes espatifadas de Maria de Macedo. Creio que esta pilh�ria far� carreira; � l�gubre, mas � tamb�m med�ocre.

Uma s� coisa me interessou no debate municipal; foi o tratamento de Excel�ncia. N�o que seja coisa rara a boa educa��o. Tamb�m n�o direi que seja nova. O que n�o posso, � indicar desde quando entrou naquela casa esta natural fineza. Provavelmente, foi a rea��o do leg�timo amor pr�prio contra desigualdades injustific�veis.

De feito, a antiga c�mara municipal tinha o t�tulo de Senhoria e de Ilustr�ssima; mas pessoalmente os seus membros n�o tinham nada. Um decreto de 18 de julho de 1841 concedeu aos membros do senado o tratamento de Excel�ncia, acrescentando: �e por ele (tratamento) se fale e se escreva aos atuais senadores e aos que daqui em diante exercerem o dito lugar�. Aos deputados foi dado por decreto da mesma data o tratamento de Senhoria, mas limitado aos que assistiram � coroa��o do finado imperador. O tratamento era pessoal; embora sobrevivesse ao cargo, n�o passava dos agraciados.

Naturalmente os deputados futuros reagiram contra a diferen�a que se estabelecia entre eles e os senadores, diferen�a j� acentuada por outros sinais externos, desde a vitaliciedade at� o subs�dio. Come�aram a usar da Excel�ncia. O poder n�o teve rem�dio; curvou-se � pr�tica. As assembl�ias provinciais acanharam-se; mas a antiga salinha de Niter�i (provavelmente foi a primeira) declarou por atos que as liberdades locais n�o eram menos dignific�veis que as liberdades imperiais, e o tratamento de Excel�ncia deu entrada naquela casa. Um dos seus chefes n�o perdeu nunca, ou quase nunca, o velho costume do tratamento indireto, e dizia: o honrado membro. �Perdoe-me o honrado membro; n�o � isso o que tenho ouvido ao honrado membro.�

J� disse que n�o posso indicar em que tempo a Excel�ncia penetrou na c�mara municipal. N�o � prov�vel que fosse antes da publica��o dos debates. Sem impress�o n�o h� estilo. Verba volant, scripta manent. Mas s�o cronologias est�reis, que nada servem ao fim proposto, a saber, que as maneiras finas s�o o freio de ouro das paix�es, e n�o prejudicam em nada a liberdade; s� a podem ofender pela restri��o aos membros de uma c�mara. Desde, por�m, que se estenda a todos, � a igualdade em a��o, mas em a��o graciosa e culta.

De resto, se a explica��o que dou n�o � aceit�vel, achar-se-� outra que acerte com a verdade. N�o h� problemas insol�veis, exceto o da Para�ba do Sul, cujo estado oscila entre o seio de Abra�o e a guerra de Tr�ia (sem Homero). Ningu�m disse ainda, que na Para�ba do Sul se vive como nas demais cidades e vilas do Rio de Janeiro, tant bien que mal. O p�ndulo da opini�o vai do �timo ao p�ssimo, do ador�vel ao execr�vel, e � preciso crer uma coisa ou outra, a n�o querer brigar com ambas as partes.

Tenho id�ia de que h� ainda outro problema insol�vel; mas n�o me demoro em procur�-lo. Di-lo-ei depois, se o achar. Adeus. Se sair errada alguma frase ou palavra, levem o erro � conta da letra apressada, n�o da revis�o. Na outra semana, saiu impresso que �a imprensa di�ria dispensa a aten��o� � em vez de. � �a imprensa di�ria dispersa a aten��o�, id�ia mui diferente. A revis�o � severa; eu � que sou desigual na escrita, mais inclinado ao pior que ao melhor.

Dizem de Napole�o que a sua assinatura, depois do Austerlitz, era antes Ugulai que Napol�on. H� aqui na nossa Biblioteca P�blica uma carta dele a D. Jo�o VI, outro pr�ncipe regente, cuja assinatura, se n�o � Ugulai, � coisa mais feia. Cito este exemplo, n�o s� porque a gente deve desculpar-se com os grandes, mas ainda porque, escrevendo eu um pouco melhor que Bonaparte, acabo este artigo com tal ou qual sentimento de haver ganho a batalha de Waterloo.

22 de janeiro

A quest�o Capital est� na ordem do dia. Tempo houve em que na Rep�blica Argentina n�o se falou de outra coisa. L�, por�m, n�o se tratava de trocar a capital da prov�ncia de Buenos Aires por outra, mas de tirar � cidade deste nome o duplo car�ter de capital da prov�ncia e da Rep�blica. Um dia resolveram fazer uma cidade nova, La Plata, que dizem ser magn�fica, mas que custou naturalmente empr�stimos grossos.

Entre n�s, a quest�o � mais simples. Trata-se de mudar a capital do Rio de Janeiro para outra cidade que n�o fique sendo um prolongamento da Rua do Ouvidor. Conv�m que o Estado n�o viva sujeito ao bot�o de Diderot, que matava um homem na China. A quest�o � escolher entre tantas cidades. A id�ia legislativa at� agora � Teres�polis; assim se votou ontem na assembl�ia. Era a do finado capitalista Rodrigues, que escreveu artigos sobre isso. Grande viveur, o Rodrigues! Em verdade, Teres�polis est� mais livre de um assalto, � fresca, tem terras de sobra, onde se edifique para oficiar, para legislar e para dormir.

Campos quer tamb�m a capitaliza��o. Re�ne-se, discute, pede, insta. Vassouras n�o quer ficar atr�s. Velha cidade de um munic�pio de caf�, julga-se com direito a herdar de Niter�i, e oferecer dinheiros para auxiliar a administra��o. Petr�polis tamb�m quer ser capital, e parece invocar algumas raz�es de eleg�ncia e de beleza; mas tem contra si n�o estar muito mais longe da Rua do Ouvidor, e at� mais perto, por dois caminhos. Tamb�m h� quem indique Nova Friburgo; e, se eu me deixasse levar pelas boas recorda��es dos hot�is Leuenroth e Salusse, n�o aconselharia outra cidade. Mas, al�m de n�o pertencer ao Estado (sou puro carioca), jamais iria contra a opini�o dos meus concidad�os unicamente para satisfazer reminisc�ncias culin�rias. Nem s� culin�rias; tamb�m as tenho coreogr�ficas... Oh! bons e saudosos bailes do sal�o Salusse! Convivas desse tempo, onde ides v�s? Uns morreram, outros casaram, outros envelheceram; e, no meio de tanta fuga, � prov�vel que alguns fugissem. Falo de quatorze anos atr�s. Resta ao menos este miser�vel escriba, que, em vez de l� estar outra vez, no alto da serra, aqui fica a comer-lhes o tempo.

Niter�i n�o pede nada, olha, escuta, aguarda. Vai para a barca, se tem c� o emprego; se o tem l� mesmo, vai ver chegar ou sair a barca. V� sempre alguma coisa, � outrora as lanchas, � depois as barcas. Pobre sub�rbio da velha Corte, n�o tens for�as para reagir contra a descapitaliza��o; n�o representas, n�o requeres. Vais para a galeria da assembl�ia ouvir as raz�es com que te tiram o chap�u da cabe�a; n�o indagues se s�o boas ou m�s. S�o raz�es.

Vale-lhe uma coisa; n�o est� s�. O estado de Minas Gerais, que desde o tempo do Imp�rio j� sonhava com outra capital, p�e m�os � obra deveras, mandando fazer uma capital nova. J� a� saiu uma comiss�o em busca de territ�rio e clima adequados. Ouro Preto tem de ceder. Dizem que lhe custa; mas o que � que n�o custa? Quanto � capital da rep�blica, � mat�ria constitucional, e a comiss�o encarregada de escolher e delimitar a �rea j� concluiu os seus trabalhos, ou est� prestes a faz�-lo, segundo li esta mesma semana. Telegrama de Uberaba diz que ali chegou o chefe, Lu�s Cruls.

N�o h� d�vida que uma capital � obra dos tempos, filha da hist�ria. A hist�ria e os tempos se encarregar�o de consagrar as novas. A cidade que j� estiver feita, como no estado do Rio, � de esperar que se desenvolva com a capitaliza��o. As novas devemos esperar que ser�o habitadas logo que sejam habit�veis. O resto vir� com os anos.

Entretanto, os donativos e ofertas por parte de algumas cidades fluminenses mostram bem, que nem as cidades querem andar na turbamulta, por mais que a produ��o e a riqueza as distingam. Tudo vale muito, mas n�o vale tudo, antes da coroa administrativa. Datar as leis de Campos � dar o comando a Campos; dat�-las de Vassouras � d�-lo a Vassouras; e nada vale o comando, nem a pr�pria santidade.

A capital da Rep�blica, uma vez estabelecida, receber� um nome deveras, em vez deste que ora temos, mero qualificativo. N�o sei se viverei at� � inaugura��o. A vida � t�o curta, a morte t�o incerta, que a inaugura��o pode fazer-se sem mim, e t�o certo � o esquecimento, que nem dar�o pela minha falta. Mas, se viver, l� irei passar algumas f�rias, como os de l� vir�o aqui passar outras. Os cariocas ficar�o sempre com a ba�a, a esquadra, os arsenais, os teatros, os bailes, a Rua do Ouvidor, os jornais, os bancos, a pra�a do com�rcio, as corridas de cavalos, tanto nos circos, como nos balc�es de algumas casas c� embaixo, os monumentos, a companhia l�rica, os velhos templos, os rebequistas, os pianistas...

Ponhamos tamb�m os melhoramentos projetados na cidade. S�o muitos, e creio haver boa resolu��o de levar a obra ao cabo. Oxal� n�o desanimem os poderes do munic�pio. Tamb�m ficaremos com os processos de toda a sorte, as sociedades sem cabe�a e as sociedades de duas cabe�as, como a Coloniza��o, imita��o da �gua austr�aca. Aqui ficar� o grande banco. A mesma ponte truncada da ba�a, que o mar come�ou a comer, e as montanhas-russas inacabadas da Gl�ria tamb�m ficar�o aqui, t�o inacabadas e t�o truncadas como podemos pedi-los aos deuses.

Perderemos, � certo, o Supremo Tribunal de Justi�a; mas, tendo a C�mara Municipal do Tubar�o, em um assomo de c�lera, qualificado um ato daquela institui��o como ignobilmente anormal, e n�o nos convindo, nem cortar as rela��es com o Tubar�o, nem sair da escola do respeito, melhor � que o tribunal se mude e nos deixe. Grande Tubar�o! Tudo por causa de um homem. O que n�o dir� ele por um princ�pio?

29 de janeiro

Gosto deste homem pequeno e magro chamado Barata Ribeiro, prefeito municipal, todo vontade, todo a��o, que n�o perde o tempo a ver correr as �guas do Eufrates. Como Josu�, acaba de p�r abaixo as muralhas de Jeric�, vulgo Cabe�a de Porco. Chamou as tropas segundo as ordens de Jav� durante os seis dias da escritura, deu volta � cidade e depois mandou tocar as trombetas. Tudo ruiu, e, para mais justeza b�blica, at� carneiros sa�ram de dentro da Cabe�a de Porco tal qual da outra Jeric� sa�ram bois e jumentos. A diferen�a � que estes foram passados a fio de espada. Os carneiros, n�o s� conservaram a vida mas receberam ontem algumas a��es de sociedades an�nimas.

Outra diferen�a. Na velha Jeric� houve, ao menos, uma casa de mulher que salvar, porque a dona tinha acolhido os mensageiros de Josu�. Aqui nenhuma recebeu ningu�m. Tudo pereceu portanto, e foi bom que perecesse. L� estavam para fazer cumprir a lei a autoridade policial, a autoridade sanit�ria, a for�a p�blica, cidad�os de boa vontade, e c� fora � preciso que esteja aquele apoio moral, que d� a opini�o p�blica aos var�es provadamente fortes.

N�o me condenem as reminisc�ncias de Jeric�. Foram os lindos olhos de uma judia que me meteram na cabe�a os passos da Escritura. Eles � que me fizeram ler no livro do �xodo a condena��o das imagens, lei que eles entendem mal, por serem judeus, mas que os olhos crist�os entendem pelo �nico sentido verdadeiro. Tal foi a causa de n�o ir, desde anos, � prociss�o de S�o Sebasti�o, em que a imagem do nosso padroeiro � transportada da catedral ao Castelo. Sexta-feira fui v�-la sair. �ramos dois, um amigo e eu; logo depois �ramos quatro, n�s e as nossas melancolias. Deus de bondade! Que diferen�a entre a prociss�o de sexta-feira e as de outrora. Ordem, n�mero, pompa, tudo o que havia quando eu era menino, tudo desapareceu. Valha a piedade, posto n�o faltaram olhos crist�os, e femininos, � um par deles, � para acompanhar com riso amigo e particular uma velha opa encarnada e inquieta. Foi o meu amigo que notou essa passagem do C�ntico dos C�nticos. Todo eu era pouco para evocar a minha meninice...

E, tu, Bel�m Efrata... Vede ainda uma reminisc�ncia b�blica; � do profeta Miqu�ias... N�o tenho outra para significar a vit�ria de Teres�polis. De Bel�m tinha de vir o salvador do mundo, como de Teres�polis h� de vir a salva��o do estado fluminense. Est� feito capital o lindo e fresco deserto das montanhas. Peso de Campos (agora � imitar o profeta Isa�as), peso de Vassouras, peso de Niter�i. N�o valeram riquezas, nem s�plicas. A ti, pobre e antiga Niter�i n�o te valeu a eloq��ncia do teu Belis�rio Augusto, nem sequer a rivalidade das outras cidades pretendentes. Tinha de ser Teres�polis. �E tu, Bel�m Efrata, tu �s pequenina entre as milhares de Jud�...� Pequenina tamb�m � Teres�polis, mas pequenina em casas, terras h� muitas, pedras n�o faltam, nem cal, nem trolhas, nem tempo. Falta o meu velho amigo Rodrigues, � ora morto e enterrado, � que possu�a uma boa parte daquelas terras desertas. Ai, Justiniano! Os teus dias passaram como as �guas que n�o voltam mais. � ainda uma palavra da Escritura.

Fora com estes sapatos de Israel. Calcemo-nos � maneira da Rua do Ouvidor, que pisamos, onde a vida passa em burburinho de todos os dias e de cada hora. Chovem assuntos modernos. O banco, por exemplo, o novo banco, filho de dois pais, como aquela crian�a divina que era, dizia Cam�es, nascida de duas m�es. As duas m�es, como sabeis, eram a madre de sua madre, e a coxa de seu padre, porque no tempo em que J�piter engendrou esse pequerrucho, ainda n�o estava descoberto o rem�dio que previne a concep��o para sempre, e de que ou�o falar na Rua do Ouvidor. Dizem at� que se anuncia, mas eu n�o leio an�ncios.

No tempo em que os lia, at� os ia catar nos jornais estrangeiros. Um destes, creio que americano, trazia um de excelente rem�dio para n�o sei que perturba��es g�stricas; recomendava por�m, �s senhoras que o n�o tomassem em estado de gravidez, pelo risco que corriam de abortar... O rem�dio n�o tinha outro fim sen�o justamente este, mas a pol�cia ficava sem haver por onde pegar do invento e do inventor. Era assim, por meios astutos e grande dissimula��o, que o rem�dio se oferecia �s senhoras cansadas de aturar crian�as.

A moeda falsa, que previne a mis�ria, n�o a previne para sempre visto que a pol�cia tem o poder in�quo de interromper os estudos de gravura e meter toda uma academia na Deten��o. J� li que se trata de demolir caracteres, e tamb�m que a autoridade est� atacando o capital. Eu, em se me falando esta linguagem, fico do lado do capital e dos caracteres. Que pode, sem eles, uma sociedade?

Um criado meu, que perdeu tudo o que possu�a na compra de desventuras... perdoem-lhe; � um pobre homem que fala mal. Ensinei-lhe a correta pron�ncia de deb�ntures, mas ele disse-me que desventuras � o que elas eram, desventuras e patifarias. Pois esse criado tamb�m defende o capital; a diferen�a � que n�o se acusa a si de atacar o dos outros, e sim aos outros de lhe terem levado o seu. Quanto aos caracteres, entendo que, se alguma coisa quer demolir n�o s�o os caracteres, mas as pr�prias caras, que s�o os caracteres externos, e n�o o faz por medo da pol�cia.

L� tudo o que os jornais publicam, este homem. Foi ele que me deu not�cia da nova den�ncia contra a Geral; ele chama-lhe nova. N�o sei se houve outra. Contou-me tamb�m uma hist�ria de discursos, paraninfos e retratos, e mais um contrabando de objetos de prata dentro de um canap� velho.

� N�o ganho dinheiro com isto, conclui ele, mas consolo-me das minhas desventuras.

� Deb�ntures, Jos� Rodrigues.

5 de fevereiro

Contaram algumas folhas esta semana, que um homem, n�o querendo pagar por um quilo de carne pre�o superior ao taxado pela prefeitura, ouvira do a�ougueiro que poderia pagar o dito pre�o, mas que o quilo seria mal pesado.

P�ra, amigo leitor; n�o te importes com o resto das coisas, nem dos homens. Com um osso, queria o outro reconstruir um animal; com aquela s� palavra, podemos recompor um animal, uma fam�lia, uma tribo, uma na��o, um continente de animais. N�o � que a palavra seja nova. E menos velha que o diabo, mas � velha. Creio que no tempo das libras, j� havia libras mal pesadas, e at� arrobas. O nosso erro � crer que inventamos, quando continuamos, ou simplesmente copiamos. Tanta gente pasma ou vocifera diante de pecados, sem querer ver que outros iguais pecados se pecaram, e ainda outros se est�o pecando, por v�rias outras terras pecadoras.

Andamos em boa companhia. N�o nos h�o de lapidar por atos que s�o antes efeito de uma epidemia do tempo. Ou lapidem-nos, mas no sentido em que se lapida um diamante, para se lhe deixar o puro brilho da esp�cie. Neste ponto, for�a � confessar que ainda h� por aqui impurezas e defeitos graves; mas o belo diamante Estrela do Sul, que hoje pertence a n�o sei que coroa europ�ia, n�o foi achado na bagagem prestes a ser engastado, mas naturalmente bruto. H� impurezas. H� in�pcia, por exemplo, muita in�pcia. Quando n�o � in�pcia, s�o inadvert�ncias. Apontam-se diamantes que tanto t�m de finos como de pataus, e s� o longo estudo da mineralogia poder� dar a chave da contradi��o.

Mas, sursum corda, como se diz na missa. Subamos ao alto valor espiritual da resposta do a�ougueiro. Um quilo mal pesado. Pela lei, um aquilo mal pesado n�o � tudo, s�o novecentas e tantas gramas, ou s� novecentas. Mas a persist�ncia do nome � que d� a grande significa��o da palavra e a conseq�ente teoria. Trata-se de uma id�ia que o vendedor e o comprador entendem, posto que legalmente n�o exista. Eles cr�em e juram que h� duas esp�cies de quilo, � o de peso justo e o mal pesado. Perder�o a carne ou o pre�o, primeiro que a convic��o.

Ora bem, n�o ser� assim com o resto? Que s�o notas falsas, se acaso est�o de acordo com as verdadeiras, e apenas se distinguem delas por uma tinta menos viva, ou por alguns pontos mais ou menos incorretos? Falsas seriam, se se parecessem tanto com as outras, como um r�tulo de farm�cia com um bilhete do Banco Emissor de Pernambuco, para n�o ir mais longe; mas se entre as notas do mesmo banco houver apenas diferen�as mi�das de cor ou de desenho, as chamadas falsas est�o para as verdadeiras, como o quilo mal pesado para o quilo de peso justo. Excluo naturalmente o caso de emiss�es clandestinas, porque as notas de tais emiss�es nunca se poder�o dizer mal pesadas. O peso � o mesmo. A altera��o �nica est� no acr�scimo do mantimento, determinado pelo acr�scimo dos quilos. Quanto ao mais, falsas ou verdadeiras, valha-nos aquela benta francesia que diz que tout finit par des chansons.

Pa�uelo a la cintura,

Pa�uelo al cuello,

Yo no s� donde salen

Tantos pa�uelos!

Saiam donde for, basta que enfeitem a mo�a andaluza. N�o lhe faltar�o guitarras nem guitarreiros, que levantem at� a lua os seus m�ritos, ainda que eles sejam mal pesados. Que valem cinq�enta ou cem gramas de menos a um merecimento, se lhe n�o tiram este nome? Tudo est� no nome. Vi estadistas que tinham de ci�ncia pol�tica um quilo muito mal pesado, e nunca os vi gritar contra o a�ougueiro; alguns acabaram crendo que o peso era justo, outros que at� traziam um peda�o de quebra...

� Isto prova, interrompe-me aqui o a�ougueiro, que o senhor entende pouco do que escreve. Se realmente tivesse id�ias claras saberia que n�o h� s� quilos mal pesados; tamb�m os h� bem pesados. Mas quem os recebe da segunda classe, n�o corre �s folhas p�blicas. Creia-me, isto de filosofia n�o se faz s� com a pena no papel, mas tamb�m com o fac�o na alcatra. Saiba que o mundo � uma balan�a, em que se pesam alternadamente aqueles dois quilos, entre brados de alegria e de indigna��o. Para mim, tenho que o quilo mal pesado foi inventado por Deus, e o bem pesado pelo Diabo; mas os meus fregueses pensam o contr�rio, e da� um povo de cism�ticos, uma ra�a perversa e corrupta...

� Bem; fa�a o resto da cr�nica.

12 de fevereiro

Faleci ontem, pelas sete horas da manh�. J� se entende que foi sonho; mas t�o perfeita a sensa��o da morte, a despegar-me da vida t�o ao vivo o caminho do C�u, que posso dizer haver tido um antegosto da bem-aventuran�a.

Ia subindo, ouvia j� os coros de anjos, quando a pr�pria figura do Senhor me apareceu em pleno infinito. Tinha uma �nfora nas m�os, onde espremera algumas d�zias de nuvens grossas, e inclinava-a sobre esta cidade, sem esperar prociss�es que lhe pedissem chuva. A sabedoria divina mostrava conhecer bem o que convinha ao Rio de Janeiro; ela dizia enquanto ia entornando a �nfora:

� Esta gente vai sair tr�s dias � rua com o furor que traz toda a restaura��o. Convidada a divertir-se no inverno, preferiu o ver�o n�o por ser melhor, mas por ser a pr�pria quadra antiga, a do costume, a do calend�rio, a da tradi��o, a de Roma, a de Veneza, a de Paris. Com temperatura alta, podem vir transtornos de sa�de, � algum aparecimento de febre, que os seus vizinhos chamem logo amarela, n�o lhe podendo chamar pior... Sim, chovamos sobre o Rio de Janeiro.

Alegrei-me com isto, posto j� n�o pertencesse � terra. Os meus patr�cios iam ter um bom carnaval, � velha festa, que est� a fazer quarenta anos, se j� os n�o fez. Nasceu um pouco por decreto, para dar cabo do entrudo, costume velho, datado da col�nia e vindo da metr�pole. N�o pensem os rapazes de vinte e dois anos que o entrudo era alguma coisa semelhante �s tentativas de ressurrei��o, empreendidas com bisnagas. Eram tinas d'�gua, postas na rua ou nos corredores, dentro das quais metiam � for�a um cidad�o todo, � chap�u, dignidade e botas. Eram seringas de lata; eram lim�es de cera. Davam-se batalhas porfiadas de casa a casa, entre a rua e as janelas, n�o contando as bacias d'�gua despejadas � trai��o. Mais de uma tuberculose caminhou em tr�s dias o espa�o de tr�s meses. Quando menos, nasciam as constipa��es e bronquites, ronquid�es e tosses, e era a vez dos botic�rios, porque, naqueles tempos infantes e rudes, os farmac�uticos ainda eram botic�rios.

Cheguei a lembrar-me, apesar de ir caminho do C�u, dos epis�dios de amor que vinham com o entrudo. O lim�o de cera, que de longe podia escalavrar um olho, tinha um of�cio mais pr�ximo e inteiramente secreto. Servia a molhar o peito das mo�as; era esmigalhado nele pela m�o do pr�prio namorado, maciamente, amorosamente, interminavelmente...

Um dia veio, n�o Malesherbes, mas o carnaval, e deu � arte da loucura uma nova fei��o. A alta roda acudiu de pronto; organizaram-se sociedades, cujos nomes e gestos ainda esta semana foram lembrados por um colaborador da Gazeta. Toda a fina flor da capital entrou na dan�a. Os personagens hist�ricos e os vestu�rios pitorescos, um doge, um mosqueteiro, Carlos V, tudo ressurgia �s m�os dos alfaiates, diante de figurinos, � for�a de dinheiro. Pegou o gosto das sociedades, as que morriam eram substitu�das, com v�ria sorte, mas igual anima��o.

Naturalmente, o sufr�gio universal, que penetra em todas as institui��es deste s�culo, alargou as propor��es do carnaval, e as sociedades multiplicaram-se, com os homens. O gosto carnavalesco invadiu todos os esp�ritos, todos os bolsos, todas as ruas. Evoh�! Bacchus est roi! dizia um coro de n�o sei que pe�a do Alcazar L�rico, � outra institui��o velha, mas velha e morta. Ficou o coro, com esta simples emenda: Evoh�! Momus est roi!

N�o obstante as festas da Terra, ia eu subindo, subindo, at� que cheguei � porta do C�u, onde S�o Pedro parecia aguardar-me, cheio de riso.

� Guardaste para ti tesouros no c�u ou na terra? perguntou-me.

� Se crer em tesouros escondidos na terra � o mesmo que escond�-los, confesso o meu pecado, porque acredito nos que est�o no morro do Castelo, como nos cento e cinq�enta contos fortes do homem que est� preso em Valhadolide. S�o fortes; segundo o meu criado Jos� Rodrigues, quer dizer que s�o trezentos contos. Creio neles. Em vida fui amigo de dinheiro, mas havia de trazer mist�rio. As grandes riquezas deixadas no Castelo pelos jesu�tas foram uma das minhas cren�as da meninice e da mocidade; morri com ela, e agora mesmo ainda a tenho. Perdi sa�de, ilus�es, amigos e at� dinheiro; mas a cren�a nos tesouros do Castelo n�o a perdi. Imaginei a chegada da ordem que expulsava os jesu�tas. Os padres do col�gio n�o tinham tempo nem meios de levar as riquezas consigo; depressa, depressa, ao subterr�neo, venham os ricos c�lices de prata, os cofres de brilhantes, safiras, corais, as dobras e os dobr�es, os vastos sacos cheios de moeda, cem duzentos, quinhentos sacos. Puxa, puxa este Santo In�cio de ouro maci�o, com olhos de brilhantes, dentes de p�rolas; toca a esconder, a guardar, a fechar...

� P�ra, interrompeu-me S�o Paulo; falas como se estivesses a representar alguma coisa. A imagina��o dos homens � perversa. Os homens sonham facilmente com dinheiro. Os tesouros que valem s�o os que se guardam no c�u, onde a ferrugem os n�o come.

� N�o era o dinheiro que me fascinava em vida, era o mist�rio. Eram os trinta ou quarenta milh�es de cruzados escondidos, h� mais de s�culo, no Castelo; s�o os trezentos contos do preso de Valhadolide. O mist�rio, sempre o mist�rio.

� Sim, vejo que amas o mist�rio. Explicar-me-�s este de um grande n�mero de almas que foram daqui para o Brasil e tornaram sem se poderem incorporar?

� Quando, divino ap�stolo?

� Ainda agora.

� H� de ser obra de um m�dico italiano, um doutor... esperai... creio que Abel, um Doutor Abel, sim Abel... � um facultativo ilustre. Descobriu um processo para esterilizar as mulheres. Correram muitas, dizem; afirma-se que nenhuma pode j� conceber; est�o prontas.

� As pobres almas voltavam tristes e desconsoladas; n�o sabiam a que atribuir essa repulsa. Qual � o fim do processo esterilizador?

� Pol�tico. Diminuir a popula��o brasileira, � propor��o que a italiana vai entrando; id�ia de Crispi, aceita por Giolitti, confiada a Abel...

� Crispi foi sempre tenebroso.

� N�o digo que n�o; mas, em suma, h� um fim pol�tico, e os fins pol�ticos s�o sempre elevados... Panam�, que n�o tinha fim pol�tico...

� Adeus, tu �s muito falador. O C�u � dos grandes sil�ncios contemplativos.

19 de fevereiro

� meu velho costume levantar-me cedo e ir ver as belas rosas, frescas murtas, e as borboletas que de todas as partes correm a amar no meu jardim. Tenho particular amor �s borboletas. Acho nelas algo das minhas id�ias, que v�o com igual presteza, sen�o com a mesma gra�a. Mas deixemo-nos de elogios pr�prios; vamos ao que me aconteceu ontem de manh�.

Quando eu mais perdido estava a mirar uma borboleta e uma id�ia, parado no jardim da frente, ouvi uma voz na rua, ao p� da grade:

� Faz favor?

N�o � preciso mais para fazer fugir uma id�ia. A minha escapou-se-me, e tive pena. Vestia umas asas de azul-claro, com pintinhas amarelas, cor de ouro. Cor de ouro embora, n�o era a mesma (nem para l� caminhava) do banqueiro Obernd�rffer, que dep�s agora no processo Panam�. Esse cavalheiro foi quem deu � companhia a id�ia de emiss�o de bilhetes de loteria e o respectivo plano, para falar como no Beco das Cancelas. Pagaram-lhe s� por esta id�ia dois milh�es de francos. O presidente do tribunal ficou assombrado. Mas um dos diretores, r�u no processo, explicou o caso dizendo que o banqueiro tinha grande influ�ncia na pra�a, e que assim trabalharia a favor da companhia, em vez de trabalhar contra. Teve uma feliz id�ia, disse o juiz ao depoente; mas, para os acionistas, era melhor que n�o a tivesse tido. O depoente provou o contr�rio e retirou-se.

Tivesse eu a mesma id�ia, e n�o a venderia por menos. Olhem, n�o fui eu que ideei esta outra loteria, mais modesta, do Jardim Zool�gico; mas, se o houvesse feito, n�o daria a minha id�ia por menos de cem contos de r�is; podia fazer algum abate, cinco por cento, digamos dez. Relativamente n�o se pode dizer que fosse caro. H� inven��es mais caras.

Mas, vamos ao caso de ontem de manh�. Olhei para a porta do jardim, dei com um homem magro, desconhecido, que me repetiu cochilando:

� Faz favor?

Cheguei a supor que era uma rel�quia do carnaval; erro crasso, porque as rel�quias do carnaval v�o para onde v�o as luas velhas. As luas velhas, desde o princ�pio do mundo, recolhem-se a uma regi�o que fica � esquerda do infinito, levando apenas algumas lembran�as vagas deste mundo. O mundo � que n�o guarda nenhuma lembran�a delas. Nem os namorados t�m saudades das boas amigas, que, quando eram mo�as e cheias, tanta vez os cobriram com o seu longo manto transparente. E suspiravam por elas; cantavam � viola mil cantigas saudosas, dengosas ou simplesmente tristes; faziam-lhes versos, se eram poetas:

Era no outono, quando a imagemtua,

� luz da lua...

C'etait dans la nuit brune,

Sur le clocher jauni,

La lune...

Todos os metros, todas as l�nguas, enquanto elas eram mo�as; uma vez encanecidas, adeus. E l� v�o elas para onde v�o as rel�quias do carnaval, � n�o sei se mais esfarrapados, nem mais tristes; mas v�o, todas de mistura, tr�pegas, deixando pelo caminho as met�foras e os descanses de poetas e namorados.

Reparando bem, vi queo homem n�o era precisamente um trapo carnavalesco. Trazia na m�o um papel, que me mostrava de longe, � a princ�pio, calado, � depois dizendo que era para mim. Que seria? Alguma carta, � talvez, um telegrama. Que me dir� esse telegrama? Agora mesmo, houve em Blumenau a pris�o do Sr. Lousada. Telegrafaram a 16 esta not�cia, acrescentando que �o povo d� demonstra��o sens�vel de indigna��o�. Para quem conhece a t�cnica dos telegramas, o povo estava jogando o bilhar. Tanto � assim que o pr�prio telegrama, para suprir a dubiedade e o vago daquelas palavras, concluiu com estas: �esperam-se acontecimentos grav�ssimos�. Sabe-se que o superlativo paga o mesmo que o positivo; naturalmente o telegrama n�o custou mais caro.

Vejam, entretanto, como me enganei. Realmente, houve acontecimentos grav�ssimos; a 17 telegrafaram que vinte homens armados feriram gravemente o comiss�rio da pol�cia: esperavam-se outras cenas de sangue. Vinte homens n�o s�o o algarismo ordin�rio de um povo; mas eram graves os sucessos. Outro telegrama, por�m, n�o fala de tal ataque; diz apenas que uma comiss�o do povo foi exigir provid�ncias do juiz de direito, que este pedia a coadjuva��o do povo para manter a ordem, e ficou solto Lousada. Tudo isto, se n�o � claro, traz-me recorda��es da inf�ncia, quando eu ia ao teatro ver uma velha com�dia de Scribe, o Chap�u de palha da It�lia. Havia nela um personagem que atravessa os cinco atos, exclamando alternadamente, conforme os lances da situa��o: � �Meu genro, tudo est� desfeito!� � �Meu genro, tudo est� reconciliado!�

� Telegrama? perguntei.

� N�o, senhor, disse o homem.

� Carta?

� Tamb�m n�o. Um papel.

Caminhei at� a porta. O desconhecido, cheio de afabilidade que lhe agrade�o nestas linhas, entregou-me um pedacinho de papel impresso, com alguns dizeres manuscritos. Pedi-lhe que esperasse; respondeu-me que n�o havia resposta, tirou o chap�u, e foi andando. Lancei os olhos ao papel, e vi logo que n�o era para mim, mas para o meu vizinho. N�o importa; estava aberto e pude l�-lo. Era uma intima��o da intend�ncia municipal.

Esta intima��o come�ava dizendo que ele tinha de ir pagar a certa casa, na Rua Nova do Ouvidor, a quantia de mil e quinhentos r�is, pre�o da placa do n�mero da casa em que mora. Conclu� que tamb�m eu teria de pagar mil e quinhentos quando recebesse igual papel, porque a minha casa tamb�m recebera placa nova. O papel era assinado pelo fiscal. Achei tudo correto, salvo o ponto de ir pagar a um particular, e n�o � pr�pria intend�ncia; mas a explica��o estava no fim.

Se a pessoa intimada n�o pagasse no prazo de tr�s dias, incorreria na multa de trinta mil-r�is. Estaquei por um instante; tr�s dias, trinta mil-r�is, por uma placa, era um pouco mais do que pedia o servi�o, � um servi�o que, a rigor, a intend�ncia � que devia pagar. Mas estava longe dos meus espantos. Continuei a leitura, e vi que, no caso de reincid�ncia, pagaria o dobro (sessenta mil-r�is) e teria oito dias de cadeia. Tudo isto em virtude de um contrato.

O papel e a alma ca�ram-me aos p�s. Oito dias de cadeia e sessenta mil-r�is se n�o pagar uma placa de mil e quinhentos! Tudo por contrato. Afinal apanhei o papel, e ainda uma vez o li; meditei e vi que o contrato podia ser pior, � podia estatuir a perda do nariz, em vez da simples pris�o. A liberdade volta; nariz cortado n�o volta. Al�m disso, se Xavier de Maistre, em quarenta e dois dias de pris�o, escreveu uma obra-prima, por que raz�o, se eu for encarcerado por causa de placa, n�o escreverei outra? Quem sabe se a falta da cadeia n�o � queme impede esta consola��o intelectual? N�o, n�o h� pena; esta cl�usula do contrato � antes um benef�cio.

Verdade � que um legista, amigo meu, afirma que n�o h� carcereiro que receba um devedor remisso de placas. Outro, que n�o � legista, mas � devedor, h� tr�s meses, assevera que ainda ningu�m o convidou a ir para a Deten��o. A pena � um espantalho. Que desastre! Justamente quando eu come�ava a ach�-la �til. Pois se n�o h� cadeia de verdade, � caso de vistoria e demoli��o.

26 de fevereiro

O quemaismeencanta na humanidade, � a perfei��o. H� um imenso conflito de lealdades debaixo do sol. O concerto de louvores entre os homens pode dizer-se que � j� m�sica cl�ssica. A maledic�ncia, que foi antigamente uma das pestes da Terra, serve hoje de assunto a com�dias f�sseis, a romances arcaicos. A dedica��o, a generosidade, a justi�a, a fidelidade, a bondade, andam a rodo, como aquelas moedas de ouro com que o her�i de Voltaire viu os meninos brincarem nas ruas de El-Dorado.

A organiza��o social podia ser dispensada. Entretanto, � prudente conserv�-la por algum tempo, como um recreio �til. A inven��o de crimes, para serem publicados � maneira de romances, vale bem o dinheiro que se gasta com a seguran�a e a justi�a p�blicas. Algumas dessas narrativas s�o demasiado longas e enfadonhas, como a Maria de Macedo, cujo s�timo volume vai adiantado; mas isso mesmo � um benef�cio. Mostrando aos homens os efeitos de um grande enfado, prova-se-lhes que o tipo de ma�ante, � ou cacete, como se dizia outrora � � dos piores deste mundo, e impede-se a volta de semelhante flagelo. Uma das boas institui��es do s�culo � a falange das coisas perdidas, composta dos antigos gatunos e incumbida de apanhar os rel�gios e carteiras que os descuidados deixam cair, e restitu�-los a seus donos. Tudo efeito de discursos morais.

Posto que in�til, pela aus�ncia de crimes, o j�ri � ainda uma excelente institui��o. Em primeiro lugar, o sacrif�cio que fazem todos os meses alguns cidad�os em deixarem os seus of�cios e neg�cios para fingirem de r�us, � j� um grande exemplo de civismo. O mesmo direi dos jurados. Em segundo lugar, o torneio de palavras a que d� lugar entre advogados, constitui uma boa escola de eloq��ncia. Os jurados aprendem a responder aos quesitos, para o caso de aparecer algum crime. �s vezes, como sucedeu h� dias, enganam-se nas respostas, e mandam um r�upara as gal�s, em vez de o devolverem � fam�lia; mas, como s�o simples ensaios, esse mesmo erro � benef�cio, para tirar aos homens alguma pontinha de orgulho de sapi�ncia que porventura lhes haja ficado.

Mas a perfei��o maior, a perfei��o m�xima, � a de que nos deu not�cia esta semana o cabo submarino. O gr�o-turco, por ocasi�o do jubileu do papa, escreveu-lhe uma carta autografada de felicita��es acompanhada de presentes de alta valia. N�o se pode dizer que sejam cortesias temporais. O papa j� n�o governa, como o sult�o da Turquia. A fineza � o chefe espiritual, t�o espiritual como o jubileu. J� cism�ticos e her�ticos tinham feito a mesma coisa; faltava o gr�o-turco, e j� n�o falta. Al� cumprimentou o Senhor, Maom� a Cristo. Tudo o que era contraste, fez-se harmonia, o oposto ajustou-se ao oposto. Ondas e ondas de sangue custou o conflito de dois livros. A cruz e o crescente levaram atr�s de si milhares e milhares de homens. Houve c�leras grandes. Houve tamb�m grandes e pequenos poetas que cantaram os feitos e os sentimentos evang�licos, ora pela nota marcial, ora pela nota desdenhosa. Um deles dedilhou no ala�de rom�ntico a hist�ria daquele sult�o que requestava uma cantarina de Granada, e lhe prometia tudo:

Je donneirais sans retour

Mon royaume pour M�dine,

M�dine pour ton amour.

� Rei sublime, faze-te primeiramente crist�o, respondeu a bela Juana; danado � o prazer que uma mulher pode achar nos bra�os de um incr�dulo.

Tempos de Granada! j� n�o � preciso que os sult�es se cristianizem. Agora � a Sublime Porta, com a sua chancelaria, as suas circulares diplom�ticas, os seus gestos ocidentais, que desaprendeu o cr� ou morre para celebrar a festa de um grande incr�dulo do Cor�o. Onde v�o as guerras de outrora? Onde param os alfanjes tintos de sangue crist�o? Naturalmente est�o com as espadas tintas de sangue mu�ulmano. Vivam os vivos!

Eu, se pudesse dar um conselho em tais casos, propunha a emenda do brevi�rio. Gl�ria a Deus nas alturas, deve ficar; mas para que acrescentar: e na terra paz aos homens? A paz a� est�, completa, universal, perene. Vede Ub�. Vede que magn�fico espet�culo deu ela a todos os munic�pios do estado mineiro, fazendo uma elei��o tranq�ila, sem as ruins paix�es que corrompem os melhores sentimentos deste mundo. O governador de S�o Paulo achou-se em casa com cerca de oitenta bombons de dinamite, � excelente produto da ind�stria local, que conseguiu reduzir um explosivo t�o violento a simples doce de confeitaria.

N�o falo de Pernambuco, nem do Rio Grande do Sul, nem das amazonas de Daom�, nem das dan�as de Madri, a que chamaram tumultos, por ignor�ncia do espanhol, nem da Guaratiba, nem de tantas outras partes e artes, que s�o consola��es da nossa humanidade triunfante.

Mas a paz n�o basta. Falta dizer da alegria. Oh! doce alegria dos cora��es! Um s� exemplo, e dou fim a isto. Aqui est� o parecer dos s�ndicos da Geral, publicado sexta-feira. Diz que entre os nomes da proposta da concordata h� alguns jocosos e outros obscenos. O parecer censura esse g�nero de literatura concordat�ria. Escrito com a melancolia que a natureza, para real�ar a alegria do s�culo, p�s na alma de todos os s�ndicos, o parecer n�o compreende a vida e as suas belas flores. Isto quanto aos nomes jocosos. Pelo que toca aos obscenos, � preciso admitir que, assim como h� bocas recatadas, tamb�m as h� l�bricas. A alegria tem todas as formas, n�o se h� de excluir uma, por n�o ser igual �s outras. A monotonia � a morte. A vida est� na variedade.

Demais, que se h� de fazer com acionistas que ainda devem de entradas oitenta e cinco mil oitocentos e quarenta e seis contos, cento e sessenta mil e duzentos r�is (85.846:160$200)? Rir um pouco, e bater-lhes na barriga. Ora, cada um ri com a boca que tem. Mas a prova de que a obscenidade, como a jocosidade, formas de alegria, s�o de origem leg�tima e aut�ntica, � que todas as firmas foram legalmente reconhecidas. Quando a alegria entra nos cart�rios, � que a tristeza fugiu inteiramente deste mundo.

5 de mar�o

Quando os jornais anunciaram para o dia 1� deste m�s uma parede de a�ougueiros, a sensa��o que tive foi muito diversa da de todos os meus concidad�os. V�s ficastes aterrados; eu agradeci o acontecimento ao C�u. Boa ocasi�o para converter esta cidade ao vegetarismo.

N�o sei se sabem que eu era carn�voro por educa��o e vegetariano por princ�pio. Criaram-me a carne, mais carne, ainda carne, sempre carne. Quando cheguei ao uso da raz�o e organizei o meu c�digo de princ�pios, inclu� nele o vegetarismo; mas era tarde para a execu��o. Fiquei carn�voro. Era a sorte humana; foi a minha. Certo, a arte disfar�a a hediondez da mat�ria. O cozinheiro corrige o talho. Pelo que respeita ao boi, a aus�ncia do vulto inteiro faz esquecer que a gente come um peda�o de animal. N�o importa, o homem � carn�voro.

Deus, ao contr�rio, � vegetariano. Para mim, a quest�o do para�so terrestre explica-se clara e singelamente pelo vegetarismo. Deus criou o homem para os vegetais, e os vegetais para o homem; fez o para�so cheio de amores e frutos, e p�s o homem nele. Comei de tudo, disse-lhe, menos do fruto desta �rvore. Ora, essa chamada �rvore era simplesmente carne, um peda�o de boi, talvez um boi inteiro. Se eu soubesse hebraico, explicaria isto muito melhor.

Vede o nobre cavalo! o paciente burro! o incompar�vel jumento! Vede o pr�prio boi! Contentam-se todos com a erva e o milho. A carne, t�o saborosa � on�a, � e ao gato, seu parente pobre, � n�o diz coisa nenhuma aos animais amigos do homem, salvo o c�o, exce��o misteriosa, que n�o chego a entender. Talvez, por mais amigo que todos, comesse o resto do primeiro almo�o de Ad�o, de onde lhe veio igual castigo.

Enfim, chegou o dia 1� de mar�o; quase todos os a�ougues amanheceram sem carne. Chamei a fam�lia; com um discurso mostrei-lhe que a superioridade do vegetal sobre o animal era t�o grande, que dev�amos aproveitar a ocasi�o e adotar o s�o e fecundo princ�pio vegetariano. Nada de ovos, nem leite, que fediam a carne. Ervas, ervas santas, puras, em que n�o h� sangue, todas as variedades das plantas, que n�o berram nem esperneiam, quando lhes tiram a vida. Convenci a todos; n�o tivemos almo�o nem jantar, mas dois banquetes. Nos outros dias a mesma coisa.

N�o desmaieis, retalhistas, nesta forte empresa. Dizia um grande fil�sofo que era preciso recome�ar o entendimento humano. Eu creio que o est�mago tamb�m, porque n�o h� bom racioc�nio sem boa digest�o, e n�o h� boa digest�o com a maldi��o da carne. Morre-se de porco. Quem j� morreu de alface? Retalhistas, meus amigos, por amor daquele fil�sofo, por amor de mim, continuei a resist�ncia. Os vegetarianos vos ser�o gratos. Tereis morte gloriosa e sepultura honrada, com ervas e arbustos. N�o � preciso pedir, como o poeta, que vos plantem um salgueiro no cemit�rio; plantar � conosco; n�s cercaremos as vossas campas de salgueiros tristes e saudosos. Que � nossa vida? Nada. A vossa morte, por�m, ser� a grande reconstitui��o da humanidade. Que o Senhor vo-la d� suave e pronta.

Compreende-se que, ocupado com esta passagem de doutrina � pr�tica, pouco haja atendido aos sucessos de outra esp�cie, que, ali�s, s�o filhos da carne. Sim, o vegetarismo � pai dos simples. Os vegetarianos n�o se batem; t�m horror ao sangue. Gostei, por exemplo, de saber que a multid�o, na noite do desastre do Liceu de Artes e Of�cios, atirou-se ao interior do edif�cio para salvar o que pudesse; � a��o pr�pria da carne, que avigora o �nimo e a cega diante dos grandes perigos. Mas, quando li que, de envolta com ela, entraram alguns homens, n�o para despejar a casa, mas para despejar as algibeiras dos que despejavam a casa, reconheci tamb�m a� o sinal do carn�voro. Porque o vegetariano n�o cobi�a as coisas alheias; mal chega a amar as pr�prias. Reconstituindo segundo o plano divino, anterior � desobedi�ncia, ele torna �s id�ias simples e desambiciosas que o Criador incutiu no primeiro homem.

Se n�o pratica o furto, � claro que o vegetariano detesta a fraude e n�o conhece a vaidade. Da� um elogio a mim mesmo. Eu n�o me dou por ap�stolo �nico desta grande doutrina. Creio at� que os temos aqui, anteriores a mim, e, � singular aproxima��o! � no pr�prio conselho municipal. S� assim explico a nota jovial que entra em alguns debates sobre assuntos graves e grav�ssimos.

Suponhamos a instru��o p�blica. Aqui est� um discurso, sa�do esta semana, mas proferido muito antes do dia 1� de mar�o; discurso meditado, estudado, cheio de circunspe��o (que o vegetariano n�o repele, ao contr�rio) e de muitas pontua��es alegres, que s�o da ess�ncia da nossa doutrina. Tratava-se dos jardins da inf�ncia. O Sr. Capelli notava que tais e tantos s�o os dotes exigidos nas jardineiras, beleza, carinho, idade inferior a trinta anos, boa voz, canto, que dificilmente se poder�o achar neste pa�s mo�as em quantidade precisa.

N�o conhe�o o Sr. Maia Lacerda, mas conhe�o o mundo e os seus sentimentos de justi�a, para me n�o admirar do cordial n�o apoiado com que ele repeliu a assevera��o do Sr. Capelli. N�o contava com o orador, que aparou o golpe galhardamente: �Vou responder ao se n�o apoiado, disse ele. As que encontramos, remetendo-as para l�, receio, que, bonitas como soem ser as brasileiras, corram o risco de n�o voltar mais, e sejam apreendidas como belos esp�cimens do tipo americano.�

Outro ponto alegre do discurso � o que trata da necessidade de ensinar a l�ngua italiana, fundando-se em que a col�nia italiana aqui � numerosa e crescente, e espalha-se por todo o interior. Parece que a conclus�o devia ser o contr�rio; n�o ensinar italiano ao povo, ante ensinar a nossa l�ngua aos italianos. Mas, posto que isto n�o tenha nada com o vegetarismo, desde que faz com que o povo possa ouvir as �peras sem libreto na m�o, � um progresso.

12 de mar�o

Quecuidamque me ficou dos �ltimos acontecimentos pol�ticos do Amazonas? Um verbo: desaclamar-se. Est� em um dos telegramas do Par� e refere-se ao cidad�o que, por algumas horas, estivera com o poder nas m�os. �Tendo em of�cio participado a sua aclama��o e marcado o prazo de 12 horas para a retirada do governador, desaclamou-se em seguida por outro of�cio...�

Pode ser (tudo � poss�vel) que o intuito da palavra fosse antes gracejar com a a��o; mas as palavras, com os livros, t�m os seus fados, e os desta ser�o pr�speros. � uma porta aberta para as restitui��es pol�ticas. Resignar, como abdicar, exprime a entrega de um poder leg�timo, que o uso tornou pesado, ou os acontecimentos fizeram caduco. Mas, como se h� de exprimir a restitui��o do poder que a aclama��o de alguns entregou por horas a algu�m? Desaclamar-se. N�o vejo outro modo.

M�rim�e confessou um dia que da hist�ria s� dava apre�o �s anedotas. Eu nem �s anedotas. Contento-me com palavras. Palavra brotada no calor do debate, ou composta por estudo, filha da necessidade, oriunda do amor ao requinte, obra do acaso, qualquer que seja a sua certid�o de batismo, eis o que me interessa na hist�ria dos homens. Desta maneira fico abaixo do outro, que s� curava de anedotas. Sim, meus amigos, nunca me vereis vencido por ningu�m. Alta ou baixa que seja uma id�ia, acreditei que tenho outra mais alta ou mais baixa. Assim o autor da Cr�nica de Carlos IX dava Tuc�dides por umas mem�rias aut�nticas de Asp�sia ou de um escravo de P�ricles. Eu dou as mem�rias deste escravo pela not�cia da palavra que P�ricles aplicava, em particular, aos cacetes e amoladores de seu tempo.

Que valem, por exemplo, todas as lutas do nosso velho parlamentarismo, em compara��o com esta palavra: inverdade? Inverdade � o mesmo que mentira, mas mentira de luva de pelica. Vede bem a diferen�a. Mentira s�, nua e crua, dada na bochecha, d�i. Inverdade, embora dita com energia, n�o obriga a ir aos queixos da pessoa que a profere. � �Perdoe-me Vossa Excelent�ssima, mas o que acaba de dizer � uma inverdade; nunca o presidente da Para�ba afirmou tal coisa.� � �Inverdade � a sua; desculpe-me que lhe diga em boa amizade; Vossa Excelent�ssima neste neg�cio tem espalhado as maiores inverdades poss�veis! para n�o ir mais longe, o crime atribu�do ao redator do Imparcial...� � �S�o pontos de vista; pe�o a palavra.�

Parece que inexatid�o bastava ao caso; mas � preciso atender ao uso das palavras. N�o cansam s� as l�nguas que as dizem; elas pr�prias gastam-se. Quando menos, adoecem. A anemia � um dos seus males freq�entes; o esfalfamento � outro. S�um longo repouso as pode restituir ao que eram, e torn�-las prest�veis.

N�o achei a certid�o de batismo da inverdade; pode ser at� que nem se batizasse. N�o nasceu do povo, isso creio. Entretanto, esta mo�a, pode ainda casar, conceber e aumentar a fam�lia do l�xicon. Ouso at� afirmar que h� nela alguns sinais de pessoa que est� de esperan�as. E o filho � macho; e h� de chamar-se inverdadeiro. N�o se achar� melhor eufemismo de mentiroso; � ainda mais doce que sua m�e, posto que seja feio de cara; mas quem v� cara, n�o v� cora��es.

Vi muitos outros viventes de igual condi��o, que mereceriam algumas linhas; mas o tempo urge, e fica para outra vez. Nem h� s� viventes separados; tenho visto irm�os, fileira de irm�os, sa�dos da mesma coxa ou do mesmo �tero, com o nome de uma s� fam�lia, apenas diferen�ado pelo sufixo, cuja significa��o n�o alcan�o. Um exemplo, e despe�o-me.

A chefia, e particularmente a chefia de pol�cia, � uma dona robusta, de grandes predicados e alto poder. Supus por muitos anos que era filha �nica do velho chefe; mas os tempos me foram mostrando que n�o. Tem irm�s, tem irm�os, tem chefa��o, pessoa de igual ou maior for�a, porque a desin�ncia � mais en�rgica. Tem chefan�a. Vi muitas vezes esta outra senhora, � frente da pol�cia ou de um partido, disputar �s irm�s o dom�nio exclusivo, sem alcan�ar mais que comparti-lo com elas. Vi ainda a nobre chefatura, t�o v�lida e t�o ambiciosa como as outras. Dos irm�os s� conhe�o o esbelto chefado, que, alegando o sexo, pretendeu sempre a chefan�a, a chefatura, a chefa��o ou a chefia da fam�lia.

Parece que, � semelhan�a dos filhos de Jac�, invejosos de Jos�, que era particularmente amado do pai, os filhos e filhas do velho chefe, vendo a predile��o deste pela linda chefia, cuidaram de a matar. Estavam prestes a faz�-lo, quando surgiu a id�ia de a meter na cisterna, e diz�-la morta por uma fera, como na Escritura; mas a vinda dos mesmos israelitas, com os seus camelos, carregados de mirra e aromas...

Velha imagina��o, onde vais tu, pelos caminhos do sonho? Deixa os camelos e a sua carga, deixa o Egito, fecha as asas, abre os olhos, desce; esta � a Rua do Ouvidor, onde n�o se mata Jos� nem chefia; mas unicamente o tempo, esse bom e mau amigo, que n�o tem pai, nem m�e, nem irm�os, e domina todo este mundo, desde antes de Jac� at� Deus sabe quando.

Para cr�nica, � pouco; mas para matar o tempo, sobra.

19 de mar�o

Somos todos criados com tr�s ou quatro id�ias que, em geral, s�o o nosso farnel da jornada. Felizes os que podem colher de caminho, alguma fruta, uma azeitona, um pouco de mel de abelhas, qualquer coisa que os tire do ramerr�o de todos os dias. Para esses guardam os anjos um lugar delicioso, � um n�ctar, que n�o chamam especial para n�o confundi-lo com a goiabada ou o ch� dos nossos armaz�ns humanos, mas que n�o �, com certeza, o n�ctar do vulgacho. Deixem ir n�ctar com anjos: todas as cren�as se confundem neste fim de s�culo sem elas.

Uma daquelas id�ias com que nos criam e nos p�em a andar, � a do papel�rio. Julgo n�o ser preciso dizer o que seja papel�rio. Papel�rio exprime o processo do executivo, os seus tr�mites e informa��es; ningu�m confunde esta id�ia com outra. Quando um homem n�o tem outra c�lera, tem esta bela c�lera, contra o papel�rio. Terra do papel�rio! costuma dizer um anci�o que por falta de meios, amor ao distrito, medo ao mar, doen�a ou afei��es de fam�lia, nunca p�s o nariz fora da barra. Terra do papel�rio! Ele n�o quer saber se a burocracia francesa � m�e da nossa. Tamb�m n�o lhe importa verificar se a administra��o inglesa � o que diz dela o fil�sofo Spencer, complicada, morosa e tardia. Terra do papel�rio! � uma id�ia.

Essa id�ia, mamada com o leite da inf�ncia, nunca foi aplicada aos neg�cios judici�rios. Entretanto, esta mesma semana vi publicado o despacho de um juiz mandando que o escriv�o numere os autos da companhia Geral das Estradas de Ferro desde as folhas mil e tantas, em que a numera��o havia parado. O despacho n�o diz quantas s�o as folhas por numerar, nem a imagina��o pode calcular as folhas que ter�o de ser ainda escritas e ajuntadas a este processo. Duas mil? tr�s mil? Estendendo pela imagina��o todas as folhas poss�veis, ao lado das linhas f�rreas que a companhia chegaria a possuir, creio que o papel venceria o ferro.

Que papel�rio maior, e, a certos respeitos, que mais in�til? Os escriv�es lucram, n�o h� d�vida, e escriv�o tamb�m � gente; mas � muita folha. Afinal, quem vem a lucrar deveras � o Taine de 1950. Quando esse investigador curioso entrar a farejar o que est� debaixo dos tempos, para saber o que se pensou, se disse e se fez, e for �s casas particulares e �s p�blicas, aos cart�rios e aos jornais, e escavar montanhas de papel, manuscrito ou impresso, descomposturas e defesas, arrazoados de toda a sorte, para extrair, recolher e recompor, � ent�o � que podem valer demandas, artigos, inqu�ritos. � falta de um Taine, um Balzac retrospectivo.

Talvez o meu espanto seja ris�vel. Pode ser que os processos de milhares de folhas andem a rodo; em tal caso, perde-se no ar toda essa cantilena em que venho por aqui abaixo. N�o digo que n�o. Eu n�o conhe�o o foro. Conheci um fiel de feitos, mas n�o vi se h� ainda agora fi�is de feitos. O tal era um sujeito magro, esguio, velho palet�, e cal�as de brim safado, e uns sapatos rasos sem tac�o nem escova. Debaixo do bra�o um protocolo e autos. Levava autos de um lado para outro, aos ju�zes, aos advogados, ao cart�rio. Como levaria ele o processo da Companhia Geral de Estradas de Ferro ou qualquer outro do mesmo tamanho? De carro, naturalmente. Talvez tivesse carro... Pobre Juv�ncio! Morreu tarde para as suas mis�rias, mas cedo para as suas gl�rias.

Se j� n�o houver fiel de feitos, quem far� hoje esse of�cio? As pr�prias partes n�o podem ser, posto que um bom acordo e palavra dada valham mais que a dilig�ncia de um desgra�ado. Os procuradores tamb�m n�o; os escriv�es precisam escrever. N�o adivinho. � caso para inventar um fiel mec�nico, um veloc�pede consciente, mais r�pido que o homem, e t�o honrado. Tu, se tens o costume de inventar, recolhe-te em ti mesmo, e procura, investiga, acha, comp�e, exp�e, desenha, escreve um requerimento, e corre a sentar-te � sombra da lei dos privil�gios.

Quando o veloc�pede assim aperfei�oado entregar autos e recolher os recibos no protocolo, pode ser aplicado �s demais esferas da atividade social, e teremos assim descoberto a chave do grande problema. Dez por cento da humanidade bastar�o para os neg�cios do mundo. Os noventa por cento restantes s�o bocas in�teis, e, o que � pior, reprodutivas. Vinte guerras formid�veis dar�o cabo delas; um bom preservativo estabelecer� o equil�brio para os s�culos dos s�culos. Talho em grande; n�o sou homem de pequenas vistas nem de golpes � flor.

At� l�, usemos da chocadeira, que um distinto ginecologista recomendou esta semana, em artigo sobre o famoso assunto da esteriliza��o, que vai caminho das outras coisas deste mundo. A chocadeira � conhecida; foi inventada para completar c� fora a vida do ente que n�o a p�de acabar alhures. Por lei fatal, n�o viveria: a chocadeira imp�e-lhe a vida, vencendo assim a natureza. Bem comparando, � o veloc�pede consciente. O autor do artigo chama-lhe m�e artificial.

Propondo a chocadeira ao processo da esteriliza��o, mostra ele que tal aparelho � necess�rio para um pa�s que precisa de bra�os. Aviso aos nativistas. Quem n�o quiser aqui uma Babel de l�nguas, � chocar os tristes candidatos � exist�ncia, que n�o chegam a matricular-se. A� ter�o eles matricula e aprova��o.

Quem �s tu, pobre coisa de nada, que a metaf�sica do amor, ajudada da f�sica, trouxe at� �s portas da exist�ncia? Ego sum qui non sum. Pois ser�s, meio filho de entranhas impacientes; aqui veremos com que sejas. N�o te digo se, uma vez conhecido, ser�s bispo, general ou mendigo; digo-te que antes mendigo que nada.

Uma coisa, por�m, que o autor do artigo n�o previu, nem o da chocadeira, � que extintas as demais aristocracias, vir� essa outra, a dos nascidos a termo. O chocado far� o papel de plebeu. A sociedade compor-se-� de nascidos e chocados; e filho de chocadeira ser� a ultima inj�ria.

26 de mar�o

Entrouo outono. Despontam as esperan�as de ouvir Sarah Bernhardt e Falstaff. A arte vir� assim, com as suas notas de ouro, cantadas e faladas, trazer � nossa alma aquela paz que alguns homens de boa vontade tentaram restituir � alma rio-grandense, reunindo-se quinta feira na Rua da Quitanda.

Creio que a arte h� de ser mais feliz que os homens. Da reuni�o destes resultou saber-se que n�o havia solu��o pr�tica de acordo com os seus intuitos. Talvez os convidados que l� n�o foram e mandaram os seus votos em favor do que passasse, j�adivinhassem isso mesmo. Viram de longe o texto da mo��o final, e a assinaram de v�spera. H� desses esp�ritos que, ou por sagacidade pronta, ou por esfor�o grande, l�em antes da meia-noite as palavras que a aurora tem de trazer escritas na capa vermelha e branca, sa�dam as estrelas, fecham as janelas e v�o dormir descansados. Alguns sonham, e creio que sonhos generosos; mas a imagina��o e o cora��o n�o mudam a torrente das coisas, e os homens acordam frescos e leves, sem haver debatido nem incandescido nada.

Comecemos por pacificar-nos. Paz na terra aos homens de boa vontade � � a prece crist�; mas nem sempre o c�u a escuta, e, apesar da boa vontade, a paz n�o alcan�a os homens e as paix�es os dilaceram. Para este efeito, a arte vale mais que o C�u. A pr�pria guerra, cantada por ela, d�-nos a serenidade que n�o achamos na vida. Venha a arte, a grande arte, entre o fim do outono e o princ�pio do inverno.

Confiemos em Sarah Bernhardt com todos os seus ossos e caprichos, mas com o seu g�nio tamb�m. Vamos ouvir-lhe a prosa e o verso, a paix�o moderna ou antiga. Confiemos no grande Falstaff. N�o � po�tico, decerto, aquele gordo Sir John; afoga-se em amores l�bricos e vinho das Can�rias. Mas tanto se tem dito dele, depois que o Verdi o p�s em m�sica, que muito naturalmente � obra-prima.

O pior ser� o libreto, que, por via de regra, n�o h� de prestar; mas leve o diabo libretos. Antes do dil�vio, � ou mais especificadamente, pelo tempo do Trovador, dizia-se que o autor do texto dessa �pera era o �nico libretista capaz. N�o sei; nunca o li. O que me ficou � pouco para provar alguma coisa. Quando a cigana cantava: Ai nostri monti ritorneremo, a gente s� ouvia o vozeir�o da Casaloni, uma mulher que valia, corpo e alma, por uma companhia inteira. Quando Manrico rompia o famoso: Di quella pira l'orrendo fuoco, rasgaram-se as luvas com palmas ao Tamberlick ou ao Mirate. Ningu�m queria saber do Camarano, que era o autor dos versos.

Resignemos ao que algum mau alfaiate houver cortado na capa magn�fica de Shakespeare. T�m-se aqui publicado not�cias da obra nova, e creio haver lido que um trecho vai ser cantado em concerto; mas eu prefiro esperar. Demais, pouco � o tempo para ir seguindo esta outra guerra civil, a prop�sito do facultativo italiano, que mostra ser patr�cio de Machiavelli. Fez o seu an�ncio, e entregou a causa aos advers�rios. Estes fazem, sem querer, o neg�cio dele; e se algum vai ficando conhecido, a culpa � das coisas, n�o da inten��o; n�o se pode falar sem palavras, e as palavras fizeram-se para ser ouvidas. N�o digo entendidas, posto que as haja de fina casta, tais como a isquioebetomia, a isquiopubiotomia, a sinfisiotomia, a cofarectomia, a histerectomia, a histerosalpingectomia, e outras que andam pelos jornais, todas de ra�a grega e talvez do pr�prio sangue dos Atridas.

Tudo isto a prop�sito de um processo ignoto e c�lebre. Descobriu-se agora (segundo li) que uma senhora j� o conhece e emprega. Seja o que for, � uma quest�o reduzida aos m�dicos; n�o passar� aos magistrados. Vamos esquecendo; � o nosso of�cio.

Bem faz o Dr. Castro Lopes, que trabalha no sil�ncio, e de quando em quando aparece com uma descoberta, seja por livro, ou por artigo. Anuncia-se agora um volume de quest�es econ�micas, em que ele trata, al�m de outras coisas, de uma moeda universal. Um s� rebanho e um s� pastor, � o ideal da Igreja Cat�lica. Uma s� moeda deve ser o ideal da igreja do Diabo, porque h� uma igreja do Diabo, no sentir de um grande padre. Venha, venha depressa esse volapuque das riquezas. N�o lhe conhe�o o tamanho; pode ser do tamanho universal o mesmo que aconteceu com o volapuque. Acabo de ler que um dos mais influentes propugnadores daquela l�ngua reconhece a inutilidade do esfor�o. O com�rcio do mundo inteiro n�o pega, e prefere os seus dizeres antigos �s combina��es dos que gramaticaram aquele invento curioso. � que o artificial morre sempre, mais cedo ou mais tarde.

2 de abril

Parece que um ou mais diretores de clubes esportivos acusaram os book-makers de atos de corrup��o. J� apanhei a quest�o no meio, n�o posso dar todos os pormenores. Trata-se do suborno de j�queis, para que estes fa�am perder os cavalos que lhes est�o confiados, a fim de que tais e tais outros ganhem. Justamente indignados, os book-makers repeliram a acusa��o, retorquindo que os pr�prios diretores � que subornam os j�queis. N�o tendo fundamento para crer em nenhum dos dois libelos, rejeito-os ambos. Uma coisa, por�m, � afirmada por uma e outra banda, e dada por verdadeira: � que h� j�queis subornados.

Este � o ponto. � o que se pode chamar uma bela sociedade. Todos os domingos e dias feriados, centenas de pessoas atiram-se aos prados de corridas. Outras centenas, menos andareiras, deixam-se ficar aqui mesmo, apostando pelo telefone. A simpatia, a tradi��o, o palpite, levam grande parte de umas e outras aos cavalos King, Otelo ou Moltke. Tudo por Otelo! tudo por Moltke! tudo por King! D�-se o sinal. Os cavalos saem, correm, voam, chegam. Com eles v�o outros, o Veloz, que os vai seguindo, depois Vespasiano, depois Marte... L� v�o, l� passam, l� ganham. Os j�queis dos primeiros dobram-se cada vez mais sobre eles, tomam o freio nos dentes, voam inteiros, corpo e alma, tudo, mas n�o podem. Urra por Marte! Urra por Veloz! Urra por Vespasiano.

Tr�s pangar�s, dizem os que perdem; como � que tr�s animais �nfimos puderam vencer tr�s cavalos de primeira ordem, os primeiros da capital? Abre-se debate, faz-se tumulto; n�o se atina com a raz�o. Algum haver� que atribua o caso a milagre; outro vai logo ao suborno. Da� as acusa��es.

Conversando com um senhor, um estrangeiro, creio que polaco, disse-me ele que os que perdem, n�o cr�em jamais que tudo se passe naturalmente; h� de haver milagre ou corrup��o, isto �, interven��o de Deus ou do diabo.

� Ent�o parece-lhe que realmente o Moltke, o King e Otelo deviam perder a corrida?

� Se quisessem, por que n�o?

� Se quisessem...?

� Ou�a-me. H� entre os cavalos uma esp�cie de ma�onaria. Cansados de se verem reduzidos a cartas de jogar ou dados, com o falaz pretexto de apurar a ra�a, os cavalos resolvem, �s vezes, entre si, iludir as esperan�as dos homens. Trocam os pap�is, creio que de v�spera, ou no pr�prio encilhamento, ao ouvido, � �s  vezes por sinais de olhos. Quando a luta come�a, os homens ficam embara�ados. Os cavalos, n�o podendo rir para fora, riem para dentro.

� N�o � m�!

� N�o mofe, que � imitar os ignorantes. Que os cavalos fa�am acordos entre si, � coisa sabida por todos os que folheiam livros antigos. Diculasius, op., lib. XXI, refere: �Os n�midas contam que os seus cavalos combinam entre si, � imita��o dos homens, a marcha que h�o de ter, quando presumem que esta os fatigue em excesso, se forem pelo acordo dos cavaleiros� Cneius Publios, confirmando essa vers�o, acrescenta que a esp�cie cavalar � daquelas em que mais se ajustam as vontades. Mas o primeiro que estudou detidamente este assunto (n�o falando dos �rabes), foi o fil�sofo Claudicas Morbus; esse achou que os cavalos escarnecem dos homens: �Os ruins cavalos, diz ele em um dos seus tratados, s�o muita vez cavalos excelentes; para escarnecer dos homens, fazem-se ruins, empacam, afrouxam o passo, ou simplesmente os cospem de si, para que eles os n�o aborre�am mais. Os cavalos que falam aos homens, como o de Aquiles, s�o raros, se � que ainda existe algum; geralmente falam entre si. Tendo estudado gestos de cabe�a e de olhos, n�o menos que os relinchos, cheguei a formular um vocabul�rio, que me tem servido para alguma coisa.�

� O senhor est� falando s�rio?

� Como quer que lhe fale?

� � que n�o me consta...

� Ah! isto n�o se acha nos grandes autores cl�ssicos; � preciso vasculhar livros que poucos l�em, que s� l� a gente erudita, desculpe a express�o.

� Ent�o, os cavalos...

� Os cavalos s�o homens; e n�o est� longe o s�culo em que os homens correr�o tamb�m para recreio e lucro dos cavalos. Ora, se, nessas corridas do futuro, os homens, por meio de sinais, sussurro ou at� meias palavras, combinarem entre si uma troca de palpites, de modo que os �ltimos cheguem primeiro, e os considerados primeiros cheguem por �ltimo, que dir� o senhor?

� Perd�o...

� Note que a hip�tese � anda mais natural com os homens, pela raz�o do dom�nio que eles t�m sobre a terra, das civiliza��es anteriores e do orgulho que da� nasce. Que mais natural que isto, e que mais justo? O senhor n�o se admirar�, decerto...

� Decerto.

� Por que se admira ent�o de que os cavalos fa�am o mesmo?

� Eu lhe digo...

� N�o me diga nada. Adivinho o que me vai dizer. Respondo-lhe que h� de ser pior com o homem, sem que isso prove que o homem seja pior, que o cavalo. O orgulho do cavalo � grande; ele n�o tem s� a vaidade que lhe sup�em os inadvertidos. Nas corridas lutam as mais das vezes com lealdade, por amor-pr�prio, defendem o nome e os brios. O pr�prio sangue os aguilhoa e leva. Quando, por�m, os aborrecemos, dizem consigo provavelmente que n�o nasceram para gam�o, nem loteria, ajustam-se e trocam de papel; King faz ganhar a Vespasiano, como Otelo cede o lugar a Veloz.

� Seja como for, perdemos o dinheiro que estava ganho.

� Tem gra�a! N�o se perde nada, porque assim como os que deviam ganhar, perdem, assim tamb�m os que deviam perder, ganham. H� compensa��o. � o que se pode chamar uma bela sociedade.

9 de abril

O conselho municipal vai regulamentar o servi�o dom�stico. J� h� um projeto, apresentado esta semana pelo Sr. intendente Jo�o Lopes, para substituir o que se adiara, e em breve estar�, como se diz em dialeto parlamentar, no tapete da discuss�o.

N�o me atribuam nenhuma trapalhice de linguagem, chamando intendente a um membro do conselho municipal. Assim se chamam eles entre si. Podem retrucar que, no tempo das C�maras municipais, os respectivos membros eram vereadores. � verdade; mas, nesse caso, fora melhor ter conservado os nomes antigos, que eram uma tradi��o popular, uma liga��o hist�rica, e creio at� que a intend�ncia que primeiro substituiu a c�mara, � menos democr�tica. Intend�ncia e intendente cheiram a of�cio executivo.

Mas, seja c�mara, intend�ncia ou conselho, vai reformar o servi�o dom�stico, e desde j� tem o meu apoio, embora os balan�os da fortuna possam levar-me algum dia a servir, quando menos, o of�cio de jardineiro. As flores (n�o � poesia) s�o a minha alma. Eu daria a coroa de Madagascar por uma rosa do Jap�o. Outros sacrificariam todas as flores de leste e de oeste pela coroa da ilha das Enxadas. S�o gostos. Agora mesmo, o corretor Souto, achando-se em graves embara�os pecuni�rios, p�s termo � vida. Pessoas h� que, nas mesmas circunst�ncias, criam alma nova. Pontos de vista.

Enquanto, por�m, n�o me chega o infort�nio, quero o regulamento, que � muito mais a meu favor do que a favor do meu criado. Na parte em que me constrange, n�o ser� cumprido, porque eu n�o vim ao mundo para cumprir lei, s� porque � lei.

Se � lei, traga um pau; se n�o traz um pau, n�o � nada.

Um exemplo � m�o. Qual � a primeira das liberdades, depois da de respirar? � a da circula��o, suponho. Pois para que a tenhamos no meio da rua da Candel�ria, e no princ�pio da da Alf�ndega, vulgo Encilhamento, � preciso que andem ali a defend�-la duas pra�as de cavalaria. Desde 1890 estabeleceu-se naquele lugar uma massa compacta de cidad�os, que n�o deixava passar ningu�m. N�o digo que o motivo fosse expressamente restringir a liberdade alheia; pode ser que o intuito da reuni�o fosse t�o-somente formar um istmo que de algum modo imitasse o de Panam�, que se desfazia todas as tardes, � mesma hora em que as antigas quitandeiras da rua Direita levantavam as suas tendas. Pode ser; o esp�rito de imita��o � altamente fecundo.

Entretanto (� a minha tese), tirem dali as duas pra�as de cavalaria, e o Encilhamento continua. J� ali estiveram duas, e, para manter a liberdade da circula��o, eram obrigadas a disparar de vez em quando. Dispersavam a gente, � verdade, mas faziam perder e ganhar muito conto de r�is, porque os jogadores apostavam sobre elas mesmas, a saber, qual das duas pra�as chegaria a uma dada linha da rua. Sa�ram as pra�as, refez-se o istmo.

Mas venhamos ao nosso projeto municipal. Tem coisas excelentes; entre outras, o art. 18, que manda tratar os criados com bondade e caridade. A caridade, posta em regulamento, pode ser de grande efic�cia, n�o s� dom�stica, mas at� p�blica. Outra disposi��o que merece nota, � a que respeita aos atestados passados pelo amo em favor dos criados; segundo o regulamento, devem ser conscienciosos. Na crise moral deste fim de s�culo, a decreta��o da consci�ncia � um grande ato pol�tico e filos�fico. Pode criar-se assim uma gera��o capaz de encarar os tremendos problemas do futuro e refazer o car�ter humano. Que tenha defeitos, admito. Assim, por exemplo, o art. 19 obriga amo e criado a darem parte � pol�cia dos seus ajustes, sob pena de pagar o amo trinta mil r�is de multa e de sofrer o criado cinco dias de pris�o; � isto �, ao amo tira-se o dinheiro, e ao criado ainda se lhe d� casa, cama e mesa. � irris�rio; mas pode emendar-se.

Quando os criados fizerem os regulamentos, n�o creiam que sejam t�o benignos com os amos. A primeira de suas disposi��es ser� naturalmente que toda a pessoa que contratar um criado, pagar-lhe-� certa quantia, a t�tulo de indeniza��o, pelo inc�modo de o tirar de seus lazeres. A segunda prover� � composi��o de um pequeno dicion�rio, em que se inscrevam as palavras duras, ou simplesmente imundas, que os criados poder�o dizer aos amos, quando estes achem um copo menos transparente. A terceira definir� os casos em que um gatuno possa perder paulatinamente o v�cio, servindo a um homem e fumando-lhe os charutos, com tal gradua��o que, antes de vinte meses, s� os fume comprados com o seu dinheiro.

Tudo isto quer dizer que a legisla��o, como a vida, � uma luta, cujo resultado obedece � influ�ncia mesol�gica. Oh! a influ�ncia do meio � grande. Que vemos no Rio Grande do Sul? Combate-se e morre-se para derrocar e defender um governo. Venhamos a Niter�i, mais pr�ximo do teatro l�rico. Trata-se de depor a intend�ncia. Re�nem-se os autores e propugnadores da id�ia, escrevem e assinam uma mensagem, nomeiam uma comiss�o, que sai a cumprir o mandato. A intend�ncia, avisada a tempo, est� reunida; talvez de casaca. A comiss�o sobe, entra, corteja, fala:

� Vimos pedir, em nome do povo, que a intend�ncia deponha os seus poderes.

A intend�ncia, para imitar algu�m, imita Mirabeau:

� Ide dizer ao povo, que estamos aqui pelos seus votos, e s� sairemos pela for�a das baionetas!

A comiss�o corteja e vai levar a resposta ao povo. O povo, na sua qualidade de Luiz XVI, exclama:

� � pois uma rebeli�o?

� N�o, real senhor, � uma conserva��o.

Tudo isto limpo, correto, sem �dio nem teimosia, antes do jantar, antes do voltarete, antes do sono. Se algu�m ficou sem pinga de sangue, n�o o perdeu na ponta de uma espada; foi s� por met�fora, uma das mais belas met�foras da nossa l�ngua, e ainda assim duvido que ningu�m empalidecesse. Talvez houvesse programa combinado. Quantos fatos na hist�ria, que, parecendo espont�neos, s�o filhos de acordo entre as partes!

16 de abril

H� hoje um eclipse do sol. Est� anunciado. Os astr�nomos chegaram a esta perfei��o de descrever antecipadamente esta casta de fen�menos, com o minuto exato do princ�pio e do fim, o primeiro e o �ltimo contato. N�o h� mais que aguard�-lo e mir�-lo, mais ou menos, segundo ele for total ou parcial. E assim se vai o melhor da vida, que � o inopinado. O incerto � o sal do esp�rito. Ah! bons tempos em que os eclipses n�o andavam por almanaques, e queriam dizer alguma coisa, tais quais os cometas, que eram um sinal da c�lera dos deuses. Os deuses foram-se levando a c�lera consigo. Assim pagaram as oferendas e os poemas que receberam de milh�es e milh�es de criaturas.

Tudo acabou. Eclipses, cometas, sonhos, entranhas de v�timas, n�mero treze, p� esquerdo, quantos cap�tulos rasgaram � alma humana, para substitu�-los por outros, exatos e verdadeiros, mas profundamente ins�pidos. Quando Jav� tomou conta do Olimpo, os homens tinham um resto dos antigos medos, e porventura criaram outros; mas o tempo os foi roendo. Pode ser que ainda agora haja algum, em vilas interiores, como as modas do ano passado; mas s�o restos de restos. O c�lculo substituiu a novidade, o an�ncio matou o espanto.

Que lhes diga isto em verso? Ah! leitor amigo, quisera faz�-lo, e, a rigor, n�o era dif�cil, contanto que as palavras, escritas em papelinhos e metidas dentro de um chap�u fossem baralhadas com algum furor, para n�o dissentir do verdadeiro nefelibatismo. Creio que � assim que se escreve. Se � de outro modo, paci�ncia; antes um erro de ortografia que de doutrina. A doutrina � sacudir bem o chap�u.

E, vamos l�, n�o faltaria mat�ria. Como se poderia contar, com verossimilhan�a, em simples prosa, o caso de Santa Catarina? O governador dissolveu um tribunal; divergem as opini�es no ponto de saber se ele podia ou n�o faz�-lo. Compreendo a diverg�ncia; s�o quest�es legais ou constitucionais, e os princ�pios fizeram-se para isto mesmo, para dividir os homens, j� divididos pelas paix�es e pelos interesses. N�o compreendo, por�m, os efeitos do ato. Os telegramas noticiam que o regozijo p�blico e a indigna��o p�blica s�o enormes. O governador � objeto de aclama��es e vitup�rios. Gargalhadas e ranger de dentes enchem o ar do Estado. Essas contradi��es s� o movimento pol�tico as poderia fazer aceitar.

Conv�m notar que, a princ�pio, julguei que era gracejo dos empregados do tel�grafo, e gracejo comigo. Cheguei a escrever cinco ou seis mofinas, com assinatura e estilo diferentes. Em uma delas cotejava essas not�cias contradit�rias com as da Havas, todas acordes, ainda quando esta ag�ncia passa da not�cia � profecia, como fez agora, a prop�sito de dois presos pol�ticos de Santiago, dos quais diz que �v�o ser condenados � morte�. � ter muita ou nenhuma confian�a nos tribunais.

Fora do caso catarinense, tudo o mais p�de ser dito em prosa, nesta prosa nua e ch�, como a alma do prosador. Que metro � preciso para contar que vamos perder os quiosques? Dizem que o conselho municipal trata de acabar com eles. N�o quero que morram, sem que eu explique cientificamente a sua exist�ncia. Logo que os quiosques penetraram aqui, foi nosso cuidado perguntar �s pessoas viajadas a que � que os destinavam em Paris, donde vinha a imita��o; responderam-me que l� eram ocupados por uma mulher, que vendia jornais. Ora, sendo o nosso quiosque um lugar em que um homem vende charutos, caf�, licor e bilhetes de loteria, n�o h� nesta diferen�a de aplica��o um saldo a nosso favor? A diferen�a do sexo � a primeira, e porventura a maior; a rua fez-se para o homem, n�o para a mulher, salvo a rua do Ouvidor. O charuto, t�o universal como o licor, � uma necessidade p�blica. N�o cito o caf�; � a bebida nacional por excel�ncia. Quanto ao bilhete de loteria, esse emblema da luta de Jac� com o anjo, que � como eu considero a ca�a � sorte grande, pode ser que a venda dele nos quiosques diminua os lucros do beco das Cancelas; mas o beco � triste, n�o solta foguetes quando lhe saem pr�mios, se � que lhe saem pr�mios. Os quiosques alegram-se quando os vendem, e � certo que os vendem em todas as loterias.

N�o obstante, l� v�o os quiosques embora. Assim foram as quitandeiras crioulas, as turcas e �rabes, os engraxadores de botas, uma por��o de neg�cios da rua, que nos davam certa fei��o de grande cidade levantina. Por outro lado, se Renan fala verdade, ganhamos com a elimina��o, porque tais cidades, diz ele, n�o t�m esp�rito pol�tico, ou sequer municipal; h� nelas muita tagarelice, todos se conhecem, todos falam um dos outros, mobilidade, avidez de not�cias, facilidade em obedecer � moda, sem jamais invent�-la. N�o; v�o-se os quiosques, e valha-nos o conselho municipal. Os defeitos ir-se-�o perdendo com o tempo. Ganhemos desde logo ir mudando de aspecto.

Sim, valha-nos o conselho; n�o perca tempo. J� perdeu algum, por ocasi�o de declarar um intendente haver sido convidado a votar contra a sua pr�pria opini�o. Logo que ele se sentou, ergueu-se outro intendente e fez outro discurso, aprovando o primeiro; veio terceiro, veio quarto; veio quinto. Salvo a paz de Vars�via, reminisc�ncia que esmaltou dois per�odos de um dos discursos, nada se disse que fosse diferente, e para casos destes � que se fizeram os apoiados gerais.

Valha-nos tamb�m a pol�cia, n�o autorizando a guarda particular que se lhe pediu, n�o sei para que lugar da cidade. Isto de guarda particular de um bairro, feita � custa dos moradores, at� parece ca�oada com o poder p�blico. H� opini�es contr�rias a esta; mas eu, no cap�tulo das opini�es, tenho verdadeiros desprop�sitos. N�o deferia o requerimento; diria que quem guardava a casa era eu, e s� eu responderia por ela.

Adeus. Vou continuar a leitura do �ltimo artigo do autor da esteriliza��o, em resposta aos que t�m deposto contra ele. � comprido e custa ler, por causa da muita fisiologia e anatomia de alcova, que exige palavras cient�ficas. Acho que ele faz bem em defender-se, mormente depois que uma das testemunhas assegurou que n�o sei que senhora, depois de operada, deixou de ter um filho para ter dois. Este efeito, se fosse verdadeiro, seria mais grave que o efeito moral. Era a desconsidera��o do processo. Contrariamente ao velho ad�gio, era ir buscar tosquia e sair lanzuda. Creio que estou ficando excessivamente cient�fico...

23 de abril

Eu, setivessede dar Hamlet em l�ngua puramente carioca, traduziria a c�lebre resposta do pr�ncipe da Dinamarca: Words, words, words, por esta: Boatos, boatos, boatos. Com efeito, n�o h� outra que melhor diga o sentido do grande melanc�lico. Palavras, boatos, poeira, nada, coisa nenhuma.

Toda a semana finda viveu disso, salvo a parte que n�o veio por boatos, mas por fatos, como o caso do coreto da Pra�a Tiradentes. Ningu�m boquejou nada sobre aquela constru��o; por isso mesmo deu de si uma por��o de conseq��ncias graves. Os boatos, por�m, andavam a rodo, os rumores iam de ouvido em ouvido, nas lojas, corredores, em casa, entre a p�ra e o queijo, entre o basto e a espadilha. Conspira��es, dissens�es, explos�es. Uns davam � distribui��o dos boatos a forma interrogativa, que � ainda a melhor de todas. Homem, ser� certo que X furtou um len�o? O ouvinte, que nada sabe, nada afirma; mas aqui est� como ele transmite a not�cia: � Parece que X furtou um len�o. Um len�o de seda? Provavelmente; n�o valeria a pena furtar um len�o de algod�o. A not�cia chega � Tijuca com esta forma definitiva: X furtou dois len�os, um de seda, e, o que � mais nojento, outro de algod�o, na Rua dos Ourives.

N�o me digam que imito assim a f�bula do marido e do ovo. Na f�bula, quando o marido chega a ter posto uma d�zia de ovos, h� ao menos o �nico ovo de galinha com que ele experimentou de manh� a discri��o da esposa. Aqui n�o h� sequer as casacas. E, se n�o, vejam o que me aconteceu quarta-feira.

Estava � porta de uma farm�cia, conversando com dois amigos sobre os efeitos prodigiosos do quinino, quando apareceu outro velho amigo nosso, o qual nos revelou muito � puridade que na quinta-feira ter�amos graves acontecimentos, e que nos acautel�ssemos. Quisemos saber o que era, instamos, rogamos, n�o alcan�amos nada. Graves acontecimentos. Ele falava de boa f�. Tinha a express�o ing�nua da pessoa que cr�, e a express�o piedosa da pessoa que avisa. Retirou-se; ficamos a conjeturar e chegamos a esta conclus�o, que os sucessos anunciados eram o desenlace fatal dos boatos que andavam na rua. Todas essas cegonhas bateriam as asas � mesma hora, convertidas em abutres, que nos comeriam em poucos instantes.

Para mist�rio, mist�rio e meio. Sa� dali, corri � casa de um armeiro, onde comprei algumas espingardas e bastante cartuchame. Al�m disso, com o pretexto de saudar o dia 21 de abril, alcancei por empr�stimo duas pe�as de artilharia. Assim armado, recolhi-me a casa, jantei, digeri, e meti-me na cama. Naturalmente n�o dormi; mas tamb�m n�o vi a aurora, nem o sol de quinta-feira. Portas e janelas fechadas. Nenhum rumor em casa, comidas frias para n�o fazer fogo, que denunciasse pelo fumo a presen�a de refugiados. Ensinei � fam�lia a senha mon�stica; and�vamos calados, interrompendo a sil�ncio de quando em quando para dizermos uns aos outros que era preciso morrer. Assim se passou a quinta-feira.

Na sexta-feira, pelas seis horas da manh�, ouvi tiros de artilharia. Ou � a salva de Tiradentes, disse � fam�lia, ou � a revolu��o que venceu. Sa� � rua; era a salva. Perguntei pelos mortos. Que mortos? Pelos acontecimentos? Nada houvera; toda a cidade vivera em paz. Assim se desvaneceram os sustos, filhos de boatos, filhos da imagina��o. Assim se desvane�am todos os demais ovos do marido de Lafontaine.

S� um fato se havia dado, como disse o do coreto. Fui � pra�a ver os destro�os, mas j� n�o vi nada; achei a est�tua e curiosos. Desandei, atravessei o Largo de S�o Francisco e desci pela Rua do Ouvidor, ao encontro do pr�stito de Tiradentes. Era pena; esta cidade tem, para Tiradentes, n�o s� a d�vida geral da glorifica��o, como precursor da independ�ncia e m�rtir da liberdade, mas ainda a d�vida particular do resgate. Ela festejou com pompa a execu��o do infeliz patriota, no dia 21 de abril de 1792, vestindo-se de galas e ouvindo cantar um Te-Deum.

Espiando para casa, lembrei-me que esse dia 21 era ainda anivers�rio de outra tentativa pol�tica. O povo desta cidade e os eleitores convocados revolucionariamente pelo juiz da comarca, reuniram-se na Pra�a do Com�rcio e pediram ao rei a constitui��o espanhola, inteiramente. A constitui��o foi dada na mesma noite, contra a vontade de algumas pessoas, e retirada no dia seguinte, depois de alguns lances pr�prios de tais crises, n�o por ser constitui��o, � visto que, dois anos depois, t�nhamos outra, � mas naturalmente por ser espanhola. De Espanha s� mulheres, guitarras e pintores.

Tudo s�o anivers�rios. Que � hoje sen�o o dia anivers�rio natal�cio de Shakespeare? Respiremos, amigos; a poesia � um ar eternamente respir�vel. Miremos este grande homem; miremos as suas belas figuras, terr�veis, her�icas, ternas, c�micas, melanc�licas, apaixonadas, var�es e matronas, donz�is e donzelas, robustos, fr�geis, p�lidos, e a multid�o, a eterna multid�o forte e movedi�a, que execra e brada contra C�sar, ouvindo a Bruto, e chora e aclama C�sar, ouvindo a Ant�nio, toda essa humanidade real e verdadeira. E acabemos aqui; acabemos com ele mesmo, que acabaremos bem. All is well that ends well.

7 de Maio

Abriu-se o Congresso Nacional. Uma folhinha que aqui tenho d� nas efem�rides este �nico acontecimento do dia 3 de maio do ano findo: �N�o se abriu o Congresso por falta de n�mero.� Curioso dia em que s� aconteceu n�o acontecer nada. N�o foi assim este ano. O Congresso abriu-se no pr�prio dia constitucional.

H� quem deseje saber o que dar� de si esta sess�o. No anterior reg�men j� havia a mesma curiosidade. Mas eu creio, como os antigos, que o futuro repousa nos joelhos dos deuses. Creio tamb�m nos deuses; mas, se privasse com eles, e soubesse o que nos dar� o Congresso este ano, n�o viria diz�-lo ao p�blico, nem ainda aos amigos. N�o porque seja avaro de not�cias, mas por medo ao c�digo penal, onde h� um artigo que castiga duramente as pessoas que adivinham o futuro; t�o duramente como as que aplicam drogas para excitar �dio ou amor. Por que somente o �dio e o amor, leitora, e n�o tamb�m a ambi��o e a prodigalidade? Amiga minha, s�o segredos dos c�digos.

Afinal, o melhor � fazer como os fregueses das galerias. Esses n�o querem saber o que vai sair das c�maras; pedem verbo, mas verbo grosso, discurso lacerado de apartes, apodos, viol�ncia, agita��o. A hist�ria das galerias n�o � das menos instrutivas. A princ�pio, ouviam caladas o que se passava, e desciam depois � rua para ver sa�rem os oradores. Um dia, intervieram com palmas. O presidente bradou-lhes c� de baixo:

� As galerias n�o podem dar sinais de agrado ou desagrado.

Repetindo-se mais tarde as manifesta��es, o presidente repetiu a declara��o, com o acr�scimo de que as faria evacuar, se continuassem. Quando elas viram que esta amea�a n�o era outra coisa, prosseguiram nos aplausos e nos rumores. Com o tempo estabeleceu-se um direito consuetudin�rio. Quando o presidente dizia que as galerias n�o podiam manifestar-se, era um modo de dividir o coro dos aplausos por estrofes. Mais a��o de artista que de autoridade. Elas tornavam a aplaudir, ele tornava a amea��-las, at� dar a hora.

� Est� levantada a sess�o.

De uma vez, apresenta-se � c�mara um minist�rio novo. A apresenta��o de um minist�rio era um daqueles banquetes romanos do bravo e guloso L�culo. Tanta era a gente, que n�o cabia nas galerias; desceu aos corredores laterais da c�mara, ao pr�prio recinto, que ficou atopetado. De repente, ergue-se um deputado, faz um discurso de vinte minutos e termina aclamando a Rep�blica. As galerias de cima e de baixo repetiram os vivas. Em v�o o presidente bradava que as galerias n�o podiam manifestar-se; tanto podiam que o faziam. Quando acabou a sess�o, um deputado do norte, saindo com alguns amigos, dizia-lhes: �Meus amigos, a rep�blica est� feita.� Meses depois, era verdade.

Parece que este ano a c�mara tranca o recinto aos estranhos, sem exce��o. Por que sem exce��o? Ni cet exc�s d'honneur, ni cette indignit�. Al�m de que n�o h� regra sem ela, sucede que a exce��o pode ser odiosa ou leg�tima, segundo os casos. Se houver uma s� pessoa admitida, e for eu, a exce��o � leg�tima. Id�ia banal, n�o �? Mas aqui est� a raz�o psicol�gica do meu dito. Quando a exce��o recai em Pedro ou Paulo, eu lan�o os olhos a Sancho e a Martinho, e a todos os nomes do calend�rio, e posso medir a injusti�a daquele �nico ponto no meio da extens�o vast�ssima dos homens. Quando, por�m, a escolha recai em mim, recolho-o em mim mesmo por um movimento involunt�rio; o mundo exterior desaparece, fico com a minha individualidade, com o meu direito anterior e superior. Todo eu sou regra; n�o acho, n�o posso achar injusti�a na escolha. Comigo est� o universo.

N�o falo das vantagens exteriores da unidade, t�o �bvias s�o. Isto de ser �nico admitido no recinto, estar ao p� de uma bancada, falar aos deputados que entram e saem, aos secret�rios que descem ao pr�prio presidente, chama logo a aten��o da galeria. E eu gosto da galeria; todos os meus atos n�o t�m outro fito sen�o ela; deleito-me com ser visto, apontado, admirado. Da� a variedade das minhas atitudes. N�o h� uma s� que seja natural. �s vezes cruzo os bra�os e derreio a cabe�a, outras meto as m�os nas algibeiras das cal�as; chap�u na anca, ou seguro pela aba, na altura do est�mago; quatro dedos no bolso esquerdo do colete. Note-se � e esta � a minha arte suprema, � em qualquer dessas atitudes ningu�m dir� que olho para a galeria, e a verdade � que n�o miro outra coisa. Ela � tudo; na��o, opini�o p�blica, hist�ria e posteridade s�o outros tantos sin�nimos com que eu sirvo a minha castel�.

Excetue-me a c�mara, e ter� dado um passo justo. Em paga, digo-lhe que h� muito que fazer, e que ela o far�, com o esfor�o de que � capaz. Li que se fizeram reuni�es de governistas e de oposicionistas. N�o gosto destas denomina��es vagas, mas n�o h� ainda outras, porque n�o h� partidos que tragam os seus nomes pr�prios, e com eles as suas id�ias, e por elas o seu apoio ou a sua oposi��o. � talvez cedo; o tempo os trar�, com os seus programas. N�o � que eu exija a execu��o integral dos programas. Execu��o integral s� a pe�o aos poetas, quando se disp�em a cantar alguma, a c�lera de Aquiles, arma virumque, a primeira desobedi�ncia do homem, os ritos semib�rbaros dos piagas, ou o her�i daquela nossa j�ia chamada Uruguai. Esses h�o de dar-me para ali o que prometem, e em belos versos, � coisa que n�o exijo dos partidos, nem belos versos nem bela prosa.

14 de maio

Ontemdemanh�,descendo ao jardim, achei a grama, as flores e as folhagens transidas de frio e pingando. Chovera a noite inteira; o ch�o estava molhado, o c�u feio e triste, e o Corcovado de carapu�a. Eram seis horas; as fortalezas e os navios come�aram a salvar pelo quinto anivers�rio do Treze de Maio. N�o havia esperan�as de sol; e eu perguntei a mim mesmo se o n�o ter�amos nesse grande anivers�rio. � t�o bom poder exclamar: �Soldados, � o sol de Austerlitz!� O sol �, na verdade, o s�cio natural das alegrias p�blicas; e ainda as dom�sticas, sem ele, parecem minguadas.

Houve sol, e grande sol, naquele domingo de 1888, em que o Senado votou a lei, que a regente sancionou, e todos sa�mos � rua. Sim, tamb�m eu sa� � rua, eu o mais encolhido dos caramujos, tamb�m eu entrei no pr�stito, em carruagem aberta, se me fazem favor, h�spede de um gordo amigo ausente; todos respiravam felicidade, tudo era del�rio. Verdadeiramente, foi o �nico dia de del�rio p�blico que me lembra ter visto. Essas mem�rias atravessaram-me o esp�rito, enquanto os p�ssaros treinavam os nomes dos grandes batalhadores e vencedores, que receberam ontem nesta mesma coluna da Gazeta a merecida glorifica��o. No meio de tudo, por�m, uma tristeza indefin�vel. A aus�ncia do sol coincidia com a do povo? O esp�rito p�blico tornaria � sanidade habitual?

Chegaram-me os jornais. Deles vi que uma comiss�o da sociedade que tem o nome de Rio Branco, iria levar � sepultura deste homem de Estado uma coroa de louros e amores-perfeitos. Compreendi a filosofia do ato; era relembrar o primeiro tiro vibrado na escravid�o. N�o me dissipou a melancolia. Imaginei ver a comiss�o entrar modestamente pelo cemit�rio, desviar-se de um enterro obscuro, quase an�nimo, e ir depor piedosamente a coroa na sepultura do vencedor de 1871. Uma comiss�o, uma grinalda. Ent�o lembraram-me outras flores. Quando o Senado acabou de votar a lei de 28 de setembro, ca�ram punhados de flores das galerias e das tribunas sobre a cabe�a do vencedor e dos seus pares. E ainda me lembraram outras flores...

Estas eram de climas alheias. Primrose day! Oh! se pud�ssemos ter um primrose day! Esse dia de primavera � consagrado � mem�ria de Disraeli pela idealista e po�tica Inglaterra. � o da sua morte, h� treze anos. Nesse dia, o pedestal da est�tua do homem de Estado e romancista � forrado de seda e coberto de infinitas grinaldas e ramalhetes. Dizem que a primavera era a flor da sua predile��o. Da� o nome do dia. Aqui est�o jornais que contam a festa de 19 do m�s passado. Primrose day! Oh! quem nos dera um primrose day! Come�ar�amos, � certo, por ter os pedestais.

Um velho autor da nossa l�ngua, � creio que Jo�o de Barros; n�o posso ir verific�-lo agora; ponhamos Jo�o de Barros. Este velho autor fala de um prov�rbio que dizia: �os italianos governam-se pelo passado, os espanh�is pelo presente e os franceses pelo que h� de vir.� E em seguida dava �uma repreens�o de pena � nossa Espanha�, considerando que Espanha � toda a pen�nsula, e s� Castela � Castela. A nossa gente, que dali veio, tem de receber a mesma repreens�o de pena; governa-se pelo presente, tem o porvir em pouco, o passado em nada ou quase nada. Eu creio que os ingleses resumem as outras tr�s na��es.

Temo que o nosso regozijo v� morrendo, e a lembran�a do passado com ele, e tudo se acabe naquela frase estereotipada da imprensa nos dias da minha primeira juventude. Que eram afinal as festas da independ�ncia? Uma parada, um cortejo, um espet�culo de gala. Tudo isso ocupava duas linhas, e mais estas duas: as fortalezas e os navios de guerra nacionais e estrangeiros surtos no porto deram as salvas de estilo. Com este pouco, e certo, estava comemorado o grande ato da nossa separa��o da metr�pole.

Em menino, conheci de vista o Major Valadares; morava na Rua Sete de setembro, que ainda n�o tinha este t�tulo, mas o vulgar nome de Rua do Cano. Todos os anos, no dia 7 de setembro, armava a porta da rua com cetim verde e amarelo, espalhava na cal�ada e no corredor da casa folhas da Independ�ncia, reunia amigos, n�o sei se tamb�m m�sica, e comemorava assim o dia nacional. Foi o �ltimo abencerragem. Depois ficaram as salvas do estilo.

Todas essas minhas id�ias melanc�licas bateram as asas � entrada do sol, que afinal rompeu as nuvens, e �s tr�s horas governava o c�u, salvo alguns trechos onde as nuvens teimavam em ficar. O Corcovado desbarretou-se, mas com tal fastio, que se via bem ser obriga��o de vassalo, n�o amor da cortesia, menos ainda amizade pessoal ou admira��o. Quando tornei ao jardim, achei as flores enxutas e l�pidas. Vivam as flores! Gladstone n�o fala na C�mara dos Comuns sem levar alguma na sobrecasaca; o seu grande rival morto tinha o mesmo v�cio. Imaginai o efeito que nos faria Rio Branco ou Itabora� com uma rosa ao peito, discutindo o or�amento, e dizei-me se n�o somos um povo triste.

N�o, n�o. O triste sou eu. Provavelmente m� digest�o. Comi favas, e as favas n�o se d�o comigo. Comerei rosas ou primaveras, e pedir-vos-ei uma est�tua e uma festa que dure, pelo menos, dois anivers�rios. J� � demais para um homem modesto.

21 de Maio

Tudo se desmente neste mundo, e o s�culo acaba com os p�s na cabe�a. Podia acabar pior. Quem se n�o lembra com saudades do �ltimo ver�o? Dias frescos, chuvas temperando os dias de algum calor, e obitu�rio pobre. Chegou mar�o, abotoou abril, desabotoou maio, parecia que entr�vamos em um per�odo de del�cias ainda maiores. Justamente o oposto. Calor, doen�as, grande obitu�rio.

A pr�pria ci�ncia parece n�o saber a quantas anda. Tempo h� de vir em que o xarope de Cambar� n�o cure, e talvez mate. J� agora s�o os bondes que empurram as bestas; esperemos que os passageiros os n�o puxem um dia. Quando �ramos alegres, � o que d� no mesmo, quando eu era alegre, � aconteceu que o g�s afrouxou enormemente. Como se despicou o povo da calamidade? Com um mote: O g�s virou lamparina. Ouvia-se isto por toda a parte, lia-se no meio de grande riso p�blico. L� v�o trinta anos. Agora nem j� sabemos pagar-nos com palavras. Quando, h� tempos, o g�s teve um pequeno eclipse, levantamos as m�os ao c�u, clamando por miseric�rdia.

A semana foi cheia desde os primeiros dias. Novidades de todos os tamanhos e cores. Para os que as buscam por todos os recantos da cidade, deve ter sido uma semana trapalhona; para mim, que n�o as procuro fora da rua do Ouvidor, a semana foi interessante e pl�cida. Pode ser que erre; mas ningu�m me h� de ver pedir not�cias em outras ruas. �s vezes perco uma verdade da rua da Quitanda por uma inven��o da rua do Ouvidor; mas h� nesta rua um cunho de boa roda, que d� mais brilho ao exato, e faz parecer exato o inventado. Acresce a qualidade de pasmat�rio. As ruas de simples passagem n�o t�m gra�a nem excitam o desejo de saber se h� alguma coisa. O pasmat�rio obriga ao cotejo. Enquanto um grupo nos d� uma not�cia, outro, ao lado, repete a not�cia contr�ria; a gente coteja as duas e aceita uma terceira.

Foi o que me aconteceu anteontem. Deram-me duas vers�es do que se passava na c�mara dos deputados; segundo uns, n�o se estava passando nada; segundo outros, passava-se o diabo. Cheguei a ouvir citar o ano de 93, como sendo primeiro anivers�rio secular do Terror. E diziam-me que, assim como h� bodas de prata, bodas de ouro, bodas de diamante, havia tamb�m bodas de sangue, as bodas de sangue da liberdade: eram os cem anos da Conven��o. Achei plaus�vel; corri � c�mara. Primeira decep��o: n�o vi Robespierre. Discutia-se uma quest�o, e a c�mara resolvia continuar no dia seguinte, ontem, em comiss�o geral. Eram quatro horas e meia da tarde; a sess�o come�ara ao meio-dia.

Sa� murcho e contente. Murcho por n�o achar nada, e contente por n�o serem as comiss�es gerais daqui semelhantes �s da c�mara dos comuns, que s�o medonhas. N�o h� d�vida que a c�mara dos comuns governa; mas governa a troco de qu�? Governar assim e matar-se � a mesma coisa.

Para n�o ir mais longe, aqui est� a sess�o do dia 24 de mar�o �ltimo, em que houve comiss�o geral. Principiou pela sess�o ordin�ria, �s duas horas e cinco minutos da tarde. O chefe da oposi��o perguntou ao primeiro ministro se podia responder a um voto de censura que lhe faria em dia que designou; respondeu o Sr. Gladstone; e come�ou a discuss�o de um bill financeiro. Ouviram-se cinco ou seis discursos; �s  tr�s e pouco, entrou em discuss�o outro bill, que levou at� perto de sete horas. Interrompeu-se a sess�o �s  sete, jantaram ali mesmo, e continuou �s  nove. Tratou-se ent�o do subs�dio aos deputados; ouviram-se sete discursos at� que caiu o projeto, votando 276 contra e 229 a favor. Era meia-noite. Parece que estava ganho o dia; oito horas de trabalho (descontadas as do jantar) eram de sobra. Mas � n�o conhecer a c�mara dos comuns, que possui o g�nio do t�dio.

Era meia-noite; foi ent�o que a c�mara se converteu em comiss�o geral, para discutir o qu�? O bill de for�as de terra. � uma e meia da noite, rejeitava o. art. 2�, por 234 votos contra 110. Antes das duas rejeitava uma emenda; eram tr�s horas, discutiam j� o art. 7�; �s  quatro, o art. 8�; �s  quatro e meia estava discutido e votado o art. 9�. Seguiu-se o art. 10, depois o art. 11. Querendo um Sr. Bartley propor uma coisa fora de prop�sito, gritaram-lhe que era obstru��o. Obstru��o de madrugada! Votou-se o encerramento entre aplausos, por uma maioria de 154 votos.

Eram cinco horas e um quarto da manh�.

N�o contesto que a c�mara dos comuns governe; mas arrenego de tal governo. Eu, que n�o governo, passei a noite de 24 de mar�o e todas as outras debaixo de len��is. A primeira coisa que eu propunha, se fosse ingl�s, era a reforma de tal c�mara. Uma institui��o que me obriga a cuidar dos neg�cios p�blicos desde as duas horas e cinco minutos da tarde at� �s  cinco e um quarto da manh�, com intervalo de duas horas para comer, pode ser muito boa a outros respeitos; mas n�o � institui��o de liberdade. Quando � que esses homens v�o ao teatro l�rico?

28 de Maio

Depois da semana da cria��o, n�o houve certamente outra t�o cheia de acontecimentos como a que ontem acabou. E ainda a semana da cria��o come�ou por fazer a luz, separ�-la das trevas e compor o primeiro dia, enquanto que esta come�ou por apagar o sol do primeiro dia e fazer a sess�o secreta do senado. Verdade � que o senado n�o tinha nada que criar, mas destruir.

Quando eu cheguei � rua do Ouvidor, segunda-feira, n�o levava a menor esperan�a de saber coisa nenhuma. Trevas s�o trevas. Segredo � segredo. Quando muito, o senado comunicaria o seu voto ao Sr. Governo; podia ser at� que o fizesse com tinta invis�vel ou por sinais. S� no dia seguinte saber�amos da recusa ou da aceita��o do prefeito, n�o por indiscri��o do senado, mas por declara��o do governo. Compreendi e esperei.

Nisto cai a not�cia de que o Almirante Barroso naufragara no mar Vermelho. Era j� uma destrui��o; a semana parecia querer ser destrutiva. Mas, enfim, que valia a perda de um navio, t�o longe da casa Bernardo, para quem esperava saber se o prefeito ficava ou n�o? Quantos navios n�o se perdem por esses mares de Cristo. Deixei que o nosso fosse ter com as carro�as de Fara�, n�o desestimei que as vidas houvessem escapado, e meti-me outra vez em mim, � espera da solu��o. Cheguei a desconfiar que o naufr�gio era uma alegoria. O senado seria o mar, o prefeito o navio. A salva��o das vidas devia ser a reserva que o senado faria da integridade moral e da capacidade intelectual do funcion�rio. O que me confirmou esta ilus�o foi a indiferen�a com que toda a gente falava do naufr�gio. Mas em breve soube que n�o podia ser alegoria; a sess�o continuava e o segredo com ela.

Sintoma interessante; ningu�m apostava. Esta cidade que, durante l'ann�e terrible (1890-91), apostou sobre todas as coisas do c�u e da terra, n�o apostava em rela��o ao desfecho da sess�o secreta. Certeza n�o era. Ao contr�rio, justamente, quando h� certeza � que se aposta melhor,porque sempre se encontram esp�ritos tr�pegos de d�vida e cobi�osos de ganho. Concluir da� que perdemos o senso da aposta � concluir do fastio de uma hora para a desnecessidade da alimenta��o. � n�o acompanhar o movimento dos bancos esportivos. � n�o ver por essas ruas um pobre homem aleijado das pernas, dentro de um carrinho, que outro homem puxa. Pedia esmola e achava aberta a bolsa da caridade; mas entendeu um dia destes que, inv�lido das pernas, n�o o estava das m�os, e podia trabalhar em vez de pedir. Vende bilhetes de loteria, e ou�o dizer que premiados.

Afinal chegou a not�cia da rejei��o do prefeito por treze votos. N�o lhe dei credito por se tratar de sess�o secreta; na ter�a-feira, por�m, a not�cia era confirmada e sabia-se tudo, os nomes dos senadores presentes, dos que falaram, dos que votaram contra e pr�, e at� da hora em que a sess�o acabou.

Espanto do senado. Como � que uma delibera��o, passada em segredo, assim se tornava p�blica? Realmente, era de estranhar. Mas tudo se explica neste mundo, ainda o inexplic�vel. Um fil�sofo do s�culo atual, para acabar com as tentativas de explicar o inexplic�vel chamou-lhe incognosc�vel, que parece mais definitivamente fora do alcance do homem. N�o importa; sempre h� de haver curiosos. E depois as delibera��es humanas n�o s�o o mesmo que a origem das coisas. N�o s�o precisas grandes metaf�sicas para conhec�-las; basta um fon�grafo.

Os primeiros fon�grafos que se conheceram foram as paredes, por terem ouvidos que tudo colhem, mem�ria para ret�-lo, e boca para repeti-lo. Ainda agora s�o excelentes cr�nicas, e as do senado magn�ficas, por serem obra antiga e forte, datadas do tempo em que se constru�a para um s�culo. Depois das paredes, veio o barbeiro do rei Midas, que confiou ao buraco aberto na terra a not�cia das orelhas do fregu�s. Quem n�o a supusera eternamente enterrada? Nasceram os cani�os, vieram os ventos, e a not�cia foi contada e sabida deste mundo. Afinal, surgiu Edison, com o seu aparelho, guardando falas e cantigas e transmitindo-as de um mar a outro e de um c�u a outro c�u. Os pr�prios ventos s�o mensageiros. Homero p�e na boca dos seus z�firos coisas bonitas e exatas. Podemos crer que, antes mesmo das paredes, j� eles eram fon�grafos.

A� tem o senado muito onde achar a explica��o que procura. Se nenhuma lhe servir, tem ainda aqui uma anedota.

H� longos anos, um deputado, � chamemos-lhe Buarque de Macedo, � antes de ir para a c�mara foi � casa de um dos ministros. Discutia-se, creio que o or�amento, e o deputado, membro da respectiva comiss�o, quis entender-se com o ministro da pasta. Achou-o pouco diligente, pouco falador, muito distra�do, e adiando tudo; respondia-lhe que depois, que iria � c�mara, l� se entenderiam... E o deputado insistia; era conveniente assentarem ali mesmo certos pontos. Pois sim, tornava-lhe o ministro, mas n�o era sangria desatada; falariam na c�mara, iria cedo, �s 2 horas ou antes, talvez antes... De repente, o deputado:

� Por que me n�o h� de voc� dizer tudo?

� Tudo que?

� Ora, tudo. Eu sei que voc�s resolveram pedir demiss�o.

Espanto do ministro. Como � que ele podia saber de uma resolu��o concertada na v�spera, � noite, em tanto segredo, que os ministros prometeram n�o confi�-la nem �s pr�prias mulheres? E o deputado sorria. E ainda sorria quando me referia o caso, anos depois, falando de segredos pol�ticos.

Confesso que esta anedota � que me levou a estudar e descobrir a natureza do segredo pol�tico. O segredo pol�tico � uma solit�ria do ouvido, microsc�pica durante os primeiros segundos, a qual atinge o m�ximo desenvolvimento em um prazo que varia de dez a sessenta minutos. As est�reis s�o poucas. As fecundas reproduzem-se logo que chegam � maioridade. O ovo interna-se, sobe ao c�rebro, desce, passa ao laringe, sai pela boca e cai no primeiro ouvido que passa, onde cresce e concebe de igual maneira. Sobre a causa dessa marcha imediata do ovo, n�o posso dizer nada com seguran�a. Cada solit�ria engendra, termo m�dio, vinte e cinco. H� casos de tr�s ou quatro apenas, mas s�o raros; tamb�m os h� de duzentos e trezentos, mas s�o rar�ssimos.

A verdade � que o segredo foi publicado integralmente, e n�o s� se soube da vota��o, como dos seus elementos e tr�mites. � prov�vel que a mesma coisa aconte�a com o prefeito novo, pela raz�o cient�fica exposta acima. Ningu�m tem culpa das solit�rias que traz e ainda menos dos seus costumes.

4 de junho

Toda uma semana episcopal. Em v�o a ma�onaria procura dominar os acontecimentos. Imitando o seu grande hom�nimo S. Paulo expediu esta semana a Primeira aos Cor�ntios. Grande alarma em Jerusal�m; mas o jovem Estado, copiando o modelo evang�lico, perguntou de longe se tamb�m ele n�o � ap�stolo, se n�o pode viver sobre si, espalhar a palavra da ordem e reger os seus conversos. E porque Pedro (em linguagem ma��nica Macedo Soares) inquirisse dos seus t�tulos, S. Paulo �resistiu-lhe na cara�, tal qual o ap�stolo das gentes. Assim se repete a hist�ria.

Parece neg�cio de fam�lia, e � mais extenso que ela. J� se aventa a id�ia de ter cada Estado o seu Grande Oriente particular. A p�tria paulista ter� assim inspirado as demais p�trias, e a ma�onaria, em vez de um sol �nico, passar� a ser uma constela��o. Perder-se-�, ma�onicamente falando, a unidade nacional. Talvez que este fen�meno de violenta paix�o auton�mica seja efeito da excessiva centraliza��o de outro tempo. � natural e �til, uma vez que tudo se passe como nas fam�lias amigas, e n�o entre vizinhos rabugentos.

Mas tudo isso � nada ao p� da troca do bispo D. Jos� pelo arcebispo D. Jo�o. Eis a nota principal da semana. Apesar da separa��o da Igreja e do Estado, viviam ambos em tal conc�rdia, que antes pareciam casados de ontem, que divorciados desta manh�. O esposo dava uma pens�o � esposa; a esposa orava por ele. Quando se viam, n�o eram s� corteses, eram amigos, falavam talvez com saudades do tempo em que viveram juntos, sem todavia querer tornar a ele. A raz�o do esposo � um princ�pio, a da esposa � outro princ�pio. N�o sei o nome, mas ainda me lembra a figura de um velho padre que encontrei no largo da Carioca, no dia em que apareceu o decreto abolindo o padroado. Era a felicidade pura; tinha um grande riso nos olhos. N�o parecia ter mais de vinte anos e devia or�ar por sessenta.

A substitui��o do prelado fluminense veio alterar a harmonia das partes. Artigos e discursos, mo��es e projetos de lei, representa��es ao papa, uma ventania de c�leras soprou por toda esta superf�cie tranq�ila, e as ondas ergueram-se cheias de furor. Renasceu a quest�o religiosa, outros dizem que pol�tica; ponhamos eclesi�stica, palavra que abrange ambos os sentidos, e cada um pode ler a seu modo. N�o faltou quem acudisse pela liberdade da esposa na escolha dos seus servos, nem quem replicasse que n�o � de boa vizinhan�a a escolha de servos que fa�am barulho. Outros n�o falaram em liberdade, mas em intrigas; outros, por�m, citaram alcunhas feias e amea�aram os donos delas, coisa esta que nos empurra da igreja para a sacristia.

Sim; h� j� um cheiro de sacristia pelos jornais fora, e n�o de sacristia patusca somente, sen�o tamb�m penosa e dura. H� velhas cinzas mornas. N�o ouso falar em �dios, mas rusgas. Que n�o passasse disso, � o que eu quisera, porque, em suma, posto que menos nobre, a causa seria tamb�m menos gr�vida de conseq��ncias. Rusgas de sacristia devem ser como bens de sacrist�o: cantando v�m, cantando v�o. Oxal� pudesse ser isto apenas!

O pior � que o povo de Pira�, tendo lido nos nossos jornais que o bispo fora deposto, entendeu ao p� da letra a not�cia e dep�s o vig�rio. O telegrama diz: �Grande massa de povo�, express�o que, tendo em vista a dist�ncia, pode referir-se a vinte ou trinta var�es resolutos, peitos largos. No interior da Bahia, onde se deu igual a��o, mas com diferente v�tima, porque o vig�rio, n�o esperando que o depusessem, pegou em mil pessoas e desterrou um pastor protestante, � na Bahia, digo, esse n�mero de mil pessoas n�o subiu provavelmente dos mesmos trinta, peitos largos, resolutos. Mas a dist�ncia, sendo maior, grande tinha de ser o n�mero, telegraficamente falando, para dar uma id�ia adequada da indigna��o p�blica. N�o se me d� de crer que o que faz tamanhos os ex�rcitos europeus, � o Atl�ntico.

Com outros mil homens, um fan�tico de Entre-Rios, no mesmo Estado, anda aconselhando aos contribuintes que n�o paguem impostos. J� destro�ou cinq�enta policiais, matando alguns; marcharam contra ele for�as de linha. N�o deis a C�sar o que � de C�sar, tal � a m�xima desse chefe de seita. Se � certo o que ou�o, acharia aqui grande safra de almas; dizem at� que h� fi�is a essa doutrina, que absolutamente a ignoram, nos termos formulados; cedem ao instinto, ao forte instinto de enganar o Estado. Sim, a moral � assaz variada, como as esta��es, os climas, as cores, as disposi��es de esp�rito. A minha � tal, que paro aqui mesmo.

11 de junho

Antes de relatar a semana, costumo passar pelos olhos os jornais dos sete dias. � um modo de refrescar a mem�ria. Pode ser tamb�m um recurso para achar uma id�ia que me falha. As id�ias est�o em qualquer coisa; toda a quest�o � desco­bri-las.

H� algumas id�ias boas nesta casaca, dizia o alfaiate de um grande poeta. Es liegen einige gute Ideen in diesen Rocke. Quantas n�o acharia ele em uma loja de casacas da rua Sete de Setembro... N�o digo o n�mero, para me n�o suporem s�­cio comandit�rio; mas procurem nos an�ncios. Note-se que nada houve mais ca­sual do que a achada deste an�ncio, porque a semana foi, entre todas, cheia de lan­ces, debates, c�leras, acontecimentos, not�cias e boatos; tais coisas n�o deixam tem­po � leitura de an�ncios. Mas eu ia a do­brar uma folha para passar � outra, quan­do ele me chamou a aten��o com as suas grossas letras normandas, e um t�tulo por cima.

Nada mais simples: �Casacas e cole­tes para todos os corpos; alugam-se na rua... � Isto s�, e n�o foi preciso mais para esquecer por instantes o resto do mun­do. Uma pedrinha, uma folha seca, um fiapo de pano, tem dessas virtudes de ex­clus�o e absor��o! Eis aqui uma pequena concha velha, enegrecida, sem valor nem gra�a; foi arrancada a um sof� de con­cha � como eles se faziam antigamente � de uma ch�cara sem cultura, em que h� uma casa sem concerto, paredes sem caio, varanda sem limpeza, tudo debaixo de mui­tos anos sem regresso. Muitos, mas n�o tantos que n�o caibam na pequena concha enegrecida, que os encerra a todos, com os seus �bitos e n�pcias, alegrias e deses­peros. Tornemos �s casacas e coletes de aluguel.

Quando acabei de ler o an�ncio, en­trei a malucar. Imaginei um baile, para o qual fossem convidados cem homens que n�o possu�ssem casaca, nem dinheiro para mandar faz�-la. Comparecimento obriga­do; corriam todos � loja; onde havia jus­tamente cem casacas e cem coletes. � muita imagina��o; mas eu n�o estou do­sando um elixir para c�rebros pr�ticos. Estou contando o que me aconteceu. Na­turalmente, os fregueses n�o correram a uma; como, por�m, tinham poucas horas, houve certa aglomera��o. Os matinais levaram as casacas mais adequadas; os re­tardat�rios sa�am menos bem servidos. De quando em quando, um trecho de di�logo:

� Aquela que aquele sujeito est� vestindo, � que me servia.

� Se ele n�o ficar com ela...

� Fica, mandou embrulhar.

� N�o importa; as casacas agora usam-se um pouco folgadas. As pessoas magras, como o senhor, precisam justamen­te de arredondar a figura. Menino, em­brulha esta casaca. Que � que o senhor quer?

� Acho esta casaca demasiado estrei­ta, comprime-me as costelas; a gola en­forca-me...

� Mas ent�o o senhor queria meter o seu corpo num saco? As pessoas cheias precisam disfar�ar qualquer excesso de gordura vestindo casacas apertadas. De­mais, � a moda.

� Assim, com estas abasinhas pendi­das l� atr�s?

� � boa! Ent�o as abas deviam es­tar adiante? As abas da casaca n�o s�o feitas para os olhos da pessoa que a p�e, mas para os dos outros. As suas est�o mui­to bem. Veja-se a este espelho, assim, vol­te-se, volte-se mais, mais...

� N�o posso mais, e n�o vejo nada.

� Mas, vejo eu, senhor!

A �ltima casaca foi alugada sem exa­me, n�o havia onde escolher, e o compare­cimento era obrigado.

Corri a espiar o baile. Os cem convi­dados tinham acabado de dan�ar uma polca e passeavam pelos sal�es as suas casacas alugadas. Vi ent�o uma coisa �nica. Me­tade das casacas n�o se ajustavam aos cor­pos. Vi corpos grossos espremidos em ca­sacas estreitas; outros, magros, nadavam dentro de casacas infinitas. Alguns, de pe­quena estatura, traziam abas que pareciam buscar o ch�o, enquanto as golas tendiam a subir pelos lustres. Outros, de tronco ex­tenso e pernas compridas, pareciam estar de jaqueta, tal era a exig�idade das abas. E jaqueta curta, porque mal passava da metade do tronco.

Deu-me vontade de apitar, como nos teatros, quando se faz muta��o � vista, a fim de ver trocadas as casacas e restitu�da a ordem e a eleg�ncia; mas nem tinha apito comigo, nem era certo que a troca das casacas melhorasse grandemente o es­pet�culo. Quando muito aliviaria alguns corpos e daria a outros a sensa��o de es­tarem realmente vestidos; nada mais. Ha­via satisfa��o relativa em todos, posto que nem sempre; uma ou outra vez, detinham-se, lan�avam um olhar r�pido sobre si e fi­cavam embara�ados, ou ent�o buscavam um canto ou um v�o de janela. Consolava-os a vista dos companheiros; persuadiam-se talvez de que era uma epidemia de casacas mal ajustadas. A m�sica chamava a dan­�a; todos corriam a convidar pares.

Quando a minha imagina��o cansou, deixei o baile e recolhi-me ao gabinete. Vi as folhas de papel diante de mim, esperan­do as palavras e as id�ias. E eu tive uma id�ia. Sim, considerei a vida, remontei os anos, vim por eles abaixo, remirei o es­pet�culo do mundo, o visto e o contado, cotejei tantas coisas diversas, evoquei tan­tas imagens complicadas, combinei a mem�ria com a hist�ria, e disse comigo:

� Certamente, este mundo � um baile de casaca alugadas.

Meditei sobre essa id�ia, e cada vez me pareceu mais verdadeira. Os descon­certos da vida n�o t�m outra origem, se­n�o o contraste dos homens e das casacas. H� casacas justas, bem postas, bem cabi­das, que valem o pre�o do aluguel; mas a grande maioria delas divergem dos corpos, e porventura os afligem. A dan�a dissimula o aspecto dos homens e faz esquecer por instantes o constrangimento e o t�dio. Acresce que o uso tem grande influ�ncia, acabando por acomodar muitos homens � sua casaca.

Condo�do desse melanc�lico espet�culo, Jesus achou um meio de corrigir os des­concertos, removendo deste mundo para o outro a esperan�a das casacas justas. Bem-aventurados os mal encasacados, porque eles ser�o vestidos no c�u! Profetas h�, por�m, que entendem que o mal do mundo deve ser curado no pr�prio mundo. E mui­tos foram os alvitres; v�rios os processos, alguns n�o provaram nada, outros dizem que ser�o definitivos. Pode ser; mas o mal est� no �nico ponto de serem alugadas as casacas. Que a Fortuna ou a Provid�n­cia, com a melhor tesoura do globo, talhe as casacas por medida e as prove uma e muita vez no corpo de cada pessoa, e n�o as haver� largas nem estreitas, longas nem curtas, todas parecer�o ter sido cosidas na pr�pria pele dos convidados. Sem isso, o baile ser� espl�ndido pela profus�o de lu­zes e flores, pelo servi�o de boca, pela mul­tid�o e variedade das dan�as, mas n�o ha­ver� perdido este pecado original de ser ele um baile de casacas alugadas.

18 de junho

O amor produziu duas trag�dias esta semana. N�o as fez s�, mas de colabora��o com o ci�me. S�o dois grandes mestres. O �dio tamb�m cultiva o g�nero, com vigor e freq��ncia.

H� ambi��es tr�gicas; s�o as do ramo nobre da fam�lia; porque h� outros pacientes, inertes, com horror ao sangue. Vede a inveja; tamb�m essa tem cal�ado o coturno dos grandes p�s de S�focles. S� a amizade, branda e polida, restringe-se � com�dia de sal�o; s� ela empulha sem matar, morde sem ferir, debica sem ofender, e, dada a hora de dormir, vai para a cama sonhar tranq�ilamente com Castor e P�lux.

Mas a amizade � �nica. O resto das afei��es n�o se contenta com obras m�dias. A planta humana precisa de sangue, como a outra precisa de orvalho. Toda a gente lastima a morte de Abel, por um h�bito de escola e de educa��o; mas a verdade � que Caim deu um forte exemplo �s gera��es futuras. Tendo apresentado os primeiros frutos da sua lavoura ao Senhor, como Abel apresentara as prim�cias do seu rebanho, n�o podia tolerar que o Senhor s� tivesse olhos ben�volos para o irm�o, e, n�o podendo matar o Senhor, matou o irm�o. Daqui nasceu a iniq�idade, que � o grano salis deste mundo.

Quando eu n�o tenho que fazer, entro a pensar no sangue, que tem corrido, desde a origem dos s�culos, e concluo que enchia bem uma pipa. N�o digo o tamanho da pipa; n�o os quero assustar. N�o venho aqui para meter medo a ningu�m, mas para conversar tranq�ilamente sobre os casos ocorridos, certo de n�o enfadar, porque o leitor tem a porta aberta para ir-se embora quando quiser.

H� um bom costume na �ndia, que eu quisera ver adotado no resto do mundo, ou pelo menos aqui no Rio de Janeiro. A visita n�o � que se despede; � o dono da casa que a manda embora. Oh! rara penetra��o oriental! Morte, oh! morte certa dos amoladores, que o diabo envia a quem quer tentar e perder! Pois esse costume, t�o f�cil de transportar para o ocidente, s� existe aqui no caso de leituras aborrecidas, e � muito mais sum�rio: o ma�ado despede o ma�ador, com um piparote, sem que ele tenha not�cia do desastre.

Tornemos ao sangue. As rivalidades n�o s�o s� deste mundo, mas ainda do outro. Um deputado queixava-se h� dias de n�o ver em discuss�o o projeto que oferecera para um monumento a Deodoro, ao passo que caminhara o projeto de monumento a Benjamim Constant. A comiss�o explicou a demora e prometeu dar parecer. Outro deputado falou a respeito de Tiradentes, pedindo para outro precursor da Independ�ncia os louros da posteridade. Essa compet�ncia na distribui��o p�stuma da gl�ria mostra bem que o repouso eterno � uma ilus�o. De resto, j� algu�m disse que os mortos governam os vivos, pura verdade; e o Sr. Senador Catunda afirmou outro dia, no senado, que o passado governa o presente, verdade n�o menos pura.

Que o passado governa o presente, houve aqui not�cia, trazida por jornais americanos, descrevendo a viagem do sino da liberdade at� Chicago, onde foi tomar parte na exposi��o. Esse famoso sino repicou pela liberdade das col�nias americanas, h� mais de s�culo. J� n�o toca, � uma velha rel�quia. Eu, se ele me pertencesse, j� me n�o lembrava sequer do seu tamanho. Mas o yankee � uma singular mistura de d�lar e pomba m�stica. Tem a venera��o daquele sino. Um gentleman, escreve um noticiarista, sa�do da multid�o, tirou uma rosa que trazia ao peito, e pediu a um dos condutores da grande rel�quia que tocasse a rosa nela. Assim se fez, e o homem rep�s a flor ao peito, t�o cheio de si como se levasse o maior brilhante do mundo. Pol�ticos fizeram discursos, meninas colegiais sa�ram a saudar o sino da liberdade; onde quer que ele passou, fez palpitar alguma coisa �ntima e profunda.

Adeus. Curta � a cr�nica. Se soubessem como e onde a escrevo, com que alma turva, com que m�os cansadas, e com que olhos doentes! Tamb�m a semana n�o deu para muito mais. Houve neg�cios grandes, mas eu n�o sou pretor, curo s� dos m�nimos. Adeus. N�o espero que imites os filhos da �ndia; n�o � preciso que mostres a porta da rua, l� estou; adeus, passa bem e s� feliz!

25 de junho

Desde crian�a, ou�o dizer que aos condenados � morte cumprem-se os �ltimos desejos. D�-se-lhes doce de coco, lebre, tripas, um c�lice de Tokay, qualquer coisa que eles pe�am. Nunca indaguei se isto era exato ou n�o, e j� agora ficaria aborrecido se o n�o fosse. H� nesse uso uma tal mescla de piedade e ironia, que entra pela alma da gente. A piedade, s� por si, � triste; a ironia, sem mais nada, � dura; mas as duas juntas d�o um produto brando e jovial.

Li at�, que um condenado � morte, perguntando-se-lhe, na manh� do dia da execu��o, o que queria, respondeu que queria aprender ingl�s. H� de ser inven��o; mas achei o desejo veross�mil, n�o s� pelo motivo aparente de dilatar a execu��o, mas ainda por outro mais sutil e profundo. A l�ngua inglesa � t�o universal, tem penetrado de tal modo em todas as partes deste mundo, que provavelmente � a l�ngua do outro mundo. O r�u n�o queria entrar estrangeiro no reino dos mortos.

Pois, senhores, antes de pegar na pena para contar-lhes a semana, vendo que esta foi, entre todas, financeira, tive id�ia de ir aprender primeiro finan�as. O meu c�lculo era fino; suspendia por algum tempo esta obriga��o hebdomad�ria, e descansava. Mas a pessoa a quem consultei sobre o m�todo de aprender finan�as, disse-me que havia dois, al�m do �nico. O mais f�cil ensinava-me em duas horas ou menos, muito a tempo de escrever estas linhas; consistia em decorar um pequeno vocabul�rio de algibeira, e n�o entender a teoria do c�mbio. O segundo m�todo pedia mais algum tempo; era escrever um op�sculo sobre o d�ficit ou sobre os salvados, public�-lo, e confi�-lo aos amigos, que fariam o resto. Como a maior parte dos homens n�o sabe finan�as, disse-me ele, ainda que os sabedores me atacassem, o p�blico ficava em d�vida, se a raz�o estava comigo ou com eles, porque de ambas as partes ouvia falar em convers�o de d�vida e impostos. Quando o cat�lico ouve missa, uma vez que o padre diga o que est� no missal, n�o quer saber se ele sabe latim, ou se quem o sabe, � o padre do altar fronteiro. Tudo � missa, tudo s�o finan�as.

Considerei que realmente esse homem tinha raz�o, ou parecia t�-la, o que vem a dar na mesma. H� um ano ouvi dizer o diabo de um plano financeiro; ou�o agora dizer o diabo do plano contr�rio, e provavelmente dir-se-� o diabo de algum terceiro plano que apare�a e vingue. Salvo o diabo, tudo � missa. J� cheguei a suspeitar que todos est�o de acordo, n�o havendo outra diverg�ncia mais que na escolha do voc�bulo, querendo uns que se diga encampa��o, em vez de fus�o; outros fus�o, em vez de encampa��o; mas pessoa que reputo h�bil nestas mat�rias, afirmou-me que as duas palavras exprimem coisas diferentes, � o que eu acredito por ser pessoa, al�m de h�bil, sisuda.

Conheci um banqueiro... Era no tempo em que um homem s�, ou com outro, podia ser banqueiro, sem incomodar acionistas, sem gastar papel com estatutos, sem dividendos, sem assembl�ias. Simples Rotschilds. Era banqueiro e voou na tormenta de 1864. Anos depois, descobria que havia diferen�a entre papel-moeda e moeda-papel, e n�o encontrava um amigo a quem n�o repetisse as duas formas. Depois de as repetir, explicava-as; depois de as explicar, repetia-as. Se tem demorado em banqueiro, talvez n�o as soubesse nunca.

O que ele fazia com os dois pap�is, farei eu com a fus�o e a encampa��o. J� l� v�o alguns anos, deu-se na c�mara dos deputados um incidente que devia ser gravado em letras de bronze na mem�ria da na��o, se n�s tiv�ssemos outra mem�ria al�m da que nos faz lembrar o que almo�amos hoje. Um deputado desenvolvia as suas id�ias pol�ticas, e era interrompido por dois colegas, um liberal, outro conservador. A cada coisa que ele dizia querer, acudia o liberal �� liberal!� e o conservador: �� conservador!� Isto durou cerca de dez minutos calculados pelo trecho impresso e dificilmente se imaginar� mais completo acordo de esp�ritos. Quantos desconcertos seriam evitados, se todos imitassem aqueles tr�s membros do parlamento!

Repito, vou aprender finan�as. Vou aprender igualmente a teoria da propriedade, e particularmente a da propriedade intelectual, para assistir ao debate do trabalho liter�rio na c�mara esta semana. A maioria da comiss�o nega o tratado, que os Srs. Nilo Pe�anha e Spencer defendem, defendendo o direito de propriedade. A sess�o h� de ser brilhante. A mat�ria n�o � das que inflamam os homens; ao contr�rio, � um tema para disserta��es pausadas, sossegadas, em que Homero, se for chamado, desarmar� primeiro Aquiles e Heitor, para que eles possam ocupar um lugar na tribuna dos diplomatas. V�nus, se baixar aos combates, n�o sair� ferida pelas armas dos combatentes, a n�o ser com beijos. Ser� uma ressurrei��o dos torneios � maneira da que fizeram agora em Roma, � espet�culo sem sangue, rutilante e festivo.

Vou tamb�m aprender a ourives, para falar das j�ias de Sarah Bernhardt, e aprender tamb�m um pouco de hist�ria (pelos livros de Dumas) para compar�-las ao colar da rainha. Onde estar�o essas esquivas j�ias? Como � que diamantes, em terra de diamantes, se lembram de deixar o colo, o cinto e os p�s de Cle�patra?

Oh! bela filha do Egito! Talvez haja no roubo um s�mbolo. Pode ser at� que seja menos um roubo que uma id�ia, como se o autor quisesse dizer que todas as j�ias do mundo n�o valem a �nica j�ia do Nilo. N�o confundas com a de Sardou. Quem sabe se n�o vai nisso tamb�m uma li��o? A Cle�patra falsa de Sardou pedia pedras verdadeiras; a de Shakespeare contentar-se-ia com pedras falsas, como devem ser as de cena, porque as verdadeiras seriam unicamente ele e tu. Em cena, � grande imperatriz, tudo � posti�o, exceto o g�nio.

Que mais irei aprender? Nada mais que tirar o chap�u com gra�a, arrastar o p� e sair. N�o posso aprender sequer a acender pistolas e tirar sortes de S. Jo�o, companheiro do romantismo, da idade em flor, e de v�rias rel�quias que os santos de outra idade levaram consigo. Vejo as mo�as e os mo�os em volta da mesa, livro de sortes aberto, dados no copo, copo na m�o, e o leitor do livro lendo o t�tulo da p�gina: �Se algu�m lhe ama em segredo�. A mo�a deitava os dados: cinco e dois. O leitor corria ao n�mero sete, onde se dizia por verso que sim, que havia uma pessoa, um mo�o que, por sinal, estava com fome. �� o Rangel! bradava um gracioso; tragam o ch�, que o Rangel est� com fome�. E riam mo�os e mo�as, e continuavam o copo, os dados, as quadras, o leitor do livro, o Rangel, o gracioso, at� que todos iam dormir os seus sonos desambiciosos, sem querer saber da fus�o, nem de encampa��o, nem de tratados liter�rios, nem de j�ias, nem de Cle�patras, nem de nada.

2 de julho

Uns cheques falsos estiveram quase a dar aos seus autores cerca de quatrocentos contos.

Descoberto a tempo este neg�cio, interveio a pol�cia, e os inventores viram burlada a inven��o.

Salvo a quantia, que era grossa, o caso � de pouca monta, e n�o entraria nesta coluna, se n�o fora a li��o que se pode tirar dele.

De fato, eu creio que foi um erro acabar com o movimento de tr�s anos atr�s. Ent�o, os mesmos quatrocentos contos seriam tirados, mas com cheques verdadeiros.

Vede bem a diferen�a. Os cheques verdadeiros tinham por si a legitimidade e a seguran�a. Centenas e milhares de contos podiam andar assim, �s claras, sem canseiras da pol�cia, nem aborrecidos inqu�ritos. A moral n�o condena a sa�da do dinheiro de uma algibeira para outra, e a economia pol�tica o exige.

Uma sociedade em que os dinheiros ficassem parados, seria uma sociedade estagnada, um p�ntano.

Com o desaparecimento quase absoluto dos cheques verdadeiros, entraram os falsos em a��o. Foi, por assim dizer, um convite � fraude. Perderam-se as chaves, surdiram as gazuas, naturais herdeiras de suas irm�s mais velhas. Tornemos �s chaves; empulhemos os empulhadores.

Tirando o caso dos cheques, a morte do preto Tim�teo, indigitado autor do assassinato de Maria de Macedo, o benef�cio de Sarah Bernhardt, a perf�dia de dois sujeitos que venderam a um homem, como sendo notas falsas, simples pap�is sujos, zombando assim da lealdade da v�tima, e pouco mais, todo o interesse da semana concentrou-se no Congresso. O benef�cio da filha de Minos e de Pas�fae deu ensejo a uma bela festa ao seu grande talento; a morte de Tim�teo veio suspender um processo intermin�vel, e o logro das notas falsas p�e ainda uma vez em evid�ncia que a boa f� deve fugir deste mundo; n�o � aqui o seu lugar. Contra um homem leal, h� sempre dois meliantes.

Na c�mara dos deputados, o Sr. Nilo Pe�anha, em um brilhante discurso, defendeu a propriedade liter�ria, merecendo os aplausos dos pr�prios que a negam, e dos que, como eu, n�o adotam o tratado.

Mas as quest�es liter�rias n�o t�m a import�ncia das pol�ticas, por mais que haja dito Garret da a��o das letras na pol�tica. �Com romances e com versos, bradava ele, fez Chateaubriand, fez Walter Scott, fez Lamartine, fez Schiller, e fizeram os nossos tamb�m, esse movimento reacion�rio que hoje querem sofismar e granjear para si os prosistas e calculistas da oligarquia�.

Respeito muito o grande poeta, mas ainda assim creio que a pol�tica est� em primeiro lugar.

Uma revista, dizia n�o sei que estadista ingl�s, deve ter duas pernas, uma pol�tica, outra liter�ria, sendo a pol�tica a perna direita. Eu, se prefiro a todas as pol�ticas de Benjamin Constant o seu �nico Adolfo, � porque este romance tem de viver enquanto viver a l�ngua em que foi escrito, n�o por sentimento de exclusivismo. Assim tamb�m, se nunca pedi ao c�u que me pusesse nos tempos dos homens de Plutarcos e nos outros que os salvaram do esquecimento com os seus livros, foi unicamente porque, se o c�u me fizesse contempor�neo de tais homens, j� eu teria morrido uma e muitas vezes, � em vez de estar aqui vivo, escrevendo esta semana.

Houve no senado a sess�o secreta para examinar a nomea��o do prefeito. Posto que secreta, a sess�o foi p�blica. A mesma coisa aconteceu � sess�o anterior. As outras tamb�m n�o foram reservadas. Direi mais para acercar-me da verdade, cercando il vero, que as sess�es secretas s�o ainda mais p�blicas que as p�blicas. Basta anunciar que tratam de material cujo exame n�o se pode fazer �s escancaras, antes devem ficar trancadas, para que todos as destranquem, e tragam � rua. O p�o vedado agu�a o apetite, � verso de um poeta.

Verdade � que n�o basta o apetite da pessoa, � preciso que haja da parte do p�o certa in�rcia e vontade de ser comido. Os segredos n�o se divulgam sem a a��o da l�ngua. Da primeira ou segunda vez que o senado fez sess�o secreta e a viu divulgada, tratou-se ali de examinar a origem da revela��o. Se me n�o engano, o secret�rio afirmou que todas as portas estiveram fechadas. Um membro de casa achou dif�cil que se mantivesse o segredo entre tantas pessoas, � o que lhe acarretou veementes protestos. N�o se descobrindo nada, resolveu-se ent�o, como agora, que a ata da sess�o fosse impressa.

Esta impossibilidade de esconder o que se passa no segredo das delibera��es faz-me crer no ocultismo. � ocasi�o de emendar Hamlet: �H� entre o pal�cio do conde dos Arcos e a rua do Ouvidor muitas bocas mais do que cuida a vossa in�til estat�stica�.

A meu ver, o rem�dio � tornar p�blicas as sess�es, anunci�-las, convidar o povo a assistir a elas. Talvez o meio seguro de as fazer tanto ou quanto secretas. Desde que as portas sejam francas, poucas ou nenhuma gente ir� assistir ao exame das nomea��es. Dist�ncia � o diabo. A rua do Ouvidor � a principal causa desta tal ou qual in�rcia de que nos acusam. Em tr�s pernadas a andamos toda, e se o n�o fazemos em tr�s minutos, � porque temos o passo vagaroso; mas em tr�s horas vamos do beco das Cancelas ao largo de S. Francisco.

9 de julho

Uma batalha n�o tem o mesmo interesse para o estrategista que para o pintor. Este cuida principalmente da composi��o dos grupos, da express�o dos combatentes, do modo de obter a unidade da a��o na variedade dos pormenores, e de dar ao vencedor o lugar que lhe cabe. O estrategista pensa, antes de tudo, na concep��o do ataque, no movimento e na distribui��o das for�as, na concord�ncia dos meios para alcan�ar a vit�ria. J� o fornecedor n�o � assim. Sem preocupa��o est�tica, nem militar, cuida t�o somente na execu��o dos seus contratos, mediante aquela por��o de fidelidade compat�vel com lucros extraordin�rios. � claro que h� fornecedores que acabam pobres, como h� generais que perdem batalhas, e pintores que as pintam execravelmente.

Com os espet�culos da natureza d�-se a mesma diversidade de interesse. O ge�logo cuidar� da composi��o interior da montanha, que para o engenheiro dar� id�ia de uma via-f�rrea elevada ou de um simples t�nel. Vede o mar, vede o c�u. Vede esta flor. Entregue pela noiva ao noivo, � despedida, traz consigo todos os aromas dela, as suas gra�as, os seus olhos, a poesia que ela respira e comunica � alma do outro, e ainda as recorda��es de uma noite, de um beijo, a fugir entre a porta e a escada. Nas m�os de um bot�nico � um simples exemplar da esp�cie, a que ele d� certo nome latino. Grave, seco, sem ternura, ele diz o nome da esp�cie e da classe, e deita fora a flor, como um simples di�rio velho.

Quantos olhos, tantas vistas. Essa variedade � que torna suport�vel este mundo, pela satisfa��o das aptid�es, das situa��es e dos temperamentos. O contr�rio seria o pior dos fastios.

Digo tudo isso, que talvez seja banal... Mas o que n�o � banal debaixo do sol, desde o amor at� o empr�stimo? Digo tudo isso a prop�sito do acontecimento central da semana, o caso dos estudantes e da C�mara dos deputados. Esse acontecimento teve para os homens pol�ticos um aspecto. Condenando ou atenuando o ato, combinando ou divergindo na solu��o da crise, os pol�ticos est�o de acordo com os seus pr�prios olhos, aos quais o sucesso apareceu como um incidente na vida p�blica.

Eu, por�m, achei nele outra coisa, n�o pela origem, sen�o pelo efeito. Todos viram a emo��o produzida pelo caso. Viram ainda, que ele deu lugar a uma floresc�ncia de mo��es.

Na forma��o das l�nguas neo-latinas observou-se um fen�meno, consistente na troca, transposi��o ou queda de certas letras. A ci�ncia da linguagem remontou ainda no estudo desses e outros fen�menos; fiquemos naquele caso particular. Sou leigo em glossologia; mas os leigos tamb�m rezam, e pela cartilha dos padres. Ora, dizem os padres da glossologia que a palavra botica, por exemplo, veio de apoteca; perdendo a primeira vogal.

Aplicando esta observa��o da fon�tica � psicologia pol�tica, n�o se pode dizer que entre emo��o e mo��o h�, com a mesma perda da letra inicial, uma filia��o evidente? Explico-me.

No reg�men imperial, uma emo��o destas levava � mo��o imediata. A Constitui��o republicana n�o mudou os h�bitos morais dos homens, e, no meio da agita��o produzida pela manifesta��o escolar, a primeira f�rmula que ocorreu para consubstanciar os sentimentos da C�mara, foi a mo��o, e n�o uma, nem duas, mas seis e sete.

A conseq��ncia � que o parlamentarismo parece estar ainda na massa do sangue, � outra id�ia banal, � mas eu hoje estou banal como um triste molambo velho.

Concluir dali que sou parlamentarista, � imitar aquele homem que me dizia, uma vez, notando-lhe eu que certa casa estava pintada de amarelo:

� Ah! o senhor gosta do amarelo?

� Perd�o: digo-lhe que esta casa est� pintada de amarelo...

� Estou vendo; mas que gra�a acha em semelhante cor?

Mandei o homem ao diabo. V� o leitor ter com ele, se concluir a mesma coisa. O que eu digo, � que esta bota parlamentarista h� de levar tempo a descal�ar. Que n�o seja pr�prio do clima, n�o serei eu que o negue; mas a minha quest�o no cap�tulo das botas (Sganarelo achou um cap�tulo dos chap�us) � que a bota parlamentarista, por menos ajustada que haja sido ao p�, h� de levar tempo a arranc�-la. S�o costumes. Fazia doer os calos e cambava para o lado de fora, mas era de f�brica inglesa, Westminster & Companhia, e n�s sempre gostamos de f�bricas estrangeiras. Nos primeiros tempos �ramos todos franceses; no segundo reinado passamos aos bret�es. Vida, patr�cios, vida para a ind�stria nacional!

16 de julho

Sarah Bernhardt � feliz. Sequiosa de emo��es, n�o ter� passado sem elas, estes poucos dias que d� ao Brasil. Grande roubo de j�ias aqui; em S. Paulo quase uma revolu��o. Eis a� quanto basta para matar a sede. Mas as organiza��es como a ilustre tr�gica s�o insaci�veis. Pode ser que ela acarinhe a id�ia de pacificar o Rio Grande. Sim, quem sabe se, terminando o n�mero das representa��es contratadas, n�o � plano dela meter-se em um iate e aproar ao sul?

O capit�o do navio ter� medo, como o barqueiro de C�sar. Ela copiar� o romano: �Que temes tu? Levas Sarah e a sua fortuna�.

As �guas do porto, as areias, os ventos, os navios, as fortifica��es, a gente da terra, armada e desarmada, tudo deixar� passar Sem�ramis. Um diadema, nem castilhista, nem federalista, ou ambas as coisas, lhe ser� oferecido, apenas entre em Porto-Alegre. A not�cia correr� por todo o Estado; a guerra cessar�; os �dios fugir�o dos cora��es porque n�o haver� espa�o bastante para o amor e a fidelidade. Come�ar� no sul um grande reino. O Congresso Federal deliberar� se deve reduzi-lo pelas armas ou reconhec�-lo, e adotar� o segundo alvitre, por proposta do Sr. Nilo Pe�anha, considerando que n�o se trata positivamente de uma monarquia, porque n�o h� monarquia sem rei ou rainha no trono, e o g�nio n�o tem sexo. O g�nio haver� assim alcan�ado a paz entre os homens.

Uma vez coroada, Sem�ramis resolver� a velha quest�o das obras do porto do Rio Grande, como a sua xar� de Babil�nia fez com o Eufrates, apagar� os males da guerra e decretar� a felicidade, sob pena de morte.

Um dia, amanhecendo aborrecida, imitar� Salom�o, � se � certo que este rei escreveu o Eclesiastes, � e repetir-nos-�, como o grande enjoado daquele livro, que tudo � vaidade, vaidade, e vaidade.

Ent�o abdicar�; e, para maior espanto do mundo, dar� a coroa, por meio de concurso, ao mais melanc�lico dos homens. Sou eu. N�o me demorarei um instante; irei logo, mar em fora, at� � bela capital do sul, e subirei ao trono. Para celebrar esse acontecimento, darei festas magn�ficas, e convidarei a pr�pria rainha abdicaria a representar uma cena ou um ato do seu repert�rio.

� Pe�o a Vossa Majestade que me n�o obrigue � recusa, responder-me-� ela; eu provei a realidade do trono, e achei que era ainda mais v� que a simples imita��o teatral. Omnia vanitas. Falo-lhe em latim, mas creia que o meu t�dio vai at� o sueco e o noruegu�s. H� um ref�gio para todos os desenganados deste mundo; vou fundar um convento de mulheres budistas no Malabar.

E Sarah acabar� budista, se � que acabar� nunca.

Deixem-me sonhar, se � sonho.

A realidade � o luto do mundo, o sonho � a gala. Desde que a pena me trouxe at� aqui, sinto-me rei e grande rei. J� uma vez fui santo e fiz milagres. J� fui drag�o, �bis, tamandu�. Mas de todas as coisas que tenho sido, em sonhos, a que maior prazer me deu, foi panar�cio. Quest�o de amores. Eu suspirava por uma mo�a, que, fugia aos meus suspiros. Uma noite, como lhe apertasse os dedos, interrogativamente, ela puxou a m�o e deitou-me um tal olhar de desprezo, que me tonteou. Vaguei at� tarde, jurei mat�-la, recolhi-me e fui dormir. Dormindo, sonhei que, sob a forma de panar�cio, nascia e crescia no dedo da mo�a.

O gosto que tive, n�o se descreve, nem se imagina. � preciso ter sido ou ser panar�cio, para entender esse gozo �nico de doer em uma carne odiosa. Ela gemia, mordia os bei�os, chorava, perdia o sono. E eu do�a-lhe cada vez mais. Doendo, falava; dizia-lhe que o meu gesto de afeto n�o merecia o seu desprezo e que era em vingan�a do que me fez, que eu lhe dava agora aquela imensa dor. Ela prometia a Nossa Senhora, sua madrinha, um dedo de cera, se a dor acabasse; mas eu ria-me e ia doendo. Nunca senti regalo semelhante ao meu despeito de tumor.

Mas nem tudo s�o panar�cios. H� gozos, n�o tamanhos, mas ainda grandes e sadios. Esta noite, por exemplo, sonhei que era um casal de burros de bonde, creio que das Laranjeiras. Como � que a minha consci�ncia se pode dividir em duas, � que n�o atino; h� a� um curioso fen�meno para os estudiosos. Mas a verdade � que era um casal de burros. Eu sentia que �ramos gordos, t�o gordos e t�o fortes que ped�amos ao cocheiro por favor, que nos desse pancada, para n�o parecer que pux�vamos de vontade livre. Quer�amos ser constrangidos. O cocheiro recusava. N�o nos batia com um gancho de ferro, nem com as pontas das r�deas, n�o nos fazia arfar, nem gemer, nem morrer. N�o nos excitava sequer com estalos cont�nuos de l�ngua no paladar. Ia cheio de si, como se a nossa robustez fosse obra dele, e n�s voamos. Pagou caro a gentileza, porque chegamos antes da hora, e ele foi multado.

Na antev�spera tinha sonhado que era um mocinho de quinze a dezesseis anos, prestes a derrubar este mundo e a criar outro; tudo porque me deram a L�cia de Lamermoor e a Son�mbula.

Quando eu senti no l�bio superior mais que um bu�ozinho, e na alma umas melodias novas e ternas, fiquei fora de mim. Que Mefist�feles era esse que me fizera voltar para tr�s? Estava aqui um Fausto; faltava achar Margarida. Ei-la que sai de uma igreja; fitei-a bem, era um anjo-cantor de prociss�o. O tempo do sonho era o de Bellini e das prociss�es, de Donizetti e das fogueiras na rua, do primeiro Verdi e do Sinhazinha, provincial dos franciscanos.

� ainda um sonho esse frade, uma flor de adolesc�ncia, que vim achar entre duas folhas secas.

De onde lhe vinha a alcunha? Ignoro; j� a achei, n�o lhe pedi os t�tulos de origem. As alcunhas eclesi�sticas s�o de todos os tempos. Agora mesmo andam muitas a�, nessa quest�o que n�o acaba mais, acerca do bispo e do arcebispo. A fama do pregador Sinhazinha � que acabou. Sinhazinha! Naqueles dias at� as alcunhas eram maviosas. Hoje � de perereca seca para baixo.

23 de julho

Desde que h� rebanhos, s�o as ovelhas que voltam ao aprisco; c� em casa foi o pastor que voltou ao rebanho, com esta segunda diferen�a, que os pastores envelhecem com o tempo, e este remo�ou. A� est� o que � aquele continente que o Sr. Luiz Gomes quer p�r a poucas horas do Rio de Janeiro. N�o digo que o pastor sa�sse daqui velho, nem sequer maduro; saiu meio verde, � um pouco mais de meio, � e volta verde de todo. Rijo e l�pido; alegria e sa�de.

Neste andar pode ir longe, sem cansar muito. Pode fazer a mesma viagem do Sr. Visconde de Barbacena, que completou quinta-feira noventa e um anos. H� mais quem tenha noventa e um anos; mas t�-los frescos e sadios, cavalgar com eles duas e tr�s l�guas, andar por essas ruas com eles, p� firme e r�pido, ju�zo claro, mem�ria aguda, eis o que n�o � comum. � isto o venerando Barbacena; pode s�-lo um dia o nosso Ferreira de Ara�jo. Creio que pelos anos de 1940 ou 1950 � que meu amigo aprontar� as malas para aquele outro continente, que o Sr. Luiz Gomes n�o quer, nem deve aproximar do Rio de Janeiro, qualquer que seja a garantia de juro.

J� l� me achar�. Correrei a receb�-lo, ao sair do barco de Caronte. D� c� esses ossos! D� c� os teus! E diremos coisas alegres e finas; ele me levar� not�cias deste mundo; eu lhe darei as do outro. Compar�-las-emos umas �s outras e chegaremos � conclus�o de que muitas delas se parecem. Falaremos primeiro dos nossos amigos; todos estar�o l� menos o Jo�o. Que � feito do Jo�o que n�o chega � Foi promovido. � Ainda? � Ainda; mas agora � definitivamente; foi promovido a Padre Eterno. � Havia de acabar por a�, direi eu, cheio de melancolia com a id�ia de que n�o o verei mais, eu amo o nosso Jo�o, companheiro certo e amigo. Falaremos da hist�ria do mundo, do estado das sociedades humanas e das sociedades vegetais, do filoxera e das fac��es; conversaremos das novas formas de governo, se as houver.

� C� neste mundo, explicarei eu, rege s� a anarquia; ningu�m manda, ningu�m obedece; as sombras vagam de um lado para outro, � vontade, sem se abalroarem, ligando-se, desligando-se... Olha, ali v�m duas conhecidas, o Deodoro e o Benjamin Constant.

� Como, amigos?

� Creio que eles nunca brigaram na terra; mas, ainda que houvessem brigado, aqui somos todos amigos, e �ntimos. Queres ver? Ol�, Deodoro! ol�, Benjamin!

Chegar�o os dois a n�s, e, depois dos primeiros cumprimentos, saber�o que na terra andam brigando, por causa da coloca��o das suas est�tuas. Desde a terceira semana de julho de 1893 (a que ora finda), foi votado pela C�mara dos deputados que Deodoro teria uma est�tua na Pra�a da Rep�blica; mas, havendo Deodoro decretado uma est�tua a Benjamin na mesma pra�a, entrou a dificuldade de saber onde se poria a est�tua de Deodoro. A id�ia do largo do Dep�sito foi logo exclu�da. As pra�as Quinze de Novembro e Tiradentes estavam ocupadas. No largo da Prainha impediria a passagem r�pida das pessoas que buscam a Barca de Petr�polis. No do Catete estava Alencar. O da Lapa era antes uma encruzilhada que um largo. No do Valdetaro, onde se quis p�r a do Buarque, existia um chafariz. Onde se poria Deodoro?

Algu�m prop�s uma solu��o que lhe pareceu simples; era p�r as duas est�tuas na mesma pra�a da Rep�blica, assaz vasta para ambas, uma dentro do parque, outra fora, caso n�o as quisessem juntas. Se os dois cidad�os foram os fundadores da Rep�blica, nada mais natural que ficarem na mesma pra�a, e justamente naquele lugar hist�rico. A primeira impress�o foi uma gargalhada universal. Como assim? Duas est�tuas na mesma pra�a! � irris�rio, etc. Passados dias, a id�ia foi parecendo a alguns menos desprez�vel; chegaram a dizer que a est�tica n�o se opunha � solu��o e que a hist�ria a pedia. Contesta��o, luta, adiamento. Decretou-se um per�odo de cinco anos para refletir. Ningu�m refletiu, e a quest�o arrastou-se assim at� o fim do s�culo. De acordo t�cito, calou-se o neg�cio at� 1913.

Renovada a quest�o no come�o de 1914, tornou a aparecer a id�ia de p�r as duas est�tuas na mesma Pra�a da Rep�blica; mas ent�o formaram-se dois partidos, o de Benjamin e o de Deodoro, ambos fortes e intransigentes. J� nenhum cedia � pra�a ao outro.

La maison est � moi, c'est � vous d'en sortir.

Os partidos caem muita vez em tal subjetividade, que a bandeira vale menos que as suas pantalonas. Assim complicados de azedume, de irrita��o e de �dio, cada um deles tratou menos de erigir a est�tua de um cidad�o que a sua pr�pria. Da� a suspens�o virtual dos decretos comemorativos.

Deodoro e Benjamin, ao saberem disto, olhar�o espantados um para o outro; depois, um ar de riso, meio piedade, meio l�stima, alumiar� os seus rostos tranq�ilos. Enfim, dar�o de ombros, e continuar�o a andar e a conversar, de bra�o dado, enquanto eu, considerando as not�cias recentes deste mundo, comporei um discurso sobre as incompatibilidades da vida e da morte...

Mas onde me leva a imagina��o? Crian�a vadia, j�, j�, para casa; anda, vai cal�ar os sapatos; vai pentear essa grenha; est�s cheirando a defunto; vou trancar-te por tr�s meses! Tudo porque falei no tempo e nos seus efeitos variados.

Em que h� de sonhar um var�o maduro? O tempo escoa-se depressa para aqueles que j� v�m de longe. � o que acontece � c�mara dos deputados. Prestes a findar os dias, n�o quer deixar a obra por fazer e decretou multiplicar o tempo pelo trabalho, celebrando duas sess�es, uma de dia outra de noite. Mas, como a medida arriscada, p�s-lhe uma cl�usula; baixou o quorum da noite; a sess�o noturna pode abrir-se com menor n�mero de membros que a diurna.

Compreende-se o pensamento do legislador; � uma combina��o de or�amento e Falstaff. Para se n�o arriscar a n�o ter sess�o, �s noites, aplicou ao seu regimento aquele artigo da lei das sociedades an�nimas, que permite deliberar com qualquer n�mero, depois de duas convoca��es sem eco. Se me fosse l�cito propor alguma coisa aos legisladores, eu lhes lembraria duas resolu��es da c�mara dos comuns, uma de 1620, e outra de 1628. A id�ia de liberdade esteve sempre ligada a essa casa c�lebre. Eis aqui dois exemplos.

Um investigador, um tal Gibson Bowles, descobriu que no primeiro daqueles anos, 1620, m�s de fevereiro, a c�mara resolveu mandar buscar debaixo de vara a todos e quaisquer membros que n�o se achassem presentes �s sess�es, estando na cidade. Oito anos depois, a c�mara, n�o contente com haver ferido no bra�o, enterrou a faca na barriga, foi �s algibeiras, determinando, em 9 de abril de 1628, que cada membro que n�o comparecesse � sess�o pagaria a multa de 10 libras esterlinas. Legislador � fina for�a.

30 de julho

Toda esta semana se falou em paz. Para um homem que cultiva as artes da paz, como eu, parece que n�o pode haver assunto mais fagueiro. Nem sempre. A paz tem benef�cios, n�o contesto; mas a guerra, � aqui cito Emp�docles, � � a m�e de todas as coisas. E nem sempre vale trocar todas as coisas por alguns benef�cios. Um exemplo � m�o.

Sem desdenhar dos catarinenses � alguns conhe�o que honrariam qualquer comunh�o social � posso dizer que Santa Catarina n�o faria falar de si; vivia na mais completa obscuridade. De quando em quando vinha um telegrama do governador Machado; mas que vale, por si mesmo, um telegrama? Santa Catarina n�o inventava, n�o criava, n�o gerava. De repente, anuncia-se dali uma fagulha, uma agita��o, um aspecto de guerra; digo de guerra, posto n�o haja sangue; mas tamb�m h� guerra sem sangue. J� esta produziu mais do que longos meses de sossego. Se vier sangue, a produ��o ser� maior. A vantagem do sangue sobre a �gua � que esta rega para o presente, e aquele para o presente e futuro. Os estragos do sangue, posto que longos, n�o s�o eternos;os seus frutos, por�m, entram no celeiro da humanidade.

Vamos ao meu ponto. Um telegrama de Santa Catarina, esta semana, trouxe um produto novo, filho do conflito, nada menos que um verbo. Meditai na superioridade do verbo sobre o homem, relendo S. Jo�o. �No princ�pio era o verbo, e o verbo se fez carne�. E superior e anterior. Qualquer que seja o resultado da luta entre os Srs. Machado e Herc�lio, h� um ganho efetivo. Temos um verbo. Os homens passam, os verbos ficam. Um dos telegramas que d�o not�cia da aclama��o do Sr. Herc�lio para o lugar de governador do Estado, acrescenta: �Quedou afinal o governo do tenente Machado�.

A princ�pio cuidei que era um estratagema do fio. Obrigado a passar a not�cia, e n�o sabendo em que paravam as modas, teria empregado um voc�bulo que pelo sentido natural desse id�ia contr�ria � que trazia. Quedou o governo, isto �, ficou, prossegue, est� quieto. Mas abri m�o da suspeita; o resto e o princ�pio do telegrama n�o permitiam semelhante interpreta��o. Quedar, no sentido telegr�fico, era levar queda, cair.

Os substantivos, filhos de verbos, d�o assim novos verbos. Se de cair se fez queda, era tempo que de queda se fizesse quedar. Dia vir� em que este verbo, como o av� cair, produza tamb�m um substantivo, queda��o. Passados anos, quando Herc�lio e Machado descansarem para sempre no seio do Senhor, a gera��o haver� continuado. Santa Catarina poder� ent�o telegrafar: �Quedacionou o governo de X...� Quem calcular� o limite dessa gera��o cont�nua?

Notai que o que legitima um voc�bulo destes, � a sua espontaneidade. Eles nascem como as plantas da terra. N�o s�o flores artificiais de academias, p�talas de papel�o recortadas em gabinetes, nas quais o povo n�o pega. Ao contr�rio, as geradas naturalmente � que acabam entrando nas academias. Um grave orador dizia h� anos: �Senhores, sobre isto n�o me resta cois�ssima nenhuma�. � um solecismo, concordo; mas vive. Tamb�m os aleijados vivem. Onde param tantas palavras, bem conformadas de puros gram�ticos?

N�o � de gram�ticas, nem de solecismos, que cuida o nosso conselho municipal. Corpora��o �til, execra todos os ornamentos; veste pura estamenha, sem grande roda, nem cauda, nem folhos. Um saco sem fundo, enfiado pela cabe�a abaixo. Em v�o lhe buscareis uma florzinha na cabe�a, uma fita no pesco�o, um bot�o, nada.

Entretanto, que mais simples, mais belo, mais barato ornamento que a mod�stia? Essa virtude, a um tempo crist� e pag�, t�o pregada pelos padres da Igreja, como pelos s�bios da antiguidade, a santa, a nobre, a pura mod�stia, que n�o ocupa lugar, n�o tira o p�o nem o sono de ningu�m, n�o mata nem esfola; a mod�stia n�o tem entrada no conselho municipal. Um conselheiro... A prop�sito, se o nome da institui��o � conselho, n�o cabe o nome de intendente aos seus membros, e o de membro do conselho municipal � muito comprido. Por que n�o adotaremos conselheiro? N�o era feio, vinha deduzido do outro, e n�o precisava dizer conselheiro municipal. Conselheiro bastava. O conselheiro Fulano... Que tal? � uma id�ia.

Como ia dizendo, um conselheiro falava sobre um assunto, e explicava-se: �Mal preparado (n�o apoiados), n�o cursei academias, e apenas freq�entei um col�gio, recebendo uma parca instru��o�. Que h� de dizer o presidente, interrompendo o orador? �Previno a V. Exa. que isto n�o tem rela��o com o projeto�.

Realmente n�o compreendo. Se o orador, em vez daquilo, dissesse que se considerava um dos primeiros homens do conselho, esp�rito ilustrado, sagaz, profundo, pessoa virtuosa, interessante, dotada de gra�a, de piedade, de originalidade, firme nos bons sentimentos, patriotismo inexced�vel, autor do melhor ung�ento contra os reumatismos cr�nicos, admito a interrup��o e o reparo do presidente. Mas, longe disso, o orador confessa que tem poucas habilita��es. Se � verdade, a verdade nasceu para se dizer; se h� alguma exagera��o, mais um motivo para consenti-la. Aben�oada exagera��o que nos leva a desaparecer diante dos outros. Impedir esse simples ornamento � n�o querer nem uma rude flor do mato. Mas ent�o o presidente do conselho... Presidente do conselho! Outro modo de dizer, igualmente deduzido, sem necessidade do adjetivo municipal, ou qualquer outro. Presidente do conselho. Que tal � uma id�ia. Todo eu sou hoje id�ias.

6 de agosto

A Gazeta completou os seus dezoito anos. Ao sair da festa de fam�lia com que ela celebrou o seu anivers�rio, fui pensando no que me disse um conviva, excelente membro da casa, a saber, que os dois maiores acontecimentos dos �ltimos trinta anos nesta cidade foram a Gazeta e o bonde.

Tens raz�o, Capistrano. Um e outro fizeram igual revolu��o. H� um velho livro do Padre Manuel Bernardes, cujo t�tulo, P�o partido em pequeninos, bem se pode aplicar � a��o dos dois poderosos instrumentos de transforma��o. Antigamente as folhas eram s� assinadas; poucos n�meros avulsos se vendiam e, ainda assim, era preciso ir compr�-los ao balc�o, e caro. Quem n�o podia assinar o Jornal do Com�rcio, mandava pedi-lo emprestado, como se faz ainda hoje com os livros, � com esta diferen�a que o Jornal era restitu�do � e com esta semelhan�a: que voltava mais ou menos enxovalhado.

As outras folhas � n�o tinham o dom�nio da not�cia e do an�ncio da publica��o solicitada, da parte comercial e oficial; demais, serviam a partidos pol�ticos. A mor parte delas (para empregar uma compara��o recente) vivia o que vivem as rosas de Malherbe.

Quando a Gazeta apareceu, o bonde come�ava. A mo�a que vem hoje � Rua do Ouvidor, sempre que lhe parece, � hora que quer, com a mam�e, com a prima, com a amiga, porque tem o bonde � porta e � m�o, n�o sabe o que era morar fora da cidade ou longe do centro. T�nhamos dilig�ncias e �nibus; mas eram poucos, com poucos lugares, creio que oito ou dez, e poucas viagens. Um dos lugares era eliminado para o p�blico. Ia nele o recebedor, um homem encarregado de receber o pre�o das passagens e abrir a portinhola para dar entrada ou sa�da aos passageiros. Um cordel, vindo pelo tejadilho, punha em comunica��o o cocheiro e o recebedor; este puxava, aquele parava ou andava. Mais tarde, o cocheiro acumulou os dois of�cios. Os ve�culos eram fechados, como os primeiros bondes, antes que toda a gente preferisse os dos fumantes e inteiramente os desterrasse.

� J� passou a dilig�ncia? L� vem o �nibus! Tais eram os dizeres de outro tempo. Hoje n�o h� nada disso. Se algum homem, morador em rua que atravesse a da linha, grita por um bonde que vai passando ao longe, n�o � porque os ve�culos sejam raros, como outrora, mas porque o homem n�o quer perder este bonde, porque o bonde p�ra, e porque os passageiros esperam dois ou tr�s minutos, quietos. Esperar, se me n�o falha a mem�ria, � a �ltima palavra do Conde de Monte-Cristo. Todos somos Monte-Cristos, posto que o livro seja velho. Falemos � gente mo�a, � gente de vinte e cinco anos, que era apenas desmamada, quando se lan�aram os primeiros trilhos, entre a Rua Gon�alves Dias e o largo do Machado. O bonde foi posto em a��o, e a Gazeta veio no encal�o. Tudo mudou. Os meninos, com a Gazeta debaixo do bra�o e preg�o na boca, espalhavam-se por essas ruas, berrando a not�cia, o an�ncio, a pilh�ria, a cr�tica, a vida, em suma, tudo por dois vint�ns escassos. A folha era pequena; a mocidade do texto � que era infinita. A gente grave, que, quando n�o � excessivamente grave, d� apre�o � nota alegre, gostou daquele modo de dizer as coisas sem retesar os colarinhos. A leitura imp�s-se, a folha cresceu, barbou, fez-se homem, p�s casa; toda a imprensa mudou de jeito e de aspecto.

N�o me puxem as orelhas pelo que disse acerca das folhas pol�ticas. Se n�o eram vivedouras outrora, se hoje o n�o podem ser sem outro algum condimento, a culpa n�o � minha. E digo mal, pol�ticas; partid�rias � que deve ser. De pol�tica tamb�m tratam as outras. A quest�o � um pouco mais longa que esta p�gina, e mais profunda que esta cr�nica; mas sempre lhes quero contar uma hist�ria.

Um telegrama datado de Buenos-Aires, 3, deu not�cia de que a Naci�n, �rg�o do General Mitre, aconselha a uni�o de todos os cidad�os, no meio da desordem, que vai por algumas prov�ncias argentinas. Ora, ou�am a minha hist�ria que � de 1868. Nesse ano, Mitre, que assumira o poder em 1860, depois de uma revolu��o, concluiu os dois prazos constitucionais de presidente; fizera-se a elei��o do presidente e sa�ra eleito Sarmiento, que ent�o era representante diplom�tico da rep�blica nos Estados-Unidos. Vi este Sarmiento, quando passou por aqui para ir tomar conta do governo argentino. Boas carnes, olhos grandes, cara rapada. Tomava ch� no Club Fluminense, no momento em que eu ia fazer o mesmo, depois de uma partida de xadrez com o professor Palhares. Pobre Palhares! Pobre Club Fluminense! Era um ch� sossegado, entre nove e dez horas, um baile por m�s, mo�as bonitas, uma principalmente... Une surtout, un ange... O resto est� em Victor Hugo. Un ange, une jeune espagnole. A diferen�a � que n�o era espanhola. Sarmiento vinha, creio eu, do pa�o de S. Crist�v�o ou do Instituto Hist�rico; estava de casaca, bebia o ch�, trincava torradas, com tal mod�stia que ningu�m diria que ia governar uma na��o.

Quando Sarmiento chegou a Buenos-Aires e tomou conta do governo, quiseram fazer a Mitre, que o entregava, uma grande manifesta��o pol�tica. A id�ia que vingou foi criar um jornal e dar-lho. Esse jornal � esta mesma Naci�n que � ainda �rg�o de Mitre, e que ora aconselha (um quarto de s�culo depois) a uni�o de todos os cidad�os. � um jornal enorme de n�o sei quantas p�ginas. Em trocos mi�dos, os jornais partid�rios precisam de partido, um partido faz-se com homens que votem, que paguem, que leiam.

H� ler sem pagar; n�o � a isso que me refiro. H� tamb�m pagar sem ler; falo de outra coisa. Digo ler e pagar, digo votar, digo discutir, escolher, fazer opini�o. Sem ela, sem uma boa opini�o ativa, pode haver algumas veleidades, mas n�o h� vontade. E a vontade � que governa o mundo.

13 de agosto

Entre tantos sucessos desta semana, que valeu por quatro, um houve que principalmente me encheu o esp�rito. Foi a proclama��o do ex-governador Herc�lio, ao deixar o poder de algumas horas.

Talvez o leitor nem saiba dela, t�o certo � que os vencidos n�o merecem compaix�o. Eu tamb�m n�o a li; n�o sei se � longa ou breve, nem em que l�ngua � escrita, dado que os revolucion�rios fossem alem�es, como disseram telegramas, � ou teuto-brasileiros, f�rmula achada no Rio Grande do Sul para exprimir a dupla origem de alguns concidad�os nossos. Tamb�m ignoro se a proclama��o ataca o poder federal, como fez um telegrama do pr�prio ex-governador. Propriamente, a minha quest�o n�o � pol�tica. A parte pol�tica s� me ocupa, quando do ato ou do fato sai alguma psicologia interessante.

Ora, a proclama��o do Sr. Herc�lio, quando deixou o poder, � um documento de alta significa��o psicol�gica. N�o a conhe�o, mas vi not�cia telegr�fica de que saiu impressa em cetim azul com letras de ouro.

� primeira vista parece nada; os amigos e correligion�rios � que naturalmente tiveram a id�ia de p�r em relevo as palavras do chefe, dando-lhes esse ve�culo de ouro e cetim. Penetrando, por�m, com olhos mais sagazes, compreende-se que essa preocupa��o da forma � a manifesta��o inconsciente da garridice da nossa alma. Podemos matar ou ferir. Naquele mesmo tumulto, pereceu um m�dico, ainda n�o se sabe com bala de quem, porque ambos os lados repelem a autoria do tiro. Mas, cessadas as hostilidades, voltamos � gra�a e ao adorno. Papel preto, letras amarelas, fazendo lembrar o aspecto dos caix�es mortu�rios, tal devia ser a proclama��o de um vencido. Poeta que a inventasse, recorreria a l�minas de a�o com letras de bronze. Tudo filho da id�ia que conjuga o desbarato e a melancolia � ou, quando muito, a amea�a.

A generalidade dos homens adotou, em vez disso, o simples papel branco e letra preta. Os esp�ritos garridos, por�m, n�o cedem do enfeite, e, quando tudo parece que devia estar l�vido, est� cor de ouro.

Concluamos que h� uma for�a �ntima que nos impele a fazer de uma calamidade uma gravata, e de um tiro mortal um �sculo comprido. N�o; n�s n�o levamos a paix�o pol�tica ao ponto a que a levou agora a gente do Ros�rio, prov�ncia argentina, onde a pol�cia era defendida das sot�ias das casas pelos bombeiros e pelos presos.

Quando a opini�o dos homens chega a defender a pr�pria pol�cia que os encarcerou, � que eles s�o chegados �quele grau em que uma na��o d� de si Brutus. Esmagar a pol�cia � o impulso natural de todo cidad�o capturado; mas trepar nas sot�ias para defend�-la a tiro, � coisa que sai do homem para entrar no romano.

Tamb�m isso me veio por telegrama; eu quase n�o leio outra coisa, tanta � a ocupa��o do meu tempo. Alguma not�cia que vi, como o arrombamento de um cart�rio e o desaparecimento de uns autos, � por ouvi-la contar. Essa mesma do cart�rio n�o a pude ouvir bem. Chovia e ventava muito, o bonde tinha as cortinas alagadas; as cortinas, longe de serem de oleado, eram de pano de algod�o, que se encharcam mais, posto custem menos dinheiro. N�o devia zangar-me com isso, porque o bonde era de Botafogo, companhia de que sou acionista, e quanto menos custarem as cortinas, mais valer�o os pap�is. Entretanto, zanguei-me, porque o pano molhado, tocado pelo vento, batia-me na cara, nas pernas e no chap�u, sem deixar-me ouvir o lance dos autos e do cart�rio. S� depois de apeado e recolhido � que recobrei a alegria. Com efeito tinha estragado o chap�u; mas chap�u n�o rende, a a��o rende.

Lembro-me que, quando entrei na rua Gon�alves Dias, ia chuviscando e ainda fui ao fim da rua do Senador Dantas para achar lugar em bonde de Botafogo.

Mandei ao diabo a id�ia de retirar o ponto dos bondes, da rua Gon�alves Dias; mas outra sensa��o expeliu a primeira. Quando descansei da viagem, em casa, lembrei-me que esse dia era justamente o anivers�rio natal�cio do nosso poeta nacional. Corri a enfeitar de flores o seu retrato, e recitei algumas estrofes, como na missa se faz com peda�o do Evangelho. Esta semana �, ali�s, uma semana de poetas. Nela nasceram tamb�m o Magalh�es, poeta e diplomata, e S. Carlos, poeta e frade. Vi Gon�alves Dias duas vezes. Da primeira adivinhei quem era, n�o sentindo mais que o passo r�pido de um homenzinho pequenino. Era ele, era o autor da Can��o do Ex�lio, que se soletrava desde os dez anos...

Vamos adiante.

Vamos � rua do Ouvidor; � um passo. Desta rua ao Di�rio de Not�cias � ainda menos. Ora, foi no Di�rio de Not�cias que eu li uma defesa do alargamento da dita rua do Ouvidor, � coisa que eu combateria aqui, se tivesse tempo e espa�o. V�s que tendes a cargo o aformoseamento da cidade alargai outras ruas, todas as ruas, mas deixai a do Ouvidor assim mesma � uma viela, como lhe chama o Di�rio, � um canudo, como lhe chamava Pedro Luiz. H� nela, assim estreitinha, um aspecto e uma sensa��o de intimidade. � a rua pr�pria do boato. V� l� correr um boato por avenidas amplas e lavadas de ar. O boato precisa do aconchego, da contig�idade, do ouvido � boca para murmurar depressa e baixinho, e saltar de um lado para outro.

Na rua do Ouvidor, um homem, que est� � porta do Laemmert, aperta a m�o do outro que fica � porta do Crashley, sem perder o equil�brio. Pode-se comer um sandwich no Castel�es e tomar um c�lix de Madeira no Deroch�, quase sem sair de casa. O caracter�stico desta rua � ser uma esp�cie de loja �nica, variada, estreita e comprida.

Depois, � mister contar com a nossa indol�ncia. Se a rua ficar assaz larga para dar passagem a carros, ningu�m ir� de uma cal�ada a outra, para ver a senhora que passa, � nem a cor dos seus olhos, nem o bico dos seus sapatos, e onde ficar� em tal caso �o culto do belo sexo�, se lhe escassearem os sacerdotes.

Outra prova.

Houve domingo passado o grande pr�mio do Derby-Club. Dizem que se apostaram cerca de quatrocentos contos de r�is no lugar das corridas. Mais, muito mais, deram as apostas c� em baixo. Uma das vantagens das corridas de cavalos � poder agente apostar nelas sem sair da freguesia.

Faz lembrar os velhos mendigos de Nicolau Tolentino, que, de uma pra�a de Lis-bons, acompanhavam os ex�rcitos europeus, marchas e contramarchas, ganhavam batalhas, retificavam fronteiras, at� que voltavam ao seu of�cio, se aparecia algu�m:

E tendo dado cidades,

Nos vem pedir uma esmola.

Na Inglaterra, onde o cavalo � uma institui��o nacional, quando chega o dia do grande pr�mio toda a gente vai �s corridas. A pr�pria c�mara dos comuns, que n�o tem folga, seja de gala, seja de tristezas, abala e d� consigo no Derby. Pode ser que, sobre a tarde, como as suas sess�es entram pela noite velha, v� aos trabalhos parlamentares; mas n�o perde a grande festa. L�, por�m, o clima � frio. Que seria aqui esse nobre exerc�cio do cavalo, se, para acompanhar as corridas, fosse preciso ir v�-las? Com certeza, morria. O mesmo acontecer� � rua do Ouvidor, se a fizerdes mais larga.

20 de agosto

Ce pays f�erique... Assim se exprime Sarah Bernhardt, em rela��o ao Brasil, no telegrama com que desmente os conceitos que uma folha argentina lhe atribuiu.

Cara Melp�mene, quem te levou a escrever essas palavras que me matam? Tu sabes, ou ficas sabendo que te admiro, n�o s� pelo g�nio, mas ainda pela originalidade. O banal afoga-me. O vulgar � o Cabrion deste teu Pipelet. Assim, tudo o que fazes, e n�o faz nenhuma outra pessoa no mundo, � para mim um atrativo. Uma das minhas convic��es (e tenho poucas) era esta: se algum dia Sarah escrever a nosso respeito, n�o empregar� a velha chapa de todos os viajantes que por aqui passam: ce pays f�erique. E tu, amiga minha, tu arrancas-me sem piedade esta ilus�o do meu outono.

N�o � s� chapa, � estilete. O meu sentimento nativista, ou como quer que lhe chamem, � patriotismo � mais vasto, � sempre se doeu desta adora��o da natureza. Raro falam de n�s mesmos; alguns mal, poucos bem. No que todos est�o de acordo, � no pays fe�rique. Pareceu-me sempre um modo de pisar o homem e as suas obras. Quando me louvam a casaca, louvam-me antes a mim que ao alfaiate. Ao menos, � o sentimento com que fico; a casaca � minha; se n�o a fiz, mandei faz�-la. Mas eu n�o fiz, nem mandei fazer o c�u e as montanhas, as matas e os rios. J� os achei prontos, e n�o vejo que sejam admir�veis; mas h� outras coisas que ver.

H� anos chegou aqui um viajante, que se relacionou comigo. Uma noite falamos da cidade e sua hist�ria; ele mostrou desejo de conhecer alguma velha constru��o. Citei-lhe v�rias; entre elas a igreja do Castelo e seus altares. Ajustamos que no dia seguinte iria busc�-lo para subir o morro do Castelo. Era uma bela manh�, n�o sei se de inverno ou primavera. Subimos; eu, para dispor-lhe o esp�rito, ia-lhe pintando o tempo que por aquela mesma ladeira passavam os padres jesu�tas, a cidade pequena, os costumes toscos, a devo��o grande e sincera. Chegamos ao alto, a igreja estava aberta e entramos. Sei que n�o s�o ru�nas de Atenas; mas cada um mostra o que possui. O viajante entrou, deu uma volta, saiu e foi postar-se junto � muralha, fitando o mar, o c�u e as montanhas, e, ao cabo de cinco minutos: �Que natureza que voc�s t�m!�

Certo, a nossa ba�a � espl�ndida; e no dia em que a ponte que se v� em frente � Gl�ria for acabada e tirar um grande lan�o ao mar para alugu�is, ficar� divina. Assim mesmo, interrompida, como est�, a ponte d�-lhe gra�a. Mas, naquele tempo, nem esse vest�gio do homem existia no mar; era tudo natureza. A admira��o do nosso h�spede exclu�a qualquer id�ia da a��o humana. N�o me perguntou pela funda��o das fortalezas, nem pelos nomes dos navios que estavam ancorados. Foi s� a natureza.

Navios e fortalezas, a� est� o que se pode ver no mar. Em terra, musa tr�gica, podias ver agora a morte de um bravo soldado, um dos restantes her�is da guerra do Paraguai. Tamb�m n�s tivemos a nossa grande guerra. Um argentino, h� muitos anos, comparecendo ao j�ri em Fran�a, por delito de imprensa, ouviu ao acusador falar com riso das pequeninas lutas de poucas centenas de homens que se travam na Am�rica, e respondeu com acerto: �Senhores, sabeis o que se faz nas nossas guerras min�sculas? Faz-se o que se faz nas vossas: morre-se. On y meurt, messieurs�.

Naquela guerra morreram aos milhares. Um dos mais gloriosos sobreviventes, o que lhe pos remate com extraordin�rio denodo, � o que ora entrou definitivamente na hist�ria do seu pa�s. A morte tem esta puni��o: faz viver aqueles a quem n�o pode matar. Mas s�o tantos os que sucumbem, e t�o poucos os que vivem, que a puni��o � toler�vel. Vencedor de Aquidab�, tu ser�s um dos grandes testemunhos da gera��o que vai morrer.

Mas em terra n�o h� s� grandes finados, nem mem�rias gloriosas. H� aqui obras de outra casta, seja de arte, seja de pol�tica, seja de ci�ncia, obras que podem recomendar-nos, embora n�o espantem a estranhos. Nem todas ser�o boas. Nesta semana, por exemplo, enlouqueceu um esp�rita; mas, al�m de que isto n�o prova contra o espiritismo, � que alguns c�rebros l�cidos e fortes estudam e aprofundam, � em toda a parte h� c�rebros fracos que se perdem. Nem todos podem fitar o abismo. N�o � raz�o para condenar as ci�ncias ocultas. E de onde nos vieram elas? O ocultismo est� em moda na Europa. Os livreiros daqui recebem obras com t�tulos ileg�veis, � for�a de escuridade, e todas as folhas anunciam certo livro de S. Cipriano, vindo de Lisboa, que dizem ser maravilhoso para achados, curas e casamentos.

A ci�ncia da p�la, dado que seja oculta, tamb�m n�o � nossa. Veio da outra banda e de tempos idos. O que � desta banda, � a arte de envergar o arco, em que s�o ex�mios os caboclos, se eles ainda valem os de que fala o poeta:

S�o todos destros

No exerc�cio da flecha, que arrebatam

Ao verde papagaio o curvo bico

Voando pelo ar.

H� a� talvez uma id�ia para alguma associa��o nova. A menos que os bicos dos papagaios sejam simples pintura, ilus�o �tica, n�o acho hip�tese de fraude nesse exerc�cio. Contestou-se que a poesia nacional estivesse no caboclo; ningu�m poder� contestar, a s�rio, que esteja nele a nacionaliza��o do sport. O caboclo e o capoeira podem fazer-se �teis, em vez de in�teis e perigosos.

27 de agosto

Quando eu cheguei � rua do Ouvidor e soube que um empregado do correio adoecera do c�lera, senti algo parecido com susto, se n�o era ele pr�prio. Contaram-me incidentes. Nenhum hospital quisera receber o enfermo. Afinal fora conduzido para o da Jurujuba, e insulado, como de regra.

Conversei, para distrair-me, mas n�o estava bom. Podia estar melhor. No bonde, quando me recolhia, eram seis horas da tarde, havia j� tr�s casos de c�lera, o do correio, o de uma senhora que estava comprando sapatos, e o de um carroceiro na Sa�de. Na Lapa entrou um homem, que disse ter assistido ao caso postal. A figura do doente metia medo. Chegaram a ver o bacilo...

� O bacilo? perguntei admirado.

� Sim, senhor, o bacilo v�rgula; era assim, disse ele, virgulando o ar com o dedo indicador � e foi o diabo para mat�-lo. Ele corria, abaixo e acima, no ar, no ch�o, nas paredes, metia-se por baixo das mesas, nos chap�us, nas malas, em tudo. Felizmente, tinham-se fechado as portas, e um servente com a vassoura deu cabo do bicho. Aquele n�o pega outro.

Examinei bem o homem, que podia ser um debicador, mas n�o era. Tinha a fei��o pura do cr�dulo eterno. Fosse como fosse, n�o fiquei melhor do que estava na rua do Ouvidor, e cheguei � casa sorumb�tico. Jantei mal. De noite, li um pouco de Dante, e n�o fiz bem, porque, no circulo de voluptuosos, aqueles versos

E come i gru van cantando lor lai,

Facendo in aere di s� lunga riga,

foram a minha persegui��o durante o pesadelo, um terr�vel pesadelo que me acometeu entre uma e duas horas.

Com efeito, sonhei que era esganado por uma v�rgula, um bacilo, o pr�prio bacilo da c�lera, tal qual o descrevera o homem do bonde. Morto em poucos minutos, desci ao inferno, enquanto c� em cima me amortalhavam, encaixotavam e lavavam ao cemit�rio. No inferno, depois de atravessar v�rios c�rculos, fui dar a um, cujo ar espesso era povoado das mais infames criaturas que � poss�vel imaginar. Era uma longa fila de bacilos, tamanhos como um palmo; e n�o s� o virgula, mas todas as figuras da pontua��o.

E como i gru van cantando lor lai,

cantavam eles uma trova, sempre a mesma, meia triste, meia escarninha. O que dizia a trova, n�o sei; era uma l�ngua estranh�ssima. Vulto humano nenhum; cuidei que ia viver ali perpetuamente, e n�o pude reter as l�grimas.

Nisto, vi ao longe duas sombras, que se aproximaram lentamente e me pegaram na m�o. � Sou Epicuro, disse-me uma delas; este � Dem�crito, que recebeu de outro a doutrina dos �tomos, a qual eu perfilhei, e que tu, ap�s tantos s�culos, vais concluir. Fica sabendo que estes bacilos s�o os pr�prios �tomos em que fizemos consistir a mat�ria; por isso dissemos que eles tinham todas as figuras, desde as retil�neas at� as curvas. Curvo � o tal v�rgula que te trouxe a este mundo, do qual vais sair para pregar a verdade. Vamos dar-te o batismo da filosofia.

Epicuro assobiou. Correram dois bacilos, forma de par�nteses, e fecharam-me entre eles, como se faz na escrita (assim); depois chegou o bacilo da interroga��o, a que n�o pude responder nada. Vendo o meu sil�ncio, empertigou-se o bacilo da admira��o, enquanto os dois par�nteses iam-me fechando cada vez mais, mais mais. J� me rasgavam as carnes; entravam-me como alfanjes; eu torcia-me sem voz, at� que pude gritar: Epicuro! Dem�crito! Jos� Rodrigues!

� Que �, patr�o?

Abri os olhos, vi ao p� da cama o meu criado Jos� Rodrigues, � aquele mesmo ignaro que traduzira �deb�ntures� por �desventuras�. Ao cabo, um bom homem; pouca sufici�ncia intelectual, mas uma alma... Deu-me �gua e ficou ao p� de mim, contando-me hist�rias alegres, at� que adormeci.

De manh� corri aos jornais para saber quantos teriam morrido do c�lera durante a noite; soube que nenhum; suspeita e medo, nada mais. Entretanto, choviam conselhos e vinham descri��es; n�o s� do bacilo v�rgula, mas de todos os outros, causas das nossas enfermidades.

Li tudo a rir. Sobre a tarde, pensei no an�ncio de Epicuro. Era um sonho v�o; mas trazia uma id�ia. Quem sabe se eu n�o tinha o bacilo do g�nio... Dei um pulo, estava achada mais uma doutrina definitiva. Ei-la aqui, de gra�a.

Cada um de n�s � um composto de cidades, n�o da mesma na��o, mas de varias na��es e diferentes l�nguas, um mundo romano. Isto posto, as mol�stias que nos assaltam, s�o revolu��es interiores. As macacoas n�o passam de dist�rbios, a que a pol�cia p�e cobro. Tudo obra de bacilos; mas como tamb�m os h� da sa�de, bons cidad�os, ordeiros, amigos da lei, da paz e do trabalho, esses n�o s� nos conservam a sa�de, como subjugam e muitas vezes eliminam os tumultuosos. Os m�dicos recebem c� fora honor�rios que a justi�a mandaria pagar a esses dignos defensores da paz interior, se eles precisassem de dinheiro. Outras vezes s�o vencidos; os bacilos perversos matam o homem; � a anarquia e a dissolu��o.

Os bacilos da sa�de n�o s�o s� modelos de virtudes p�blicas e privadas. Dotados de algum intelecto, associam-se para compor um talento ou um g�nio, e s�o eles que formam as novas id�ias, discursos e livros. H� uns po�ticos, outros orat�rios, outros pol�ticos, outros cientistas. Dante era um homem de muitos bacilos. A vontade tamb�m se rege por eles; uma grande a��o pode n�o ser mais que o esfor�o comum dos bacilos do cora��o e dos rins. Enquanto eles consolidam um tecido, Napole�o ganha a batalha de Iena.

Por outro lado, sendo a sociedade um organismo, n�s somos os bacilos da sociedade. Segundo forem as qualidades desta, assim se poder� dizer que casta de bacilos � a que predomina no organismo. N�o se pode dizer, por exemplo, que tenhamos o bacilo do j�ri. Ap�s quatro ou cinco semanas de espera, compor-se-� dois dias o tribunal, e ainda assim s� depois de v�rias admoesta��es e l�stimas, por ver ca�da semelhante institui��o. Erro dos que lastimam e admoestam. � claro que n�o possu�mos o bacilo pr�prio a essa esp�cie de justi�a. Uma institui��o pode ser bonita, liberal, de boa origem, sem que todos a pratiquem eficazmente, desde que falte o bacilo criador. A considera��o de julgar os pares n�o tira ningu�m de casa, e muita gente h� que confia mais na toga que na casaca, n�o que a casaca seja mais cruel, ao contrario. Sobre isto o melhor � ler um autor recente, o Sr. Concei��o, rua da Alegria n. 22, um homem que foi por seu p� inscrever-se na lista dos jurados, que acudia ao j�ri com sacrif�cio do trabalho e do descanso, e que, ao fim de pouco tempo, viu-se recusado sempre por ambas as partes, advogado e promotor.

Mas, enfim, tudo isso s�o min�cias que n�o importam aos lineamentos da doutrina. Talvez n�o nos falte o bacilo do j�ri, mas o da reuni�o, o da assembl�ia, o de tudo que exige presen�a obrigada. A raz�o de estar a rua do Ouvidor sempre cheia � poder cada um ir-se embora; ficam todos. H� nada melhor que uma opera que entra pelo ouvido, enquanto os olhos, pegados ao bin�culo, percorrem a sala? S�o pontos que merecem estudo particular.

Resumo a doutrina. Tudo � bacilo no mundo, o que est� dentro do homem, no homem e fora do homem. A terra � um enorme bacilo, como os planetas e as estrelas, bacilos todos do infinito e da eternidade � dois bacilos sem medida de algu�m que quer guardar o inc�gnito.

3 de setembro

Quando eu soube da primeira representa��o do Alfageme de Santar�m, do �pranteado e notabil�ssimo escritor Visconde de Almeida Garret�, como dizem respeitosamente os an�ncios, e logo depois a do Lohengrin, de Wagner, fiz ten��o de dizer aos mo�os que n�o desdenhassem do passado, e aos velhos que n�o recusassem o futuro. Acrescentaria que a frescura vale a consagra��o e a consagra��o a frescura, e acabaria com esta m�xima: � A beleza � de todos os tempos.

N�o perderia muito em escrever assim, e o papel gasto valeria o assunto. N�o o digo, ou n�o continuo a dizer o que a� fica, porque seria dar entrada nesta coluna a mat�rias de outra compet�ncia, espet�culos ou livros, �bitos ou discursos. Por que lancei essas linhas? Unicamente para mostrar que h� no nosso esp�rito, assaz confian�a e liberdade para poder aplaudir as obras de arte sem cuidar do c�lera, que espero n�o venha, mas que pode vir. O cad�ver levado � Copacabana, sem cara, que provavelmente os peixes haver�o comido, e esses peixes, se forem pescados, � ou comidos por outros maiores, que se pesquem, � eis a� uma por��o de id�ias torvas. De S. Paulo nada h� mais, salvo uma carta oficial que confirma haver aparecido e desaparecido o terr�vel morbus. No Par� e Santa Catarina, receios. Enfim, estamos a trancar os portos a outros portos. Tudo isso, por�m, n�o nos dispensa da arte, � passada ou futura, � Lohengrin ou Puritanos.

O pr�prio caso do Carlo R. dava obra de arte nas m�os de um artista, um Poe, n�o menos. Ningu�m receber� esse ve�culo da peste e da morte, que embarcou mil imigrantes, j� iscados da mol�stia, e veio por essas �guas fora, em vez de tornar logo ao porto da sa�da. Um Poe imaginaria que os passageiros, agora, no alto mar, desesperados, contra o capit�o, pegavam dele e o al�avam ao mastro grande. Um dos passageiros meio n�utico, tomaria conta do navio. Vivo e sem comer, o capit�o veria morrer no tombadilho todas as suas v�timas e algozes, cinco a cinco, dez a dez, at� que ele �nico escaparia ao mal, por encontro de outro vapor que passasse e o recebesse a bordo. E de duas uma: ou o capit�o levava em si a mol�stia para bordo do navio salvador, e pagaria o bem com o mal, sem o sentir, ou n�o levava o c�lera, mas o espet�culo do tombadilho o perseguiria por toda a parte. Deste ou daquele modo, um Poe daria o �ltimo cap�tulo.

Esperemos que o navio nos haja deixado o mal, como aquele �rabe do poeta, que foi buscar a doen�a a Granada, para comunic�-la ao seus vencedores crist�os. N�o se sabe ainda se os cad�veres de Santos s�o da mesma origem que o da Copacabana; sabe-se s� que o mar os n�o quis guardar consigo. Comeu-lhes algum peda�o, mas rejeitou-os, ou por serem col�ricos ou por serem cad�veres. A terra que os engula. O fogo, se pega a lembran�a, que os consuma.

Seja o que for, como pode acontecer que o navio haja deixado algum vest�gio de si, vamos desinfectando o corpo e a alma, para qualquer eventualidade futura. Nada se perde com isto. Da alma, al�m do que nos pode dar a est�tica, incumbe-se a religi�o; e aqui devo notar, de passagem, que tive anteontem, sexta-feira, uma vis�o de outros tempos. Do bonde em que ia, de manh�, vi em poucos minutos quatro homens de opa, vara e bacia. Outrora eram muitos, depois escassearam, depois acabaram. Agora, s� em uma dire��o achei quatro. � natural que reviva o tipo. N�o me parece que seja mau; � caracter�stico, ao menos, e o incolor nos vai matando. Em crian�a, eu sabia de todas as cores de opas, verdes, roxas, brancas, encarnadas.

Perdi-lhes o sentido, mas achei a sensa��o. Faltava, � certo, a esses irm�os, a melop�ia antiga; n�o pediam cantando, nem na ocasi�o pediam nada. Iam cosidos com a parede e levavam j� muitas esmolas.

Do corpo cuidemos ao sabor da autoridade, menos eu, talvez, mas por uma raz�o s� minha, e que, ali�s, pode ser de muita gente. Tenho um grande amigo, n�o menor m�dico, ao qual ouvi uma vez � pedindo-lhe eu algum xarope que me tirasse um defluxo � que n�o era costume deste receitar xaropes aos amigos. N�o entendi bem a resposta; mas, tendo lido algures que n�o h� doen�as, mas doentes, pareceu-me que, uma vez que eu tivesse f�, a simples vista dos an�ncios de xaropes me restituiria a sa�de. Dei-me a essa terap�utica. Pegava dos jornais, ia-me aos an�ncios dos xaropes, �s cartas dos curados, agradecimentos, atestados m�dicos, isto durante dez minutos, em jejum; quatro dias depois, estava pronto. Tempo vir� em que os princ�pios sejam regulados pelo mesmo processo, com um pouco de �gua por cima. F�rmulas e �gua. E talvez os princ�pios n�o esperem pelo Lohengrin, se � que j� n�o vieram com o Alfageme. De um ou de outro modo, direi como de come�o � aos mo�os que n�o desdenhem o passado � e aos velhos que n�o recusem o futuro. A verdade, como a beleza, � de todos os tempos. Assim para os xaropes, como para os seus derivados.

O que tamb�m se pode dar indistintamente por obra do passado ou do futuro, � o que tivemos anteontem, pequeno drama de amor da rua do Senador Pompeu. O namorado atirou sobre ela e em si, morreu logo, a mo�a escapar�. Cair em cima do namorado, � o primeiro ato, em nome da moral e da justi�a. O segundo � levant�-lo �s nuvens como um modelo de paix�o, que nem quis deixar a mo�a neste mundo, matando-se, nem sacrific�-la s�, dando-lhe a morte, e com tr�s tiros buscou corrigir a fortuna e a natureza. Qualquer que ele seja, h� uma conseq��ncia certa, � que a v�tima n�o esquecer� o algoz. No turbilh�o das coisas humanas, m�s ou boas, chochas ou terr�veis, ou tudo junto, por mais que os anos se acumulem e se multipliquem, com grandes caramelos � cabe�a, ou inteiramente pelados, tr�pegos, quase sem vida, como os do casal austro-h�ngaro, que acaba de celebrar as suas bodas seculares, a �ltima id�ia que se apagar� no c�rebro da v�tima, ser� a daquele homem que, por paix�o, tentou assassin�-la. Tudo se perdoa ao amor; tudo perdoamos aos que nos adoram. E isto quer se trate de casamento, quer de poder, quer de gl�ria. A diferen�a � que os gloriosos esquecem, �s vezes, e os poderosos podem esquecer muitas.

10 de setembro

Quarta-feira, quando eu desci do bonde que me trouxe � cidade, a primeira voz que ouvi, foi este grito: �Olha o 2537, � a sorte grande para hoje!� Mais de um homem, atordoado pelos graves acontecimentos do dia, n�o chegaria a ouvir essas palavras; eu ouvi-as, decorei-as, guardei o pr�prio som comigo. De cinco em cinco minutos, a voz do pequeno (porque era um pequeno o dono da voz) berrava aos meus ouvidos: �Olha o 2537, � a sorte grande para hoje!�

Agora mesmo, ao escrever o caso, ou�o o mesmo grito, e n�o pode ser outro pequeno nem outra loteria, porque a voz � a mesma, e o n�mero � 2537. � a mem�ria que repercute o que a singularidade do momento lhe confiou, � o espectro do largo da Carioca que me acompanha, para lembrar-me que, no meio da maior agita��o do esp�rito p�blico, h� sempre um n�mero 2.537 para ser apregoado, comprado e premiado.

Nunca mais esquecerei esse n�mero. Um amigo meu, ora finado, que havia sido poeta rom�ntico, petimetre e pr�digo, guardava de mem�ria o n�mero 122. Tinha sempre encomendado um bilhete de loteria com esse n�mero. N�o importa que lhe sa�sse branco; ele teimava em compr�-lo e perd�-lo. Viveu assim anos. Poucos dias antes de morrer, saindo-lhe ainda uma vez branco o bilhete, mandou comprar outro. Como eu lhe dissesse que era melhor comprar bilhete para a viagem do c�u (tinha bastante franqueza com ele para lhe falar assim), respondeu-me com ternura e melancolia:

� Sei que l� estarei antes do fim da semana, mas � preciso justamente que leve este n�mero. Se tal pudesse ser o da sepultura que me h� de cobrir, a minha felicidade seria completa. N�o te espantes, amigo meu. Esse n�mero era o do carro em que recebi pela primeira vez a mulher que amei. Era uma cale�a, o cocheiro era gordo, foi no largo da M�e do Bispo...

N�o conto o resto; seria desvendar muitas coisas, e tu, bela dama grisalha, com os teus olhos longos e moribundos, podia ser que acabasses de morrer por uma vez, n�o de amor, mas de despeito. Descansa; calo o resto. Fica sabendo apenas, se o n�o sabias at� agora, que a cale�a tinha o n�mero 122. Era o dos amores, n�o podia ser o da loteria; mas tanto vale o prov�rbio com a supersti��o. Quem perdeu com isso? A loteria teve um fregu�s, tu uma saudade, ele um lugar no c�u. Se entre os meus leitores h� algum confiado em n�meros, tente o 122; n�o sendo o da cale�a dos seus primeiros amores, pode ser que lhe d� a sorte grande. Eu guardo o 2537, mas por outra raz�o diversa.

Diversa e grave. Esse n�mero � um documento, meio humano, meio carioca. Ele prova que h� um tanto de Pit�goras na nossa alma. Nem de outro modo se explicaria a generalidade e persist�ncia da polca, sen�o pela harmonia das esferas. Assim tamb�m o valor f�sico e metaf�sico do n�mero � uma rel�quia da velha filosofia. N�o se pode dizer que tenhamos algum dia dan�ado sobre um vulc�o, porque esse verbo � mais extenso e menos caracter�stico, al�m de ser a f�rmula incompleta. O que n�s alguma vez fizemos, foi polcar e cantar.

O eventual seduz-nos como um peda�o de mist�rio. O boi �pis, se aqui viesse, ganharia mais dinheiro que a preta velha ama de Washington, inventada por Barnum. Que nos importariam amas de ningu�m? Mas um boi que faria a felicidade ou a desgra�a de uma pessoa, segundo aceitasse ou n�o a erva que ela lhe desse, eis a� alguma coisa que fala ao cora��o dos homens. O boi �pis recusou a comida que Germ�nico lhe ofereceu, quando foi consultado; e Pl�nio, que n�o era tolo, observa com seriedade que Germ�nico morreu pouco depois.

Tu explicarias o suposto or�culo pelo fato evidente da falta de apetite. H� at� algu�m, cujo nome n�o me ocorre, que afirma n�o haver entre o homem e a besta outra diferen�a sen�o esta: que o homem come, ainda quando n�o tem fome; o que melhor explica o or�culo de �pis. Mas, francamente, que � que lucramos com a explica��o? A realidade � seca, a ci�ncia � fria; viva o mist�rio e a credulidade!

Para n�o sair do boi, Cincinatti conta alguns grandes rica�os de matadouro, que eram pobres h� poucos anos, e ora possuem n�o sei quantos milh�es de d�lares. O meu a�ougueiro � e n�o � porque venda carne boa nem barata � nunca p�de amuar quatro patacas no fundo da gaveta. H� pouco tempo disse consigo que o melhor era vender a carne ainda mais cara e mais ruim, e com o lucro comprar um bilhete de Espanha. Em boa hora o fez; tirou a sorte grande e vai fechar o a�ougue, ou d�-lo. Eu, quando soube do caso, ouvi cantar ao longe, com a mesma voz, qual ouvi h� um quarto de s�culo, este trecho dos Bavards:

C'est l'Espagne qui nous donne

Des bons vins, des belles fleurs.

Vede l�; outro eco da mem�ria. Um dia, daqui a um quarto de s�culo, pode ser que algum a�ougueiro recorra ao mesmo processo para enriquecer, como os de Cincinatti. Tanto melhor se o n�mero de Espanha for este mesmo 2537, porque eu referirei ambos os casos em uma s� cr�nica, salvo se estiver morto, � o que � poss�vel.

17 de setembro

No mesmo dia em que a imprensa anunciou o bombardeamento, duas damas anunciaram coisa diversa. �Uma senhora s�ria precisa de um homem honesto que a proteja ocultamente; quem estiver nas condi��es� etc. Assim falou uma. Aqui est� a linguagem da outra: �Uma mo�a distinta e bem educada precisa de um cavalheiro rico que a proteja ocultamente; carta� etc.

Assim, enquanto as for�as p�blicas se dividiam, for�as particulares cuidavam de unir-se a outras for�as, e ainda uma vez se dava esse contraste do caso particular com o social, � contraste aparente, como todos os demais fen�menos deste mundo. No exemplo que ora cito, � evidente que as duas obras se completam, desde que se procura corrigir a mortalidade pela natalidade. Parece um ato de mo�as vadias, e � uma opera��o econ�mica.

Vindo aos an�ncios, notai em ambos eles o verbo e o adv�rbio: �Que as proteja ocultamente�. Proteger � sin�nimo de amar, � um eufemismo, dir�o as pessoas graves, � uma corruptela, replicar�o as pessoas leves. Eu digo que � uma revivesc�ncia. O amor antigo era simples prote��o. Em vez da sociedade em comandita, a que a civiliza��o o trouxe, com lucros iguais, era um ato de dom�nio do homem e de submiss�o da mulher. Vede os costumes b�blicos, as doutrinas mu�ulmanas, as institui��es romanas e gregas. Tudo que � primitivo, traz esse caracter�stico do amor. Agora, que a revivesc�ncia seja puramente verbal, como tantas outras coisas, que apenas valem pelo nome, � o que n�o contesto. Mas � uma boa forma, delicada, modesta, graciosa, e que n�o paga mais por linha de impress�o.

Quanto ao adv�rbio, � o mais ajustado e sugestivo poss�vel. Traz um ind�cio e uma promessa. � ind�cio do recato e da situa��o da pessoa, cujas rela��es sociais ou obriga��es dom�sticas n�o permitem aceitar afoitamente um protetor oficial, confess�-lo, public�-lo, imp�-lo. Por outro lado, � uma porta aberta � imagina��o. Porta travessa, se querem; mas tudo s�o portas, uma vez que se abram e d�em passagem � pessoa, � seja para o quintal, seja para um corredor escuro. Vai-se �s apalpadelas, mas os p�s e as m�os t�m olhos, os passos est�o contados, um trecho de escada, uma saleta, outra porta. Eis o que est� no adv�rbio. Eis aqui agora o que n�o est�. N�o est� o �dio de fam�lia, nem o veneno de Romeu, nem a morte dele e de Julieta, para acabar o quinto ato e a pe�a. H� pe�a, mas n�o h� quinto ato. N�o � preciso disputar se canta o rouxinol ou a calhandra, se � meia-noite ou madrugada; o protetor traz o rel�gio no bolso do colete. Quando muito, Julieta arg�ir� o rel�gio de adiantado.

� N�o est� adiantado; s�o cinco horas e um quarto.

� � imposs�vel.

� Acertei-o ainda hoje pelo Castelo, ao meio-dia.

� Creio; mas pode n�o regular bem.

� Regula perfeitamente. Patek Philipe, uma das melhores f�bricas do mundo.

� Cinco horas e um quarto! Como passa o tempo!

� Agora amanhece tarde; � por isso que est� escuro. Adeus!

� Adeus! Olha a chave do trinco. � Est� aqui. Adeusinho!

� Adeusinho!

Isso, quando muito. Como v�em, n�o h� sombra de perigo. H� o mist�rio bastante para dar a cor do p�o vedado, e por na alma de um homem correto duas p�ginas de aventura. Perde a vaidade, mas nem tudo � vaidade neste mundo, como quer o Eclesiastes.

Que a gente nem sempre se acomode com o segredo, acredito. Tal ser� possivelmente o caso da segunda anunciante. A primeira n�o exige mais que amor e mist�rio; � uma necessitada do cora��o, e da vida; contenta-se com beijos, vestido e prato. N�o pede as estrelas do c�u, nem as grandes c�dulas dos bancos; a casinha lhe basta, os p�s podem lev�-la � rua do Ouvidor, uma vez que o protetor os calce, e n�o exigem botinas do Queiroz.

A outra senhora quer mais. � distinta, bem educada, pede prote��o e segredo, mas o cavalheiro h� de ser rico. Este � o ponto grave. Certamente, n�o faltam homens ricos de dinheiro e de amor, amigos do mist�rio, vadios do cora��o, ou de tal atividade que o possam distribuir �s mo�as pobres. Suponho que aparece � anunciante um homem de boas referencias. � aceito, sai de l� tonto.

N�o se calcula at� onde pode ir o amor de um homem em tais condi��es. Pode ir muito al�m da seda e do ouro; pode chegar ao brilhante, ao carro, � parelha de cavalos, ao lacaio de libr�, ao camarote de assinatura, � ap�lice. A ap�lice guarda-se; mas o carro e os cavalos fizeram-se para andar na rua. Os vestidos e os brilhantes saem a passeio. A gra�a n�o fica em casa, nem a eleg�ncia, nem a beleza; todos esses bens do c�u e da terra amam o ar livre: �Quem � esta que sobe pelo deserto, como uma varinha de fumo, composta de aromas de mirra e de incenso, e de toda a casta de polvilhos odor�feros?� Assim falam da Sulamitas as sagradas letras. Em linguagem menos airosa:

� Quem � esta pequena que ali vem, rua abaixo?

� Onde?

� Quase a chegar � Gazeta.

� Ah!

� N�o �? N�o a conhe�o; mas j� vi aquela cara n�o sei bem onde. A figura � esbelta; pisa que parece uma rainha. E que luxo!

� Parou; est� falando com o desembargador Garcia.

� Quem ser�?

� N�o sei, mas � de truz. Ora, espera, ontem vi-a passar no Catete, de carro, um lindo coup�, cavalos negros, branquejando de espuma que fazia gosto. Toda a gente do bonde voltou a cabe�a para o lado.

� Libr� escura?

� Cor de azeitona.

� Ent�o � a mesma que vi, h� dias, em Botafogo; agora me lembro, era esta mesma mo�a.

Ao lado dos interlocutores, parado, est� o homem das boas refer�ncias, triste e aborrecido por n�o poder arrancar da boca a rolha do mist�rio, e bradar a todos os ventos: �Sou eu! eu � que sou o dono e o autor. Eu sou o cavalheiro rico; eu � que a protejo ocultamente, que a visto, que a cal�o, que a adorno, que lhe pus carro e cavalo. S�o cavalos russos. Eu, n�o outro, eu � que a amo e sou amado. Toda ela � minha; aquele pisar � meu, aquela gra�a pertence-me, aquela beleza existia, mas fui eu que lhe dei essa rica e linda moldura. Imprimam que sou eu. Adeus, muros, chaves do trinco, passos surdos, vozes baixas, adeus! Adeus, rel�gios certos ou incertos! Entre o sol pela casa dela, como pela minha alma; abram todas as janelas do mundo. Sou eu! sou eu! sou eu!�

24 de setembro

H� uma cantiga andaluza, t�o apropriada ao meu intento, que � por ela que come�o esta cr�nica:

Un remendero fue a missa,

Y no sabia rezar,

Y andaba por los altares:

Zapatos que remendar?

Eu sou esse remend�o da cantiga. Ao p� dos altares, pergunto por tac�es corro�dos e solas rotas; � o meu brevi�rio. Nem sou o �nico remend�o deste mundo. Dizem de Alexandre Magno, que costumava dormir com a Il�ada � cabeceira. Conquanto ele fosse amigo de ler poetas e fil�sofos, creio que esta prefer�ncia dada a Homero resultava da opini�o que tinha do poema, a saber, que era um manancial das artes b�licas. Assim, naquilo em que todos v�o buscar modelos de poesia, ele, grande general, buscava a arte de combater. Eu sou um Alexandre �s avessas. Nas artes b�licas procuro a li��o do estilo. Ides v�-lo.

Neste momento, sete horas da manh�, ou�o uns tiros ao longe. S�o fortes, mas n�o sei se t�o fortes como os de ontem, sexta-feira, � tarde, quando toda a gente correu �s praias e aos morros. Nenhum deles, por�m, vale o bombardeamento do princ�pio da semana, entre 2 horas e duas e meia, e mais tarde entre quatro e cinco. Eu, nessa noite, acordei assombrado. Sonhava, ah! se soubessem em que sonhava! Sonhava que dormia, e era despertado por umas c�cegas na testa. Abri os olhos, dei com um raio da lua, que entrara pela janela aberta. E dizia-me o raio da lua: �Monta em mim, nobre mortal, anda fazer uma viagem pelo infinito acima.� Perguntei-lhe se a viagem era por tempo limitado ou eterna; respondeu-me que eterna. Eu gosto das coisas eternas. Eia, belo raio da lua, holofote da natureza, eu vou contigo, deixa-me s� enfiar as cal�as. �A toilette � na lua�, replicou ele. Montei e subimos.

N�o ponho aqui a impress�o que me fez o c�u, e principalmente a terra, � medida que eu ia subindo. Guardo essa parte para um livro sobre a teoria dos sonhos. Cheguei � beira do astro, desmontei, e pus o p� no ch�o. Segui por um caminho estreito, que ia ter a uma vasta pra�a, onde um n�mero infinito de criaturas humanas mudara as vestes carnais por outras flu�das. A opera��o foi r�pida. Depois seguia-se a segunda parte da toilette, a restitui��o das id�ias. Todas as pessoas que tinham vivido de id�ias alheias entregava-as a um coletor, que as restitu�a logo aos donos, ou ficava com elas para quando os donos houvessem de subir. Um compadre meu, que me fez sempre pasmar pela variedade e profundeza das concep��es, ficou sem migalha delas; eu, para que ele n�o aparecesse absolutamente varrido, emprestei-lhe duas id�ias chochas; que ele beijou e guardou, como fazem os pobres com os vint�ns de esmolas. Despidos da humanidade, seguimos todos para a outra beira da lua, onde uma infinidade de raios nos esperavam para levar-nos ao para�so celestial. Quando eu ia montar no meu raio, ouvi na grande noite um grito enorme e pavoroso; estremeci todo e achei-me na cama; logo depois outro grito, eram os tiros do bombardeamento.

Sentei-me na cama, e fiquei como o leitor h� de ter ficado durante os primeiros segundos. Os tiros continuaram, levantei-me e fui � janela. Qualquer pessoa acharia naquele rumor tremendo as id�ias de combate que ele trazia em si; eu, em todo esse tumulto b�lico, achei uma id�ia liter�ria. Zapatos que remendar.

Realmente, dizia eu comigo, quem uma vez tiver ouvido este rumor enorme, que abala tudo, dificilmente acabar� de crer que haja entrado em circula��o o verbo explodir. Ponho de lado a circunst�ncia de o achar detest�vel; s�o antipatias, e antipatias n�o s�o raz�es. Outrossim, n�o nego que ele venha do latim, ainda que por via de Fran�a; nunca me h�o de ver contestar genealogias ilustres. Fiquemos no fato material. Quem n�o sente, ouvindo estes tiros medonhos, que estouram como diabo? Quem n�o v� que eles saem dos canh�es com verbos en�rgicos, e que � por isso que fazem estremecer as casas?

Uma vez metido nessa ordem de racioc�nios, esqueci completamente as coisas e os efeitos dos tiros, para ficar-me s� com as sugest�es l�xicas. Eu escrevo, � n�o sei se lhes disse isto alguma vez, � pela l�ngua do meu criado, imitando Moli�re com a cozinheira. Ora, o Jos� Rodrigues nunca absolutamente viu explodir uma bomba, uma granada, um simples gr�o de milho posto ao fogo. Para ele tudo estala, rebenta, estoura. O que ele faz, � graduar a aplica��o dos verbos, de modo que jamais a pipoca estoura. Quem lhe ensinou isto, n�o sei. Talvez o leite de sua m�e.

Quando dei por mim, tudo estava silencioso. Foi o pr�prio silencio que me chamou � realidade. Eram duas horas e meia passadas. Meti-me outra vez na cama, fechei os olhos, e, � caso extraordin�rio, � achei-me no mesmo sonho, exatamente no ponto em que o deixara. Estava � beira da lua; cavalguei o meu raio, e, em menos tempo do que ponho aqui esta v�rgula, cheguei � porta do c�u. Mas vede agora o reflexo da realidade na cerebra��o inconsciente. �ramos milhares. S. Pedro, � porta do c�u, acolhia as almas com benevol�ncia. O c�u � de todos, dizia ele; mas, para n�o haver tumulto, entrem por classes. Quinze ou vinte vezes, tentei entrar, mas era sempre detido por ele, com um santo gesto misericordioso. E acrescentava que esperasse, que eu era dos pedantes. Afinal, chegou a minha vez.

Vexado da designa��o, entrei. Um serafim veio ter comigo e deu-me um grosso livro fechado. Fui dar a um vast�ssimo espa�o, onde S. Paulo dizia missa, n�o diante da imagem de Jesus, mas do pr�prio Jesus ressuscitado. Milh�es de milh�es de criaturas estavam ali ajoelhadas. Ajoelhei-me tamb�m, e, vendo que todos tinham os seus livros abertos, abri o meu... Oh! que n�o sei de nojo como o conte! Era um dicion�rio. Era o brevi�rio dos pedantes. Corri as p�ginas todas � cata de uma reza, n�o achei nada, um Padre Nosso que fosse, uma Ave Maria, nada; tudo palavras, defini��es e exemplos. Zapatos que remendar.

A missa foi longa. Quando acabou, fiquei ajoelhado, sem ousar erguer o corpo nem os olhos. Uma id�ia ruim atravessou minha alma; preferi a terra com os seus pecados ao c�u e suas bem-aventuran�as. Quando este desejo me corrompeu, ouvi um clamor enorme; pareceu-me que eram as vozes de todos os eleitos que me repeliam dali, mas n�o eram. Senti faltar-me o ch�o, achei-me solto no ar, para n�o rolar, cavalguei o livro, e vim por ali abaixo, at� cair na cama, com os olhos abertos e uma zoada nos ouvidos. Recome�ava o bombardeamento. Rebentavam, estouravam as primeiras granadas.

1 de outubro

Leitor, o mundo est� para ver alguma coisa mais grave do que pensas. Tu cr�s que a vida � sempre isto, um dia atr�s do outro, as horas a um de fundo, as semanas compondo os meses, os meses formando os anos, os anos marchando como batalh�es de uma revista que nunca mais acaba. Quando olhas para a vida, cuidas que � o mesmo livro que leram os outros homens, � um livro delicioso ou nojoso, segundo for o teu temperamento, a tua filosofia ou a tua idade. Enganas-te, amigo. Eu � que n�o quero fazer um serm�o sobre tal assunto; diria muita coisa longa e aborrecida, e � meu desejo ser, se n�o interessante, suport�vel.

Este �, ali�s, o dever de todos n�s. Sejamos suport�veis, cada um a seu modo, com perdigotos, com charadas, puxando as mangas ao advers�rio, dizendo ao ouvido, baixinho, todas as coisas p�blicas deste mundo � que choveu, que n�o choveu, que vai chover, que chove. Este �ltimo g�nero � o do homem discreto. Antes mil indiscretos; antes uma boa loja de barbeiro, uma boa farm�cia, uma boa rua. Mas, enfim, cada um tem o seu jeito peculiar. Pela minha parte, n�o farei o serm�o. Esto brevis. Vamos ao ponto do come�o.

J� notaste que o inverno vai sendo mais longo e mais intenso do que costuma. Os �ltimos tr�s dias foram quentes, � verdade; mas logo o primeiro deu sinal de chuva; no seguinte ventou e choveu; agora venta e chove. Com mais dois ou tr�s dias, tornamos � temperatura de inverno. Quem acorda cedo, quando a Aurora, como na antiguidade, abre as portas do c�u com os seus dedos cor de rosa, entender� bem o que digo. Eu levanto-me com ela, aspiro o ar da manh�, e n�o me queixo; eu amo o frio. De todos os belos versos de �lvares de Azevedo, h� um que nunca pude entender:

Sou filho do calor, odeio o frio.

Eu adoro o frio: talvez por ser filho dele; nasci no pr�prio dia em que o nosso inverno come�a. Procura no almanaque, leitor; marca bem a data, escreve-a no teu canhenho, e manda-me nesse dia alguma lembran�a. N�o quero prendas custosas, uma casa, cem ap�lices, um cron�metro, nada disso. Um quadro de Rafael, basta; um m�rmore grego, um bronze romano, uma edi��o princeps, objetos em que o valor pecuni�rio, por maior que seja, fica a perder de vista do valor art�stico. Sei que tais objetos podem n�o achar-se aqui, � m�o; mas tens tempo de os mandar buscar � Europa. S� na hip�tese de n�o os haver dispon�veis, aceito a casa ou as cem ap�lices. Quanto a retrato a �leo, n�o aceito sen�o com a condi��o de trazer moldura riqu�ssima, a fim de que se diga que o acess�rio vale mais que o principal.

Voltemos ao come�o. Enquanto o nosso frio tem sido mais prolongado e intenso, noto que os povos da Europa sentem um calor demorado e fort�ssimo. Diz-se que os homens andam com o chap�u na m�o, bufando, ingerindo gelados, dando ao diabo a esta��o. Apesar disso, fizeram-se as elei��es em Fran�a, opera��o formid�vel por causa dos in�meros com�cios em que � preciso estar, falar ou ouvir. De Londres referiu-nos o cabo telegr�fico, esta semana, que se tinham realizado as corridas de Epsom. Pior que Epsom, pior que as elei��es francesas, devem ter sido as sess�es parlamentares de Inglaterra. O primeiro ministro deu-se ao trabalho de contar os discursos proferidos na discuss�o do famoso projeto irland�s, e somou 1.393 (mil trezentos e noventa e tr�s), isto quando ele encetava justamente a ultima s�rie deles. Verdade � que todos esses discursos gastaram apenas 210 horas (duzentas e dez), n�mero que, dividido pelos discursos, d� a estes uma m�dia muito pequena. N�o posso explicar isto. Talvez os ingleses falem depressa; talvez seja uso tratar somente do objeto em discuss�o, � verdadeira restri��o � liberdade da tribuna. Se um homem n�o pode, a prop�sito da Irlanda, falar da pesca e da demiss�o de um carteiro, d�em ao diabo o parlamento e o editor dos homens que falam. Ora, nunca os editores dos homens que escrevem, cortam ou riscam o que estes p�em nos seus livros, tenha ou n�o cabida ou rela��o com o assunto, desde o micr�bio at� o macr�bio. Enfim, s�o costumes.

Comparando os dois fen�menos, l� e c�, repito o que disse a princ�pio. Leitor, o mundo est� para ver alguma coisa mais grave do que pensas. Que tenhamos de patinar na neve, que cair na rua do Ouvidor, e que os parisienses, os londrinos e outros cidad�os europeus hajam de dormir em redes, na cal�ada, ou com as portas abertas, � mat�ria que deixo � ci�ncia. N�o me cabe saber de climatologia, nem de geologias; basta-me crer que anda alguma coisa no ar.

Que coisa? N�o sei. Qualquer coisa, um feto que est� nas entranhas do futuro, � ou cinco fetos para imitar uma senhora de Aracati, esta��o da estrada de ferro Leopoldina, que acaba de dar � luz cinco criaturas. Todas gozam perfeita sa�de. Eis o que se chama vontade de criar. Parecem uns retardat�rios, munidos de bilhetes, que receiam perder o espet�culo, e entram aos magotes. N�o, amiguinhos, n�o � tarde; qualquer que seja a hora, chegareis a tempo. O espet�culo � semelhante ao panorama do Rio de Janeiro, de Victor Meirelles; est� sempre no mesmo pavilh�o. Assim pensam esp�ritos aborrecidos, desde a Jud�ia at� � Alemanha. Um padre do s�culo... Esqueceu-me o s�culo; mas h� muitos s�culos. Esse padre dizia que o mundo, j� naquele tempo, ia envelhecendo. Vedes bem que errava; o padre � que envelhecia. Como os seus cabelos brancos se refletissem nas folhas verdes da primavera, imaginou que a primavera morrera e que as neves estavam caindo. Boca que perdeu todos os dentes, pode descrer da rigidez do coco; mas o coco existe, e n�o � preciso correr aos grupos de cinco para trinc�-lo. Fique isto de conselho �s futuras crian�as.

Mas como ligo eu esta id�ia da const�ncia das coisas � da probabilidade de uma coisa nova? N�o pe�as l�gica a uma triste pena hebdomad�ria. A regra � deix�-la ir, papel abaixo, pingando as letras e as palavras, e, se for poss�vel, as id�ias. Estas acham-se muita vez desconcertadas, entre outras que n�o conhecem, ou s�o suas inimigas. N�o ligo nada, meu amigo. Quem puder que as ligue; eu escrevo, concluo e despe�o-me.

8 de outubro

Segunda-feira desta semana, o livreiro Garnier saiu pela primeira vez de casa para ir a outra parte que n�o a livraria. Revertere ad locum tuum � est� escrito no alto da porta do cemit�rio de S. Jo�o Baptista. �N�o, � murmurou ele talvez dentro do caix�o mortu�rio, quando percebeu para onde o iam conduzindo, � n�o � este o meu lugar; o meu lugar � na rua do Ouvidor 71, ao p� de uma carteira de trabalho, ao fundo, � esquerda; � ali que est�o os meus livros, a minha correspond�ncia, as minhas notas, toda a minha escritura��o�.

Durante meio s�culo, Garnier n�o fez outra coisa sen�o estar ali, naquele mesmo lugar, trabalhando. J� enfermo desde alguns anos, com a morte no peito, descia todos os dias de Santa Tereza para a loja, de onde regressava antes de cair a noite. Uma tarde, ao encontr�-lo na rua, quando se recolhia, andando vagaroso, com os seus p�s direitos, metido em um sobretudo, perguntei-lhe porque n�o descansava algum tempo. Respondeu-me com outra pergunta: Pourriez-vous r�sister, si vous �tiez forc� de ne plus faire ce que vous auriez fait pendant cinquante ans?Na v�spera da morte, se estou bem informado, achando-se de p�, ainda planejou descer na manh� seguinte, para dar uma vista de olhos � livraria.

Essa livraria � uma das �ltimas casas da rua do Ouvidor; falo de uma rua anterior e acabada. N�o cito os nomes das que se foram, porque n�o as conhecereis, v�s que sois mais rapazes que eu, e abristes os olhos em uma rua animada e populosa onde se vendem, ao par de belas j�ias, excelentes queijos. Uma das �ltimas figuras desaparecidas foi o Bernardo, o perp�tuo Bernardo, cujo nome achei ligado aos charutos do duque de Caxias, que tinha fama de os fumar �nicos, ou quase �nicos. H� casas como a Laemmert e o Jornal do Com�rcio, que ficaram e prosperaram, embora os fundadores se fossem; a maior parte, por�m, desfizeram-se com os donos.

Garnier � das figuras derradeiras. N�o aparecia muito; durante os 20 anos das nossas rela��es, conheci-o sempre no mesmo lugar, ao fundo da livraria, que a princ�pio era em outra casa, n� 69, abaixo da rua Nova. N�o pude conhec�-lo na da Quitanda, onde se estabeleceu primeiro. A carteira � que pode ser a mesma, como o banco alto onde ele repousava, �s vezes, de estar em p�. A� vivia sempre, pena na m�o, diante de um grande livro, notas soltas, cartas que assinava ou lia. Com o gesto obsequioso, a fala lenta, os olhos mansos, atendia a toda gente. Gostava de conversar o seu pouco. Neste caso, quando a pessoa amiga chegava, se n�o era dia de mala, ou se o trabalho ia adiantado e n�o era urgente, tirava logo os �culos, deixando ver no centro do nariz uma depress�o do longo uso deles. Depois vinham duas cadeiras. Pouco sabia de pol�tica da terra, acompanhava a de Fran�a, mas s� o ouvi falar com interesse por ocasi�o da guerra de 1870. O franc�s sentiu-se franc�s. N�o sei se tinha partido; presumo que haveria trazido da p�tria, quando aqui aportou, as simpatias da classe m�dia para com a monarquia orleanista. N�o gostava do imp�rio napole�nico. Aceitou a rep�blica, e era grande admirador de Gambetta.

Daquelas conversa��es tranq�ilas, algumas longas, est�o mortos quase todos os interlocutores, Liais, Fernandes Pinheiro, Macedo, Joaquim Norberto, Jos� de Alencar, para s� indicar estes. De resto, a livraria era um ponto de conversa��o e de encontro. Pouco me dei com Macedo, o mais popular dos nossos autores, pela Moreninha e pelo Fantasma Branco, romance e com�dia que fizeram as del�cias de uma gera��o inteira. Com Jos� de Alencar foi diferente; ali travamos as nossas rela��es liter�rias. Sentados os dois, em frente � rua, quantas vezes tratamos daqueles neg�cios de arte e poesia, de estilo e imagina��o, que valem todas as canseiras deste mundo. Muitos outros iam ao mesmo ponto de palestra. N�o os cito, porque teria de nomear um cemit�rio, e os cemit�rios s�o tristes, n�o em si mesmos, ao contr�rio. Quando outro dia fui a enterrar o nosso velho livreiro, vi entrar no de S. Jo�o Batista, j� acabada a cerim�nia e o trabalho, um bando de crian�as que iam divertir-se. Iam alegres, como quem n�o pisa memorial nem saudades. As figuras sepulcrais eram, para elas, lindas bonecas de pedra; todos esses m�rmores faziam um mundo �nico, sem embargo das suas flores mofinas, ou por elas mesmas, tal � a vis�o dos primeiros anos.

N�o citemos nomes.

Nem mortos, nem vivos. Vivos h�-os ainda, e dos bons, que alguma coisa se lembrar�o daquela casa e do homem que a fez e perfez. Editar obras jur�dicas ou escolares n�o � mui dif�cil; a necessidade � grande, a procura certa. Garnier, que fez custosas edi��es dessas, foi tamb�m editor de obras liter�rias, o primeiro e o maior de todos. Os seus cat�logos est�o cheios dos nomes principais, entre os nossos homens de letras. Macedo e Alencar, que eram os mais fecundos, sem igualdade de m�rito, Bernardo Guimar�es, que tamb�m produziu muito nos seus �ltimos anos, figuram ao p� de outros, que entraram j� consagrados, ou acharam naquela casa a porta da publicidade e o caminho da reputa��o.

N�o � mister lembrar o que era essa livraria t�o copiosa e t�o variada, em que havia tudo, desde a teologia at� � novela, o livro cl�ssico, a composi��o recente, a ci�ncia e a imagina��o, a moral e a t�cnica. J� a achei feita; mas vi-a crescer ainda mais, por longos anos. Quem a v� agora, fechadas as portas, trancados os mostradores, � espera da justi�a, do invent�rio e dos herdeiros, h� de sentir que falta alguma coisa � rua. Com efeito, falta uma grande parte dela, e bem pode ser que n�o volte, se a casa n�o conservar a mesma tradi��o e o mesmo esp�rito.

Pessoalmente, que proveito deram a esse homem as suas labuta��es? O gosto do trabalho, um gosto que se transformou em pena, porque no dia em que devera libertar-se dele, n�o p�de mais; o instrumento da riqueza era tamb�m o do castigo. Esta � uma das miseric�rdias da Divina Natureza. N�o importa: laboremos. Valha sequer a mem�ria, ainda que perdida nas p�ginas dos dicion�rios biogr�ficos. Perdure a not�cia, ao menos, de algu�m que neste pa�s novo ocupou a vida inteira em criar uma ind�stria liberal, ganhar alguns milhares de contos de r�is, para ir afinal dormir em sete palmos de uma sepultura perp�tua. Perp�tua!

15 de outubro

Entrou a esta��o eleitoral. Come�a a floresc�ncia das circulares pol�ticas. H� climas em que este g�nero de planta � mais decorativo que efetivo; as arengas a� valem mais. Entre n�s, sem deixar de ser decorativa, a circular dispensa o discurso.

Realmente, ajuntarem-se trezentas, seiscentas, mil, duas, tr�s, cinco mil pessoas para escutar durante duas horas o que pensa o Sr. X. de algumas quest�es p�blicas, n�o � neg�cio de f�cil desempenho. Creio que vai nisso mais costume ou afeta��o que necessidade pol�tica. Vai tamb�m um tanto de ast�cia. Os candidatos percebem naturalmente que homens juntos s�o mais aptos para aceitar uma banalidade do que absolutamente separados. Mais aptos, note-se, n�o nego que, dentro do pr�prio quarto, sem mulher, sem filhos, sem criados, sem retratos, sem sombra de gente, um homem tenha a aptid�o precisa para aceitar uma id�ia sem valor. A aptid�o, por�m, cresce com o n�mero e a comunh�o das pessoas.

A circular � outra coisa. A primeira vantagem da circular � n�o ser longa. N�o pode ser longa; � cada vez mais curta, algumas s�o curt�ssimas. A segunda vantagem � ir buscar o eleitor; n�o � o eleitor que vai ouvi-la da boca do candidato. Vede bem a diferen�a. Em vez de convidar-me a deixar a fam�lia, o sossego, o passeio, a palestra, a circular deixa-me digerir em paz o jantar e dormir. Na manh� seguinte, ao caf�, � que ela aparece, ou em forma de carta selada, ou simplesmente impressa nos jornais, o que � mais expedito e mais para se ler. � preciso n�o conhecer a natureza humana para n�o ver que h� j� em mim alguma simpatia para o homem que assim me comunica as suas id�ias, no remanso do meu gabinete, pelo telefone de Gutenberg.

Agora mesmo acabo de ler a circular do Sr. Malvino Reis. � um documento interessante e pr�tico. Tenho notado que o esp�rito acad�mico, o scholar, inclina-se particularmente � teoria, pronto em admitir uma id�ia apenas indicada no livro de propaganda. O homem de outra origem e diversa profiss�o � essencialmente pr�tico; vai ao necess�rio e ao poss�vel. N�o se deixa levar pela beleza de uma doutrina, muita vez inconsciente, muita vez oposta � realidade das coisas. Por exemplo, o Sr. Malvino Reis n�o apresenta programa pol�tico, e d� a raz�o desta lacuna: �No momento atual em que, infelizmente, nossa p�tria se acha envolvida em uma como��o interna, que todos lastimamos e que todo o cora��o brasileiro acha-se enlutado, n�o � ocasi�o pr�pria para a apresenta��o de programas pol�ticos...�

A tese � discut�vel. Parece, ao contr�rio, que os programas pol�ticos s�o sempre indispens�veis, uma vez que � por estes que o eleitor avalia a candidatura; mas � preciso ler para diante, a fim de apanhar todo o pensamento: �... programas pol�ticos, que geralmente s�o alterados...� Aqui est� o esp�rito pr�tico. Explica-se a lacuna, porque os programas costumam ser alterados; n�o alterados ao sabor do capricho ou do interesse, mas segundo a hip�tese formulada no final do per�odo: �... alterados, quando assim o exige o bem p�blico.� N�o � usual esta franqueza; por isso mesmo � que esse documento pol�tico se destacar� da grande maioria deles.

Outro ponto em que a circular confirma o meu ju�zo � o post-scriptum. Diz-se a� que �o 2� distrito � composto das freguesias de S. Jos�, Sacramento, Santo Ant�nio, Sant'Ana. Esp�rito-Santo e S. Crist�v�o.� Aparentemente � ocioso. Indo ao �mago, v�-se a necessidade, e descobre-se quanto o candidato conhece o eleitor. O eleitor �, em grande parte, distra�do, indolente e um pouco ignorante. Pode saber a que freguesia pertence, mas, em geral, n�o suspeita do seu distrito. Da� o memento final. � pr�tico. Outros cuidariam mais da linguagem; melhor � curar do que interessa ao voto e seus efeitos.

N�o me acusem de parcialidade, nem de estar a recomendar um nome. N�o conhe�o nomes, emprego-os porque � um modo de distinguir os homens. Um ponto h� em que a circular do Sr. Malvino Reis combina com as do Sr. Ribeiro de Almeida e Dr. Alves da Silva, candidatos pelo 7� distrito de Minas: � a economia dos dinheiros p�blicos. Nunca leio esta frase que me n�o lembre de um minist�rio de 186..., cujo programa, exposto pelo respectivo chefe, consistia em duas coisas: a economia dos dinheiros p�blicos e a execu��o das leis. Eis a� um credo universal, um templo �nico. Eu, se estivesse ent�o na c�mara, qualquer que fosse o meu programa pol�tico, alterava-o com certeza. Assim o exigia o bem p�blico.

N�o pus o ano exato do minist�rio, por me n�o lembrar dele, n�o por esconder a minha idade. Assim tamb�m, � entre par�ntesis, � se na cr�nica passada disse conhecer o finado Garnier, h� vinte anos, a culpa n�o foi minha, nem da composi��o, nem da revis�o, mas desta letra do diabo. Trinta anos � que devia ter sa�do. Mas que querem? Tamb�m a letra envelhece. A minha, quando mo�a, n�o era bonita, mas fazia-se entender melhor. H� dias dei com um antigo bilhete de Jos� Telha. Que corte de letra, Deus dos ex�rcitos! era um regimento de soldados, mais ou menos bem alinhados, marchando com regularidade, a tempo. Hoje � uma turba de recrutas. Entretanto, Jos� Telha n�o � velho; mas, se h� pessoas que precedem a letra, como o Sr. senador Cristiano Otoni, cuja escrita de octogen�rio tem a virilidade antiga, letras h� que precedem a pessoa; � o caso de Jos� Telha. Em qual das classes estarei eu? retournons � nos moutons.

Estes carneiros eram, se bem me lembro, a execu��o das leis e a economia dos dinheiros p�blicos.

Seria injusti�a dizer que os dois candidatos do 7� distrito de Minas limitam � economia o seu programa. H� mais que ela. Uma das circulares, posto tenha apenas dez linhas, encerra quatro id�ias. N�o s�o novas, mas s�o id�ias. A outra � menos curta, mas pouco mais tem do dobro. Entre os artigos do programa desta, figura a liberdade religiosa, que n�o parece bastante ao candidato, uma vez que o casamento civil � obrigat�rio; quer torn�-lo facultativo. A circular fala tamb�m da necessidade de medidas que fixem o trabalhador nas fazendas. Pela minha parte, n�o vejo nada t�o eficaz como o contrato da antiga c�mara municipal com um empres�rio da numera��o de casas, legalizado por uma postura. Muda-se o n�mero de uma casa, p�e-se-lhe placa nova, e o morador recebe um aviso impresso desse benef�cio, no qual se lhe diz que v� pagar o pre�o � rua (creio que Nova do Ouvidor) sob pena de cadeia.

Quanto �s outras partes do programa da circular... Mas aonde vou eu neste andar administrativo e pol�tico? Musa da cr�nica, musa v�ria e leve, sacode essas grossas botas eleitorais, cal�a os sapatinhos de cetim, e dan�a, dan�a na pontinha dos p�s, como as bailarinas de teatro; gira, salta, deixa-te cair de alto, com todas as tuas escumilhas e pernas posti�as. Antes posti�as que nenhumas.

29 de outubro

�... Mas por que � que n�o adoece outra vez? No domingo passado, esteve aqui um senhor alto, cheio, bem-nascido, que me deu not�cias suas, disse-me que havia adoecido, � adoecido ou nadado?

� Adoecido; mas doen�as, minha senhora, n�o se compram na botica, posto se agravem nela, alguma vez. A minha achou felizmente um botic�rio consciencioso, que, depois de me haver dado um vidro de rem�dio e o troco do dinheiro, disse-me com um gesto mais doutoral que farmac�utico: �N�o desanime; a sua mol�stia tem um prazo certo; s�o tr�s per�odos.� Quis pedir o dinheiro, restituir o vidro e esperar o fim do prazo certo, mas o homem j� ouvia outro fregu�s, igualmente enfermo dos olhos, e naturalmente ia preparar-lhe o mesmo rem�dio, pelo mesmo pre�o, com o mesmo prazo e igual anima��o.

� Ent�o, n�o foi nadando que...

� N�o, bela criatura, eu n�o sei nadar. Outrora, quando tomava banhos de mar... Sim, houve tempo em que penetrei no seio de Anfitrite, com estes p�s que a senhora est� vendo, e com estes bra�os; fic�vamos peito a peito; eu chegava a meter a cabe�a na bela coma verde da deusa, mas n�o sa�a da beira da praia. Se o seio lhe intumescia um pouco mais, por efeito de algum suspiro, eu, cheio de respeito, desandava. Quando V�nusa flagelava muito, eu n�o penetrava; deixava-me ficar do lado de fora, olhando com vontade e com pena.

� (� parte) Singular banhista!

� A senhora diz?

� Que tinha bem vontade de ver outra vez o senhor que aqui esteve, domingo passado. Ele que faz?

� Minha senhora, ele presentemente cessa de engordar. Anda l�pido, come bem, dorme bem, escreve bem, nada bem. Quer-me at� parecer que o nadador de que lhe falou, � ele mesmo; disse aquilo para desviar as aten��es, mas n�o � outro.

� Ah! tamb�m penetra no seio de Anfitrite?

� Penetra, e sempre com estes dois versos de Cam�es, na boca:

Todas as deusas desprezei do C�u,

S�por amar das �guas a princesa.

� Gracioso!

� Gracioso, mas falso; � um modo de cativar a deusa. A senhora sabe que n�o h� coisa que mais enterne�a uma deusa, que falar de sentimentos exclusivos. Ele � fino; n�o h� de ir dizer a Anfitrite que a todas as deusas prefere a majestosa Juno ou a guerreira Palas; mas creia que � tamb�m guerreiro e majestoso. Naquele dia, enquanto bracejava atrav�s da onda marinha, fazia de Merc�rio, com a diferen�a que levava os recados na barriga.

� Ent�o, deveras, foi ele?

� Positivamente, n�o sei: mas vou dizendo que foi, j� por vingan�a, j� porque n�o conhe�o nada mais recreativo que espalhar um boato. O v�cio � muita vez um boato falso, e h� virtudes que nunca foram outra coisa. Digo-lhe mais: este mundo em que a senhora sup�e viver, n�o passa talvez de um simples boato. Os anjos, para matar o imortal tempo, fizeram correr pelo infinito o boato da cria��o, e n�s, que imaginamos existir, n�o passamos das pr�prias palavras do boato, que rolam por todos os s�culos dos s�culos.

� Palavras apenas?

� Palavras, frases. A senhora � uma linda frase de artista. Tem nas formas um magn�fico substantivo: os adjetivos s�o da casa de Madame Guimar�es. A boca � um verbo. Et verbo caro facta est.

� A� vem o senhor com as suas gra�as sem gra�a. N�o me h� de fazer crer que a explos�o da ilha Mocangu� foi uma v�rgula...

� N�o foi outra coisa. O bombardeio � uma retic�ncia, a mol�stia um solecismo, a morte um hiato, o casamento um ditongo, as lutas parlamentares, eleitorais e outras uma cacofonia.

� Ainda uma vez, por que n�o adoeceu esta semana? Est� sopor�fero. Quisera saber de uma por��o de coisas, mas n�o lhe pergunto nada. Adeus.

� N�o, n�o me mande embora, deixe-me ficar ainda um instante. � t�o bom v�-la, mir�-la... E depois, advirto que estou apenas na tira oitava, e tenho de dar, termo m�dio, doze.

� Vamos; fale por tiras.

� Tomara poder falar-lhe por volumes, por bibliotecas. N�o esgotaria o assunto; tudo seria pouco para dizer os seus feiti�os e o gosto que sinto em estar a seu lado. Compreendo Tartufo ao p� de Elmira: Je t�te votre habit; l'�toffe en est moelleuse... V�; responda que a senhora � fort chatouilleuse, para conservar a rima do texto, mas emendemos Moli�re. Eu, para mim, tenho que Tartufo � um caluniado. A verdade � que, sem acomoda��es com o C�u, este mundo seria insuport�vel. E o C�u � o mais acomodat�cio dos credores. Judas ainda pode ser perdoado. Pilatos tamb�m; lembre-se que ele come�ou por lavar as m�os; lave a alma, e est� a caminho. Sendo assim, que mal h� na bonomia que Tartufo atribui ao C�u? �Oh! fazenda macia que � a deste seu vestido!� Que estreme��es s�o esses, meu Deus?

� Ou�o o bombardeio.

� N�o � bombardeio. � o meu cora��o que bate. A artilharia do meu amor � extraordin�ria; n�o digo �nica, porque h� a de Otelo. Pouco abaixo de Otelo, estamos Fedra e eu. J� notou que n�o me comparo nunca a gente mi�da?

� J�; assim como tenho notado que o senhor � muito derretido.

� Querida amiga, isso n�o depende da cera, mas do fogo. Que h� de fazer uma vela acesa, sen�o derreter-se? � a �nica raz�o de haver f�brica de velas; se elas durassem sempre, acabavam as f�bricas, os fabricantes, e conseq�entemente as pr�prias velas. Creio que h� aqui alguma contradi��o; mas a contradi��o � deste mundo. Para longe os racioc�nios perfeitos e os homens imut�veis! Cada erro de l�gica pode ser um tento que a imagina��o ganhe, e a imagina��o � o sal da vida. Quanto aos homens imut�veis, s�o de duas ordens, � os que se limitam a s�-lo sem confess�-lo, � e os que o s�o, e o proclamam a todos os ventos. A perfei��o � diz�-lo sem o ser. Um homem que passe por v�rias opini�es, e demonstre que s� teve uma opini�o na vida, esse � a perfei��o buscada e alcan�ada. A modo que a senhora est� bocejando? A culpa � sua, se me meto em assuntos �ridos; pod�amos ter continuado Tartufo.

� Quantas tiras?

� Come�o a d�cima segunda. A senhora faz-me lembrar uma borboleta que encontrei ontem na Rua da Assembl�ia. A Rua da Assembl�ia n�o � passeio ordin�rio de borboletas; n�o h� ali flores nem �rvores. Esta de que lhe falo, agitava as asas de um lado para outro, abaixo e acima, de porta em porta. Suspendendo as minhas reflex�es aborrecidas, parei alguns instantes para observar. Evidentemente, estava perdida; descera de algum morro ou fugira de algum jardim, se os h� por ali perto. De repente, sumiu-se; eu meti a cabe�a no ch�o e segui com as minhas cogita��es t�tricas. Mas a borboleta apareceu de novo, para tomar a sumir-se e reaparecer, segundo eu estacava o passo ou ia andando. Finalmente, encontrei um amigo que me convidou a tornar uma x�cara de caf� e quatro boatos. A borboleta sumiu-se de todo. Conclua.

� As asas eram azuis?

� Azuis.

� Rajadas de ouro?

� De ouro.

� N�o era eu; era um fiozinho de poeira, que forcejava por arranc�-lo aos pensamentos l�gubres. H� desses fen�menos. Agora mesmo, parece-me ver, ao longe, um pontozinho luminoso.

� N�o, senhora; est� perto, e � escuro; � o ponto final.

� Que n�o seja boato, como tantos!

5 de novembro

H� na com�dia Verso e Reverso, de Jos� de Alencar, um personagem que n�o v� ningu�m entrar em cena, que n�o lhe pergunte: � Que h� de novo? Esse personagem cresceu com os trinta e tantos anos que l� v�o, engrossou, bracejou por todos os cantos da cidade, onde ora ressoa a cada instante: � Que h� de novo? Ningu�m sai de casa que n�o ou�a a infal�vel pergunta, primeiro ao vizinho, depois aos companheiros de bonde. Se ainda n�o a ouvimos ao pr�prio condutor do bonde, n�o� por falta de familiaridade, mas porque os cuidados pol�ticos ainda o n�o distra�ram da cobran�a de passagens e da troca de id�ias com o cocheiro. Tudo, por�m, chega a seu tempo e compensa o perdido.

Confesso que esta semana entrei a aborrecer semelhante interroga��o. N�o digo o n�mero de vezes que a ouvi, na segunda-feira, para n�o parecer inveross�mil. Na ter�a-feira, cuidei l�-la impressa nas paredes, nas caras, no ch�o, no c�u e no mar. Todos a repetiam em torno de mim. Em casa, � tarde, foi a primeira coisa que me perguntaram. Jantei mal; tive um pesadelo; trezentas mil vozes bradaram do seio do infinito: � Que h� de novo? Os ventos, as mar�s, a burra de Bala�o, as locomotivas, as bocas de fogo, os profetas, todas as vozes celestes e terrestres formavam este grito un�ssono: � Que h� de novo?

Quis vingar-me; mas onde h� tal a��o que nos vingue de uma cidade inteira? N�o podendo queim�-la, adotei um processo delicado e amigo. Na quarta-feira, mal sa� � rua, dei com um conhecido que me disse, depois dos bons dias costumados:

� Que h� de novo?

� O terremoto.

� Que terremoto? Verdade � que esta noite ouvi grandes estrondos, tanto que supus serem as fortalezas todas juntas. Mas h� de ser isso, um terremoto; as paredes da minha casa estremeceram; eu saltei da cama; estou ainda surdo... Houve algum desastre?

� Ru�nas, senhor, e grandes ru�nas.

� N�o me diga isso! A Rua do Ouvidor, ao menos...

� A Rua do Ouvidor est� intacta, e com ela a Gazeta de Not�cias.

� Mas onde foi?

� Foi em Lisboa.

� Em Lisboa?

� No dia de hoje, 1� de novembro, h� s�culo e meio. Uma calamidade, senhor! A cidade inteira em ru�nas. Imagine por um instante, que n�o havia o Marqu�s de Pombal, � ainda o n�o era, Sebasti�o Jos� de Carvalho, um grande homem, que p�s ordem a tudo, enterrando os mortos, salvando os vivos, enforcando os ladr�es, e restaurando a cidade. Fala-se da reconstru��o de Chicago; eu creio que n�o lhe fica abaixo o caso de Lisboa, visto a diferen�a dos tempos, e a dist�ncia que vai de um povo a um homem. Grande homem, senhor! Uma calamidade! uma terr�vel calamidade!

Meio emba�ado, o meu interlocutor seguiu caminho, a buscar not�cias mais frescas. Peguei em mim e fui por a� fora distribuindo o terremoto a todas as curiosidades insaci�veis. Tornei satisfeito a casa; tinha o dia ganho.

Na quinta-feira, dois de novembro, era minha inten��o ir t�o-somente ao cemit�rio; mas n�o h� cemit�rio que valha contra o personagem do Verso e Reverso. Pouco depois de transpor o port�o da l�gubre morada, veio a mim um amigo vestido de preto, que me apertou a m�o. Tinha ido visitar os restos da esposa (uma santa!), suspirou e concluiu:

� Que h� de novo?

� Foram executados.

� Quem?

� A coragem, por�m, com que morreram, compensou os desvarios da a��o, se ela os teve; mas eu creio que n�o. Realmente, era um esc�ndalo. Depois, a trai��o do pupiloe afilhado foi indigna; pagou-se-lhe o pr�mio, mas a indigna��o p�blica vingou a morte do tra�do.

� De acordo: um pupilo... Mas quem � o pupilo?

� Um miser�vel, L�zaro de Melo.

� N�o conhe�o. Ent�o, foram executados todos?

� Todos; isto �, dois. Um dos cabe�as foi degredado por dez anos.

� Quais foram os executados?

� Sampaio...

� N�o conhe�o.

� Nem eu; mas tanto ele, como o Manuel Beckman, executados neste triste dia de mortos... L� v�o dois s�culos! Em verdade, passaram mais de duzentos anos, e a mem�ria deles ainda vive. Nobre Maranh�o!

O vi�vo mordeu os bei�os; depois, com um toque de ironia triste, murmurou:

� Quando lhe perguntei o que havia de novo, esperava alguma coisa mais recente.

� Mais recente s� a morte de Rocha Pita, neste mesmo dia, em 1738. Note como a hist�ria se entrela�a com os historiadores; morreram no mesmo dia, talvez � mesma hora, os que a fazem e os que a escrevem.

O vi�vo sumiu-se; eu deixei-me ir costeando aquelas casas derradeiras, cujos moradores n�o perguntaram nada, naturalmente porque j� tiveram resposta a tudo. Necr�pole da minha alma, a� � que eu quisera residir e n�o nesta cidade inquieta e curiosa, que n�o se farta de perscrutar, nem de saber. Se a� estivesse de uma vez, n�o ouviria como no dia seguinte, sexta-feira, a mesma eterna pergunta. Era j� cerca de 11 horas quando sa� de casa, armado de um naufr�gio, um terr�vel naufr�gio, meu amigo.

� Onde? Que naufr�gio?

� O cad�ver da principal v�tima n�o se achou; o mar serviu-lhe de sepultura. Natural sepultura; ele cantou o mar, o mar pagou-lhe o canto arrebatando-o � terra e guardando-o para si. Mas v� que se perdesse o homem; o poema, por�m, esse poema, cujos quatro primeiros cantos a� ficaram para mostrar o que valiam os outros... Pobre Brasil! pobre Gon�alves Dias! Tr�s de novembro, dia terr�vel; 1864, ano detest�vel! Lembro-me como se fosse hoje. A not�cia chegou muitos dias depois do desastre. O poeta voltava ao Maranh�o...

Raros ouviam o resto. Os que ouviam, mandavam-me interiormente a todos os diabos. Eu, sereno, ia contando, contando, e recitava versos, e dizia a impress�o que tive a primeira vez que vi o poeta. Estava na sala de reda��o do Di�rio do Rio, quando ali entrou um homem pequenino, magro, ligeiro. N�o foi preciso que me dissessem o nome; adivinhei quem era. Gon�alves Dias! Fiquei a olhar, pasmado, com todas as minhas sensa��es e entusiasmos da adolesc�ncia. Ouvia cantar em mim a famosa Can��o do Ex�lio. E toca a repetir a can��o, e a recitar versos sobre versos. Os intr�pidos, se me ag�entavam at� o fim, marcavam-me; eu s� os deixava moribundos.

No s�bado, notei que os perguntadores fugiam de mim, com receio, talvez, de ouvir a queda do imp�rio romano ou a conquista do Peru. Eu, por n�o fiar dos tempos, sa� com a morte de Torres Homem no bolso; era recent�ssima, podia enganar o est�mago. Creio, por�m, que a explos�o da v�spera bastou �s curiosidades vadias. N�o me arguam de impiedade. Se � certo, como j� se disse, que os mortos governam os vivos, n�o � muito que os vivos se defendam com os mortos. D�-se assim uma confedera��o t�cita para a boa marcha das coisas humanas.

Hoje n�o saio de casa; ningu�m me perguntar� nada. N�o me perguntes tu tamb�m, leitor indiscreto, para que eu te n�o responda como na com�dia, ap�s o desenlace: � Que h� de novo? inquire o curioso, entrando. E um dos rapazes: � Que vamos almo�ar.

12 de novembro

Durantea semana houve algumas pausas, mais ou menos raras, mais ou menos prolongadas; mas os tiros comeram a maior parte do tempo. Basta dizer que foram mais numerosos que os boatos. Aquela quadra pr�-hist�rica, em que um tiro de pe�a, ouvido � noite, era o sinal para consultar e acertar os rel�gios, n�o se pode j� comparar a estes dias terr�veis, em que os tiros parecem pancadas de um rel�gio enorme, de um rel�gio que p�ra �s vezes, mas a que se d� corda com pouco:

Never � forever,

Forever �  never,

tal qual na balada de Longfellow. A poesia, meus amigos, est� e tudo, na guerra como no amor.

Relevem-me aqui uma ilustre banalidade. Que � o amor mais que uma guerra, em que se vai por escaramu�as e batalhas, em que h� mortos e feridos, her�is e multid�es ignoradas? Como os outros bombardeios, o amor atrai curiosos. A vida, neste particular, � uma intermin�vel Praia da Gl�ria ou do Flamengo. Quando Dafne e Clo� travam as suas lutas, s�o poucos os �culos e bin�culos da gente vadia para contar as balas, ou que se perdem, ou que se aproveitam, n�o falando dos naturais holofotes que todos trazemos na cara.

De mim digo, por�m, que aborre�o a galeria. Uma vez desci do bonde, na Praia da Gl�ria, para ceder ao convite de um amigo que queria ver o bombardeio. Desci ainda outra vez para escapar a um sujeito que me contava a Guerra da Crim�ia, onde n�o esteve, n�o havendo nunca sa�do daqui, mas que se ligava � sua adolesc�ncia, por serem contempor�neos. Ningu�m ignora que os sucessos deste mundo, dom�sticos ou estranhos, uma vez que se liguem de algum modo aos nossos primeiros anos, ficam-nos perpetuados na mem�ria. Por que � que, entre tantas coisas infantis e locais, nunca me esqueceu a not�cia do golpe de Estado de Lu�s Napole�o? Pelo espanto com que a ouvi ler. As famosas palavras: Sa� da legalidade para entrar no direito ficaram-me na lembran�a, posto n�o soubesse o que era direito nem legalidade. Mais tarde, tendo reconhecido que este mundo era uma inf�ncia perp�tua, conclu� que a proclama��o de Napole�o III acabava como as hist�rias de minha meninice: �Entrou por uma porta, saiu por outra, manda el-rei nosso senhor que nos conte outra�. Por exemplo, o dia de hoje, 12 de novembro, � o anivers�rio do golpe de Estado de Pedro I, que tamb�m saiu da legalidade para entrar no direito.

Mas n�o quero ir adiante sem lhes dizer o que me sucedeu, quando pela segunda vez desci na Praia da Gl�ria, a pretexto de ver o bombardeio. Estive ali uns dez minutos, os precisos para ouvir a um homem, e depois a outro homem, coisas que achei dignas do prelo. O primeiro defendia a tese de que os tiros eram necess�rios, mormente os de canh�o-rev�lver, e tamb�m as explos�es de pai�is de p�lvora. Dizia isto com tal placidez, que cuidei ouvir um simples amador; mas o segundo homem retificou esta minha impress�o, dizendo-me, logo que o outro se retirou: � �� um vidraceiro; n�o quer a morte de ningu�m, quer os vidros quebrados.� E o segundo homem, ar grave, declarou que abominava as lutas civis, concluindo que ningu�m tinha a vida segura nesta troca de bombardas; ele, pela sua parte, j� fizera testamento, n�o sabendo se voltaria para casa, visto que a exist�ncia dependia agora de uma bala fortuita. Gostei de ouvi-lo. Era o contraste judicioso e melanc�lico do primeiro. Quando ele se despediu, perguntei a um terceiro: �Quem � este senhor?� � �� um tabeli�o�, respondeu-me.

Assim vai o mundo. Nem sempre o cidad�o mata o homem. E Bruto, o cidad�o, tamb�m � homem, diz um verso de Garret. Deixem-me acrescentar, em prosa, que o homem � muitas vezes mulher, por esse v�cio de curiosidade que herdou da nossa m�e Eva, � outra ilustre banalidade. � a segunda que digo hoje. Rigorosamente, devia parar aqui; mas ent�o n�o falaria das emiss�es particulares que est�o aparecendo em Joinville, Cataguases e Campos. A Gazeta, anteontem, transcreveu tr�s notas campistas, e indignou-se. Prova que � mais mo�a que eu. H� muitos anos, 1868 ou 1869, lembro-me bem ter visto em Petr�polis bilhetes de emiss�es particulares, n�o impressos, mas ingenuamente manuscritos. N�o traziam filetes nem emblemas; n�o se davam ao escr�pulo dos n�meros de s�rie. Vale tanto, ou vale isto, mais nada. N�o posso afirmar com seguran�a se ainda se conhecia a origem de alguns; mas creio que sim.

Esta quest�o prende com uma teoria, que reputo verdadeira, a saber, que o direito de emitir � individual. Cada homem pode p�r em circula��o o n�mero de bilhetes que lhe parecer. Ser�o aceitos at� onde for a confian�a. O cr�dito responder� pelo valor. Nesta hip�tese, melhor � o manuscrito que o impresso; porque o impresso � de todos, e o manuscrito � meu. Entendam-me bem. N�o admiro a cl�usula for�ada da troca do bilhete por outro, prata ou papel do Estado; seria rebaixar a uma permuta de coisas tang�veis uma opera��o que deve repousar pura e simplesmente no cr�dito, �essa alavanca do progresso e da civiliza��o�, para falar como o meu criado. Isto posto, a sociedade ter� achado o eixo que perdeu desde a morte do feudalismo. A fome morrer� de fome. Ningu�m pedir�, todos dar�o.

N�o me acordeis, se � sonho. Mas n�o � sonho. Vejo mais que todos v�s que vos supondes acordados. Se descreis disto, chegareis a descrer do espiritismo, perdereis a pr�pria raz�o. Que radioso para�so! Nesse dia, o tempo ser� aquele mesmo rel�gio que o poeta americano p�s na escada dos seus versos; mas a p�ndula n�o bater� mais que amor, paz e abund�ncia, com esta pequena altera��o do estribilho:

Ever � forever!

Forever � ever!

19 de novembro

Um diadestes,lendo nos di�rios alguns atestados sobre as excel�ncias do xarope Cambar�, fiz uma observa��o t�o justa que n�o quero furt�-la aos contempor�neos, e porventura aos p�steros. Verdadeiramente, a minha observa��o � um problema, e, como o de Hamlet, trata da vida e da morte. Quando a gente n�o pode imitar os grandes homens, imite ao menos as grandes fic��es.

E por que n�o hei de eu imitar os grandes homens? Conta-se que Xerxes, contemplando um dia o seu imenso ex�rcito, chorou com a id�ia de que, ao cabo de um s�culo, toda aquela gente estaria morta. Tamb�m eu contemplo, e choro, por efeito de igual id�ia; o ex�rcito � que � outro. N�o s�o os homens que me levam � melancolia persa, mas os rem�dios que os curam. Mirando os rem�dios vivos e eficazes, fa�o esta pergunta a mim mesmo: Por que � que os rem�dios morrem?

Com efeito, eu assisti ao nascimento do xarope... Perd�o; vamos atr�s. Eu ainda mamava, quando apareceu um m�dico que �restitu�a a vista a quem a houvesse perdido�. Chamava-se o autor Ant�nio Gomes, que o vendia em sua pr�pria casa, Rua dos Barbonos n� 26. A Rua dos Barbonos era a que hoje se chama do Evaristo da Veiga. Muitas pessoas colheram o benef�cio inestim�vel que o rem�dio prometia. Sa�ram da noite para a luz, para os espet�culos da natureza, dispensaram a muleta de terceiro, puderam ler, escrever, contar. Um dia, Ant�nio Gomes morreu. Era natural; morreu como os soldados de Xerxes. O inventor da p�lvora, quem quer que ele fosse, tamb�m morreu. Mas por que n�o sobreviveu o col�rio de Ant�nio Gomes, como a p�lvora? Que raz�o houve para acabar com o autor uma inven��o t�o �til � humanidade?

N�o se diga que o col�rio foi vencido pelo rap� Grimstone, �vulgarmente denominado de alfazema�, seu contempor�neo. Esse, conquanto fosse um bom espec�fico para mol�stias de olhos, n�o restitu�a a vista a quem a houvesse perdido; ao menos, n�o o fazia contar. Quando, por�m, tivesse esse mesmo efeito, tamb�m ele morreu, e morreu duas vezes, como rem�dio e como rap�.

As inflama��es de olhos tinham, ali�s, outro inimigo terr�vel nas �p�lulas universais americanas�; mas, como estas eram universais, n�o se limitavam aos olhos, curavam tamb�m sarnas, �lceras antigas, erup��es cut�neas, erisipela e a pr�pria hidropisia. Vendiam-se na farm�cia de Louren�o Pinto Moreira; mas o �nico dep�sito era na Rua do Hosp�cio n� 40. Eram p�lulas provadas; n�o curavam a todos, visto que h� diferen�a nos humores e outras partes; mas curavam muita vez e aliviavam, sempre. Onde est�o elas? Sabemos n�mero da casa em que moravam; n�o conhecemos o da cova e que repousam. N�o se sabe sequer de que morreram; talvez um duelo com as �p�lulas cat�rticas do farmac�utico Carvalho J�nior�, que tamb�m curavam as inflama��es de olhos e mol�stias da pele com esta particularidade que dissipavam a melancolia. Eram �teis no reumatismo, eficazes nos males de est�mago, e faziam vigorar cor do rosto. Mas tamb�m estas descansam no Senhor, como os velhos hebreus.

Para que falar do �elixir antiflegm�tico�, do �b�lsamo homog�neo� e tantos outros preparados contempor�neos da Maioridade? O xarope a cujo nascimento assisti, foi o �Xarope do Bosque�, um rem�dio composto de vegetais, como se v� do nome, e deveras miraculoso. Era bem pequeno, quando este preparado entrou no mercado; chego � maturidade, j� n�o o vejo entre os vivos. � certo que a vida n�o � a mesma em todos; uns a tiveram mais longa, outros mais breve. H� casos particulares, como o das sanguessugas; essas acabaram por causa do gasto infinito. Imagine-se que h� meio s�culo vendiam-se �aos milheiros� na Rua da Alf�ndega n� 15. N�o h� produ��o que resista a tamanha procura. Depois, o barbeiro sangrador � of�cio extinto.

Por que � que morreram tantos rem�dios? Por que � que os rem�dios morrem? Tal � o problema. N�o basta exp�-lo; for�a � achar-lhe solu��o. H� de haver uma raz�o que explique tamanha ru�na. N�o se pode compreender que drogas eficazes no princ�pio de um s�culo, sejam in�teis ou insuficientes no fim dele. Tendo meditado sobre este ponto algumas horas longas, creio haver achado a solu��o necess�ria.

Esta solu��o � de ordem metaf�sica. A natureza, interessada na conserva��o da esp�cie humana, inspira a composi��o dos rem�dios, conforme a gradua��o patol�gica dos tempos. J� algu�m disse, com grande sagacidade, que n�o h� doen�as, mas doentes. Isto que se diz dos indiv�duos, cabe igualmente aos tempos, e a mol�stia de um n�o � exatamente a de outro. H� modifica��es lentas, sucessivas, por modo que, ao cabo de um s�culo, j� a droga que a curou n�o cura; � preciso outra. N�o me digam que, se isto � assim, a observa��o basta para dar a sucess�o dos rem�dios. Em primeiro lugar, n�o � a observa��o que produz todas as modifica��es terap�uticas; muitas destas s�o de pura sugest�o. Em segundo lugar, a observa��o, em subst�ncia, n�o � mais que uma sugest�o refletida da natureza.

Prova desta solu��o � o fato curios�ssimo de que grande parte dos rem�dios citados e n�o citados, existentes h� quarenta e cinq�enta anos, curavam particularmente a erisipela. Variavam as outras mol�stias, mas a erisipela estava inclusa na lista de cada um deles. Naturalmente, era mol�stia vulgar; da� a floresc�ncia dos medicamentos apropriados � cura. O povo, gra�as � ilus�o da Provid�ncia, costuma dizer que Deus d� o frio conforme a roupa; o caso da erisipela mostra que a roupa vem conforme o frio.

N�o importa que daqui a algumas dezenas de anos, um s�culo ou ainda mais, certos medicamentos de hoje estejam mortos. Verificar-se-� que a modifica��o do mal trouxe a modifica��o da cura. Tanto melhor para os homens. O mal ir� recuando. Essa marcha gradativa ter� um termo, remot�ssimo, � verdade, mas certo. Assim, chegar� o dia em que, por falta de doen�as, acabar�o os rem�dios, e o homem, com a sa�de moral, ter� alcan�ado a sa�de f�sica, perene e indestrut�vel, como aquela.

Indestrut�vel? Tudo se pode esperar da ind�stria humana, a bra�os com o eterno aborrecimento. A monotonia da sa�de pode inspirar a busca de uma ou outra macacoa leve. O homem receitar� tonturas ao homem. Haver� f�bricas de resfriados. Vender-se-�o calos artificiais, quase t�o dolorosos como os verdadeiros. Alguns dir�o que mais.

1894

1 de janeiro

Sombrequatre-vingt-treize! �o caso de dizer, com o poeta, agora que ele se despede de n�s, este ano em que perfaz um s�culo o ano terr�vel da Revolu��o. Mas a cr�nica n�o gosta de lembran�as tristes por mais her�icas que tamb�m sejam; n�o vai para epop�ias, nem trag�dias. Coisas doces, leves, sem sangue nem l�grimas.

No banquete da vida, para falar como outro poeta... J� agora falo por poetas; est� provado que, apesar de fant�sticos e sonhadores s�o ainda os mais h�beis contadores de hist�ria e inventores de imagens. A vida, por exemplo, comparada a um banquete � id�ia felic�ssima. Cada um de n�s tem ali o seu lugar; uns retiram-se logo depois da sopa, outros do coup du milieu, n�o raros v�o at� � sobremesa. Tem havido casos em que o conviva se deixa estar comido, bebido, e sentado. � o que os notici�rios chamam macr�bio, � e,quando a pessoa � mulher, por uma dessas liberdades que toda gente usa com a l�ngua, macr�bia.

Felizes esses! N�o que o banquete seja sempre uma del�cia. H� sopas execr�veis, peixes podres e n�o poucas vezes esturro. Mas, uma vez que a gente se deixou vir para a mesa, melhor � ir farto dela para n�o levar saudades. N�o se sente a marcha; vai-se pelos p�s dos outros. Houve desses retardat�rios, Moltke esteve prestes a s�-lo, Gladstone creio que acaba por a�, como os nossos Saldanha Marinho e Tamandar�. Deus os fade a todos!

Imaginemos um homem que haja nascido com o s�culo e morra com ele. Victor Hugo j� o achou com dois anos (ce si�cle avait deux ans), e pode ser que contasse viver at� o fim; n�o passou da casa dos oitenta. Mas Heine, que veio ao mundo no pr�prio dia 1� de janeiro de 1800, bem podia ter vivido at� 1899, e contar tudo o que passou no s�culo, com a sua pena mestra de humour... Oh! p�gina imortal! Assistir � Santa Alian�a e � dinamite! Vir do legitimismo ao anarquismo, parando aqui e ali na liberdade, eis a� uma viagem interessante de dizer e de ouvir. Revolu��es, guerras, conquistas, uma infinidade de constitui��es, grande variedade de cal�as, casacas chap�us, escolas novas, novas descobertas, id�ias, palavras, dan�a, livros, armas, carruagens, e at� l�nguas... Viver tudo isso, e referi-lo ao s�culo XX, grande obra, em verdade. Deus ou a paralisia n�o o quis. Heine notaria, melhor que ningu�m o advento do anarquismo, se � certo que este governo in�dito tem de sair � luz com o fim do s�culo. Ningu�m melhor que ele faria o paralelo do legitimismo do princ�pio com o anarquismo do fim, Carlos X e Nada. Que excelentes conclus�es! Nem todas seriam cabais, mas seriam todas belas. Aos homens da ci�ncia ficam raz�es s�lidas com que afirmam a marcha ascendente para a perfei��o. Os poetas variam; ora cr�em no para�so, ora no inferno, com esta particularidade que adotam o pior para exp�-lo em versos bonitos. Heine tinha a vantagem de o saber expor em bonita prosa.

Mas, como ia dizendo, no banquete da vida... Leve-me o diabo se sei a que � que vinha este banquete. Talvez para notar que a distribui��o dos lugares p�e a gente, �s vezes, ao p� de maus vizinhos, em cujo caso n�o h� mais poderoso rem�dio que descansar do paradoxo da esquerda na banalidade da direita, e vice-versa. Se a id�ia n�o foi essa, ent�o foi dizer que a cr�nica � prato de pouca ou nenhuma resist�ncia, simples molho branco. Id�ia velha, mas antes velha que nada. Uns fazem a hist�ria pela a��o pessoal e coletiva, outros a contam ou cantam pela tuba canora e belicosa... Tuba canora e belicosa � express�o de poeta � de Cam�es, creio. A cr�nica � frauta rude ou agreste avena do mesmo poeta. Vivam os poetas! N�o me acode outra gente para coroar este ano que nasce.

Quanto ao que morre, 1893, n�o vai sem pragas nem saudades, como os demais anos seus irm�os, desde que h� astronomia e almanaques. Tal � a condi��o dos tempos, que s�o todos duros e amenos, segundo a condi��o e o lugar. Se esta banalidade da direita lhe parece cansativa, volte-se o leitor para a esquerda, e ouvir� algum paradoxo que o descanse dela � este, por exemplo, que o melhor dos anos � o pior de todos. Toda a quest�o (lhe dir� a esquerda) est� em definir o que seja bom ou mau.

Por exemplo, a guerra � m�, em si mesma; mas a guerra pode ser boa, comparada com o anarquismo. Se este vier, 1893, tu haver�s sido uma das suas datas hist�ricas, pelos golpes que deste, pelo princ�pio de sistematiza��o do mal. Que ser� o mundo contigo? N�o consultemos Xenofonte, que, ao ver as trocas de governo nas rep�blicas, monarquias e oligarquias, conclu�a que o homem era o animal mais dif�cil de reger, mas, ao mesmo tempo, mirando o seu her�i e a numerosa gente que lhe obedecia, conclu�a que o animal de mais f�cil governo era o homem. Se j� por essa noite dos tempos fosse conhecido o anarquismo, � prov�vel que a opini�o do historiador fosse esta: que, embora p�ssimo, era um governo �timo. A variedade dos pareceres, a sua pr�pria contradi��o, tem a vantagem de chamar leitores, visto que a maior parte deles s� l� os livros da sua opini�o. � assim que eu explico a universalidade de Xenofonte.

N�o me atribuam desrespeito ao escritor; isto � rir, para n�o fazer outra coisa que deixe de aliviar o ba�o. Em todo caso, antes gracejar de um homem finado h� tantos s�culos, que estrear j� o carnaval com este imenso calor, como fez ontem lima associa��o. Agora tu, Terps�core, me ensina...

7 de janeiro

Quem ser�esta cigarra que me acorda todos os dias neste ver�o do diabo, � quero dizer, de todos os diabos, que eu nunca vi outro que me matasse tanto. Um amigo meu conta-me coisas terr�veis do ver�o de Cuiab�, onde, a certa hora do dia, chega a parar a administra��o p�blica. Tudo vai para as redes. Aqui n�o h� rede, n�o h� descanso, n�o h� nada. Este tempo serve, quando muito, para reanimar conversa��es moribundas, ou para dar que dizer a pessoas que conhecem pouco e s�o obrigadas a vinte ou trinta minutos de bonde. Come�a-se por uma exclama��o e um gesto, depois uma ou duas anedotas, quatro reminisc�ncias, e a declara��o inevit�vel de que a pessoa passa bem de sa�de, a despeito da temperatura.

� Custa-me a suportar o calor, mas de sa�de passo maravilhosamente bem.

N�o sei se � isso que me diz todas as manh�s a tal cigarra. Seja que for, � sempre a mesma coisa, e � not�cia d'alma, porque � dita com um grau de sonoridade e tenacidade que excede os maiores exemplos de gargantas musicais, servi�ais e rijas. A minha mem�ria que nunca perde essas ocasi�es, recita logo a f�bula de Lafontaine e reproduz a famosa gravura de Gustavo Dor�, a bela mo�a da rabeca, que o inverno veio achar com a rabeca na m�o, repelida por uma mulher trabalhadeira, como faz a formiga � outra. E o quadro e os versos misturam-se, prendem-se de tal maneira, que acabo recitando as figuras e contemplando os versos.

Nisto entra um galo. O galo � um maometano vadio, rel�gio certo, cantor med�ocre, ruim vianda. Entra o galo e faz com a cigarra um concerto de vozes, que me acorda inteiramente. Sacudo a pregui�a, colijo os trechos de sonho que me ficaram, se algum tive, e fito o dossel da cama ou as t�buas do teto. �s vezes fito um quintal de Roma, de onde algum velho galo acorda o ilustre Virg�lio, e pergunto se n�o ser� o mesmo galo que me acorda, e se eu n�o serei o mesm�ssimo Virg�lio. � o per�odo de loucura mansa, que em mim sucede ao sono. Subo ent�o pela Via �pia, dobro a Rua do Ouvidor, e barro com Mecenas, que me convida a cear com Augusto e um remanescente da Companhia Geral. Segue-se a vez de um passarinho que me canta no jardim, depois outro, mais outro. P�ssaros, galo, cigarra, entoam a sinfonia matutina, at� que salto da cama e abro a janela.

Bom dia, belo sol. J� vejo as guias torcidas dos teus magn�ficos bigodes de ouro. Morro verde e crestado, palmeiras que recortais o c�u azul, e tu, locomotiva do Corcovado, que trazes o sibilo da ind�stria humana ao concerto da natureza, bom dia! Preg�o da ind�stria, tu, �duzentos contos, Paran�, �ltimo de resto!�, recebe tamb�m a minha sauda��o. Que �s tu, sen�o a locomotiva da Fortuna? Tempo houve em que a gente ia dos arrabaldes � casa do Jo�o Pedro da Veiga, Rua da Quitanda, comprar o n�mero da esperan�a. Agora �s tu mesmo, n�mero sol�cito, que vens c� ter aos arrabaldes como os simples mascates de fazendas e os compradores de garrafas vazias. Progresso quer dizer concorr�ncia e comodidade. Melhor que eu compre a riqueza a duas pessoas, � porta de minha casa, do que v� comprar � casa de uma s�, a dois tost�es de dist�ncia.

Eis a� come�am a deitar fumo as chamin�s vizinhas; tratam do caf� ou do almo�o. Na rua passa assobiando um moleque, que faz lembrar aquele chefe do minist�rio austr�aco, a que se referiu quinta-feira, na Gazeta de Not�cias, Max Nordau. Ou�o tamb�m uma cantiga, um choro de crian�a, um bonde, os prel�dios de alguma coisa ao piano, e outra vez e sempre a cigarra cantando todos os seus erres sem efes, enquanto o sol espalha as barbas louras pelo ar transparente.

Ir-me-� cantar, todo o ver�o, esta cigarra estr�dula? Canta, e que eu te ou�a, amiga minha; � sinal de que n�o haverei entrado no obitu�rio do mesmo ver�o, que j� sobe a cinq�enta pessoas di�rias. Disseram-mo; eu n�o me dou ao trabalho de contar os mortos. Percebo que morre mais gente, pela freq��ncia dos carros de defuntos que encontro, quando volto para casa e eles voltam do cemit�rio, com o seu aspecto f�nebre e os seus cocheiros menos f�nebres. N�o digo que os cocheiros voltem alegres; posso at� admitir, para facilidade da discuss�o, que tornem tristes; mas h� grande diferen�a entre a tristeza do ve�culo e a do automedonte. Este traz no rosto uma express�o de dever cumprido e consci�ncia repousada, que inteiramente escapa �s frias t�buas de um carro.

De mim pe�o ao cocheiro que me levar, que j� na ida para o cemit�rio v� francamente satisfeito, com uma pontinha de riso e outra de cigarro ao canto da boca. Pisque o olho �s amas secas e frescas, e criaturas an�logas que for encontrando na rua; creia que os meus manes n�o sofrer�o no outro mundo; ao contr�rio, alegrar-se-�o de saber a cara ajustada ao cora��o, e a indiferen�a interior n�o desmentida pelo gesto. Imite as suas mulas, que levam com igual passo C�sar e Jo�o Fernandes.

Ah! enquanto eu ia escrevendo essas melancolias aborrecidas, o sol foi enchendo tudo; entra-me pela janela, j� tudo � mar; ao mar j� faltam praias, dizia Ov�dio por boca de Bocage. Aqui o dil�vio � de claridade; mas uma claridade cantante, porque a cigarra n�o cessa, continua a cigarrear no arvoredo, fundindo o som no espet�culo. Como h� pouco, na cama, miro a cantiga e ou�o o clar�o. Se todos estes dias n�o fossem isto mesmo, eu diria que era a comemora��o da chegada dos tr�s Reis.

Essa festa popular, n�o sei se perdurar� no interior; aqui morreu h� muitos anos. Cantar os Reis era uma dessas usan�as locais, como o presepe, que o tempo demoliu e em cujas ru�nas brotou a �rvore do Natal, produ��o do norte da Europa, que parece pedir os gelos do inverno. O nosso presepe era mais devoto, mas menos alegre. Durava, em alguns lugares, at� o dia de Reis. A cantiga da festa de ontem era a mesma em toda a parte,

� de casa, nobre gente,

Acordai, e ouvireis,

e o resto, que pode parecer simpl�rio e velho, mas o velho foi mo�o e simpl�rio tamb�m � sinal de ing�nuo.

14 de janeiro

Anda a� nas folhas p�blicas um aviso esportivo que me tem dado que pensar. Diz-se nele que, do dia 1 do corrente em diante, as apostas ganhas e n�o reclamadas no prazo m�ximo de trinta dias, contados da respectiva data, prescrevem e ficam sem valor.

N�o nego a prescri��o. Tudo prescreve debaixo do sol, desde o amor at� o furor. O pr�prio sol tem os seus s�culos contados. Por que estaria fora dessa lei universal o simples esporte? N�o; n�o nego a prescri��o, nem a sua conveni�ncia. No presente caso, � decisivo que uma institui��o n�o se organiza para guardar apostas atrasadas; seria preciso uma turma de empregados e um lote de livros especiais para a respectiva escritura��o. Despesas maiores. Maiores responsabilidades.

O que me d� que pensar, n�o � o aviso em si, � a causa dele. Pois que! h� apostas esquecidas? Quando eu vou a uma dessas casas fazer uma quiniela, pelotaris ou qualquer outra a��o h�ngara, castelhana ou latina, n�o � para esperar a p� firme e trazer comigo o meu dinheiro, quero dizer, o dinheiro dos meus advers�rios? � para l� deixar essa quantia, qualquer que seja, ganha com o suor de um cavalo ou de um homem, � de algu�m, em suma? Eis a� um fato novo para mim; vivi todos estes anos com a persuas�o contr�ria.

Repito: era cren�a minha que uma pessoa n�o se abala de casa para apostar, sen�o com a id�ia de trazer o dinheiro dos outros. Pode l� deixar o seu, mas � raro. Ainda nesse caso, n�o se perde propriamente, ganha-se por outra via, porquanto tu �s eu e eu sou tu. Perdendo, ganho por tuas m�os e para as tuas algibeiras. Ao contr�rio, quando eu ganho uma aposta, a aposta � nossa. Eu a trago, n�s a ganhamos. Esta defini��o do g�nero humano explica todos os grandes sentimentos de piedade, de amor, de dedica��o. N�o � sem raz�o que existe nas l�nguas cultas o voc�bulo humanidade; ele exprime um sentimento que, em resumo, � a afirma��o da unidade espiritual dos homens. N�o somos todos uns, mas todos somos um; n�o sei se me explico.

Entretanto, � claro que Pedro n�o vai apostar com Paulo para deixar a aposta nas m�os de Sancho ou Martinho. O natural � que a traga consigo. Admito que a deixe por um dia ou dois, casualmente, dada alguma raz�o de ordem superior, uma causa inesperada; mas 30 dias, 6 semanas, 2, 6 meses, eis o que dificilmente se poderia crer, n�o fosse este aviso. Assim que, tudo se esquece neste mundo, as alegrias, as opini�es, as paix�es velhas, os empr�stimos novos e velhos, e agora as apostas. Que pode haver seguro, se nem as quinielas est�o certas de viver na mem�ria dos vencedores? Tudo perece. T�o prec�ria � esta m�quina humana, que uma pessoa capaz de desmaiar, se perder uma aposta, � igualmente capaz de a esquecer, se a ganhar. Em que fiar, ent�o? Assim vai um homem reformando as suas id�ias, deitando fora as que ficam ran�osas, ou as que reconhece que eram falsas.

O pior � quando essa limpa do esp�rito pode deitar abaixo planos longamente meditados. Um desses, que eu trazia desde alguns anos, era suprimir o cavalo e fazer sem ele apostas de corridas; n�o para substitu�-lo pelo homem, pois entrava no meu plano a supress�o do homem e de qualquer outro instrumento de luta, que pudesse p�r em jogo a for�a, a agilidade ou a destreza. A id�ia fundamental da minha reforma era que, assim como h� com�dia e pantomima, eu podia fazer corridas por simples gestos e apostas por sinais; pantomima, nada mais. A princ�pio, para ir gastando a dureza do h�bito, daria nomes a cavalos imagin�rios. Podia descer ao trocadilho, e dizer que, em vez de construir um Hip�dromo, constru�a uma Hip�tese. Pelo som, pareceria que a primeira parte era a mesma em ambos voc�bulos, hipos, cavalo. Jogo grego, calendas gregas, tudo grego.

Podem elogiar-me � vontade. N�o me cansar�o com boas palavras, antes me dar�o alma nova para outros cometimentos. Quem sabe se n�o irei ainda mais longe? Um homem n�o sabe o que far� neste mundo, antes de fazer alguma coisa, e ainda assim pode n�o saber nada imediatamente. A gl�ria leva �s vezes um ano, outras vinte, outras dois meses, cinco semanas, e n�o s�o raras as de vinte e quatro horas. Depende da esp�cie do tempo e do meio. H� gl�rias tardias e gl�rias prontas, como devia dizer La Palisse. Eu, desde que fa�a corridas de cavalos sem cavalos, posso ir longe, muito longe. Que n�o suprimirei eu depois disso? Inventarei vinho sem vinho. O p�o, que a piedade dos nossos padeiros reduziu �s propor��es da divina part�cula da comunh�o, pode ainda subir, por esfor�o meu, na gradua��o do mist�rio; n�s o comeremos sem v�-lo, quase sem hav�-lo. Hav�-lo-�, porque os mist�rios existem ainda fora do alcance dos sentidos humanos; mas p�o, propriamente p�o, n�o haver� mais. E, todavia, ele dar� alimento, como uma simples quiniela, a tal ponto que muitos o deixar�o na padaria, como hoje se deixam as apostas, e os padeiros ser�o obrigados a marcar trinta dias de espera. N�o haja medo de o receber duro.

N�o me censurem se a pena me levou a este elogio de mim mesmo. Bem sei que � feio; algu�m, que n�o foi o marqu�s de Maric�, escreveu que louvor em boca pr�pria � vitup�rio. N�o conhe�o o autor da m�xima; ouvi-a muita vez, em pequeno, a um vizinho que n�o era capaz de a ter inventado; creio at� que morreu sem saber o que era vitup�rio... Mem�rias da inf�ncia! Tempos em que eu tinha corridas de cavalos sem quinielas; eram cavalos de pau.

21 de janeiro

Acha-se impresso mais um livro que estes meus olhos nunca h�o de ler; � o C�digo de Posturas. N�o por ser c�digo, nem por serem posturas; as leis devem ser lidas e conhecidas. Mas eu conhe�o tanta postura que se n�o cumpre, que receio ir dar com outras no mesmo caso e acabar o livro cheio de melancolia.

Tamb�m n�o � por serem posturas que muitos n�o gostam de obedecer-lhes; o nome n�o faz mal � coisa. � por ser coisa legal. Pessoas h� que acham palavras duras contra a inobserv�ncia de um decreto federal, e, ao dobrar a primeira esquina, infringem tranquilamente o mais simples estatuto do munic�pio. O sentimento da legalidade, vibrante como oposi��o, n�o o � tanto como simples dever do indiv�duo. A primeira criatura que me falou indignada (h� quantos anos!) da posterga��o das leis, era um homem ruivo, que n�o pagava as d�cimas da casa.

Agora mesmo deu-se uma ocorr�ncia de alguma significa��o. Um homem fez um corti�o no quintal. N�o sei o nome do homem, nem o da rua; ignoro o pr�prio nome da freguesia. Sei apenas que, n�o podendo por lei municipal fazer o corti�o, o propriet�rio deixou de tirar licen�a. Realmente, seria loucura, uma vez que tinha de infringir a lei, ir declar�-lo � autoridade; e se era vedada a constru��o, vedada era a licen�a. Tudo isso � elementar. Sucedeu que o Conselho Municipal acudiu a tempo, querelou do homem e venceu a demanda. Mas os pedreiros foram mais ativos, e, acabado o processo, estava finda a constru��o.

Suscitou-se a quest�o de saber se a senten�a devia ser executada, ou se era melhor que a municipalidade desistisse da demanda, embora com perda das custas. �rdua quest�o! Venceu o segundo alvitre, pela considera��o de que, havendo falta de casinhas para as pessoas pobres, e satisfazendo aquelas as prescri��es higi�nicas, segundo se provou com vistoria, era absurdo mand�-las p�r abaixo. Eu teria votado o contr�rio, sem todavia afirmar que a verdade estivesse comigo; votaria para machucar o infrator da postura.

No debate desse neg�cio declarou um dos membros do Conselho que a municipalidade, em regra, perde as suas demandas. Da� tirou argumento para exortar os colegas a aceitarem aquela vit�ria rara; mas n�o prop�s, como lhe cumpria, mandar benzer a institui��o. N�o se podendo admitir que a municipalidade deixe de ter raz�o em tudo o que reclama, e sendo incr�vel que os ju�zes a aborre�am, a conclus�o � que h� mau olhado, quebranto ou coisa an�loga, les�o para a qual � rem�dio eficac�ssimo um livro de S. Cipriano, que por a� se vende, e tira tudo, at� o diabo do corpo.

Mas se n�o � caso de benzedura, � de encomendar a alma a Deus, e esperar. Tempo vir� em que a municipalidade tamb�m ganhe as suas demandas. �A quest�o dos micr�bios nada tem com o or�amento�, disse h� dias o presidente do conselho municipal, advertindo um orador. Dia vir� tamb�m em que tenham tudo, quando esses interessantes colaboradores da morte entrarem definitivamente na cogita��o de todos os mortais. Notai que o orador, que proferira, dias antes, um discurso, que � a mais extensa e completa monografia que tenho lido dos usos funer�rios dos povos, desde a mais remota antiguidade, podia responder que, havendo falado ent�o de D�rio e dos citas, nada obstava a que tratasse agora dos micr�bios mais recentes que eles; limitou-se, por�m, a continuar o discurso. Talvez eu fizesse a mesma coisa.

Esta quest�o de acomodar o discurso � mat�ria em discuss�o n�o � t�o f�cil como parece. Em primeiro lugar, onde � que a mat�ria acaba? Em segundo lugar, se � verdade que o regimento da casa � a postura que obriga os seus membros, n�o menos o � que n�o h� ali artigo restringindo os discursos. S�o coisas de praxe e de costume, que se ir�o estabelecendo com o andar dos anos. N�o se h� de regular instantaneamente a liberdade oral, e acaso cerce�-la, o que � pior. Quem imaginar� que se pegue de um homem dos campos, onde respira o ar livre e puro, para meter-lhe uns cal��es de corte e faz�-lo dan�ar o minuete? Sucede mais que, em outras partes, lia variedade de tribunas e de jornais, onde um pensador pode publicar o fruto dos seus estudos e medita��es; aqui n�o. A imprensa di�ria pouco espa�o deixa a tais trabalhos; a tribuna comum n�o existe, n�o por falta de direito, mas de gosto e de uso. Resta a tribuna legislativa, onde os assuntos podem ser tratados com certa amplitude, introduzindo mem�rias dessas, que mais tarde se desliguem dos anais, como se faz com os trechos de eloq��ncia que v�o para as seletas.

Nem isso, quando fosse mal, seria mal grande. Maior que ele � o que eu disse a princ�pio, o gosto de n�o obedecer �s leis. Aqui vai um exemplo. � m�nimo; mas nem todas as flores s�o d�lias e cam�lias; o pequeno mios�tis tamb�m ocupa lugar ao sol. Ontem, ia andando um bonde, com pouca gente, tr�s pessoas. A uma destas pareceu que o cocheiro estava fumando um cigarro; via-lhe ir a m�o esquerda freq�entes vezes � boca, de onde sa�a um fiozinho de fumo, que n�o chegava a envolver-lhe a cabe�a, porque, com o andar do ve�culo, espalhava-se pelas pessoas que iam dentro deste.

� Os cocheiros podem fumar em servi�o? perguntou a pessoa ao condutor.

F�-lo em voz baixa, tranq�ila como quem quer saber, s� por saber.

O condutor, n�o menos serenamente, respondeu-lhe que n�o era permitido fumar.

� Ent�o...?

� Mas ele fuma s� aqui, no arrabalde; l� para o centro da cidade n�o fuma, n�o senhor.

Grande foi o espanto da pessoa, ouvindo essa tradu��o de Pascal, t�o ajustada ao cigarro e ao bonde. Verit� en de��, erreur au del�. Mas, pensando bem, este caso n�o � igual aos outros; aqui a singeleza da resposta mostra a sinceridade da interpreta��o.       

N�o lhes disse, em tudo isto, que o Dr. Melo Morais foi o compilador do c�digo. As musas, por mais que sejam musas, n�o s�o avessas �s obras de utilidade. Outra prova disso deu-nos o mesmo Dr. Melo Morais, que � poeta, iniciando a publica��o dos documentos da cidade. Verdade seja que, a despeito do ar administrativo dos pap�is, h� neles aquela vetustez, que ainda � poesia, e o car�ter da hist�ria a que preside uma das musas.

Eu, como gosto muito da minha Carioca, por maiores taxas que lhe ponham, amo os que a amam tamb�m, e os que a bendizem. Ter� defeitos esta minha boa cidade natal, reais ou fict�cios, nativos ou de empr�stimo; mas eu execro as perfei��es. Tudo h� de ter o jeito de coisa nascida, � e n�o cabal, portanto.

28 de janeiro

Dizem que esta semana ser� sancionada a lei que transfere provisoriamente para Petr�polis a capital do Estado do Rio de Janeiro. J� se trata da mudan�a; compram-se ou arrendam-se casas para alojar �s reparti��es p�blicas. Com poucos dias, estar� Niter�i restitu�da �s velhas tradi��es da Praia Grande. A escolha de Petr�polis fez-se sem bula, nem matinada, com pouca e leve oposi��o. Campos queria a elei��o. Vassouras e Nova Friburgo apresentaram-se igualmente; mas Petr�polis � t�o cheia de gra�a que n�o lhe foi dif�cil ouvir: Ave, Maria; a assembl�ia � contigo; bendita �s tu entre as cidades.

Teres�polis, que tem de ser a capital definitiva, n�o ver� naturalmente essa elei��o com os olhos quietos. Conhece os fei­ti�os da outra, e recear� que o provis�rio se perpetue. Bem pode ser que Vassouras, Campos e Nova Friburgo tivessem a mesma id�ia, e da� os seus requerimentos. � mui dif�cil sair donde se est� bem. Esperemos, por�m, que o medo n�o passe de medo. Em verdade, Petr�polis ficar� sen­do uma cidade essencialmente federal e in­ternacional, sem embargo dos aparelhos da administra��o complexa e numerosa de capital de Estado. Que fazer? Deixemos Pomp�ia a Diomedes e aos seus �cios. O meu voto, se tivesse voto, seria por Nite­r�i, n�o provis�ria, mas definitiva.

De resto, estamos assistindo a uma flo­resc�ncia de capitais novas. A Bahia trata da sua; turmas de engenheiros andam pe­lo interior cuidando da zona em que deve ser estabelecida a futura cidade. Sabe-se que Minas j� escolheu o territ�rio da sua capital, cuja descri��o Olavo Bilac est� fazendo na Gazeta. Chama-se Belo Horizonte. Eu, se fosse Minas, mudava-lhe a denomina��o. Belo Horizonte parece an­tes uma exclama��o que um nome. Sobram na hist�ria mineira nomes honrados e pa­triotas para designar a capital futura. Quanto � nova capital da Rep�blica, n�o � mister lembrar que j� est� escolhido o territ�rio, faltando s� a obra da constru��o e da mudan�a, que n�o � pequena.

Esta nova Carioca, ou que outro nome tenha ou mere�a, ficar� decapitada, como Niter�i. Contentemo-nos com ser uma esp�cie de Nova York, aperfei�oemos a nova Broadway, e n�o abramos m�o da �pera italiana. C� vir�o os deputados, por turmas, ouvir as sumidades l�ricas. Se j� ent�o estiver resolvido o problema da navega��o a�rea (dizem os jornais que Edson est� em via de resolv�-lo) os deputados vir�o todos, depois de jantar, assistir�o ao espet�culo, e voltar�o no bal�o da madrugada para estarem presentes � sess�o do meio-dia. Como viver, como legislar, sem m�sica? N�o me falem de telefones. O telefone transmite, ainda que mal, as vozes dos cantores e as notas da partitura, mas n�o transmite os olhos das prima-donas, nem as pernas dos pajens, pap�is que, em geral, s�o dados a mo�as bem-feitas.

Que essa mudan�a de capitais seja um fen�meno pol�tico interessante, � fora de d�vida. Eu � que n�o entro nele, por n�o entender cabalmente de pol�tica. Nestes neg�cios, vou pouco al�m de um vizinho meu, homem quadragen�rio e discreto, que n�o tem profiss�o nem dinheiro, mas possui em grau alt�ssimo a voca��o de p�blico. N�o perde sess�o de c�maras. Atento e curioso, quando assiste a algum duelo de discursos, torna-se cheio de entusiasmo, se sobrev�m uma saraivada de apartes, mas apartes fortes. Come�ado o exame do or�amento, cochila, e, se dura muito tempo, passa pelo sono. Os algarismos, o d�ficit, o saldo, a taxa agr�ria, o imposto industrial, o quilograma, o quil�metro, s�o outras tantas papoulas que lhe fariam cair as p�lpebras. Mas n�o se fiem no sono do homem, acorda � primeira troca de palavras duras, tem para elas o olhar aceso e as orelhas escancaradas. J� uma vez deu palmas da galeria, com outros, obrigando a repetir esta velha f�rmula: as galerias n�o podem manifestar-se, e a n�o mandar p�r fora os manifestantes.

Falei em sono, e sinto cochilar a penha. O calor n�o pede outra coisa, este calor t�o grande e mort�fero, que come�a a meter medo aos mais animosos. O obitu�rio sobe com ele; estamos j� na casa dos setenta. Que melanc�lica semana!

Felizmente, trata-se de impor �s casas que se constru�rem algum meio de ventila��o, que minore tal flagelo. Esta semana assisti ao debate final da postura relativa � constru��o, e particularmente ao do art. 15, creio eu, que determina haja no forro das casas umas gregas para ventila��o ou ventiladores especiais. Um membro do Conselho Municipal prop�s que o artigo fosse ampliado, e apresentou emenda indicando um meio de ventila��o, as telhas higi�nicas Nascimento. �Com oito telhas dessas, disse o orador, tem-se um metro quadrado coberto, ao passo que das telhas comuns s�o necess�rias quinze.� Assim, h� uma economia de nove por cento. N�o prop�s que o uso das telhas higi�nicas Nascimento fosse obrigat�rio, mas facultativo. O Conselho aprovou a emenda.

Tamb�m eu aprovo, conquanto me pare�a restritiva de mais. Tenho um amigo, chamado Navarro, que estuda o assunto com afinco, e presume ter descoberto umas telhas higi�nicas, ainda mais econ�micas, pois apenas bastar�o sete para cobrir um metro quadrado. Suponhamos, por�m, que h� ilus�o no c�lculo; basta que a economia seja igual. Pela reda��o da emenda ficam exclu�das as telhas higi�nicas Navarro. N�o � justo. Eu proporia, se ainda fosse tempo, que se dissesse no artigo, depois da palavra Nascimento, estas: �ou outras quaisquer nas mesmas condi��es.� Tamb�m concordaria em restringir um pouco o texto, dizendo: �as telhas higi�nicas Nascimento e as telhas higi�nicas Navarro� conquanto o Navarro ainda n�o haja chegado � publica��o do invento, nem o fa�a t�o cedo, ficava j� com uma esp�cie de garantia provis�ria que seria definitiva no dia em que as telhas estivessem prontas. Conv�m animar as inven��es; este Navarro pode vir a ser o nosso �dison.

4 de fevereiro

Quando eu lique este ano n�o pode haver carnaval na rua, fiquei mortalmente triste. � cren�a minha, que no dia em que deus Momo for de todo exilado deste mundo, o mundo acaba. Rir n�o � s� le propre de l'homme, � ainda uma necessidade dele. E s� h� riso, e grande riso, quando � p�blico, universal, inextingu�vel, � maneira dos deuses de Homero, ao ver o pobre coxo Vulcano.

N�o veremos Vulcano estes dias, cambaio ou n�o, n�o ouviremos chocalhos, nem guizos, nem vozes tortas e finas. N�o sair�o as sociedades, com os seus carros cobertos de flores e mulheres, e as ricas roupas de veludo e cetim. A �nica veste que poder� aparecer, � cinta espanhola, ou n�o sei de que ra�a, que dispensa agora os coletes e d� mais gra�a ao corpo. Esta moda quer-me parecer que pega; por ora, n�o h� muitos que a tragam. Quatrocentas pessoas? Quinhentas? Mas toda religi�o come�a por um pequeno n�mero de fi�is. O primeiro homem que vestiu um simples colar de mi�angas, n�o viu logo todos os homens com o mesmo traje; mas pouco a pouco a moda foi pegando, at� que vieram atr�s das mi�angas, conchas, pedras verdes e outras. Da� at� o capote, e as atuais mangas de presunto, em que as senhoras metem os bra�os, que caminho! O chap�u baixo, feltro ou palha, era h� 25 anos uma minoria �nfima. H� uma chapelaria nesta cidade que se inaugurou com chap�us altos em toda a parte, nas portas, vidra�as, balc�es, cabides, dentro das caixas, tudo chap�us altos. Anos depois, passando por ela, n�o vi mais um s� daquela esp�cie; eram muitos e baixos, de v�ria mat�ria e formas variad�ssimas.

N�o admira que acabemos todos de cinta de seda. Quem sabe n�o � uma reminisc�ncia da tanga do homem primitivo? Quem sabe se n�o vamos remontar os tempos at� ao colar de mi�angas? Talvez a perfei��o esteja a�. Montaigne � de parecer que n�o fazemos mais que repisar as mesmas coisas e andar no mesmo c�rculo; e o Eclesiastes diz claramente que o que �, foi, e o que foi, � o que h� de vir. Com autoridades de tal porte, podemos crer que acabar�o algum dia alfaiates e costureiras. Um colar apenas, mat�ria simples, nada mais; quando muito, nos bailes, um simulacro de gibus para pedir com gra�a uma quadrilha ou uma polca. Oh! a polca das mi�angas! H� de haver uma com esse t�tulo, porque a polca � eterna, e quando n�o houver mais nada, nem sol, nem lua, e tudo tornar �s trevas, �ltimos dois ecos da cat�strofe derradeira usar�o ainda, no fundo do infinito, esta polca, oferecida ao Criador: Derruba, meu Deus, derruba!

Como se disfar�ar�o os homens pelo carnaval quando voltar a idade da mi�anga? Naturalmente com os trajes de hoje. A Gazeta de Not�cias escrever� por esse tempo um artigo, em que dir�:

�Pelas figuras que t�m aparecido nas ruas, ter�o visto os nossos leitores at� onde foi, s�culos atr�s, j� n�o diremos o mau gosto, que � evidente, mas viola��o da natureza, no modo de vestir dos homens. Quando possu�am as melhores casacas e cal�as, que s�o a pr�pria epiderme, t�o justa ao corpo, t�o sincera, inventaram umas vestiduras perversas falsas. Tudo � obra do orgulho humano, que pensa aperfei�oar a natureza, quando infringe as suas leis mais elementares. Vede o len�o; o homem de outrora achou que ele tinha uma ponta de mais, e fez um tecido de quatro pontas, sem m�sculos, sem nervos, sem sangue, absolutamente imprest�vel, desde que n�o esteja ao alcance da pessoa. H� no nosso museu nacional um exemplar dessa ridicularia. Hoje, para dar uma id�ia viva da diferen�a das duas civiliza��es, publicam um desenho comparativo, dois homens, um moderno, outro dos fins do s�culo XIX; � obra de um jovem pintor, que diz ser descendente de Belmiro; foi descoberto por um dos redatores desta folha, o nosso excelente companheiro Jo�o, amigo de todos os tempos.�

Que n�o possa eu ler esse artigo, ver as figuras, compar�-las, e repetir os ditos do Eclesiastes e de Montaigne, e anunciar aos povos desse tempo que a civiliza��o mudar� outra vez de camisa! Irei antes, muito antes, para aquela outra Petr�polis, capital da vida eterna. L� ao menos h� fresco, n�o se morre de insola��o, nome que j� entrou no nosso obitu�rio, segundo me disseram esta semana. N�o se pode imaginar a minha desilus�o. Eu cria que, apesar de termos um sol de rachar, n�o morrer�amos nunca de semelhante coisa. H� anos deram-se aqui alguns casos de n�o sei que mol�stia fulminante, que disseram ser isso; mas v�o l� provar que sim ou que n�o. Para se n�o provar nada, � que o mal fulmina. Assim, nem tudo acaba em cajuada, como eu supunha; tamb�m se morre de insola��o. Morreu um, morrer�o ainda outros. A chuva destes dias n�o fez mais que a�ular a can�cula.

De resto, a morte escreveu esta semana em suas tabelas, algumas das melhores datas, levando consigo um Dantas, um Jos� Silva, um Coelho Bastos. N�o se conclui que ela tem mais amor aos que sobrenadam, do que aos que se afundam; a sua democracia n�o distingue. Mas h� certo gosto particular em dizer aos primeiros, que nas suas �guas tudo se funde e confunde, e que n�o h� servi�os � p�tria ou � humanidade, que impe�am de ir para onde v�o os in�teis ou ainda os maus. Vingue-se a vida guardando a mem�ria dos que o merecem, e na propor��o de cada um, distintos com distintos, ilustres com ilustres.

Essa h� de ser a moda que n�o acaba. Ou caminhemos para a perfei��o deliciosa e terna, ou n�o fa�amos mais que ruminar, perp�tuo camelo, o mesmo jantar de todas as idades, a moda de morrer � a mesma... Mas isto � l�gubre, e a primeira das condi��es do meu of�cio � deitar fora as melancolias, mormente em dia de carnaval. Tornemos ao carnaval, e liguemos assim o princ�pio e o fim da cr�nica. A raz�o de o n�o termos este ano, � justa; seria at� melhor que a proibi��o n�o fosse precisa, e viesse do pr�prio �nimo dos foli�es. Mas n�o se pode pensar em tudo.

11 de fevereiro

Nunca houve lei mais fielmente cumprida do que a ordem que proibiu, este ano, as folias do carnaval. Nem sombra de m�scara na rua. Fora da cidade, diante de uma casa, vi quarta-feira de cinza algum confete no ch�o. Crian�as naturalmente que brincaram da janela para a rua, a menos que n�o fosse da rua para a janela. Os chap�us altos, que desde tempos imemoriais n�o ousavam atravessar aquela regi�o no mundo que fica entre a rua dos Ourives e a rua Gon�alves Dias, e que � propriamente a rua do Ouvidor, iam este ano abaixo e acima sem a menor surriada. Quem nos deu tal rigorismo na observ�ncia de um preceito? Se eu falasse em verso, diria que era o sentimento da situa��o, pois o verso tem vantagens que faltam inteiramente � prosa, n�o lhe sendo, ali�s, superior em nada. Em prosa, creio que foi a certeza de que a ordem era s�ria. Pode ser tamb�m que a escassez do dinheiro...

N�o se diga que calunio o meu s�culo. Quem tem culpa, se h� culpa, � o sr. Dr. Souza Lima, que todos os anos d� uma edi��o nova dos seus conselhos e s�plicas, lembra os regulamentos sanit�rios, e mostra a vaidade dos seus esfor�os higi�nicos. Isto quando se trata de morrer, que � a a��o mais dura da gente viva. Talvez haja demasiada confian�a nos conselhos. Quanto aos regulamentos, se os considerarmos � luz da verdadeira filosofia (a falsa � a do meu vizinho) reconheceremos que n�o passam de puras abstra��es. H� coisas mais concretas.

Tamb�m o c�u possui os seus regulamentos, e nem por serem obra divina, s�o mais eficazes que os nossos. Pelo menos h� duvida sobre a significa��o de alguns dos respectivos artigos. Haja vista o desacordo do astr�nomo Falb com o Dr. Ant�o de Vasconcelos. Aprova o primeiro que o fim do s�culo � o fim do mundo pelo encontro que se dar� em 1899, entre a terra e certo cometa, o segundo contesta energicamente a predi��o alem�, e n�o com palavras, mas com racioc�nio, com algarismos, com leis cient�ficas, por onde se v� que a destrui��o da terra, nos termos anunciados, � meramente imposs�vel. Quando muito, se acaso fosse admiss�vel o encontro do cometa, haveria tal chuva de fogo, que acabaria a vida animal; mas a terra propriamente dita continuaria a andar como dantes.

N�o aparecendo ningu�m para rebater ou apoiar as afirma��es do nosso patr�cio, a quest�o morreu de sil�ncio. Entretanto, n�o falta amor � astronomia. Flammarion, citado pelo Dr. Vasconcelos, � lido e meditado por muitas pessoas, que o c�u atrai, como h� de sempre atrair os homens. Creio at� que, de todas as ci�ncias, � a astronomia a que maior n�mero conta de amadores. Qual ser� a causa deste fen�meno? Talvez a vertigem dos n�meros. Realmente, por mais que a invisibilidade dos micr�bios assombre a gente, n�o chega a estontear como os algarismos astron�micos.

Por exemplo, o cometa de 1811 � li contesta��o do sr. Vasconcelos � media da cabe�a ao n�cleo 1.800.000 (um milh�o oitocentos mil) quil�metros. Que extens�o tinha a cauda de tal monstro? 176.000.000 de quil�metros. A marcha � de 42.000 metros por segundo; calculem por minuto, por hora, por dia e por ano. Mais tarde, o cometa de 1811 dividiu-se em dois, ficando vizinhos, com a dist�ncia apenas de 500.000 l�guas. Essa orgia de l�guas e quil�metros � que h� de dar sempre � astronomia maior n�mero de amadores do que t�m a arte dram�tica e a pol�tica. Sabe-se que estes dois of�cios do esp�rito humano contam grande n�mero de curiosos. Um homem desde que tenha a voz dura e certo ar ferrenho, faz os pais desnaturados, os perseguidores dos �rf�os e das vi�vas. A voz meiga escolhe as partes de gal�. �s vezes, � o contr�rio, como nos teatros de obriga��o; mas cada um fica com o seu pr�prio ar, para n�o desmentir a natureza. A pol�tica seduz tanto ou mais. Nenhuma delas, por�m, � compar�vel � astronomia.

A imagina��o gosta de mergulhar nestes abismos de n�meros que nunca mais acabam. � um modo que o homem tem de se fazer crescer a si mesmo. H� tamb�m um sentimento, que n�o sei como defina; melhor � dizer a coisa com muitas palavras que com uma. A pessoa que nos refere de um cometa que anda quarenta mil metros por segundo, parece que os contou por si mesmo, rel�gio na m�o. Tem n�o sei que consci�ncia de haver andado por seus pr�prios p�s os cento e oitenta milh�es de quil�metros de um desses bichos. � um sentimento muito particular.

Quem sabe se a vertigem dos n�meros n�o � a explica��o dos oito mil e tantos contos, pedidos ao Conselho Municipal por quinhentos e tantos bois? H� duas astronomias, a do c�u e a da terra; a primeira tem astros e algarismos, a segunda dispensa os astros e fica s� com os algarismos. Mas h� tamb�m entre o c�u e a terra, Hor�cio, muitas coisas mais do que sonha a v� filosofia. Uma dessas coisas �, como digo, a vertigem dos n�meros. No tempo do dil�vio (1890-1891) havia aqui um homem que acordou um dia com vinte mil contos; foi o que me disseram. Uma semana depois afirmaram que tinha trinta mil, e dois dias mais tarde quarenta cinq�enta, sessenta mil contos de r�is. Antes de um m�s subira a cento e dez mil. Empobreceu com duzentos mil contos. A verdade � que nunca tivera mais de quinze mil. Mas a imagina��o do vulgo, principalmente o vulgo pobre, n�o se contenta em dar a um homem pequenas quantias. Gosta dos Cresos. Suas esmolas s�o minas de diamantes. Ofir e Golconda s�o os seus bancos.

Os bois parecem explicar-se por essa raz�o psicol�gica. Senhores, eu conheci um homem que durante a guerra de 1870, n�o era franc�s nem alem�o, mas aritm�tico. A vol�pia com que ele falava das centenas de milhares de soldados era �nica; parecia que ele os comandava todos de um e de outro lado, que compusera os dois ex�rcitos, que eram seus, sangue do seu sangue, carne da sua carne. A batalha de 24 de maio, na guerra do Paraguai, mostrou-me igual fen�meno; um sujeito, ali�s bom patriota, t�o fascinado ficou pelo n�mero dos combatentes, que n�o atendia ao fulgor da batalha, e dizia que era a primeira da Am�rica do Sul, n�o pelos prod�gios de valor, mas pela quantidade de homens.

Assim este caso. Oito mil contos, guardada a dist�ncia que vai da terra ao c�u, � alguma coisa parecida com a cauda do cometa de 1811.

18 de fevereiro

H� uma leva de broqu�is, vulgo dinamite, que parece querer marcar este final de s�culo. De toda a parte vieram esta semana not�cias de explos�es, e aqui mesmo houve tentativa de uma. Digam-me que paz de esp�rito pode ter um pobre historiador de coisas leves, para quem a p�lvora devia ser, como os maus versos, o termo das cogita��es destrutivas. Inventou-se, por�m, maior resist�ncia, e da� o maior ataque, naturalmente, a p�lvora sem fuma�a, o torpedo, a dinamite; mas, que diabo! basta-lhes a guerra, como necessidade que � da vida universal. A paz universal, esse belo sonho de almas pias e vadias, seria a dissolu��o final das coisas. Fa�amos guerra, mas fiquemos nela.

Talvez haja nisso um pouco de rabugem � e outro pouco de injusti�a. A anarquia pode acabar sendo uma necessidade pol�tica e social, e o melhor dos governos humanos, aquele que dispensa os outros. Voltaremos ao para�so terrestre, sem a serpente, e com todas as frutas. Ad�o e Eva dormir�o as noites, passear�o as tardes: Caim e Abel escrever�o um jornal sem ortografia nem sintaxe, porque a anarquia social e pol�tica haver� sido precedida pela da l�ngua. Antes do �ltimo ministro ter� expirado o derradeiro gram�tico. Os adjetivos ganhar�o o resto de liberdade que lhes falta. Muitos que viviam atrelados a substantivos certos, n�o ter�o agora nenhum, e poder�o descer a preposi��es, a artigos.

H� de ser rabugem, creio. Acordei hoje mal disposto. Sei que nada tendes com disposi��es m�s nem boas, quereis a obriga��o cumprida, e, se estou doente, que me meta na cama. Que me meta na cova, se estou morto. N�o, a cova h� de ser quente como trinta mil diabos. A terra fria que tem de me comer os ossos, segundo a f�rmula, n�o ser� t�o fria, neste tempo em que tudo arde. L� mesmo o ver�o me flagelar� com o seu a�oite de chamas. Certo, este final de semana � menos quente que os primeiros dias, gra�as � chuva de quinta-feira; mas esse dia enganou-me. Pelo ar brusco, pela carga de nuvens, tive esperan�as de mais oito de grandes �guas, e n�o vieram grandes nem pequenas. Eis a� explicada a minha rabugem.

J� uma vez disse, e ora, repito: n�o nasci para os estos do ver�o. Quem me quiser, � com invernos. Deus, se eu lhe merecesse alguma coisa, diria ao estio de cada ano: �Vai, estio, faze arder a tudo e a todos, menos o meu fiel servo, o semanista da Gazeta, n�o tanto pelas virtudes que o adornam e s�o dignas de apre�o particular, como porque lhe d�i suar e bufar, e os seus padecimentos afligiriam ao pr�prio c�u�. Mas Deus gosta de parecer, �s vezes, injusto. Essa exce��o, que n�o faria a mais ningu�m, para n�o vulgar o benef�cio, mostraria ainda uma vez um ato de alta justi�a divina. A exce��o s� � odiosa para os outros; em si mesma � necess�ria.

A terra � quente. L� mesmo haver� epidemias, que n�o sabemos, e um sub-obitu�rio mais numeroso que o obitu�rio destes dias. � a nossa enfatua��o de vivos que nos leva a crer que s� h� calamidades para n�s; tamb�m os mortos ter�o as suas, acomodadas ao estado. Nem o purgat�rio significa outra coisa sen�o as doen�as de que os mortos podem sarar e saram. O inferno � um hosp�cio de incur�veis. Raros, bem raros, cinco por s�culo, subir�o logo para o c�u.

O que me consola um pouco, � que em outras partes est�o morrendo de frio. A certeza de que, quando eu bufo aqui e corro a comprar gelo, morre algu�m na Noruega, por hav�-lo de gra�a, ajuda a suportar o calor. N�o � preciso o bot�o de Diderot; n�o fica na alma essa sombra de sombra de remorso, que pode trazer a id�ia de haver apunhalado diretamente, ainda que de longe, uma pessoa. A certeza basta, e sem interesse pecuni�rio, note-se bem. � o que o povo formulou, dizendo que o mal de muitos consolo �. Expirai �s m�os de vossa m�e, filhos da neve, enquanto os filhos do sol aqui morremos �s m�os do nosso grande pai.

Que isto n�o seja pio, creio; mas � verdade. � o que come�a a p�r uma nota doce na cara t�trica e feroz com que me levantei hoje da cama. Assim o diz o espelho. Realmente, se tanto se morre ao frio como ao sol, n�o vale a pena deixar este clima; tudo � morrer, poupemos a viagem. Deixai correr os dias, at� que o equin�cio de mar�o traga outros ares, maio outros legisladores, julho e agosto outras �peras, porque os Huguenotes j� come�am a afligir-nos.

Digo isto de passagem, como um aviso aos empres�rios l�ricos; n�o vos amofineis com Huguenotes. Eles j� v�o or�ando pela Favorita. Esse par de muletas, que ajudaram o bom Ferrari a levar esta vida, amea�am deixar o coxo na rua. Il nous faut du nouveau, n'en fut-il plus au monde. Sempre h� de haver por esse mundo uma Cavaleria rusticana in�dita.

Antes dos legisladores, v�m as elei��es, que chegam ainda antes do equin�cio. V�m com os idos de mar�o. H� j� candidatos, mas n�o se sabe ainda quais os candidatos recomendados pelos chefes. Aparecem nomes nos a pedidos, � maneira da terra; mas o ato � t�o solene e a ocasi�o t�o grave, que pod�amos mudar de processo. Que os chefes digam, que os jornais repitam o que disserem os chefes, para que os eleitores saibam o que devem fazer; sem o que � prov�vel que n�o fa�am nada... Deus de miseric�rdia! Creio que estou ainda mais l�gubre que no princ�pio; tornemos � morte, �s febres, � dinamite; tornemos aos cemit�rios, aos epit�fios:

AQUI JAZ

UMA CR�NICA DA SEMANA,

TRIST�SSIMA,

BREV�SSIMA.

ORAI POR ELA!

25 de fevereiro

Toda esta semana foi dada � literatura eleitoral. N�o digo que se discutisse largamente a mat�ria, mas escreveram-se muitos nomes, surgiram candidaturas novas e nov�ssimas, organizaram-se chapas e contra-chapas, e, desde a circular at� � simples indica��o de uma pessoa, feita por um grupo de eleitores, por alguns eleitores firmes ou simplesmente pelos eleitores da Gamboa, quase que se n�o leu outra coisa. Lembra-me que um amigo meu, h�  anos, querendo ser eleito, teve a id�ia singular�ssima de recomendar o seu nome nos a pedidos dos jornais (!) com esta assinatura: A aclama��o p�blica. Recolheu dois votos, o meu e o dele.

N�o entendo de pol�tica, limito-me a ouvir as considera��es alheias. Uns notam que os elementos s�o cabais para uma boa elei��o, outros que h� tal ou qual desorienta��o na movimenta��o, pouca responsabilidade pol�tica, inclus�es, exclus�es, transposi��es; alguns mais r�spidos falam de um tumulto semelhante � confus�o das l�nguas. N�o posso dizer at� que ponto a segunda observa��o � verdadeira, nem se o fen�meno � inevit�vel. N�o distingo bem as palavras na multid�o de vozes que estamos ouvindo, mas � o que me acontece com quase todos os cantores italianos ou nacionais. Parte da culpa ser� da articula��o imperfeita; mas � preciso convir que o acompanhamento da m�sica ajuda muito a falta de audi�ncia. Eu por mim entendo as �peras mais pelos gestos que pelas palavras. Os coros ent�o s�o imposs�veis.

No meio da grande partitura desta semana, apareceu uma atriz-cantora que aumentou a minha confus�o. Atriz-cantora � uma esp�cie de artista particular ao nosso clima, e n�o conta vinte anos de exist�ncia. Antigamente, havia na companhia Jo�o Caetano (dizem) uma D. Margarida Lemos, incumbida de cantar alguma coisa no intervalo dos atos ou entre o drama e a com�dia. Era um modo de dar m�sica italiana aos freq�entadores do teatro dram�tico. O Martinho (ainda o alcancei) cantava tamb�m nos intervalos �uma das suas melhores �rias�, mas era s� ator. A atriz-cantora nasceu com a Sra. Rosa Villiot, creio, ou com outra, n�o sei bem. � planta local. N�o digo que se n�o recite e cante a um tempo; seria negar o vaudeville e negar o franc�s, que o inventou; digo, sim, que o t�tulo dobrado � que � nosso.

Tudo isto para falar da confus�o eleitoral que me trouxe a Sra. Irene Manzoni. Vi este nome assinando um artigo, com a dupla qualidade de atriz-cantora. Se ouvisse antes do t�tulo do artigo, n�o se daria o que se deu; mas eu li primeiro o t�tulo, era o nome de um senhor que n�o conhe�o; imaginei uma candidatura pol�tica. A assinatura feminina era nova; mas todas as velharias foram novidades, e o direito eleitoral da mulher � mat�ria de propaganda, de discuss�o e at� de legisla��o. Gostei de ver a novidade da assinatura; eu sou daquela escola que n�o deixa secar a tinta de uma id�ia no livro propagandista, e j� quer ver aplicada. Fui talvez o primeiro que bradou entre n�s pela representa��o das minorias, sem embargo de n�o termos ainda maioria, � ou por isso mesmo.

Corri ao artigo; era um agradecimento e uma recomenda��o de n�o sei que xarope eficac�ssimo. Fiz o que fazem todos os esp�ritos de boa f�: ca� das nuvens. Depois lancei a ap�strofe do estilo: �Mulher perversa, quem te deu o direito de intervir nas preocupa��es eleitorais por essa forma d�bia, que parece recomendar mais um candidato, e apenas louva uma droga e um droguista? Quem principalmente te ensinou a bulir comigo?� Disse ainda outras palavras fortes e acerbas; mas n�o pude acabar, porque a reflex�o veio logo com o seu passo lento e olhos baixos, e me disse o que vou repetir no par�grafo que se segue.

Pode ser que o droguista seja realmente um candidato e a droga um programa. Tem-se discutido se pode haver agora programas pol�ticos, e as opini�es dividem-se, sendo uns pela afirmativa, outros pela negativa. Talvez a droga seja ve�culo de id�ias. Suponhamos que � adstringente; significar� os planos radicais da pessoa. A droga emoliente corresponder� ao temperamento moderado das opini�es. Assim a farm�cia ter� um pr�stimo pol�tico, e a Sra. Irene Manzoni imitar�, de longe, a Menenius Agripa. Quando o povo romano quis castigar o senado para comprar mais barato o trigo, sabe-se que foi aquele cidad�o, com o ap�logo do est�mago e dos membros do corpo, que salvou a paz p�blica. A fisiologia serviu assim de arma � pol�tica; por que n�o servir� a farm�cia? a cirurgia? a medicina? Todas as compara��es est�o na natureza. A quest�o � sab�-las achar e compor.

Quem, por exemplo, comparar a elei��o e a loteria ter� achado uma id�ia, posto que �bvia, interessante. O cotejo da roda que anda com a urna que fala � o mais justo poss�vel, dada a diferen�a �nica, talvez, que no caso da urna eleitoral sempre se h� de saber quem tirou a sorte grande. Publica-se o nome, a pessoa aparece, � aclamada, louvada, pode ser que descomposta, uma vez que as opini�es s�o livres. Sendo assim, � na quarta-feira que anda a roda. N�o conhe�o o plano desta loteria; n�o sei se h� termina��es premiadas, nem se se tira o mesmo dinheiro. Provavelmente os bilhetes brancos ser�o muitos. � o que faz da elei��o e da loteria uma esp�cie de evangelho, onde tamb�m os chamados s�o muitos e os escolhidos poucos.

Mas fora compara��es! Venhamos � id�ia direta e �nica. Trata-se de teu dia, povo soberano, rei sem coroa nem herdeiro, porque �s continuamente rei, � o dia em que tens de escolher os teus ministros, a quem confias, n�o o princ�pio soberano, que esse fica sempre em ti, mas o exerc�cio do teu poder. Vais dar o que, por outras palavras, se chama veredictum da opini�o ou senten�a das urnas.

Certo, o teu reino n�o � como a ilha de Pr�spero; n�o tens a for�a de criar tempestades, por mais que te arguam delas. Ser�s o mar, quando muito; o vento � outro. Mais depressa seria eu o Pr�spero do poeta; n�o qual este o criou, acabando por tornar ao seu ducado de Mil�o e mandando embora os ministros das suas m�gicas. Eu ficaria na ilha, com os bailados e mascaradas. Quando muito, diria � velha pol�tica: �Vai, Calib�, tartaruga, venenoso escravo!� E a Anel: �Tu fica, meu querido esp�rito.� E n�o sairia mais da ilha, nem por Mil�o, nem pelas milanesas. Comporia algumas pe�as novas; diria � bela Miranda que jogasse comigo o xadrez, um jogo delicioso, por Deus! imagem da anarquia, onde a rainha come o pi�o, o pi�o come o bispo, o bispo come o cavalo, o cavalo come a rainha, e todos comem a todos. Graciosa anarquia, tudo isso sem rodas que andem, nem urnas que falem!

4 de mar�o

Quando eu cheguei � se��o onde tinha de votar, achei tr�s mes�rios e cinco eleitores. Os eleitores falavam do tempo. Contavam os maiores ver�es que temos tido; um deles opinava que o ver�o, em si mesmo n�o era mau, mas que as febres � que o tornavam detest�vel. A quanto n�o ia a amarela? Chegaram mais tr�s eleitores, depois um, depois sete, que, pelo ar, pareciam da mesma casa. Os minutos iam com aquele vagar do costume quando a gente est� com pressa. Mais tr�s eleitores. Nove horas e meia. Os conhecidos faziam roda. Uns falavam mal dos gelados, outros tratavam do c�mbio. Um velho, ainda maduro, aventou uma boceta de rap�. Foi uma alegria universal. Com que, ainda tomava rap�? �No meu tempo, disse o velho sorrindo, era o melhor la�o de sociabilidade; agora todos fumam, e o charuto � ego�sta�.

Nove e tr�s quartos. Trinta e cinco eleitores. Alguns almo�ados. Os almo�ados interpretavam o regulamento eleitoral diferentemente dos que o n�o eram. Da� algumas conversa��es particulares � meia voz, dizendo uns que a chamada devia come�ar �s dez horas em ponto, outros que antes.

� Meus senhores, vai come�ar a chamada, disse o presidente da mesa.

Eram dez horas, menos um minuto. Havia quarenta e sete eleitores. Abriram-se as urnas, que foram mostradas aos eleitores, a fim de que eles vissem que n�o havia nada dentro. Os cinco mes�rios j� estavam sentados, com os livros, pap�is e penas. O presidente fez esta advert�ncia:

� Previno aos Srs. eleitores que as c�dulas que contiverem nomes riscados e substitu�dos n�o ser�o apuradas; � disposi��o da lei nova.

Quis protestar contra a lei nova. Pareceu-me (e ainda me parece) opressiva da liberdade eleitoral. Pois eu escolho um nome, para presidente da Rep�blica, suponhamos; ou senador, ou deputado que seja; em caminho, ao descer do bonde, acho que o nome n�o � t�o bom como o outro, e n�o posso entrar numa loja, abrir a c�dula e trocar o voto? N�o posso tamb�m ceder a um amigo que me diga que a nossa amizade crescer� se eu preferir o Bernardo ao Bernardino? Que � ent�o liberdade? � o verso do poeta: E o que escrevo uma vez nunca mais borro? Pelo amor de Deus! Tal liberdade � puro despotismo, e o mais absurdo dos despotismos, porque faz de mim mesmo o d�spota. Obriga-me a n�o votar, ou a votar �s dez e meia em pessoa que, pouco depois das dez, j� me parecia insuficiente. N�o � que eu tivesse de alterar as minhas c�dulas; mas defendo um princ�pio.

Tinha come�ado a chamada e prosseguia lentamente para n�o dar lugar a reclama��es. Nove d�cimos dos eleitores n�o respondiam por isto ou por aquilo.

� Antonio Jos� Pereira, chamava o mes�rio.

� Est� na Europa, dizia um eleitor, explicando o sil�ncio.

� Poncio Pilatos!

� Morreu, senhor; est� no Credo.

Um eleitor, brasileiro naturalizado, franc�s de nascimento, disse-me ao ouvido:

� Por que n�o se p�e aqui a lei francesa? Na Fran�a, para cada elei��o h� diplomas novos com o dia da elei��o marcado, de maneira que s� serve para esse. Se fiz�ssemos isto, n�o chamar�amos o Sr. Pereira, que desde 1889 vive em Paris, 28 bis, rua Breda, nem o procurador da Jud�ia, pela raz�o de que eles n�o teriam vindo tirar o diploma, oito dias antes. Compreendeis?

� Compreendi; mas h� tamb�m absten��es.

� N�o haveria absten��o de votos. Os abstencionistas n�o teriam diplomas.

A chamada ia coxeando. Cada nome, como de regra, era repetido, com certo intervalo, e eu estava tr�s quarteir�es adian­te. Queixei-me disto ao ex-franc�s, que me disse:

� Mas, senhor, tamb�m este m�todo de chamar pelos nomes � desusado.

� Como � ent�o? Chama-se pelas co­res? pelas alturas? pelos n�meros das casas?

� N�o, senhor; abre-se o escrutino por certo n�mero de horas; os eleitores v�o chegando, votando e saindo.

� S�rio?

� S�rio.

� N�o creio que nos Estados-Unidos da Am�rica...

Outro eleitor, brasileiro naturalizado, norte-americano de nascimento, acudiu lo­go que l� era a mesma coisa.

� A mesma coisa, senhor. N�o se es­que�a que o time is money � inven��o nossa. N�o ser�amos n�s que ir�amos perder uma infinidade de tempo a ouvir nomes. O elei­tor entra, vota, retira-se e vai comprar uma casa, ou vend�-la. �s vezes mais, vai ca­sar-se.

� Sem querer saber do resultado da elei��o?

� Perd�o, o resultado h� de ser-lhe dito em altos brados na rua, ou em grandes cartazes levados por homens pagos para isso. J� tem acontecido a um noivo estar dizendo � noiva que a ama, que a adora, e ser interrompido por um pregoeiro que anuncia a elei��o do presidente da Rep�bli­ca. O noivo, que viveu dois meses em mee­tings, bradando contra os republicanos, se � democrata, ou contra os democratas, se � republicano, solta um hurrah cordial, e re­pete que a ama, que a adora...

� Padre Diogo Ant�nio Feij�! pros­seguia o mes�rio.

Pausa.

� Padre Diogo Ant�nio Feij�!

Pausa.

Eu gemia em sil�ncio. Consultei o re­l�gio; faltavam sete minutos para as onze, e ainda n�o come�ara o meu quarteir�o. Quis espairecer, levantei-me, fui at� � por­ta, onde achei dois eleitores, fumando e falando de mo�as bonitas. Conhecia-os; eram do meu quarteir�o. Um era o farmac�utico Xisto, outro um jovem m�dico, formado h� um ano, o Dr. Z�zimo. Feliz idade! pen­sei comigo; as mo�as fazem passar o tem­po; e da� talvez j� tenham almo�ado...

Enfim, come�ou o meu quarteir�o; respirei, mas respirei cedo, porque a lista era quase toda composta de abstencionistas, e os nomes dos ausentes ou mortos gastam mais tempo, pela necessidade de esperar que os donos apare�am. Outra demora: cinco eleitores fizeram a toilette das c�dulas � boca da urna, quero dizer que ali mesmo � que as fecharam, passando a cola pela l�ngua, alisando o papel com vagar, com amor, quase que por pirra�a. Para quem guarda Deus as paralisias repentinas? As congest�es cerebrais? As simples c�licas? N�o me pareciam homens que pusessem os princ�pios acima de uma pontada aguda. Mas Deus � grande! chegou a minha vez. Votei e corri a almo�ar. Relevem a vulgaridade da a��o. Tartufo, neste ponto, emendaria o seu pr�prio autor:

�Ah! pour �tre �lecteur, je n'en suis pas moins homme.�

11 de mar�o

Escrevo com o p� no estribo. � um modo de dizer que talvez esteja prestes a mudar de clima. Para onde, n�o sei. Se consultasse o meu desejo, iria para a ilha da Trindade. Pelo que leio, foi um cidad�o norte-americano, casado, com uma linda mo�a de New York, que entrou pela ilha dentro, n�o achou viva alma, tomou conta do territ�rio e trata de coloniz�-lo. Dizem as not�cias que a ilha ser� um principado, e j� tem o seu bras�o; um tri�ngulo de ouro com uma coroa ducal. Dizem mais que o posseiro j�embarcou para a Europa, a fim de ser reconhecido pelas pot�ncias. Justamente o contr�rio do que eu faria; mas se os gostos fossem iguais, j� n�o haveria mundo neste mundo.

Eu, entrando que fosse na ilha, come�ava por n�o sair mais dela; far-me-ia rei sem s�ditos. Ficar�amos tr�s pessoas, eu, a rainha e um cozinheiro. Mais tarde, poetas e historiadores concordariam em dizer que as tr�s pessoas da ilha � que deram ocasi�o ao t�tulo desta; a diferen�a � que os poetas diriam a coisa em verso, sem documentos, e os historiadores di-la-iam em prosa com documentos. Entretanto, n�o s� o t�tulo � anterior, como n�o haveria em mim a menor inten��o simb�lica.

Rei sem s�ditos! Oh! sonho sublime! imagina��o �nica! Rei sem ter a quem governar, nem a quem ouvir, nem peti��es, nem aborrecimentos. N�o haveria partido que me atacasse, que me espiasse, que me caluniasse, nem partido que me bajulasse, que me beijasse os p�s, que me chamasse sol radiante, le�o ind�mito, cofre de virtudes, o ar e a vida do universo. Quando me nascesse uma espinha na cara, n�o haveria uma corte inteira para me dizer que era uma flor, uma a�ucena, que todas as pessoas bem constitu�das usavam por enfeite; nenhum, mais engenhoso que os outros, acrescentaria: �Senhor, natureza tamb�m tem as suas modas�. Se eu perdesse um p�, n�o teria o desprazer de ver coxear os meus vassalos.

Entretanto, para que a mentira n�o se pudesse supor exilada do meu reino, eu ensinaria � rainha e ao cozinheiro uma geografia nova; dir-lhes-ia que a Terra era um p�o de a��car, ou uma pir�mide, para ser mais eg�pcio, e que a minha ilha era o cume da pir�mide. Tudo mais estava abaixo. O sol n�o era propriamente um sol, mas um mensageiro que me traria todos os dias as sauda��es da parte inferior da terra. As estrelas, suas filhas, incumbidas de velar-me � noite eram as aias destinadas unicamente ao rei da Trindade.

� Mas tamb�m em New York h� estrelas e na Virg�nia, e na Calif�rnia, diria a rainha da Trindade durante as primeiras li��es.

� Jasmim do Cabo (este � o nome que eu lhe daria), Jasmim do Cabo e do meu cora��o, as estrelas de New York, da Calif�rnia e Virg�nia n�o s�o filhas do sol, mas enteadas. H�s de saber que o Sol � casado em segundas n�pcias com a Lua, que lhe trouxe todas e filhas que operam l� embaixo. As daqui s�o filhas dele mesmo; s�o as de ra�a pura e divina.

E eu acabaria crendo nos meus pr�prios sonhos, que � a vantagem deles, e a mais positiva do mundo. Prova disso � a not�cia da morat�ria dada esta semana a um comerciante, por credores de cerca de sete mil contos. Foi tal o efeito que isto produziu em mim, que entrei a supor-me devedor de sete, de dez, de vinte mil contos. Comecei por uma pontinha de inveja; n�o pela morat�ria, que para mim seria indiferente; com ela ou sem ela, o principal � dever tantos mil contos de r�is. As pequenas d�vidas s�o aborrecidas como moscas. As grandes, logicamente, deviam ser terr�veis como le�es, e s�o mans�ssimas.

Cri-me devedor dos sete mil contos, tanto mais feliz quanto que n�o lidara com dinheiros t�o altos. Este sonho, que afligiria a esp�ritos menos sublimes, para mim foi tal que se converteu em realidade, e n�o pude acabar de crer que n�o devia nada, quando o meu criado me quis provar hoje de manh� que todas as minhas pequenas contas estavam pagas. As pequenas, creio; mas as grandes? Sim, eu devo, ainda, pelo menos uns cinco mil contos. Que n�o possa dever vinte mil! Quem n�o prefere ser devedor de vinte mil contos, a ser credor de quatro patacas?

Demais, tenho venera��o aos grandes n�meros. Acho que a marcha da civiliza��o explica-se pelo crescimento numeroso dos s�culos. Que podia ser o s�culo IV em compara��o com o s�culo XIX? Que poder� ser o s�culo XIX, em compara��o com o s�culo MDCCCXXXVIII? O maior n�mero implica maior perfei��o.

Vede o obitu�rio. � medida que vai crescendo, deixa de ser a lista vulgar dos outros dias: imp�e, aterra. J� � alguma coisa morrerem para mais de cento e setenta pessoas. Podemos chegar a duzentas e a trezentas. Certamente n�o � alegre; h� espet�culos mais joviais, leituras mais leves; mas o interesse n�o est� na leveza nem na alegria. A trag�dia � terr�vel, � pavorosa, mas � interessante. Depois, se � verdade que os mortos governam os vivos, tamb�m o � que os vivos v�m dos mortos. Esta outra id�ia � banal, mas n�o podemos deixar reconhecer que os alugadores de carros, os cocheiros, os farmac�uticos, os f�sicos (para falar � antiga), os marmoristas, os escriv�es, os ju�zes, alfaiates, sem contar a Empresa Funer�ria, ganham com o que os outros perdem. Ex fumo dare lucem.

Mas deixemos n�meros tristes, e venhamos aos alegres. O dos concorrentes liter�rios da Gazeta � respeit�vel. Por maior que seja a lista dos escritos fracos, certo � que ainda ficou boa soma de outros, e dos vencidos ainda os haver� que pugnem mais tarde e ven�am. Bom � que, no meio das preocupa��es de outra ordem, as musas n�o tenham perdido os seus devotos e ganhem novos. Magalh�es de Azeredo, que ficou � frente de todos, pode servir de exemplo aos que, tendo talento como ele, quiserem perseverar do mesmo modo. Vivam as musas! belas mo�as antigas n�o envelhecem nem desfeiam. Afinal � o que h� mais firme debaixo do sol.

18 de mar�o

Quese anunciou a batalha do dia 13, recolhi-me a casa, disposto a n�o aparecer antes de tudo acabado. Convidaram-me a subir a um dos morros, onde o perigo era muito menor que o sol; mas o sol era grande. Nem a vista dos homens que passavam, desde manh�, com �culos e bin�culos, me animou a ir tamb�m ver a batalha. A pregui�a ajudou o temor, e ambos me ataram as pernas.

Em casa, ocorreu-me que podia ter a vis�o da batalha, sem sol nem fadiga. Era bastante que me ajudasse o g�nio humano com o seu poder divino. A hist�ria, por mais animada que fosse, n�o sei se me daria a pr�pria sensa��o da coisa. A poesia era melhor; Homero, por exemplo, com a Il�ada. Nada mais apropriado que este poema. Tr�ia, um campo entre a cidade e os navios, e no campo e nos navios as tropas gregas. Aqui as fortalezas e as balas formariam o campo.

Ou�o uma obje��o. A p�lvora n�o estava inventada no tempo de Homero. � certo; mas tamb�m � certo que outras coisas havia no tempo de Homero, que totalmente se perderam. Nem eu pedia mais que a vista da realidade por sugest�o da poesia.

Ao meio-dia, troando os primeiros tiros, abri o poeta. Pouco a pouco fui mergulhando na a��o cantada. As pancadas que os cocheiros de bondes davam com os p�s, para instigar as mulas, cansadas de puxar tanta gente, j� me pareciam o tumulto dos carros dos guerreiros. Percebi o efeito da leitura. Quando o meu criado me levou ao gabinete uma cajuada, cuidei que era a deusa Hebe que me servia uma ta�a de n�ctar, e disse:

� Hebe divina, gra�as � tua excelsa bondade, vou apreciar esta del�cia, desconhecida aos homens.

Jos� Rodrigues, com espanto de si mesmo, retorquia-me:

� Tu �s j� um deus, tu est�s no pr�prio Olimpo, ao lado de J�piter.

Vi que era assim mesmo. Mas, em vez de entrar na luta dos homens, como os outros deuses, meus colegas, deixei-me estar mirando o furor dos combates, o retinir das lan�as nos broqu�is, o estrondo das armaduras quebradas, o sangue que corria dos peitos, das pernas e dos ombros, os homens que morriam e as vozes grandes de todos. Era belo ver os deuses intervindo na pugna, disfar�ados em pessoas da terra, desviando os golpes de uns, guiando a m�o de outros, cobrindo a estes com uma nuvem opaca, faz�-los sair do campo, falando, animando, descompondo, se era preciso. Os seus pr�prios ardis eram admir�veis.

De quando em quando, a mem�ria e o ouvido juntavam-se � leitura, e a realidade ia de par com a fic��o. Assim, no momento em que Marte, lanceado por Diomedes, volta ao C�u, onde Paeon lhe deita um b�lsamo suav�ssimo, na ferida, que o faz sarar logo, veio-me � lembran�a a not�cia lida naquela manh� de estarem fechadas todas as farm�cias da cidade, menos a do Sr. Hon�rio Prado. Depois, quando o capacete de Agamenon recolhe os sinais dos guerreiros, o arauto os agita, e, tira-se � sorte qual ser� o valente que ter� de lutar com Heitor, ouvi, lembro-me bem que ouvi uma voz conhecida na rua: �Um resto! vinte contos!� Tudo, por�m, se confundia na minha imagina��o; e a realidade presente ou passada era prontamente desfeita na contempla��o da poesia.

Todos os guerreiros me apareciam, com as armas hom�ricas, rutilantes e fortes, com os seus escudos de sete e oito couros de boi, cobertos de bronze, os arcos e setas, as lan�as e capacetes. Agamenon, rei dos reis, o divino Aquiles, Diomedes, os dois �jax, e tu, artificioso Ulisses, enfrentando com Heitor, com En�ias, com P�ris, com todos os bravos defensores da santa �lion. Via o campo coalhado de mortos, de armas, de carros. As cerim�nias do culto, as liba��es e os sacrif�cios vinham temperar o espet�culo da c�lera humana; e, posto que a cozinha de Homero seja mais substancial que delicada, gostava de ver matar um boi, pass�-lo pelo fogo e com�-lo com essa mistura de mel, cebola, vinho e farinha, que devia ser muito grata ao paladar antigo.

A a��o ia seguindo, com a alternativa pr�pria das batalhas. Ora perdia um, ora outro. Este avan�ava at� � praia, depois recuava, terra dentro. O clamor era enorme, as mortes infinitas. Her�is de ambos os lados ca�am, ensopados em sangue. O terror desfazia as linhas, a coragem as recompunha, e os combates sucediam aos combates. Eu, do Olimpo, mirava tudo, tudo tranq�ilo como agora que escrevo isto. Minto; n�o podia esquivar-me � como��o dos outros deuses. Assim, quando P�troclo, vendo os seus quase perdidos, saiu a combater com as armas de Aquiles, senti a grandeza do espet�culo; mas nem esse nem outro gosto algum pode ser comparado ao que me deu o pr�prio Aquiles, quando soube que o amigo morrera �s m�os de Heitor.

Vi, ningu�m me contou, vi as l�grimas e a f�ria do her�i. Vi-o sair com as novas armas que o pr�prio Vulcano fabricou para ele; vi depois ainda novos e terr�veis combates. No mais renhido deles, desceram todos os deuses e dividiram-se entre os ex�rcitos, conforme as suas simpatias. S� ficamos J�piter e eu. E disse-me o rei dos deuses:

� An�nimo (chamo-te assim, porque ainda n�o tens nome no C�u), contempla comigo este quadro n�o menos deleitoso que acerbo. At� os rios buscaram combater Aquiles; mas o filho de Peleu vencer� a todos.

N�o direi o que vi, nem o que ouvi; teria de repetir aqui uma intermin�vel hist�ria. Foi medonho e belo. Os deuses, mais que nunca, ajudavam os homens. Momento houve em que eles pr�prios combateram uns com outros, entre grandes palavradas, c�o, cadela, e muito murro, muita pedrada, uma luta de raivas e despeitos. Enfim, Aquiles matou Heitor. Jamais esquecerei as lamenta��es das mulheres troianas. Assisti depois �s festas da vit�ria, corridas a cavalo e a p�, o disco e o pugilato.

Eram seis horas da tarde, quando me chamaram para jantar. Pessoas vindas dos morros pr�ximos contaram que n�o houvera batalha nenhuma; desmenti esse princ�pio de balela, referindo tudo o que vira, que foi muito, longo e �spero. N�o me deram cr�dito. Um insinuou que eu tinha o ju�zo virado. Outro quis fazer-me crer que a fogueira em que ardiam os restos de Heitor, era um simples inc�ndio na ilha das Cobras. Os jornais est�o de acordo com os meus contraditores; mas eu prefiro crer em Homero, que � mais velho.

25 de mar�o

A semanafoi santa, � mas n�o foi a semana santa que eu conheci, quando tinha a idade de mocinho nascido depois da guerra do Paraguai. Deus meu! H� pessoas que nasceram depois da guerra do Paraguai! H� rapazes que fazem a barba, que namoram, que se casam, que t�m filhos, e, n�o obstante, nasceram depois da batalha de Aquidab�! Mas ent�o que � o tempo? � a brisa fresca e pregui�osa de outros anos, ou este tuf�o impetuoso que parece apostar com a eletricidade? N�o h� d�vida que os rel�gios, depois da morte de L�pez, andam muito mais depressa. Antigamente tinham o andar pr�prio de uma quadra em que as not�cias de Ouro Preto gastavam cinco dias para chegar ao Rio de Janeiro. Ia-se a S�o Paulo por Santos. Ainda assim, na semana, os estudantes de Direito desciam a Serra de Cubat�o e vinham tomar o vapor de Santos para o Rio. Que digo? Caso houve em que vieram unicamente assistir � primeira representa��o de uma pe�a de teatro. Lembras-te, Ferreira de Meneses? Lembras-te, Sizenando Nabuco? N�o respondem; creio que est�o mortos.

A� vou escorrendo para o passado, coisa que n�o interessa no presente. O passado que o jovem leitor h� de saborear � o presente l� para 1920, quando os rel�gios e os almanaques criarem asas. Ent�o, se ele escrever nesta coluna, aos domingos, ser� igualmente ins�pido com as suas recorda��es:

�Tempo houve (dir� ele) em que o primeiro Front�o da Rua do Ouvidor, descendo, � esquerda, perto da Rua de Gon�alves Dias, era uma confeitaria, Confeitaria Pascoal. Este nome, que nenhuma como��o produz na alma do rapaz nascido com o s�culo, acorda em mim saudades viv�ssimas. A casa da mesma rua, esquina da dos Ourives, onde ainda ontem (perdoem ao guloso) comprei um excelente paio, era uma casa de j�ia, pertencente a um italiano, um Farani, C�sar Farani, creio, na qual passei horas excelentes. Fora, fora, mem�rias importunas!�

Assim poder� escrever o leitor, em 1920, nesta ou noutra coluna e para os jovens desse ano n�o ser� menos aborrecido.

Mas, por isso mesmo que os h� de enfadar, deixe-me enfad�-lo um pouco, repetindo que a semana santa que acabou ontem ou acaba hoje n�o � a semana santa anterior � passagem do Passo da P�tria ou ao �ltimo minist�rio Olinda.

As semanas santas de outro tempo eram, antes de tudo, muito mais compridas. O Domingo de Ramos valia por tr�s. As palmas que traziam das igrejas eram muito mais verdes que as de hoje, mais e melhor. Verdadeiramente j� n�o h� verde. O verde de hoje � um amarelo escuro. A segunda-feira e a ter�a-feira eram lentas, n�o longas; n�o sei se percebem a diferen�a. Quero dizer que eram tediosas, por serem vazias. Raiava, por�m, a quarta-feira de trevas; era princ�pio de uma s�rie de cerim�nias, e de of�cios, de prociss�es, serm�es de l�grimas, at� o S�bado de Aleluia, em que a alegria reaparecia, e finalmente o Domingo de P�scoa que era a chave de ouro.

Tenho mais crit�rio que meu sucessor de 1920; n�o quero mat�-lo com algumas not�cias que ele n�o h� de entender. Como entender, depois da passagem de Humait�, que as prociss�es do enterro, uma de S�o Francisco de Paula, outra do Carmo, eram t�o compridas que n�o acabavam mais? Como pintar-lhe os andores, as filas de tochas inumer�veis, as Marias Be�s, segundo a forma popular, o centuri�o, e tantas outras partes da cerim�nia, n�o contando as janelas das casas iluminadas, acolchoadas e atapetadas de mo�as, bonitas, � mo�as e velhas � porque j� naquele tempo havia algumas pessoas velhas, mas poucas. Tudo era da idade e da cor das palmas verdes. A velhice � uma id�ia recente. Data do ber�o de um menino que vi nascer com o minist�rio Sinimbu. Antes deste, � ou mais exatamente, antes do minist�rio Rio Branco, � tudo era juvenil no mundo, n�o juvenil de passagem, mas perpetuamente juvenil. As exce��es, que eram raras, vinham confirmar a regra.

N�o entender�eis nada. Nem sei se chegareis a entender o que sucedeu agora, indo ver o of�cio da Paix�o em uma igreja. Outrora, quando de todo o Serm�o da Montanha eu s� conhecia o Padre-Nosso, a impress�o que recebia era muito particular, uma mistura de f� e de curiosidade, um gosto de ver as luzes, de ouvir os cantos, de mirar as alvas e as casulas, o hissope e o tur�bulo. Entrei na igreja. A gente n�o era muita; sabe-se que parte da popula��o est� fora daqui. Metade dos fi�is ali presentes eram senhoras, e senhoras de chap�u. Nunca me esqueceu o esc�ndalo produzido pelos primeiros chap�us que ousaram entrar na igreja em tais dias; esc�ndalo sem tumulto, nada mais que murmura��o. Mas o costume venceu a repugn�ncia e os chap�us v�o � missa e ao serm�o. Algumas senhoras rezavam por livros, outras desfiavam ros�rios, as restantes olhavam s� ou rezariam mentalmente. N�o quero esquecer um velho cantor de igreja, que ali achei, e que, em crian�a, ouvira cantar nas festas religiosas; creio que nunca fez outra coisa, salvo o curto per�odo em que o vi no coro da defunta �pera Nacional. Que idade teria? Sessenta, setenta, oitenta...

Soou o cantoch�o. Chegou-me o incenso. A imagina��o deixou-se-me embalar pela m�sica e inebriar pelo aroma, duas fortes asas que a levaram de oeste a leste. Atr�s dela foi o cora��o, tornado � simpleza antiga. E eu ressurgi, antes de Jesus. E Jesus apareceu-me antes de morto e ressuscitado, como nos dias em que rodeava a Galil�ia, e, abrindo os l�bios, disse-me que a sua palavra d� solu��o a tudo.

� Senhor, disse eu ent�o, a vida � aflitiva, e a� est� o Eclesiastes que diz ter visto as l�grimas dos inocentes, e que ningu�m os consolava.

� Bem-aventurados os que choram, porque eles ser�o consolados.

� Vede a injusti�a do mundo. �Nem sempre o pr�mio � dos que melhor correm, diz ainda o Eclesiastes, e tudo se faz por encontro e casualidade.�

� Bem-aventurados os que t�m fome e sede de justi�a, porque eles ser�o fartos.

� Mas � ainda o Eclesiastesque proclama haver justos, aos quais prov�m males...

� Bem-aventurados os que s�o perseguidos por amor da justi�a, porque deles � o reino do C�u.

E assim por diante. A cada palavra de l�stima respondia Jesus com uma palavra de esperan�a. Mas j� ent�o n�o era ele que me aparecia, era eu que estava na pr�pria Galil�ia, diante da montanha, ouvindo com o povo. E o serm�o continuava. Bem aventurados pobres de esp�rito. Bem aventurados os pac�ficos. Bem-aventurados os mansos...

1 de abril

Enfim! Vai entrar em discuss�o no Conselho Municipal o projeto que ali apresentou o Sr. Dr. Capelli, sobre higiene. Ainda assim, foi preciso que o autor o pedisse, anteontem. J� tenho lido que o Conselho trabalha pouco, mas n�o aceito em absoluto esta afirma��o. Conselho Municipal ou C�mara Municipal, a institui��o que dirige os servi�os da nossa velha e boa cidade, foi sempre objeto de censuras, �s vezes com raz�o, outras sem ela, como ali�s acontece a todas as institui��es humanas.

Trabalhe pouco ou muito, � de estimar que traga para a discuss�o o projeto do Sr. Dr. Capelli. Se ele n�o resolve totalmente a quest�o higi�nica, nem a isso se prop�e, pode muito bem resolv�-la em parte. N�o entro no exame dos seus diversos artigos; basta-me o primeiro. O primeiro artigo estabelece concurso para a nomea��o dos comiss�rios de higiene, que se chamar�o de ora avante inspetores sanit�rios.

� discut�vel a id�ia do concurso. N�o me parece claro que melhore o servi�o, e pode n�o passar de simples ilus�o. O artigo, por�m, disp�e, como ficou dito, que os comiss�rios de higiene se chamem de ora avante inspetores sanit�rios, e essa troca de um nome para outro � meio caminho andado para a solu��o. Os nomes velhos ou gastos tornam caducas as institui��es. N�o se melhora verdadeiramente um servi�o deixando o mesmo nome aos seus oficiais. � do Evangelho, que n�o se p�e remendo novo em pano velho. O pano aqui � a denomina��o. O pr�prio Conselho Municipal tem em si um exemplo do que levo dito. C�mara Municipal n�o era mau nome, tinha at� um ar democr�tico; mas estava pu�do. O nome criou a personagem da coisa, e a m� fama levou consigo a obra e o t�tulo. Conselho Municipal, sendo nome diverso, exprime a mesma id�ia democr�tica, � bom e � novo.

Outro exemplo, e de fora. Sabe-se que a C�mara dos Lordsest� arriscada a descambar no ocaso, ou a ver-se muito diminu�da. N�o duvido que os seus �ltimos atos tenham dado lugar � guerra que lhe movem, com o pr�prio chefe do governo � frente, se � certo o que nos disse h� pouco um telegrama. Mas quem sabe se, trocando oportunamente o t�tulo, n�o teria ela desviado o golpe iminente, embora ficasse a mesma coisa, ou quase?

Conta-se de um homem (creio que j� referi esta anedota) que n�o podia achar bons copeiros. De dois em dois meses, mandava embora o que tinha, e contratava outro. Ao cabo de alguns anos chegou ao desespero; descobriu, por�m, um meio com que resolveu a dificuldade. O copeiro que o servia ent�o, chamava-se Jos�. Chegado o momento de substitu�-lo, pagou-lhe o aluguel e disse:

� Jos�, tu agora chamas-te Joaquim. Vai p�r o almo�o, que s�o horas.

Dois meses depois, reconheceu que o copeiro voltava a ser insuport�vel. Fez-lhe as contas, e concluiu:

� Joaquim, tu passas agora a chamar-te Andr�. Vai l� para dentro.

F�-lo Jo�o, f�-lo Manuel, f�-lo Marcos, f�-lo Rodrigo, percorreu toda a onom�stica latina, grega, judaica, anglo-sax�nia, conseguindo ter sempre o mesmo ruim criado, sem andar a busc�-lo por essas ruas. Entendamo-nos; eu creio que a ruindade desaparecia com a investidura do nome, e voltava quando este principiava a envelhecer. Pode ser tamb�m que n�o fosse assim, e que a simples novidade do nome trouxe ao amo a ilus�o da melhoria. De umou de outro modo, a influ�ncia dos nomes � certa.

Por exemplo, quem ignora a vida nova que trouxe ao ensino da inf�ncia a troca daquela velha tabuleta �Col�gio de Meninos� por esta outra �Externato de Instru��o Prim�ria�? Concordo que o aspecto cient�fico da segunda forma tenha parte no resultado; antes dele, por�m, h� o efeito misterioso da simples mudan�a. Mas eu vou mais longe.

Vou t�o longe, que ouso crer nas reabilita��es hist�ricas, unicamente ou quase unicamente pela altera��o do nome das pessoas. O atual processo para esses trabalhos � rever os documentos, avaliar as opini�es, e contar os fatos, comparar, retificar, excluir, incluir, concluir. Todo esse trabalho � in�til, se n�o trocar o nome por outro. Messalina, por exemplo. Esta imperatriz chegou � celebridade do substantivo, que � a maior a que pode aspirar uma criatura real ou fingida: uma messalina, um tartufo. Se quiserdes tir�-la da lama hist�rica, em que ela caiu, n�o vos bastar� esgravatar o que disseram dela os autores; arranca-lhe violentamente onome. Chama-lhe Anast�cia. Quereis fazer uma experi�ncia? Pegai em Suet�nio e lede com o nome de Anast�cia tudo o que ele se refere de Messalina; � outra coisa. O asco diminui, o horror afrouxa, o esc�ndalo desaparece; e a figura emerge, n�o digo para o c�u, mas para uma colina. Em hist�ria, o ocupar uma colina � alguma coisa. Gregorovius, como outros autores deste s�culo, quis reabilitar Lucr�cia B�rgia; acho que o fez, mas esqueceu-se de lhe mudar o nome, e toda gente continua a descomp�-lo em prosa com Victor Hugo, ou em verso e por m�sica com Donizetti.

Voltando aos comiss�rios de higiene, futuros inspetores sanit�rios, repito que o servi�o melhorar� muito com essa altera��o do t�tulo, e n�o � pouco. Mas � preciso que, sem diz�-lo na lei, nem no parecer, nem nos debates, fiquem todos combinados em alterar periodicamente o t�tulo, desde que o servi�o precise reforma. N�o me compete lembrar outros, nem me ocorre nenhum. Digo s� que, passados mais quatro ou cinco t�tulos, n�o ser� m� pol�tica voltar ao primeiro. Os nomes t�m, �s vezes, a propriedade de criar pele nova, s� com o desuso ou descanso. Comiss�rio de higiene, que vai ser descal�ado agora, desde que repouse alguns anos, ficar� com sola nova e tac�o direito. Assim acontecesse aos meus sapatos!

8 de abril

Quinta-feira � tarde, pouco mais de tr�s horas, vi uma coisa t�o interessante, que determinei logo de come�ar por ela esta cr�nica. Agora, por�m, no momento de pegar na pena, receio achar no leitor menor gosto que eu para um espet�culo, que lhe parecer� vulgar, e porventura torpe. Releve-me a impertin�ncia; os gostos n�o s�o iguais.

Entre a grade do jardim da Pra�a Quinze de novembro e o lugar onde era o antigo passadi�o, ao p� dos trilhos de bondes, estava um burro deitado. O lugar n�o era pr�prio para remanso de burros, donde conclu� que n�o estaria deitado, mas ca�do. Instantes depois, vimos (eu ia com um amigo), vimos o burro levantar a cabe�a e meio corpo. Os ossos furavam-lhe a pele, os olhos meio mortos fechavam-se de quando em quando. O infeliz cabeceava, mas t�o frouxamente, que parecia estar pr�ximo do fim.

Diante do animal havia algum capim espalhado e uma lata com �gua. Logo, n�o foi abandonado inteiramente; alguma piedade houve no dono ou quem quer que � que o deixou na pra�a, com essa �ltima refei��o � vista. N�o foi pequena a��o. Se o autor dela � homem que leia cr�nicas, e acaso ler esta, receba daqui um aperto de m�o. O burro n�o comeu do capim, nem bebeu da �gua; estava para outros capins e outras �guas, em campos mais largos e eternos.

Meia d�zia de curiosos tinham parado ao p� do animal. Um deles, menino de dez anos, empunhava uma vara, e se n�o sentia o desejo de dar com ela na anca do burro para espert�-lo, ent�o eu n�o sei conhecer meninos, porque ele n�o estava do lado do pesco�o, mas justamente do lado da anca. Diga-se a verdade; n�o o fez � ao menos enquanto ali estive, que foram poucos minutos. Esses poucos minutos, por�m, valeram por uma hora ou duas. Se h� justi�a na terra, valer�o por um s�culo, tal foi a descoberta que me pareceu fazer, e aqui deixo recomendada aos estudiosos.

O que me pareceu, � que o burro fazia exame de consci�ncia. Indiferente aos curiosos, como ao capim e � �gua, tinha no olhar a express�o dos meditativos. Era um trabalho interior e profundo. Este remoque popular: por pensar morreu um burro mostra que o fen�meno foi mal entendido dos que a princ�pio o viram; o pensamento n�o � a causa da morte, a morte � que o torna necess�rio. Quanto � mat�ria do pensamento, n�o h� d�vida que � o exame da consci�ncia. Agora, qual foi o exame da consci�ncia daquele burro, � o que presumo ter lido no escasso tempo que ali gastei. Sou outro Champollion, porventura maior; n�o decifrei palavras escritas, m�s id�ias �ntimas de criatura que n�o podia exprimi-las verbalmente.

E diria o burro consigo:

�Por mais que vasculhe a consci�ncia, n�o acho pecado que mere�a remorso. N�o furtei, n�o menti, n�o matei, n�o caluniei, n�o ofendi nenhuma pessoa. Em toda a minha vida, se dei tr�s coices, foi o mais, isso mesmo antes de haver aprendido maneiras de cidade e de saber o destino do verdadeiro burro, que � apanhar e calar. Quanto ao zurro, usei dele como linguagem. Ultimamente � que percebi que me n�o entendiam, e continuei a zurrar por ser costume velho, n�o com id�ia de agravar ningu�m. Nunca dei com homem no ch�o. Quando passei do t�lburi ao bonde, houve algumas vezes homem morto oupisado na rua, mas a prova de que a culpa n�o era minha, � que nunca segui o cocheiro na fuga; deixava-me estar aguardando a autoridade.

"Passando a ordem mais elevada de a��es, n�o acho em mim a menor lembran�a de haver pensado sequer na perturba��o da paz p�blica. Al�m de ser a minha �ndole contr�ria a arrua�as, a pr�pria reflex�o me diz que, n�o havendo nenhuma revolu��o declarando os direitos do burro, tais direitos n�o existem. Nenhum golpe de Estado foi dado em favor dele; nenhuma coroa os obrigou. Monarquia, democracia, oligarquia, nenhuma forma de governo, teve em conta os interesses da minha esp�cie. Qualquer que seja o reg�men, ronca o pau. O pau � a minha institui��o um pouco temperada pela teima, que �, em resumo, o meu �nico defeito. Quando n�o teimava, mordia freio, dando assim um bonito exemplo de submiss�o e conformidade. Nunca perguntei por s�is nem chuvas; bastava sentir o fregu�s o t�lburi ou o apito do bonde, para sair logo. At� aqui os males que n�o fiz; vejamos os bens que pratiquei.

"A mais de uma aventura amorosa terei servido, levando depressa t�lburi e o namorado � casa da namorada � ou simplesmente empacando em lugar onde o mo�o que ia no bonde podia mirar a mo�a que estava na janela. N�o poucos devedores terei conduzido para longe de um credor importuno. Ensinei filosofia a muita gente, esta filosofia que consiste na gravidade do porte e na quieta��o dos sentidos. Quando algum homem, desses que chamam patuscos, queria fazer rir os amigos, fui sempre em aux�lio dele, deixando que me desse tapas e punhadas na cara. Enfim...�

N�o percebi o resto, e fui andando, n�o menos alvoro�ado que pesaroso. Contente da descoberta, n�o podia furtar-me � tristeza de que um burro t�o bom pensador ia morrer. A considera��o, por�m, de que todos os burros devem ter os mesmos dotes principais, fez-me ver que os que ficavam, n�o seriam menos exemplares que esse. Por que se n�o investigar� mais profundamente o moral do burro? Da abelha j� se escreveu que � superior ao homem, e da formiga tamb�m, coletivamente falando, isto �, que as suas institui��es pol�ticas s�o superiores �s nossas, mais racionais. Por que n�o suceder� o mesmo ao burro, que � maior?

Sexta-feira, passando pela Pra�a Quinze de novembro, achei o animal j� morto.

Dois meninos, parados, contemplavam o cad�ver, espet�culo repugnante; mas a inf�ncia, como a ci�ncia, � curiosa sem asco. De tarde j� n�o havia cad�ver nem nada. Assim passam os trabalhos desse mundo. Sem exagerar o m�rito do finado, for�a � dizer que, se ele n�o inventou a p�lvora, tamb�m n�o inventou a dinamite. J�� alguma coisa neste final de s�culo. Requiescat in pace.

15 de abril

Tudo est� na China. De quando em quando aparece not�cia nas folhas p�blicas de que um invento, de que a gente sup�e da v�spera, existe na China desde muitos s�culos. Esta Gazeta, para n�o ir mais longe, ainda anteontem noticiou que o socialismo era conhecido na China desde o s�culo XI. Os propagandistas da doutrina diziam ent�o que era preciso destruir �o velho edif�cio social.� Verdade seja que muito antes do s�culo XI se formos � Palestina, acharemos nos profetas muita coisa que h� quem diga que � socialismo puro. Por fim, quem tem raz�o � ainda o Eclesiastes: Nihil sub sole novum.

A not�cia da Gazeta deu-me que pensar. Creio que j� li (ou estarei enganado) que o telefone tamb�m existia na China, antes do descoberto pelos americanos. O veloc�pede n�o sei, mas � poss�vel que l� exista igualmente, n�o com o mesmo nome, porque os chins teimam em falar chin�s, mas com outro que signifique a mesma coisa ou d� o som aproximado da forma original. O bonde ver�o que � j� usado naquelas partes, talvez com outros cocheiros e condutores. N�o falo dos grandes inventos que tiveram ber�o naquela terra prodigiosa.

Confesso que, �s vezes, � a pr�pria China que est� com a gente ocidental. H� dias, por exemplo, houve aqui no conselho municipal um trecho de debate que talvez haja passado despercebido ao leitor ocupado com outros neg�cios. Um dos conselheiros reclamando contra alguns apartes que lhe puseram na boca, afirmou estranh�-los tanto mais quanto que nenhuma raz�o via para proferi-los. E acrescentou, explicando-se: �Eu sou dos poucos que ouvem os discursos do meu colega.� Outro conselheiro protestou, dizendo que era dos muitos. Mas o reclamante insistiu que dos poucos, e lembrou que, por ocasi�o do �ltimo discurso, ele estivera ao p� da meia, outro ao p� da porta, algum sentado, creio que, ao todo, havia uns cinco ouvintes. Se na China h� conselhos municipais � e tudo h� nela � � prov�vel que os debates tenham desses clar�es s�bitos.

O que a China n�o faz, � deixar os seus trajes velhos, nem o arroz, nem o pagode, nem nada. Quando eu vejo a� nas ruas algum filho do Celeste Imp�rio mascarado com as nossas roupas crist�s, cai-me o cora��o aos p�s. Imagino o que ter� padecido essa triste alma desterrada, sem as vestes com que veio da terra natal. Jovem leitor, eu os vi a todos os que aqui amanheceram um dia e se fizeram logo quitandeiros de mariscos. Vi-os correr por essas ruas fora, vestidos � sua maneira, longa vara ao ombro e um cesto pendente em cada ponta da vara. Ao italiano, que o substituiu, falta a novidade, a cara feia, a perna fina, rija e r�pida...

Mas basta de chins e de incr�us. Venhamos � nossa terra. N�o nos aflijamos se o socialismo apareceu na China primeiro que no Brasil. C� vir� a seu tempo. Creio at� que h� j� um esbo�o dele. Houve, pelo menos, um princ�pio de quest�o oper�ria, e uma associa��o de oper�rios, organizada para o fim de n�o mandar oper�rios � c�mara dos deputados, o contr�rio do que fazem os seus colegas ingleses e franceses. Quest�o de meio e de tempo. C� chegar�; os livros j� a� est�o h� muito; resta s� traduzi-los e espalh�-los. Mas basta principalmente de incr�us; venhamos aos crist�os.

Tivemos esta semana uma cerim�nia rara. Uma mo�a de 23 anos recebeu o v�u de irm� conversa da Congrega��o dos Santos Anjos. N�o assisti � cerim�nia, mas pessoa que l� esteve, diz-me que foi tocante. Eu quisera ter ido tamb�m para contemplar essa mo�a que d� dem�o ao mundo e suas agita��es, troca o piano pelo �rg�o, e o figurino v�rio como a fortuna pelo vestido �nico e perp�tuo de uma congrega��o.

Certo, o espet�culo devia ser interessante. � comum amar a Deus e � modista, ouvir missa e �pera, n�o ao mesmo tempo, mas a missa de manh� e a �pera de noite. Casos h� em que se ouvem as duas coisas a um tempo, mas ent�o n�o � �pera, � opereta, como nos d� o carrilh�o de S. Jos�, que chama os fi�is pela voz de D. Juanita, ou coisa que o valha. N�o h� maldizer do duplo of�cio do ouvido, uma vez que se ou�a a missa de um modo e a �pera de outro... Isto leva-me a interromper o que ia dizendo, para publicar uma anedota.

H� muitos anos, houve aqui um tenor italiano, chamado Gentili, que fez as del�cias, como se costuma dizer, da popula��o carioca. Esteve aqui mais de uma esta��o l�rica, talvez tr�s ou quatro. Era simp�tico, patusco e benquisto. Fisionomia alegre, baixo, um tanto calvo, se me n�o engana a mem�ria, e olhos vivos. Fez o que fazem tenores, cantou, amou, bateu-se em cenas pelas amadas, arrebatou-as algumas vezes, salvou a m�e da fogueira, como no Trovador, viu-se entre duas damas, como na Norma, assaltou castelos, tudo com grandes aplausos, at� que se foi embora, como sucede a tenores e diplomatas. Passaram anos. Um dia, um amigo meu, o C. C. P., viajando pela It�lia, achava-se, n�o me lembro onde, e n�o posso mandar agora perguntar-lho. Suponhamos que em Palermo. Era manh�, domingo, saiu de casa e foi � missa. Esperou; da� a pouco entrou o padre e subiu ao altar. Deus eterno! Era o Gentili. Duvidou a princ�pio; mas sempre que o celebrante mostrava o rosto, aparecia o tenor. Podia ser algum irm�o. Acabada a missa, correu o meu amigo � sacristia; era ele, o pr�prio, o �nico, o Gentili. Foi visit�-lo depois, falaram do Rio de Janeiro e dos tempos passados. Vieram nomes de c�, fatos, um mundo de reminisc�ncias e saudades, que, se n�o eram inteiramente de Si�o, tamb�m n�o eram de Babil�nia. O padre era jovial, sem destempero.

Como ia dizendo, a cerim�nia da recep��o do v�u deve ter sido interessante. Que n�o temos muitas voca��es religiosas, parece coisa sabida. Ontem, vendo descer de um bonde um seminarista, lembrei-me da carta recente do ex-bispo do Rio de Janeiro, em que trata da escassez de padres ordenados no nosso semin�rio, � um por ano, h� vinte anos. N�o tendo estat�sticas � m�o, nem papel bastante, concluo aqui mesmo.

22 de abril

Uma das nossas folhas deu not�cia de haver morrido em Paris uma bailarina, que luziu nos �ltimos anos do imp�rio, e deixa n�o menos de tr�s milh�es de francos. Tr�s milh�es! Aben�oadas pernas! Pernas dignas de serem fundidas em ouro e penduradas em um templo de �gata ou safira! Onde est� F�dias, que n�o as transfere ao m�rmore eterno? Que m�sculos, que sangue, que tecidos as fizeram? Que mestre as instruiu? Tr�s milh�es!

Alguns cariocas h�o de lembrar-se de uma bailarina que aqui houve, h� bastantes anos, chamada Riciolini. Era um destro�o, creio eu, de algum corpo de baile antigo. Como o p�blico de ent�o n�o dispensava algumas piruetas, qualquer que fosse a pe�a da noite, trag�dia ou com�dia, Olgiato ou Fantasma Branco, a Riciolini dan�ava muitas vezes; mas n�o consta, ainda assim, que deixasse tr�s milh�es. Quest�o de data, quest�o de meio. A evolu��o, por�m, pode levar esta cidade aos tr�s, aos quatro, aos cinco milh�es. Este �ltimo quarto de s�culo � o princ�pio de uma era nova e extraordin�ria.

E � aqui que eu pego os anarquistas. Como j� est�o em S. Paulo, n�o � preciso levantar muito a voz para ser ouvido al�m do Atl�ntico. Concordo com eles que a sociedade est� mal organizada; mas para que destru�-la? Se a quest�o � econ�mica, a reforma deve ser econ�mica; abramos m�os dos sonhos legislativos de Bebel, de Liebknecht, de Proudhon, de todos os que procuram, mais generosos que prudentes, concertar as costelas deste mundo. O rem�dio est� achado. A reparti��o das riquezas faz-se com pouco, tr�s rabecas, um regente de orquestra, uma batuta e pernas.

Quando a arte se contentava com ser gloriosa, as pernas rendiam pouco. Vestris, o famoso deus da dan�a do s�culo passado n�o sei se deixou vint�m. O filho de Vestris, t�o h�bil que diziam dele que, �para n�o vexar os colegas, punha algumas vezes os p�s no ch�o�, n�o foi mais nababo que o pai. Entretanto, em monografia que se publicou h� pouco, referem-se os tumultos, paix�es, aclama��es, havidos por causa dele, verdadeiramente populares e gloriosos.

Quem l� a correspond�ncia de Balzac, fica triste, de quando em quando, ao ver as afli��es do pobre diabo, correndo abaixo e acima, � cata de dinheiro, vendendo um livro futuro para pagar com o pre�o uma letra e o aluguel da casa, e metendo-se logo no gabinete para escrever o livro vendido, entreg�-lo, imprimi-lo, e correr outra vez a buscar dinheiro com que pague o aluguel da casa e outra letra. Gl�ria e d�vidas!

Vede agora Zola. � o sucessor de Balzac. Talento pujante, grande romancista, mas que pernas! Como Vestris Junior, p�e algumas vezes os p�s no ch�o. Inventou passos extraordin�rios e complicados, todos os de Citera, inclusive o da vaca. Inventou o sapateado de Jesus Cristo, com aquele famoso passo a dois do canap�. Trabalha agora no bailado religioso de Lourdes. Gl�ria e tr�s milh�es.

Quest�o de data. Balzac foi contempor�neo da nossa Riciolini. Zola da bailarina que acaba de falecer. Os resultados correspondem-se. Trago essas duas figuras principais, com o fim de comparar as situa��es, e tamb�m para mostrar que a arte da dan�a n�o edifica, apenas destr�i e altera. Com ela, o anarquismo dispensa todas as artes, n�o se fazendo mais que a��o violenta e arrasadora. Para que livros? N�o se ir�o compor frases, mas decomp�-las; n�o se tratar� j� de met�foras, mas de formas de linguagem diretas e positivas.

Como disse, por�m, o rem�dio est� achado: � a pirueta. Quando toda a gente dan�ar, � claro que ningu�m ganhar� tr�s milh�es, mas cada pessoa pode ganhar dois, um que seja. � quanto basta para universalizar as riquezas, e acabar de vez com o duelo do capital e do trabalho. Um que dan�a hoje, ir� amanh� para a plat�ia ver dan�ar os outros, e dan�ar� outra vez, e assim se alternar�o os bailarinos; a arte ganhar�, n�o menos que as algibeiras. Mas as m�os? As m�os servir�o de instrumento ao esp�rito. A ora��o, a escrita, as artes, o gesto no parlamento, o adeus, a sauda��o, o juramento de v�ria esp�cie, judici�rio ou amoroso, tudo o que � gratuito ou sublime, caberia �s m�os. S� o lucro pertenceria aos p�s. Eis a� o homem dividido mais racionalmente do que at� agora; eis a� a sociedade reconstitu�da e a cria��o acabada.

Certamente que isto se n�o far� em vinte e quatro horas, nem em vinte e quatro semanas; tudo precisa de noviciado, e as melhores constru��es s�o as que levam mais tempo. Comparam uns chamados chalets que a� h�, com o convento da Ajuda; os chalets v�o-se com os alugu�is, o convento, quando o quiserem deitar abaixo, h� de custar. Instituam-se desde j� cadeiras de dan�a em todos os estabelecimentos de ensino, p�blicos e particulares. Outrora aprendia-se a dan�ar por mestre, e era apenas uma prenda, igual ao piano. Que n�o ser� quando a dan�a for uma institui��o social e definitiva?

Corrijam-se as l�nguas no sentido da reforma. Emendem-se os ad�gios. Dize-me com quem dan�as, dir-te-ei quem �s. Quem n�o dan�a, n�o mama. O frade onde dan�a, a� janta. Invente-se uma filosofia em que todas as coisas provenham da dan�a; e mostre-se que a tenta��o de Eva no para�so foi o primeiro exemplo da dan�a das serpentes. Pinte-se o Criador com uma batuta de fogo na m�o, tirando do nada um grande bailado.

Quando todos dan�arem, a vida ser� alegre, e a pr�pria morte n�o ser� morte, mas transfer�ncia de benef�cio ou rompimento de contrato. Assim se dar� ao mundo, al�m de justi�a, o prazer. Nenhuma divis�o, nenhuma tristeza entre os homens. Antes disso, ai de n�s! h� de correr muita �gua para o mar.

6 de maio

A pessoa que me substituiu na semana passada, em vez de me mandar os �ltimos sacramentos, veio mofar de mim coram populo. Entretanto, � certo que estive � morte, e s� por milagre ainda respiro. S�o assim os homens. O vil interesse os guia; almas baixas, duras e negras, n�o v�em no mal de um amigo outra coisa mais que uma ocasi�o de brilhar. N�o falemos nisto. Desde pequeno, ou�o dizer que a m� a��o fica com quem a faz.

Estive doente, muito doente. Que � que me salvou? A falar verdade, n�o sei. A primeira coisa que me receitaram, foi a medicina do padre Kneipp. Este padre, que, em vez de curar as almas, deu para tratar dos corpos, tem-me aborrecido grandemente. N�o o li a princ�pio. Desde que percebi que se tratava de nova terap�utica, imaginei que era uma das muitas descobertas que vi nascer, crescer e morrer, como aquela de que j� aqui falei e falarei sempre que vier a prop�sito � o xarope do Bosque, que Deus haja. Assisti � carreira brilhante desse preparado �nico. Que outro houve, nem haver� jamais, que se lhe compare? Curava tudo e todos, integralmente. Pessoas circunspetas afirmavam t�-lo visto arrancar do leito mortu�rio cad�veres amortalhados, que descruzavam as m�os, pediam alguma coisa, mudavam de roupa, e no dia seguinte iam para os seus empregos. Alguns desses cad�veres, por serem mais nervosos, escapavam da mol�stia, mas faleciam segunda vez do temor que lhes causava a pr�pria mortalha. Esses n�o saravam mais, visto que o xarope n�o se obrigava a curar da segunda morte, mas s� da primeira. Nem todos, por�m, s�o nervosos, e salvou-se muita gente.

Se a �gua do padre Kneipp � isto, far� sua carreira; n�o � preciso quebrar-me os ouvidos com an�ncios. Foi o que pensei; mas afinal li alguma coisa sobre o invento e achei interesse. Realmente, n�o s� cura e ressuscita, como � a mais gratuita das farm�cias deste mundo. S� o que parece custar algum dinheiro, � a roupa, que h� j� feita e apropriada; o mais � a �gua, que Deus d�. �gua e pouca. Venha de l� a inven��o, disse eu, e, lembrando-me que era cisma dos nossos ind�genas que a �gua da Carioca ado�ava a voz da gente, imaginei mandar busc�-la ao grande chafariz hist�rico. Era um modo de adquirir a sa�de e o d� do peito. O meu fiel criado Jos� Rodrigues fez-me ent�o algumas pondera��es, no sentido de dizer que �gua sem alma dificilmente pode dar vida a ningu�m.

� Pois se ela n�o a tem em si, como h� de d�-la a um homem?

� Mas que chamas tu �gua sem alma? perguntei-lhe.

� Senhor, a alma da �gua (perdoe-me vosmec� que lhe ensine isto) � a uva. Ponha-lhe dois ou tr�s dedos do tinto, e beba-a, em vez de se meter nela; � o que lhe digo. O vendeiro da esquina podia muito bem, agora ainda a� esse doutor Naipe... Naipe de qu�? h� de ser copas, de certo. Copas como elas se pintavam nas cartas antigas, que eram o que chamamos copos � copos de beber.

� N�o � isso: � Kneipp.

� Ou o que quer que seja, que a mim nunca me importaram nomes, desde que n�o sejam crist�os. Pois o vendeiro da esquina, como ia dizendo, podia muito bem vend�-la pura, e ganhava dinheiro; mas � consciencioso, p�e-lhe uns dois dedos de alma, e � o que eu bebo todos os dias. Vosmec� sabe que sa�de � a deste seu criado. �gua no corpo de um homem, pelo lado de fora, isso d� maleitas, senhor; eu tive umas sez�es, h� muitos anos, que com certeza foram obra de um banho frio que me deram pelo entrudo. O banho deve ser pouco e morno, para a limpeza que Deus ama, contanto que nos n�o leve a sust�ncia, que � o principal...

� A sust�ncia � a liquida��o do acervo da Geral...

� N�o me fale nisso, patr�o! Eu j� lhe pedi que me n�o falasse em semelhante bandalheira.

E, perguntando-lhe eu que lhe parecia do plano de vender em leil�o o acervo da companhia, ou combinar em um neg�cio, para ver se vendia alguma coisa mais, vi-o meditar profundamente, e depois soltar um suspiro t�o grande, que pareceu trazer-lhe as entranhas para fora. H�o de lembrar-se que este pobre diabo � portador de deb�ntures. Acabado o suspiro, disse-me que havia sido t�o comido neste neg�cio, que n�o podia escolher, e que o melhor de tudo era passar-me os papeluchos por cem mil r�is; n�o queria saber mais nada. Ponderei-lhe que isto nem era imitar o vendeiro da esquina, pois esse deitava dois dedos de alma na �gua, e o que ele me queria vender, era �gua pura ou impura, �gua sem nada. Concordou que assim era, mas que, sendo eu mais atilado que ele, acharia maneira de descobrir alguma coisa, ainda que fosse um micr�bio � porque os micr�bios (ficasse eu certo disso), com os progressos da ci�ncia em que vamos, ainda acabam alimentando a gente em vez de nos p�r a espinhela abaixo. De si n�o achava escolha; at� os dois caminhos que lhe mostravam, leil�o ou combina��o, n�o sabia em qual deles devia meter o p�, salvo se fosse p� de verso, porque as duas palavras rimavam; mas n�o se tratando de poesia, e sim de dinheiro, que � a prosa do bom crist�o, n�o acabava de saber se era melhor vender hoje por nada ou amanh� por menos. Concluiu...

N�o concluiu; eu � que, para estancar-lhe o discurso, ordenei que fosse ao chafariz da Carioca buscar um barril d��gua. Saiu e fiquei esperando. N�o havia passado meia hora, voltou Jos� Rodrigues � casa, sem �gua, cheio de espanto. O chafariz n�o tinha �gua. A �gua �nica que achou, escorria a um lado, no ch�o, em frente � rua de S. Jos�; mas n�o era �gua comum, nem pela cor, nem pelo cheiro, e ainda assim ouviu que por causa da chuva � que o cheiro era pouco; em havendo sol, fortalece-se mais e parece botica. Perguntou a um morador do lugar se ali continuavam pousar ou dormir os cavalos e burros dos bondes da Companhia Jardim Bot�nico; soube que n�o, que ali s� iam homens, e de passagem, em quantidade grande, e a qualquer hora do dia ou da noite, e mais ainda de dia que de noite.

Eu, que conhe�o a minha gente, percebi que a lembran�a da Geral o havia transtornado muito, tal era a confus�o das palavras, a trapalhice das id�ias. Ordenei-lhe que se recolhesse e dormisse. Ficando s�, levantei-me, vesti-me e sa�; quando tornei a casa, estava s�o e salvo. Qual foi o rem�dio que me curou, n�o sei; talvez a vista de algum mais doente que eu. Uma vez curado, quis mandar um cartel de desafio � pessoa que me substituiu na semana passada, exigindo satisfa��o das injurias que me lan�ou nesta mesma coluna. Adverti que era tempo perdido. Homem que l� Tu, s� tu, puro amor, n�o se bate, suspira. Ergo bibamus, como diz Goethe:

Ich hate mein freundliches Liebchen geseh'n,

Da dacht' ich mir: Ergo bibamus!

13 de maio

Escreveu um grande pensador, que a �ltima coisa que se acha, quando se faz uma obra, � saber qual � a que se h� de p�r em primeiro lugar. A c�mara dos deputados, com a escolha do presidente, prova que esta m�xima pode ser tamb�m pol�tica. E eu gosto de ver a pol�tica entrar pela literatura; anima a literatura a entrar na pol�tica, e dessa troca de visitas � que saem as amizades. Mas ser amigo n�o � intervir no governo da casa dos outros. Os sonetos podem continuar a ser feitos sem o regimento da c�mara, e os discursos, uma vez que sejam eloq�entes, claros, sinceros, patri�ticos, n�o precisam de arabescos liter�rios. Portanto, aqui me fico, em rela��o ao presidente, atestando pela coincid�ncia que o dito de Pascal n�o � t�o limitado como ele supunha.

J� n�o fa�o a mesma coisa com rela��o ao presidente do conselho municipal. Releve o digno representante do nosso distrito que lhe diga: acho que, para presidente, faz amiudados discursos. Ainda esta semana, deixou a cadeira presidencial para discutir um projeto. N�o acho est�tico. A est�tica � o �nico lado por onde vejo os neg�cios p�blicos; n�o sei de praxes nem regras. � poss�vel at� que as regras e praxes fundamentem o meu modo de ver, mas eu fico na est�tica.

Note-se que, a respeito do Instituto Comercial, talvez tenha alguma raz�o o presidente. N�o li o projeto; mas pode ser que haja ensino de mais, sem que eu queira com isto aceitar o gracioso exemplo alegado por um intendente, a saber: que os a�ougueiros, sem estudos acad�micos, sabem muito bem que um quilo pesa setecentos e cinq�enta gramas. Isto apenas mostra voca��o. H� voca��es sem estudos. Mas os estudos servem justamente para afiar, armar, dar asas �s voca��es. Um homem que, al�m de conhecer o peso pr�tico do quilo, souber cientificamente que a lebre � uma exagera��o do gato, exagera��o in�til, e acaso perigosa, renovar� a alimenta��o p�blica sem deixar de enriquecer.

Quaisquer, por�m, que sejam as opini�es, insisto em que o presidente deve presidir. Uma das qualidades do cargo � a impassibilidade. O senador Nabuco, combatendo um dia a interven��o imperial na luta dos partidos, citou o lance do poema de Homero, quando V�nus desce entre os combatentes e sai ferida por um deles. O poder moderador � a V�nus, concluiu Nabuco. Sabe-se que esse ilustre jurisconsulto intercalava o Pegas com Homero, e chegava ao extremo (desconfio) de achar Homero ainda superior ao Pegas. Eu, sem conhecer o Pegas, sou de igual opini�o. Apliquemos a compara��o ao nosso caso; � a mesma coisa. A presid�ncia precisa ser, n�o s� imparcial, mas impass�vel.

Ah! n�o falemos de impassibilidade, que me faz lembrar um caso ocorrido na matriz da Gl�ria. Imaginai que era a hora da missa. Havia na igreja pouca gente, era cedo, umas vinte pessoas ao todo. Senhoras ajoelhadas, outras sentadas, homens em p�, esperando. Profundo sil�ncio. Eis que aparece o sacrist�o com uma toalha. Imediatamente, algumas senhoras, que estavam orando, mudaram de lugar e foram ajoelhar-se mais acima, em fila. O sacrist�o estendeu diante delas a toalha, em que cada uma pegou com os dedos. J� percebeis que iam comungar.

Desaparece o sacrist�o, e torna alguns segundos depois, acompanhando o padre. Conheceis a cerim�nia; n�o � preciso entrar em minud�ncias. O padre foi buscar o cib�rio. Chegou �s penitentes, tendo ao lado o sacrist�o com uma tocha acesa. Tamb�m conheceis o gesto e as palavras: Senhor, eu n�o sou digno, etc. Ia j� na terceira penitente, quando sucedeu uma coisa extraordin�ria. Aqui � que eu quisera ver trabalhar a imagina��o das pessoas que me l�em. Cada qual adivinhar� a seu modo o que poder� ter acontecido, quando o padre ia dando a sagrada part�cula � penitente. Trabalhai, dramaturgos e romancistas; forjai de cabe�a mil coisas novas ou complicadas, escandalosas ou terr�veis, e ainda assim n�o atinareis com o que sucedeu na matriz da Gl�ria, naquele instante em que o padre ia dar � penitente a sagrada part�cula.

Sucedeu isto: o sacrist�o distraiu-se, ou fraqueou-lhe a m�o, inclinou a tocha, e a manga da sobrepeliz do padre pegou fogo. O melhor modo de julgar um caso � p�-lo em si. Que farias tu? Fogo n�o brinca nem espera. Tu saltavas; adeus, cib�rio! adeus, particular! penitentes, adeus! E se n�o te acudissem a tempo, o fogo ia andando, voando, podias morrer queimado, que � das piores mortes deste mundo, onde s� � boa a de C�sar. Pois foi o contr�rio, meu amigo.

O padre viu o fogo e n�o se mexeu, n�o deixou cair a part�cula dos dedos, nem o cib�rio da m�o, n�o deu um passo, n�o fez um gesto. Disse apenas ao sacrist�o, em voz baixa: �Apague�. E o sacrist�o, atarantado, �s pressas, com as m�os tratou de abafar o fogo que ia subindo. O padre olhava s�, esperando. Quando o fogo morreu, inclinou-se para a penitente e continuou tranq�ilo: Senhor, eu n�o sou digno...

Padre que eu n�o conhe�o, recebe daqui as minhas invejas, se essa impassibilidade � o teu estado ordin�rio. Se foi ato de virtude, esfor�o do esp�rito sobre o corpo, pela consci�ncia da santidade do of�cio e da gravidade do momento, �s tamb�m invej�vel, e relativamente mais invej�vel. Mas eu contento-me com o menos, padre amigo. Basta-me a impassibilidade natural, n�o ser abalado por nenhuma coisa, nem do c�u nem da terra, nem por fogo nem por �gua. Esta � meia liberdade, meu caro levita do Senhor, ou antes toda, se � certo que n�o a h� inteira; mas eu n�o estou aqui para discutir quest�es �rduas ou insol�veis.

Mire-se no espelho que a� lhe deixo, o presidente do conselho municipal. Quando a discuss�o lhe fizer o mesmo efeito da chama na sobrepeliz do padre da Gl�ria, n�o deixe a cadeira para atalhar o inc�ndio; diga ao sacrist�o que apague. O sacrist�o dos leigos � o tempo. N�o me retruque que n�o pode. Ainda agora um digno intendente, entrando em �ltima discuss�o este �ltimo artigo de um projeto: Ficam revogadas as disposi��es em contr�rio, pediu a palavra para examinar todo o projeto, confessando nobremente, lealmente, que, quando se discutiram os outros artigos, estava distra�do. Ora, eu n�o li que o presidente redarg�isse com afabilidade e oportunidade: �Mas, meu caro colega, n�s n�o estamos aqui para nos distrairmos.� Salvo se o taqu�grafo eliminou por sua conta o reparo; mas se os taqu�grafos passam a governar os debates, melhor � que componham logo os discursos e os atribuam a quem quiser. Os supostos oradores far�o apenas os gestos. Quem sabe? Ser� talvez a �ltima perfei��o dos corpos legislativos.

20 de maio

Creio em poucas coisas, e uma das que entram no meu credo, � a justi�a, tanto a do c�u quanto a da terra, assim a p�blica como a particular. Al�m da f�, tinha a voca��o, e, mais dia menos dia, n�o seria de estranhar que propusesse uma demanda a algu�m. O ad�gio franc�s diz que o primeiro passo � que � dif�cil; autuada a primeira peti��o, iriam a segunda e a terceira, a d�cima e a cent�sima, todas as peti��es todas as formas de processo, desde a a��o de dez dias at� � de todos os s�culos.

Tal era o meu secreto impulso, quando o Instituto dos Advogados teve a id�ia de escrever e votar que a justi�a n�o � exercida, porque dorme ou conversa, n�o sabe o que diz, tudo de mistura com uma hist�ria de leiloeiros, s�ndicos e outras coisas que n�o entendi bem. Como nos grandes dias do romantismo, senti um abismo aberto a meus p�s. A f�, que abala montanhas, chegou a ficar abalada em si mesma, e estive quase a perder uma das partes do meu credo. Concertei-o depressa; mas n�o � prov�vel que nestes meses mais pr�ximos litigue nada ou querele de ningu�m. Poupo as custas, � verdade, do mesmo modo que poupo o dinheiro, n�o assinando um lugar no teatro l�rico; quem me dar� Lohengrin e um libelo?

Entretanto, sem examinar o cap�tulo da conversa��o nem o dos leiloeiros, creio que a inconsist�ncia ou variedade das decis�es pode ser vantajosa em alguns casos. Por exemplo, um dos nossos magistrados decidiu agora que a briga de galos n�o � jogo de azar, e n�o o fez s� por si, mas com v�rios textos italianos e adequados. Realmente, � e sem sair da nossa l�ngua, � parece que n�o h� maior azar na briga de galos que na corrida de cavalos, pelotaris e outras institui��es. O fato da aposta n�o muda o car�ter da luta. Dois cavalos em disparada ou dois galos �s cristas s�o, em princ�pio, a mesma coisa. As diferen�as s�o exteriores. H� os palpites na corrida de cavalos, prenda que a briga de galos ainda n�o possui, mas pode vir a ter. Os cavalos n�o se distinguem uns dos outros. Enfim, parece que j� chegamos � economia de fazer correr s� os nomes sem os cavalos, n�o havendo o menor desaguisado na divis�o dos lucros. Desceremos �s s�labas, depois �s letras; n�o iremos aos gestos, que � o exerc�cio do pick-pocket.

Sim, n�o � jogo de azar; mas se a senten�a fosse outra, podia n�o ser legal, mas seria justa, ou quando menos, misericordiosa. Os galos perdem a crista na briga, e saem cheios de sangue e de �dio; n�o � o brio que os leva, como aos cavalos, mas a hostilidade natural, e isto n�o lhes d�i somente a eles, mas tamb�m a mim. Que briguem por causa de uma galinha, est� direito; as galinhas gostam que as disputem com alma, se s�o humanas, ou com o bico, se s�o propriamente galinhas. Mas que briguem os galos para dar ordenado a curiosos ou vadios, est� torto.

Se o homem, como queria Plat�o, � um galo sem penas, compreende-se esta minha linguagem; trato de um semelhante, defendendo a pr�pria esp�cie. Mas n�o � preciso tanto. Pode ser tamb�m que haja em mim como que um eco do passado. O espiritismo ainda n�o chegou ao ponto de admitir a encarna��o em animais, mas l� h� de ir, se quiser tirar todas as conseq��ncias da doutrina. Assim que, pode ser que eu tenha sido galo em alguma vida anterior, h� muitos anos ou s�culos. Concentrando-me, agora, sinto um eco remoto, alguma coisa parecida com o canto do galo. Quem sabe se n�o fui eu que cantei as tr�s vezes que serviram de prazo para que S. Pedro negasse a Jesus? Assim se explicar�o muitas simpatias.

S� a doutrina esp�rita pode explicar o que sucedeu a algu�m, que n�o nomeio, esta mesma semana. � homem verdadeiro; encontrei-o ainda espantado. Imaginai que, indo ao gabinete de um cirurgi�o dentista, achou ali um busto, e que esse busto era o de C�cero. A estranheza do h�spede foi enorme. Tudo se podia esperar em tal lugar, o busto de Cadmo, alguma alegoria que significasse aquele velho texto: Aqui h� ranger de dentes, ou qualquer outra composi��o mais ou menos an�loga ao ato; mas que ia fazer C�cero naquela galera? Prometi � pessoa, que estudaria o caso e lhe daria daqui a explica��o.

A primeira que me acudiu, foi que, sendo C�cero orador por excel�ncia, representava o nobre uso da boca humana, e conseq�entemente o da conserva��o dos dentes, t�o necess�rios � emiss�o n�tida das palavras. Como bradaria ele as catilin�rias, sem a integridade daquele aparelho? Essa raz�o, por�m, era um pouco remota. Mais pr�xima que essa, seria a not�cia que nos d� Plutarco, relativamente ao nascimento do orador romano; afirma ele, � e n�o vejo por onde desmenti-lo, que C�cero foi parido sem dor. Sem dor! A supress�o da dor � a principal vit�ria da arte dent�ria. O busto do romano estaria ali como um s�mbolo eloq�ente, � t�o eloq�ente como o pr�prio filho daquela bendita senhora. Mas esta segunda explica��o, se era mais pr�xima, era mais sutil; pu-la de lado.

Refleti ainda, e j� desesperava da solu��o, quando me acudiu que provavelmente C�cero fora dentista em alguma vida anterior. N�o me digam que n�o havia ent�o arte dent�ria; havia a China, e na China, � como observei aqui h� tempos, � existe tudo, o que n�o existe, � porque j� existiu. Ou dentista, ou um daqueles mandarins que sabiam proteger as artes �teis, e deu nobre impulso � cirurgia da boca. Tudo se perde na noite dos tempos, meus amigos; mas a vantagem da ci�ncia, � e particularmente da ci�ncia esp�rita, � � clarear as trevas e achar as coisas perdidas.

Um sabedor dessa escola vai dar em breve ao prelo um livro, em que se ver�o a tal respeito revela��es extraordin�rias. H� nele esp�ritos, que n�o s� vieram ao mundo duas e tr�s vezes, mas at� com sexo diverso. Um tempo viveram homens, outro mulheres. H� mais! Um dos personagens veio uma vez e teve uma filha; quando tornou, veio o filho da filha. A filha, depois de nascer do pai, deu o pai � luz.

Algum dia (creio eu) os esp�ritos nascer�o g�meos e j� casados. Ser� a perfei��o humana, espiritual e social. Cessar� a afli��o das fam�lias, que buscam aposentar as mo�as, e dos rapazes que procuram consortes. Vir�o os casais j� prontos, dan�ando o minueto da gera��o... Haver� assim grande economia de esp�ritos, visto que os mesmos ir�o mudando de consortes, depois de um pequeno descanso no espa�o.

Nessa promiscuidade geral dos desencarnados, pode suceder que os casais se recomponham, e ap�s duas ou tr�s exist�ncias com outros, Ad�o tornar� a nascer com Eva, Fausto com Margarida, Filemon com Baucis. Mas a perfei��o das perfei��es ser� quando os esp�ritos nascerem de si mesmos. Com alguns milh�es deles se ir� compondo este mundo, at� que, pela decad�ncia natural das coisas, baste um �nico esp�rito dentro da �nica e derradeira casa de sa�de. � abismo dos abismos!

27 de maio

Morreu um �rabe, morador na rua do Senhor dos Passos. N�o h� que dizer a isto; os �rabes morrem e a rua do Senhor dos Passos existe. Mas o que vos parece nada, por n�o conhecerdes sequer esse �rabe falecido, foi mais um golpe nas minhas reminisc�ncias rom�nticas. Nunca desliguei o �rabe destas tr�s coisas: deserto, cavalo e tenda. Que importa houvesse uma civiliza��o �rabe, com alcaides e bibliotecas? N�o falo da civiliza��o, falo do romantismo, que alguma vez tratou do �rabe civilizado, mas com tal aspecto, que a imagina��o n�o chegava a desmembrar dele a tenda e o cavalo.

Quando eu cheguei � vida, j� o romantismo se despedia dela. Uns versos tristes e chor�es que se recitavam em l�ngua portuguesa, n�o tinham nada com a melancolia de Ren�, menos ainda com a sonoridade de Olimpio. J� ent�o Gon�alves Dias havia publicado todos os seus livros. N�o confundam este Gon�alves Dias com a rua do mesmo nome; era um homem do Maranh�o, que fazia versos. Como ele tivesse morado naquela rua, que se chamava dos Latoeiros, uma folha desta cidade, quando ele morreu, lembrou � c�mara municipal que desse o nome de Gon�alves Dias � dita rua. O Sr. Malvino teve igual fortuna, mas sem morrer, afirmando-se ainda uma vez aquela lei de desenvolvimento e progresso, que os erros dos homens e as suas paix�es n�o poder�o jamais impedir que se execute.

Cumpre lembrar que, quando falo da morte de Gon�alves Dias, refiro-me � segunda, porque ele morreu duas vezes, como sabem. A primeira foi de um boato. Os jornais de todo o Brasil disseram logo, estiradamente, o que pensavam dele, e a not�cia da morte chegou aos ouvidos do poeta como os primeiros ecos da posteridade. Este processo, como experi�ncia pol�tica, pode dar resultados inesperados. Eu, deputado ou senador, recolhia-me a alguma fazenda, e ao cabo de tr�s meses expedia um telegrama, anunciando que havia morrido. Conquanto sejamos todos ben�volos com os defuntos recentes, sempre era bom ver se na �gua benta das necrologias instant�neas n�o cairiam algumas gotas de fel. Tal que houvesse dito do orador vivo, que era �uma das bocas de ouro do parlamento�, podia ser que escrevesse do orador morto, que �se nunca se elevou �s culmin�ncias da tribuna pol�tica, jamais aborreceu aos que o ouviam�.

A prop�sito de orador, n�o esque�amos dizer que temos agora na c�mara um deputado Lamartine, e que estivemos quase a ter um Chateaubriand. Estes dois nomes significam certamente o entusiasmo dos pais em rela��o aos dois homens que se tornaram famosos. Recordem-se do espanto que houve na Europa, e especialmente em Fran�a, quando a revolu��o de Quinze de Novembro elevou ao governo Benjamin Constant. Perguntaram se era franc�s ou filho de franc�s. Neste �ltimo caso, n�o sei se foi o homem pol�tico ou o autor de Adolfo, que determinou a escolha do nome. Os Drs. Washington e Lafaiete foram evidentemente escolhidos por um pai republicano e americano. Que concluo daqui? Nada, em rela��o aos dois �ltimos; mas em rela��o aos primeiros acho que � ainda um vest�gio de romantismo. Estou que as opini�es pol�ticas de Lamartine e Chateaubriand n�o influ�ram para o batismo dos seus hom�nimos, mas sim a poesia de um e a prosa de outro. Foi homenagem aos cantores de Elvira e de Atal�, n�o ao inimigo de Bonaparte, nem ao domador da insurrei��o de junho.

Vede, por�m, o destino. N�o s�o s� os livros que t�m os seus fados; tamb�m os nomes os t�m. Os portadores brasileiros daqueles dois nomes s�o agora meramente pol�ticos. Assim, a amorosa supersti��o dos pais achou-se desmentida pelo tempo, e os nomes n�o bastaram para dar aos filhos idealidades po�ticas. N�o obstante esta limita��o, devo confessar que me afligiu a leitura de um pequeno discurso do atual deputado. N�o foi a mat�ria, nem a linguagem; foi a senhoria. H� casos em que as f�rmulas usuais e corteses devem ser, por exce��o, suprimidas. Quando li: O Sr. Lamartine, repetido muitas vezes, naquelas grossas letras normandas do Di�rio Oficial, senti como que um sacudimento interior. Esse nome n�o permite aquele t�tulo; soa mal. A gl�ria tem desses �nus. N�o se pode trazer um nome imortal como a simples gravata branca das cerim�nias. Ainda ontem vieram falar-me dos neg�cios de um Sr. Le�nidas; creio que rangeram ao longe os ossos do grande homem.

Mas tudo isso me vai afastando do meu pobre �rabe morto na rua do Senhor dos Passos. Chamava-se Assef Aveira. N�o conhe�o a l�ngua ar�bica, mas desconfio que o segundo nome tem fei��es crist�s, salvo se h� erro tipogr�fico. Entretanto, n�o foi esse nome o que mais me aborreceu, depois da resid�ncia naquela rua, sem tenda nem cavalo; foi a declara��o de ser o �rabe casado. N�o diz o obitu�rio se com uma ou mais mulheres; mas h� nessa palavra um aspecto de monogamia que me inquieta. N�o compreendo um �rabe sem Alcor�o, e o Alcor�o marca para o casamento quatro mulheres. Dar-se-� que esse homem tenha sido t�o corrompido pela monogamia crist�, que chegasse ao ponto de ir contra o preceito de Mafoma? Eis a� outra restri��o ao meu �rabe rom�ntico.

N�o me demoro em apontar as obriga��es da carta de fian�a, da conta do g�s e outras necessidades prosaicas, t�o alheias ao deserto. O pobre �rabe trocou o deserto pela rua do Senhor dos Passos, cujo nome lembra aqueles religion�rios, em quem seus av�s deram e de quem receberam muita cutilada. Pobre Assef! Para c�mulo, morreu de febre amarela, uma epidemia exausta � for�a de civiliza��o ocidental, t�o diversa do c�lera-morbo, essa peste medonha e devastadora como a espada do profeta.

Miser�vel romantismo, assim te vais aos peda�os. A anemia tirou-te a pouca vida que te restava, a corrup��o n�o consente sequer que fiquem os teus ossos para mem�ria. Adeus, �rabes! adeus, tendas! adeus, deserto! Cimitarras, adeus! adeus!

3 de junho

N�o mistureis alhos com bugalhos; � o melhor conselho que posso dar �s pessoas que l�em de noite na cama. A noite passada, por infringir essa regra, tive um pesadelo horr�vel. Escutai; n�o perdereis os cinco minutos de audi�ncia.

Foi o caso que, como n�o tinha acabado de ler os jornais de manh�, fi-lo � noite. Pouco j� havia que ler, tr�s not�cias e a cota��o da pra�a. Not�cias da manh�, lidas � noite, produzem sempre o efeito de modas velhas, donde concluo que o melhor encanto das gazetas est� na hora em que aparecem. A cota��o da pra�a, conquanto tivesse a mesma fei��o, n�o a li com igual indiferen�a, em raz�o das recorda��es que trazia do ano terr�vel (1890-91). Gastei mais tempo a l�-a e rel�-la. Afinal pus os jornais de lado, e, n�o sendo tarde, peguei de um livro, que acertou de ser Shakespeare. O drama era Hamlet. A p�gina, aberta ao acaso, era a cena do cemit�rio, ato V. N�o h� que dizer ao livro nem � pagina; mas essa mistura de poesia e cota��o de pra�a, de gente morta e dinheiro vivo, n�o podia gerar nada bom; eram alhos com bugalhos.

Sucedeu o que era de esperar; tive um pesadelo. A princ�pio, n�o pude dormir; voltava-me de um lado para outro, vendo as figuras de Hamlet e de Hor�cio, os coveiros e as caveiras, ouvindo a bailada e a conversa��o. A muito custo, peguei no sono. Antes n�o pegasse! Sonhei que era Hamlet; trazia a mesma capa negra, as meias, o gib�o e os cal��es da mesma cor. N�o sei se vos lembrais ainda de Rossi e de Salvino? Pois era a mesma figura. Era mais: tinha a pr�pria alma do pr�ncipe de Dinamarca. At� a� nada houve que me assustasse. Tamb�m n�o me aterrou ver, ao p� de mim, vestido de Hor�cio, o meu fiel criado Jos�. Achei natural: ele n�o o achou menos. Sa�mos de casa para o cemit�rio; atravessamos uma rua que nos pareceu ser a Primeiro de Mar�o e entramos em um espa�o que era metade cemit�rio, metade sala. Nos sonhos h� confus�es dessas, imagina��es duplas ou incompletas, mistura de coisas opostas, dilacera��es, desdobramentos inexplic�veis; mas, enfim, como eu era Hamlet e ele Hor�cio, tudo aquilo devia ser cemit�rio. Tanto era, que ouvimos logo a um dos coveiros esta estrofe:

Era um t�tulo novinho,

Valia mais de oitocentos;

Agora que est� velhinho

N�o chega a valer duzentos.

Entramos e escutamos. Como na trag�dia, deixamos que os coveiros falassem entre si, enquanto faziam a cova de Of�lia. Mas os coveiros eram ao mesmo tempo corretores, e tratavam de ossos e pap�is. A um deles ouvia bradar que tinha trinta a��es da Companhia Promotora das Batatas Econ�micas. Respondeu-lhe outro que dava cinco mil r�is por elas. Achei pouco dinheiro e disse isto mesmo a Hor�cio, que me respondeu, pela boca de Jos�: �Meu senhor, as batatas desta companhia foram pr�speras enquanto os portadores dos t�tulos n�o as foram plantar. A economia da nobre institui��o consistia justamente em n�o plantar o precioso tub�rculo; uma vez que o plantassem, era ind�cio certo da decad�ncia e da morte�.

N�o entendi bem; mas os coveiros, fazendo saltar caveiras do solo, iam dizendo gra�as e apregoando t�tulos. Falavam de bancos, do Banco �nico, do Banco Eterno, do Banco dos Bancos, e os respectivos t�tulos eram vendidos ou n�o, segundo oferecessem por eles sete tost�es ou duas patacas. N�o eram bem t�tulos nem bem caveiras; eram as duas coisas juntas, uma fus�o de aspectos, letras com buracos de olhos, dentes por assinaturas. Demos mais alguns passos, at� que eles nos viram. N�o se admiraram; foram indo com o trabalho de cavar e vender. � Cem da Companhia Bals�mica! � Tr�s mil r�is. - S�o suas. � Vinte e cinco da Companhia Salvadora! � Mil r�is! � Dois mil r�is! � Dois mil e cem! � E duzentos! � E quinhentos! � S�o suas.

Cheguei-me a um, ia a falar-lhe, quando fui interrompido pelo pr�prio homem:

�� Pronto Al�vio! meus senhores! -Dez do Banco Pronto Al�vio! N�o d�o nada, meus senhores? -- Pronto Al�vio! senhores... Quanto d�o? Dois tost�es! Oh! n�o! n�o! valem mais! Pronto Al�vio! Pronto Al�vio!� O homem calou-se afinal, n�o sem ouvir de outro coveiro que, como al�vio, o banco n�o podia ter sido mais pronto. Faziam trocadilhos, como os coveiros de Shakespeare. Um deles, ouvindo apregoar sete a��es do Banco Pontual, disse que tal banco foi realmente pontual at� o dia em que passou do ponto � retic�ncia. Como esp�rito, n�o era grande coisa; da� a chuva de t�bias que caiu em cima do autor. Foi uma cena l�gubre e alegre ao mesmo tempo. Os coveiros riam, as caveiras riam, as �rvores, torcendo-se aos ventos da Dinamarca, pareciam torcer-se de riso, e as covas abertas riam, � espera que fossem chorar sobre elas.

Surdiram muitas outras caveiras ou t�tulos. Da Companhia Exploradora de Al�m-T�mulo apareceram cinq�enta e quatro, que se venderam a dez r�is. O fim desta companhia era comprar para cada acionista um lote de trinta metros quadrados no Para�so. Os primeiros t�tulos, em mar�o de 1891, subiram a conto de r�is; mas se nada h� seguro neste mundo conhecido, pode hav�-lo no incognosc�vel? Esta d�vida entrou no esp�rito do caixa da companhia, que aproveitou a passagem de um paquete transatl�ntico, para ir consultar um te�logo europeu, levando consigo tudo o que havia mais cognosc�vel entre os valores. Foi um coveiro que me contou este antecedente da companhia. Eis aqui, por�m, surdiu uma voz do fundo da cova, que estavam abrindo. Uma deb�nture! Uma deb�nture!

Era j� outra coisa. Era uma deb�nture. Cheguei-me ao coveiro, e perguntei que era que estava dizendo. Repetiu o nome do t�tulo. Uma deb�nture? � Uma deb�nture. Deixe ver, amigo. E, pegando nela, como Hamlet, exclamei, cheio de melancolia:

� Alas, poor Iorick! Eu a conheci, Hor�cio. Era um t�tulo magn�fico. Estes buracos de olhos foram algarismos de brilhantes, safiras e opalas. Aqui, onde foi nariz, havia um promont�rio de marfim velho lavrado; eram de n�car estas faces, os dentes de ouro, as orelhas de granada e safira. Desta boca sa�am as mais sublimes promessas em estilo alevantado e nobre. Onde est�o agora as belas palavras de outro tempo? Prosa eloq�ente e fecunda, onde param os longos per�odos, as frases galantes, a arte com que fazias ver a gente cavalos soberbos com ferraduras de prata e arreios de ouro? Onde os carros de cristal, as almofadas de cetim? Dize-me c�, Jos� Rodrigues.

� Meu senhor...

� Cr�s que uma letra de S�crates esteja hoje no mesmo estado que este papel?

� Seguramente.

� Assim que, uma promessa de d�vida do nobre S�crates n�o ser� hoje mais que uma deb�nture escangalhada?

� A mesma coisa.

� At� onde podemos descer, Hor�cio! Uma letra de S�crates pode vir a ter os mais tristes empregos deste mundo; limpar os sapatos, por exemplo. Talvez ainda valha menos que esta deb�nture.

� Saber� Vossa Senhoria que eu n�o dava nada por ela.

� Nada? Pobre S�crates! Mas espera, calemos-nos, a� vem um enterro.

Era o enterro de Of�lia. Aqui o pesadelo foi-se tornando cada vez mais aflitivo. Vi os padres, o rei e a rainha, o s�quito, o caix�o. Tudo se me fez turvo e confuso. Vi a rainha deitar flores sobre a defunta. Quando o jovem Laertes saltou dentro da cova, saltei tamb�m; ali dentro atracamo-nos, esbofeteamo-nos. Eu suava, eu matava, eu sangrava, eu gritava...

� Acorde, patr�o! acorde!

10 de junho

Ontem de manh�, indo ao jardim, como de costume, achei l� um burro. N�o leram mal, n�o est� errado (como na Semana passada, em que saiu Banco Uni�o, em vez de Banco �nico); n�o, meus senhores, era um burro de carne e osso, de mais osso que carne. Ora, eu tenho rosas no jardim, rosas que cultivo com amor, e que me querem bem, que me sa�dam todas as manh�s com os seus melhores cheiros, e dizem sem pudor coisas muito galantes sobre as del�cias da vida, porque eun�o consinto que as cortem do p�. H�o de morrer onde nasceram.

Vendo o burro naquele lugar, lembrei-me de Lucius, ou Lucius da Tess�lia, que, s� com mastigar algumas rosas, passou outra vez de burro a gente. Estremeci, e, � confesso a minha ingratid�o, � foi menos pela perda das rosas, que pelo terror do prod�gio. Hip�crita, como me cumpria ser, saudei o burro com grandes rever�ncias, e chamei-lhe Lucius. Ele abanou as orelhas, e retorquiu:

N�o me chamo Lucius.

Fiquei sem pinga de sangue; mas para n�o agrav�-lo com demonstra��es de espanto, que lhe seriam duras, disse:

� N�o? Ent�o o nome de Vossa Senhoria...?

� Tamb�m n�o tenho senhoria. Nomes s� se d�o a cavalos, e quase exclusivamente a cavalos de corrida. N�o leu hoje telegramas de Londres, noticiando que nas corridas de Oaks venceram os cavalos Fulano e Sicrano? N�o leu a mesma coisaquinta-feira, a respeito das corridas de Epsom? Burro de cidade, burro que puxa bonde ou carro�a n�o tem nome; na ro�a pode ser. Cavalo � t�o adulado que, vencendo uma corrida na Inglaterra, manda-se-lhe o nome a todos os cantos da Terra. N�o pense que fiz verso: �s vezes saem-me rimas da boca, e podia achar editor para elas, se quisesse; mas n�o tenho ambi��es liter�rias. Falo rimado, porque falo poucas vezes, e atrapalho-me. Pois, sim senhor. E sabe de quem � o primeiro dos cavalos vencedores de Epsom, o que se chama Ladas? � do pr�prio chefe do governo, lord Roseberry, que ainda n�o h� muito ganhou com ele dois mil guin�us.

� Quem � que lhe conta todas essas coisas inglesas?

� Quem? Ah! meu amigo, � justamente o que me traz a seus p�s, disse o burro ajoelhando-se, mas levantando-se logo, a meu pedido. E continuou: Sei que o senhor se d� com gente de imprensa, e vim aqui para lhe pedir que interceda por mim e por uma classe inteira, que devia merecer alguma compaix�o...

� Justi�a, justi�a, emendei eu com hipocrisia e servilismo.

� Vejo que me compreende. Ou�a-me; serei breve. Em regra, s� se devia ensinar aos burros a l�ngua do pa�s; mas o finado Greenough, o primeiro gerente que teve a companhia do Jardim Bot�nico, achou que devia mandar ensinar ingl�s aos burros dos bondes. Compreende-se o motivo do ato. Rec�m-chegado ao Rio de Janeiro, trazia mais vivo que nunca o amor da l�ngua natal. Era natural crer que nenhuma outra cabia a todas as criaturas da Terra. Eu aprendi com facilidade...

� Como? Pois o senhor � contempor�neo da primeira ger�ncia?

� Sim, senhor; eu e alguns mais. Somos j� poucos, mas vamos trabalhando. Admira-me que se admire. Devia conhecer os animais de 1869 pela valente decrepitude com que, embora deitando a alma pela boca, puxamos os carros e os ossos. H� nisto um resto da disciplina, que nos deu a primeira educa��o. Apanhamos, � verdade, apanhamos de chicote, de ponta de p�, de ponta de r�dea, de ponta de ferro, mas � s� quando as poucas for�as n�o acodem ao desejo; os burros modernos, esses s�o teimosos, resistem mais � pancadaria. Afinal, s�o mo�os.

Suspirou e continuou:

� No meio da tanta afli��o, vale-nos a leitura, principalmente de folhas inglesas e americanas, quando algum passageiro as esquece no bonde. Um deles esqueceu anteontem um n�mero do Truth. Conhece o Truth?

� Conhe�o.

� � um peri�dico radical de Londres, continuou o burro, dando � for�a a not�cia, como um simples homem. Radical e semanal. � escrito por um cidad�o, que dizem ser deputado. O n�mero era o �ltimo, chegadinho de fresco. Mal me levaram � manjedoura, ou coisa que o valha, folheei o peri�dico de Labouch�re... Chamava-se Labouch�re o redator. O peri�dico publica sempre em duas colunas, not�cia comparativa das senten�as dadas pelos tribunais londrinos, com o fim de mostrar que os pobres e desamparados t�m mais duras penas que os que o n�o s�o, e por atos de menor monta. Ora, que hei de ler no n�mero chegado? Coisas destas. Um tal John Fearon Bell, convencido de maltratar quatro potros, n�o lhes dando suficiente comida e bebida, do que resultou morrer um e ficarem tr�s em m�sero estado, foi condenado a cinco libras de multa; ao lado desse vinha o caso de Fu�o Thompson, que foi encontrado a dormir em um celeiro e condenado a um m�s de cadeia. Outra compara��o. Eliott, acusado de maltratar dezesseis bezerros, cinco libras de multa e custas. Mary Ellen Connor, acusada de vagabundagem, um m�s de pris�o. William Poppe, por n�o dar comida bastante a oito cavalos, cinco libras e custas. William Dudd, aprendiz de pescador, r�u de desobedi�ncia, vinte e dois dias de pris�o. Tudo mais assim. Um rapaz tirou um ovo de fais�o de um ninho: quatorze dias de cadeia. Um senhor maltratou quatro vacas, cinco libras e custas.

� Realmente, disse eu sem grande convic��o, a diferen�a � enorme...

� Ah! meu nobre amigo! Eu e os meus pedimos essa diferen�a, por maior que seja. Condenem a um m�s ou a um ano os que tirarem ovos ou dormirem na rua; mas condenem a cinq�enta ou cem mil r�is aqueles que nos maltratam por qualquer modo, ou n�o nos dando comida suficiente, ou, ao contr�rio, dando-nos excessiva pancada. Estamos prontos a apanhar, � o nosso destino, e eu j� estou velho para aprender outro costume; mas seja com modera��o, sem esse furor de cocheiros e carroceiros. O que o tal ingl�s acha pouco para punir os que s�o cru�is conosco, eu acho que � bastante. Quem � pobre n�o tem v�cios. N�o exijo cadeia para os nossos opressores, mas uma pequena multa e custas, creio que ser�o eficazes. O burro ama s� a pele; o homem ama a pele e a bolsa. D�-se-lhe na bolsa; talvez a nossa pele pade�a menos.

� Farei o que puder; mas...

� Mas qu�? O senhor afinal � da esp�cie humana, h� de defender os seus. Eia, fale aos amigos da imprensa; ponha-se � frente de um grande movimento popular. O conselho municipal vai levantar um empr�stimo, n�o? Diga-lhe que, se lan�ar uma pena pecuni�ria sobre os que maltratam burros, cobrir� cinco ou seis vezes o empr�stimo, sem pagar juros, e ainda lhe sobrar� dinheiro para o Teatro Municipal, e para teatros paroquiais, se quiser. Ainda uma vez, respeit�vel senhor, cuide um pouco de n�s. Foram os homens que descobriram que n�s �ramos seus tios, sen�o diretos, por afinidade. Pois, meu caro sobrinho, � tempo de reconstituir a fam�lia. N�o nos abandone, como no tempo em que os burros eram parceiros dos escravos. Fa�a o nosso treze de Maio. Lincoln dos teus maiores, segundo o evangelho de Darwin, expede a proclama��o da nossa liberdade!

N�o se imagina a eloq��ncia destas �ltimas palavras. Cheio de entusiasmo, prometi, pelo c�u e pela terra, que faria tudo. Perguntei-lhe se lia o portugu�s com facilidade; e, respondendo-me que sim, disse-lhe que procurasse a Gazeta de hoje. Agradeceu-me com voz lacrimosa, fez um gesto de orelhas, e saiu do jardim vagarosamente, cai aqui, cai acol�.

17 de junho

Um membro do conselho municipal, discutindo-se ali esta semana a quest�o que os jornais chamaram tentativa de Panam�, deu dois apartes, que vou transcrever aqui, sem dizer o nome do autor. N�o h� neles nada que ofenda a ningu�m; mas eu s� falo em nomes, quando n�o posso evit�-los. Tenho meia d�zia de virtudes, algumas grandes. Uma das mais apreci�veis � este horror invenc�vel aos nomes pr�prios. Mas vamos aos dois apartes.

A prop�sito da not�cia que as folhas deram da chamada tentativa, reabriu-se esta semana a discuss�o dos papelinhos. V�rios falaram, varrendo cada um a sua testada, e fizeram muito bem. A opini�o geral foi que a quest�o n�o devia ser trazida a p�blico, opini�o que � tamb�m a minha, e era j� a de Napole�o. Uma vez trazida, era preciso liquid�-la.

Entre as declara��es feitas, em discurso, uma houve de algum valor; foi a de um conselheiro que revelou terem-lhe oferecido muitos contos de r�is para n�o discutir certo projeto. N�o se lhe pediu defesa, mas absten��o, t�o certo � que a palavra � prata e o sil�ncio � ouro. O conselheiro recusou; eu n�o sei se recusaria. Certamente, n�o me falta hombridade, nem me sobra cobi�a, mas distingo. Dinheiro para falar, � arriscado; naturalmente (a n�o ser costume velho), a gente fala com a impress�o de que traz o pre�o do discurso na testa, e depois � f�cil cotejar o discurso e o boato, e a� est� um homem perdido. Ou meio perdido: um homem n�o se perde assim com duas raz�es. Mas dinheiro para calar, para ouvir atacar um projeto sem defend�-lo, dar corda ao rel�gio, enquanto se discute, concertar as su��as, examinar as unhas, adoecer, ir passar alguns dias fora, n�o acho que envergonhe ningu�m, seja a pessoa que prop�e, seja a que aceita.

H� quem veja nisso algo imoral; � opini�o de esp�ritos absolutos, e tu, meu bom amigo e leitor, foge de esp�ritos absolutos. Os casu�stas n�o eram t�o maus como nos fizeram crer. Atos h� que, aparentemente repreens�veis, n�o o s�o na realidade, ou pela pureza da inten��o, ou pelo benef�cio do resultado; e ainda os h� que n�o precisam de condi��o alguma para serem indiferentes. Depois, quando seja imoralidade, conv�m advertir que esta tem dois g�neros, � ativa ou passiva. Quando algu�m, sem nenhum impulso generoso, pede o pre�o do voto que vai dar, pratica a imoralidade ativa, e ainda assim � preciso que o objeto do voto n�o seja repreens�vel em si mesmo. Quando, por�m, � procurado para receber o dinheiro, essa outra forma, n�o s� � diversa, mas at� contr�ria, � a passiva, e tanto importa dizer que n�o existe. Ningu�m afirmar� que cometi suic�dio porque me caiu um raio em casa.

A pr�pria lei faz essa distin��o. Sup�e que est�s com sete contos na carteira, para sa�res a umas compras no interior. V�s ao Passeio P�blico ouvir m�sica ou ver o mar. Chega-se um homem e prop�e-te vender pelos sete contos uma caixa contendo duzentos contos de notas falsas. Tu refletes, tu calculas: �O neg�cio � bom; eu preciso justamente de duzentos contos para comprar a fazenda do Chico Marques e pagar a casa em que est� o Banco Indestrut�vel. Matuto n�o conhece nota falsa nem verdadeira; passo tudo na ro�a e volto com o dinheiro bom... duzentos contos... Est� feito!� Ajustas lugar e hora, levas os sete contos, ele d�-te a caixa, levantas a tampa, est� socada de bilhetes novos em folha. De noite ou na manh� seguinte, queres contar os duzentos contos e abres a caixa. Que achas tu? Que todas as notas de cima s�o verdadeiras, � uns quinhentos mil r�is. Tudo o mais s�o panos velhos e retalhos de jornais. O primeiro gesto � levar as m�os � cabe�a, o segundo � correr � pol�cia. A pol�cia ouve, escreve, sai no encal�o do homem, que ainda est� com os sete contos intactos. Ele vai para a cadeia e tu para a ro�a.

Por que vais tu para a ro�a e ele para a cadeia? N�o � s�, como te dir�o, por n�o teres praticado nem tentado delito algum, n�o podendo a lei alcan�ar os recessos da consci�ncia, nem punir a ilus�o. � tamb�m, e principalmente, pela passividade do teu papel. Tu estavas muito sossegado, mirando o mar e escutando a banda de m�sica. Quem te veio tentar, foi ele. No Fausto � a mesma coisa. Margarida sobe ao  c�u. Fausto sai arrastado por Mefist�feles.

Mas vamos aos dois apartes. J� disse em que consistiu o principal da discuss�o outro dia. Esse principal, conv�m not�-lo, n�o foi a maior parte. Examinaram-se projetos de lei, com aten��o, com zelo, sem que a primeira parte da sess�o influ�sse na segunda. Os apartes, por�m, a que me refiro, foram dados na primeira hora, quando se discutia justamente a quest�o principal. Dois oradores tinham opini�o diversa sobre ela. Um condenou francamente a id�ia de trazer ao conhecimento p�blico o neg�cio dos pap�is, e f�-lo por este modo: �Para que trazer tais coisas ao conhecimento do conselho, dando lugar a murmura��es?� � �Isso � trist�ssimo!� apoiou um membro. Mas dizendo outro orador que o lugar pr�prio para liquidar o neg�cio era o tribunal, acudiu o membro que sim: � �Apoiado: a mesa saber� cumprir o seu dever.�

H� a� duas opini�es, uma em cada aparte. Com a de Napole�o, que � a minha, s�o tr�s. � o que parece; mas tamb�m pode suceder que as duas se combinem ou se completem. O primeiro aparte condenou a publicidade; o segundo, uma vez que a publicidade se fez, pede o tribunal. Creio que � isto mesmo. Assim pudesse eu _ explicar a contradi��o dos aguaceiros de ontem e de hoje com a hora de sol desta manh�. Sol divino, H�lios amado, quando te vi hoje espiar para todas as �rvores que me cercavam fiquei alegre. Havia um peda�o de c�u azul, n�o muito azul; tinha ainda umas dedadas de nuvens grossas, mas caminhava para ficar todo azul. O vento era frio. Duas palmeiras, distantes no espa�o, mas abra�adas � vista, recortavam-se justamente no peda�o azul, movendo as folhas de um verde cristalino. Viva o sol! bradei eu, atirando a perna. Eis que a chuva, aborrecida velha de capote, entra pela cidade, deixando flutuar ao vento as saias cheias de lama...

24 de junho

Peguei na pena, e ia come�ar esta Semana, quando ouvi uma voz de espectro: �S. Jo�o! sortes de S. Jo�o!� A princ�pio cuidei que era alguma loteria nova, e molhei a pena para cumprir esta obriga��o. N�o tinha assunto, tantos eram eles; mas a boa regra, quando eles s�o muitos, � deixar ir os dedos pelo papel abaixo, como animais sem r�dea nem chicote. Os dedos d�o conta da m�o, salvo o trocadilho.

Mal escrevera o t�tulo, ouvi outra vez bradar: �S. Jo�o! sortes de S. Jo�o!� Ergui-me como um s� homem, desci � rua e fui direito ao espectro. O espectro levava meia d�zia de folhetinhos na m�o; eram sortes, eram versos para a noite de S. Jo�o, que foi ontem. Arregalei os olhos, que � o primeiro gesto, quando se v� alguma coisa incr�vel; depois fechei-os para n�o ver o espectro, mas o espectro bradava-me aos ouvidos; tapei os ouvidos, ele fitava-me os velhos olhos cavados de alma do outro mundo. Vai, disse eu, o Senhor te d� a salva��o. O vulto pegou em si e continuou a apregoar as sortes do santo, arrastando os p�s e a voz, como se realmente fizesse penit�ncia.

Tornei a casa, e, como nos mist�rios esp�ritas, concentrei-me. A concentra��o levou-me a anos passados, se muitos ou poucos n�o sei, n�o os contei; era no tempo em que havia S. Jo�o e a sua noite. Gente mo�a em volta da mesa, um copo de marfim e dois ou tr�s dados. Fora, ardiam as �ltimas achas da fogueira; tinham-se comido car�s e batatas; ia-se agora � consulta do futuro. Um ledor abria o livro das sortes, e dizia o t�tulo do cap�tulo: �Se h� de ser feliz com a pessoa a quem adora�.

Corriam os dados. O ledor buscava a quadrinha indicada pelo n�mero, e sibilava:

Felicidades n�o busques,

Incauta...

V�s que nascestes depois da morte de S. Jo�o, e antes da Morte de D. Jo�o, n�o cuideis que invento. N�o invento nada; era assim mesmo. Remontemos ao dia 24 de junho de 1841... Se pertenceis ao n�mero dos meus inimigos, como Lulu Senior, repetireis a velha chala�a de que foi nesse ano que eu fiz a barba pela primeira vez. Eu me calo, Adalberto, ou n�o respondo, como dizia Jo�o Caetano em n�o sei que trag�dia, contempor�nea do santo do seu nome. Tudo morto, o santo, a trag�dia, o autor, talvez o teatro, � o nacional, que o municipal a� vem.

Remontemos ao dito ano de 1841. Aqui est� uma folha do dia 23 de junho. Como � que veio parar aqui � minha mesa? O vento dos tempos nem sempre � a brisa igual e mansa que tudo esfolha e dispersa devagar. Tem lufadas de tuf�o, que fazem ir parar longe as folhas secas ou somente murchas. Esta desfaz-se de velha; n�o tanto, por�m, que se n�o leiam nela os an�ncios de livros de sortes. � o Fado, que a casa Laemmert publicava, quando estava na rua da Quitanda, um livro repleto de promessas, que mostrava tudo o que se quisesse saber a respeito de riquezas, heran�as, amizades, contendas, gostos. Aqui vem outro, o Nov�ssimo jogo de sortes, �por meio do qual as senhoras podem vir ao conhecimento do que mais lhes interessa saber, como seja o estado que ter�o na vida, se encontrar�o um consorte que as estime e respeite, se ter�o abund�ncia de bens de fortuna, se ser�o felizes com amores�. C� est� A mulher de Simpl�cio, que dava uma edi��o extraordin�ria �com mais de mil sortes�. Eis agora o Or�culo das senhoras, conselheiro oculto, diz o subt�tulo, e acrescenta: �respondendo de um modo infal�vel a todas as quest�es sobre as �pocas e acontecimentos mais importantes da vida, confirmado pela opini�o de fil�sofos e fisiologistas mais c�lebres, Descartes, Buffon, Lavater, Gall e Spurzheim�.

Quem n�o ia pela f�, ia pela ci�ncia, e, � for�a do Batista ou de Descartes, agarravam-se pelas orelhas os segredos mais rec�nditos do futuro, para traz�-los ao clar�o das velas, porque ainda n�o havia g�s. Tudo por dez tost�es, brochado; encadernado, dois mil r�is. O mist�rio ao alcance de todas as bolsas era uma bela institui��o dom�stica. As cartomantes creio que levam dois ou cinco mil r�is, segundo as posses do fregu�s; � mais caro. Quanto � P�tia, av� de todas elas, os presentes que iam ter ao templo de Delfos, eram custosos, ouro para cima. E nem sempre falava claro, que parece ter sido o defeito dos adivinhos antigos e de alguns profetas. Ao contr�rio, os nossos livros eram francos, diziam tudo, bem e com gra�a, uma vez que os buscassem unicamente em tr�s dias do ano.

Agora j� n�o h� dias especiais para consultar a Fortuna. Os santos do c�u rebelaram-se, deram com a oligarquia de junho abaixo e proclamaram a democracia de todos os meses. N�o se limitaram a anunciar coisas futuras, disseram claramente que j� as traziam nas algibeiras, e que era s� pedi-las. A terra estremeceu de ansiedade. Todas as m�os estenderam-se para o c�u. No atropelo era natural que nem todas apanhassem tudo. N�o importa: continuaram estendidas, esperando que lhes ca�sse alguma coisa.

Entretanto, a fartura precisa de limite, e onde entra excesso, pode muito bem entrar afli��o. Os or�culos vieram c� abaixo disputar a veracidade dos seus dizeres, e cada um pede para os outros o rigor da autoridade. A opini�o de uns � que os outros corrompem os cora��es imberbes ou barbados, que t�m a f� pura e o sangue generoso. Tal � a luta que a� vemos, em artigos impressos, entre Santa Loteria, S. Book-Maker, S. Front�o, e n�o sei se tamb�m S. Prado, dizendo uns aos outros palavras duras e agrestes. Parece que a liberdade da adivinha��o, proclamada contra a oligarquia de junho, n�o est� provando bem, e que o meio de todos comerem, � n�o comerem todos. Esta descoberta, a falar verdade, � antiga, � o fundamento da esmola; mas nenhum dos contendores quer receber esmola, todos querem d�-la, e da� o conflito.

Que sair� deste? N�o creio na extermina��o de ningu�m; pode haver algum acordo que permita a todos irem comendo, ainda que moderadamente. Uma religi�o n�o se destr�i por excesso de religion�rios. O p�o m�stico h� de chegar a todos, e basta que um par de queixos mastigue de verdade, para fazer remoer todos os queixos vazios. O que eu quisera, � que, no meio da consulta universal, S. Jo�o continuasse o seu pequeno e ing�nuo neg�cio, congregando a gente mo�a, como em 1841, para lhes dizer pela boca do Fado ou do Or�culo das senhoras:

Felicidade n�o busques,

Incauta...

Poetas, completai a estrofe. Cabe � poesia eternizar a mocidade, e este Batista, que nos pintam com o seu carneirinho branco, � patr�o natural dos mo�os � e das mo�as tamb�m. Digo-vos isto no pr�prio estilo adocicado daquele tempo.

1 de julho

Quinta-feira de manh� fiz como No�, abri a janela da arca e soltei um corvo. Mas o corvo n�o tornou, de onde inferi que as cataratas do c�u e as fontes do abismo continuavam escancaradas. Ent�o disse comigo: As �guas h�o de acabar algum dia. Tempo vir� em que este dil�vio termine de uma vez para sempre, e a gente possa descer e palmear a Rua do Ouvidor e outros becos. Sim, nem sempre h� de chover. Veremos ainda o c�u azul como a alma da gente nova. O sol, deitando fora a carapu�a, espalhar� outra vez os grandes cabelos louros. Brotar�o as ervas. As flores deitar�o aromas capitosos.

Enquanto pensava, ia fechando a janela da arca e tornei depois aos animais que trouxera comigo, � imita��o de No�. Todos eles aguardavam not�cias do fim. Quando souberam que n�o havia not�cia nem fim, ficaram desconsolados.

� Mas que diabo vos importa um dia mais ou menos de chuva? perguntei-lhes, Voc�s aqui est�o comigo, dou-lhes tudo; al�m da minha conversa��o, viveis em paz, ainda os que sois inimigos, lobos e cordeiros, gatos e ratos. Que vos importa que chova ou n�o chova?

� Senhor meu, disse-me um espadarte, eu sou grato, e todos os nossos o s�o, ao cuidado que tivestes em trazer para aqui uma piscina, onde podemos nadar e viver � mas piscina n�o vale o mar; falta-nos a onda grossa e as corridas de peixes grandes e pequenos, em que nos comemos uns aos outros, com grande alma. Isto que nos destes, prova que tendes bom cora��o, mas n�s n�o vivemos do bom cora��o dos homens. Vamos comendo, � verdade, mas comendo sem apetite, porque o melhor apetite...

Foi interrompido pelo galo, que bateu as asas, e, depois de cantar tr�s vezes, como nos dias de Pedro, proferiu esta alocu��o:

� Pela minha parte, n�o � a chuva que me aborrece. O que me aborreceu desde o princ�pio do dil�vio, foi a vossa id�ia de trazer sete casais de cada vivente, de modo que somos aqui sete galos e sete galinhas, propor��o absolutamente contr�ria �s mais simples regras da aritm�tica, ao menos as que eu conhe�o. N�o brigo com os outros galos, nem eles comigo, porque estamos em tr�guas, n�opor falta de casus belli. H� aqui seis galos de mais. Se os mand�ssemos procurar o corvo?

N�o lhe dei ouvidos. Fui dali ver o elefante enroscando a tromba no surucucu, e o surucucu enroscando-se na tromba do elefante. O camelo esticava o pesco�o, procurando algumas l�guas de deserto, ou quando menos, uma rua do Cairo. Perto dele, o gato e o rato ensinavam hist�rias um ao outro. O gato dizia que a hist�ria do rato era apenas uma longa s�rie de viol�ncias contra o gato, e o rato explicava que, se perseguia o gato, � porque o queijo o perseguia a ele. Talvez nenhum deles estivesse convencido. O sabi� suspirava. A um canto, a lagartixa, o lagarto e o crocodilo palestravam em fam�lia. Coisa digna da aten��o do fil�sofo � que a lagartixa via no crocodilo uma formid�vel lagartixa, e o crocodilo achava a lagartixa umcrocodilo mimoso; ambos estavam de acordo em considerar o lagarto um ambicioso sem g�nio (vers�o lagartixa) e umpresumido do semgra�a (vers�o crocodilo).

� Quando lhe perguntaram pelos av�s, observou o crocodilo, costuma responder que eles foram os mais belos crocodilos do mundo, o que pode provar compapiros antiq��ssimos e aut�nticos...

� Tendo nascido, concluiu a lagartixa, tendo nascido na mais humilde fenda de parede, como eu... Crocodilo de bobagem!

� Notai que ele fala muito do loto e do nen�far, refere casos do hipop�tamo, para enganar os outros, confunde Cle�patra com o Kediva e as antigas dinastias com o governo ingl�s...

Tudo isso era dito sem queo lagarto fizesse caso. Ao contr�rio, parecia rir, e costeava a parede da arca, a ver se achava algumcalor de sol. Era ent�o sexta-feira, � tardinha. Pareceu-me ver por uma fresta uma linha azul. Chamei umapomba e soltei-a pela janela da arca. Nisto chegou o burro, com uma �guia pousada na cabe�a, entre as orelhas. Vinha pedir-me, em nome das outras alim�rias, que as soltasse. Falou-me teso e quieto, n�o tanto pela circunspe��o da ra�a, como pelo medo, que me confessou, de ver fugir-lhe a �guia, se mexesse muito a cabe�a. E dizendo-lhe eu que acabava de soltar a pomba, agradeceu-me e foi andando. Pelas dez horas da noite, voltou a pomba com uma flor no bico. Era o primeiro sinal de que as �guas iam descendo.

� As �guas s�o ainda grandes, disse-me a pomba, mas parece que foram maiores. Esta flor n�o foi colhida de erva, mas atirada pela janela fora de uma arca, cheia de homens, porque h� muitas arcas boiando. Esta de que falo, deitou fora uma por��o de flores, colhi esta que n�o � das menos lindas.

Examinei a flor; era de ret�rica. Nenhum dos animais conhecia tal planta. Expliquei-lhes que era uma flor de estufa, produto da arte humana, que ficava entre a flor de pano e a da campina. H� de haver alguma academia a� perto, conclu�, academia ou parlamento.

Ontem, sobre a madrugada, tornei a abrir a janela e soltei outra vez a pomba, dizendo aos outros que,se ela n�o tornasse, era sinal de que as �guas estavam inteiramente acabadas. N�o voltando at� o meio-dia, abri tudo, portas e janelas, e despejei toda aquela cria��o neste mundo. Desisto de descrever a alegria geral. As borboletas e as aranhas iamdan�ando a tarantela, a v�bora adornava o pesco�o do c�o, a gazela e o urubu, de asa e bra�o dados, voavam e saltavam ao mesmo tempo... Viva o dil�vio! e viva o sol!

8 de julho

O empres�rio Mancinelli vem fechar a era das revolu��es. O nosso engano tem sido andar por v�rios caminhos � cata de uma solu��o que s� podemos achar na m�sica. A m�sica � a paz, a opera � a reconcilia��o. A unidade alem� e a unidade italiana s�o d�vidas, antes de tudo, � voca��o l�rica das duas na��es. Cavour sem Verdi, Bismarck sem Wagner n�o fariam o que fizeram. A m�sica � a ilustre matem�tica, apta para resolver todos os problemas. � pelo contraponto que o presente corrige o passado e decifra o futuro.

N�o quero ir agora a escava��es hist�ricas nem a estudos �tnicos, por onde mostraria que os povos maviosos s�o os que t�m vida f�cil, forte e unida. Os judeus unem-se muito, sem terem sido grandes m�sicos, exceto David e Meyerbeer. O primeiro, como se sabe, aplacava as f�rias de Saul, ao som da c�tara. Os cativos de Babil�nia penduravam as harpas dos salgueiros, para n�o cantarem, donde se infere que cantavam antes. H� ainda o famoso canto de D�bora, os salmos e alguma coisa mais que me escapa. Esse pouco basta para que os descendentes de Abra�o, Isaac e Jac� n�o desprezem totalmente a m�sica. Vede Rothschild; apesar de saber que adoramos a m�sica, jamais nos respondeu com o sarcasmo da formiga � cigarra: Vous chantiez? J'en suis fort aise. N�o, senhor; sempre nos emprestou os seus dinheiros, certo de que a m�sica faz os devedores honestos. E se, fechado o empr�stimo, nos dissesse: Eh bien! dansez maintenant, seria por saber que h� em n�s uma gota de sangue do rei David, que sa�a a dan�ar diante da arca santa. N�s descansamos da �pera no baile, e do baile na �pera.

Os franceses dizem que entre eles tout finit par des chansons. Digamos, pela mesma l�ngua, que entre n�s tout finit par des op�ras. Sim, Mancinelli veio trancar a era das revolu��es. Notai que a �pera coincide com a representa��o nacional. N�o � s� a comunh�o da arte, onde gregos e troianos, entre duas voltas, esquecem o que os divide e irrita. � ainda, at� certo ponto, a reprodu��o paralela da legislatura.

A quest�o � demasiado complexa para ser tratada sobre a perna. J� a� ficam algumas indica��es, �s quais acrescento uma, a saber, que a pr�pria estrutura dos corpos deliberantes reproduz a cena l�rica. A mesa � a orquestra, o chefe da maioria o bar�tono, o da oposi��o o tenor; seguem-se os comprim�rios e os coros. No sistema parlamentar, cada minist�rio novo canta aquela �ria: Eccomi al fine in Babylonia. Quando sucede cair um gabinete, a �ria � esta: Gran Dio, morir si giovane. Antes, muito antes que algu�m se lembrasse de p�r em m�sica o Hamlet, j� nas assembl�ias legislativas se cantava (� surdina) o mon�logo da indecis�o: To be or not to be, that is the question. Aquela frase de Hamlet, quando Of�lia lhe perguntou o que est� lendo: Words, words, words, muita vez a ouvi com acompanhamento de violinos. Ouvi tamb�m a talentos de primeira ordem �rias e duos admir�veis, executados com rara mestria e verdadeira paix�o.

Quem quiser escrever a hist�ria do canto entre n�s, h� de ter diante dos olhos os efeitos pol�ticos desta arte. Sem isso, far� uma cr�nica, n�o uma hist�ria. Pela minha parte, n�o conhecendo a cr�nica, n�o poderia tentar a hist�ria. Pouco sei dos fatos. N�o remontando a um soprano que aqui viveu e morreu, homem alto, gordo e italiano, que cantava somente nas igrejas, sei que a �pera l�rica, propriamente dita, come�ou a luzir de 1840 a 1850, com outro soprano, desta vez mulher, a c�lebre Candiani. Quem n�o a haver� citado? Netos dos que se babaram de gosto nas cadeiras e camarotes do teatro de S. Pedro, tamb�m v�s a conheceis de nome, sem a terdes visto, nem provavelmente vossos pais. J� � alguma coisa viver durante meio s�culo na mem�ria de uma cidade, n�o tendo feito outra coisa mais que cantar o melanc�lico Bellini.

Ao que parece, o canto era tal que arrebatava as almas e os corpos, elas para o c�u, eles para o carro da diva, cujos cavalos eram substitu�dos por homens de boa vontade. N�o mofeis disto; para a cantora foi a gl�ria, para os seus aclamadores foi o entusiasmo, e o entusiasmo n�o � t�o mesquinha coisa que se despreze. Invejai antes esses cavalos de uma hora...

A ra�a acabou. Hoje os homens ficam homens, aplaudem sem transpirar, muitos com as palmas, alguns com a ponta dos dedos, mas sentem e basta. A ingenuidade � menor? a express�o comedida? N�o importa, contanto que vingue a arte. Onde ela principia, cessam as canseiras deste mundo. Partidos irreconcili�veis, partid�rios que se detestam, conciliam-se e amam-se por um minuto ao menos. Grande minuto, meus caros amigos, um minuto grand�ssimo, que vale por um dia inteiro.

Vivam os povos cantarinos, as almas entoadas e particularmente a terra da modinha e da viola. A viola foi-se da capital com os cavalos, recolheu-se ao interior, onde os peregrinismos s�o menos aceitos. As peregrinas pode ser que sim; mas novas cantoras j� se n�o deixam ir dos bra�os de Poli�o ou de Manrico aos de um senhor da plat�ia, como a La-Grua, e antes dela a Candiani. �guas passadas; mas nem por serem passadas deixam de refrescar a mem�ria dos seus contempor�neos. O caso da La-Grua entristece-me, porque um amigo meu a amava muito. Tinha vinte anos, uma lira nas m�os, um triste emprego e aquele amor, n�o sabido de ningu�m. Salvo o emprego, era riqu�ssimo. N�o combatia entre os lagru�stas contra os cartonistas; era franco-atirador. N�o queria meter o seu amor na multid�o dos entusiasmos de passagem. O seu amor era eterno, dizia em todos os versos que compunha, � noite, quando vinha do teatro para casa. E ria-se muito de um senhor de su��as que, da plat�ia, devorava com os olhos a La-Grua.

Uma noite, acabado o espet�culo, o mo�o poeta recolheu-se, comp�s dois sonetos e dormiu com os anjos. O mais ador�vel deles era a pr�pria imagem da La-Grua. Na manh� seguinte, ele e a cidade acordaram assombrados. A diva desaparecera, o senhor das su��as n�o tornou � plat�ia, e o meu rapaz adoeceu, definhou, at� morrer de melancolia. Assim lhe fecharam a era das revolu��es.

15 de julho

Quando estas linhas aparecerem aos olhos dos leitores, � de crer que toda a popula��o eleitoral de Rio de Janeiro caminhe para as urnas, a fim de eleger o presidente do Estado. Renhida � a luta. Como na Fars�lia, de Lucano, pela tradu��o de um finado sabedor de coisas latinas,

Nos altos, frente a frente, os dois caudilhos,

S�fregos de ir-se �s m�os, j� se acamparam.

N�o sei quem seja aqui C�sar nem Pompeu. Contento-me em que n�o haja morte de homem, nem outra arma al�m da c�dula. Se falo na batalha de hoje, n�o � que me proponha a cant�-la; eu, nestas campanhas, sou um simples Suet�nio, curioso, aned�tico, desapaixonado. Assim que, propondo aos meus concidad�os uma reforma eleitoral, n�o cedo a interesse pol�tico, nem falo em nome de nenhuma fac��o; obede�o a um nobre impulso que eles mesmos reconhecer�o, se me fizerem o favor de ler at� ao fim.

Ningu�m ignora que nas batalhas como a de hoje costuma roncar o pau. Esta arma, for�a � diz�-lo, anda um tanto desusada, mas � t�o �til, t�o sugestiva, que dificilmente ser� abolida neste final do s�culo e nos primeiros anos do outro. N�o � �pica nem m�stica, est� longe de competir com a lan�a de Aquiles, ou com a espada do arcanjo. Mas a arma � como o estilo, a melhor � que se adapta ao assunto. Que viria fazer a lan�a de Aquiles entre um capanga sem letras e um leitor sem convic��o? Menos, muito menos que o vulgar cacete. A pena, �o bico de pena�, segundo a express�o cl�ssica, traz vantagens relativas, n�o tira sangue de ningu�m; n�o faz v�timas, faz atas, faz pleitos. O vencido perde o lugar, mas n�o perde as costelas. � preciso forte voca��o pol�tica para preferir o contr�rio.

O grande mal das elei��es n�o � o pau, nem talvez a pena, � a absten��o, que d� resultados muita vez rid�culos. Urge combat�-la. Cumpre que os eleitores elejam, que se movam, que saiam de suas casas para correr �s urnas, que se interessem, finalmente, pelo exerc�cio do direito que a lei lhes deu, ou lhes reconheceu. N�o creio, por�m, que baste a exorta��o. A exorta��o est� gasta. A indiferen�a n�o se deixa persuadir com palavras nem racioc�nios; � preciso est�mulo. Creio que uma boa reforma eleitoral, em que esta considera��o domine, produzir� efeito certo. Tenho uma id�ia que reputo eficac�ssima.

Consiste em pouco. A imprensa tem feito reparos acerca do estado do nosso turf, censurando abusos e pedindo reformas, que, segundo acabo de ler, v�o ser iniciadas. Um cidad�o, por nome M. Elias, dirigiu a este respeito uma carta ao Jornal do Com�rcio, concordando com os reparos, e dizendo: �Ora, a nossa popula��o esportiva, constitu�da por dois ter�os da popula��o municipal, pode assim continuar sujeita, como at� agora, ao assalto de combina��es escandalosas?� Foi este trecho da carta do Sr. Elias, que me deu a id�ia da reforma eleitoral.

A princ�pio n�o pude raciocinar. A certeza de que dois ter�os da nossa popula��o � esportiva, deixou-me assombrado e est�pido. Voltando a mim, fiquei humilhado. Pois qu�! dois ter�os da popula��o � esportiva, e eu n�o sou esportivo! Mas que sou ent�o neste mundo? Melancolicamente adverti que talvez me faltem as qualidades esportivas, ou n�o as tenha naquele grau eminente ou naquele extenso n�mero em que elas se podem dizer suficientemente esportivas. A mem�ria ajudou-me nesta investiga��o. Recordei-me que, h� alguns anos, tr�s ou quatro, fui convidado por um amigo a ir a uma corrida de cavalos. N�o me sentia disposto, mas o amigo convidava de t�o boa fei��o, o carro dele era t�o elegante, os cavalos t�o galhardos e briosos, que n�o resisti, e fui.

N�o tendo visto nunca uma corrida de cavalos, imaginei coisa mui diversa do que �, realmente, este nobre exerc�cio. Fiquei espantado quando vi que as corridas duravam tr�s ou quatro minutos, e os intervalos meia hora. Nos teatros, quando os intervalos se prolongam, os espectadores batem com os p�s, uso que n�o vi no circo, e achei bom. Vi que, no fim de cada corrida, toda a gente ia espairecer fora dos seus lugares, e tornava a encher as galerias, apenas se comunicava a corrida seguinte. Uma destas ofereceu-me um epis�dio interessante. Ao sa�rem os cavalos, caiu o jockey de um, ficando im�vel no ch�o, como morto. Cheio de um sentimento pouco esportivo, quis gritar que acudissem ao desgra�ado; mas, vendo que ningu�m se movia, cuidei que era uma esp�cie de partido que o jockey dava aos advers�rios; n�o tardaria a levantar-se, correr, apanhar o cavalo, mont�-lo e vencer. Dois verbos mais que C�sar. De fato, o cavalo dele ia correndo; mas, pouco a pouco, vi que o animal, n�o se sentindo governado, afrouxava, at� que de todo parou. Nisto entraram dois homens no circo, tomaram do jockey im�vel, cujas pernas e bra�os ca�am sem vida, e levaram o cad�ver para fora. N�o lhe rezei por alma, unicamente por n�o saber o nome da pessoa. N�o veio no obitu�rio, nem os jornais deram not�cia do desastre. Perder assim a vida e a corrida, obscuro e desprezado, � por demais duro.

Vindo � minha id�ia, acho que a reforma eleitoral, para ser �til e fecunda, h� de consistir em dar �s elei��es um aspecto acentuadamente esportivo. Em vez de esperar que o desejo de escolher representantes leve o eleitor �s urnas, devemos suprir a aus�ncia ou a frouxid�o desse impulso pela atra��o das pr�prias urnas eleitorais. A lei deve ordenar que os candidatos sejam objeto de apostas, ou com os pr�prios nomes, ou (para ajudar a in�rcia dos esp�ritos) com outros nomes convencionais, um por pessoa, e curto. N�o entro no modo pr�tico da id�ia; cabe ao legislador, ach�-lo e decret�-lo. A absten��o ficar� vencida, e nascer� outro benef�cio da reforma.

Este benef�cio ser� o aumento das naturaliza��es. Com efeito, se nos dois ter�os da popula��o esportiva h� naturalmente certo n�mero de estrangeiros, n�o � de crer que essa parte despreze uma ocasi�o t�o esportiva, pela �nica dificuldade de tirar carta de naturaliza��o. A lei deve at� facilitar a opera��o, ordenando que o simples tal�o da aposta sirva de t�tulo de nacionalidade.

Se a id�ia n�o der o que espero, recorramos ent�o ao exemplo da Nova Zel�ndia, onde por uma lei recente as mulheres s�o eleitoras. Em virtude dessa lei, qualificaram-se cem mil mulheres, das quais logo na primeira elei��o, h� cerca de um m�s, votaram noventa mil. Elevemos a mulher ao eleitorado; � mais discreta que o homem, mais zelosa, mais desinteressada. Em vez de a conservarmos nessa injusta minoridade, convidemo-la a colaborar com o homem na oficina da pol�tica.

Que perigo pode vir da�? Que as mulheres, uma vez empossadas das urnas, conquistem as c�maras e elejam-se entre si, com exclus�o dos homens? Melhor. Elas far�o leis brandas e am�veis. As discuss�es ser�o pac�ficas. Certos usos de mau gosto desaparecer�o dos debates. Aquele, por exemplo, que consiste em dizer o orador que lhe faltam os precisos dotes de tribuna, ao que todos respondem: N�o apoiado! havendo sempre uma voz que acrescenta: �� um dos ornamentos mais brilhantes desta c�mara�, esse uso, digo, n�o continuar�, quando as c�maras se compuserem de mulheres. Qualquer delas que tivesse o mau gosto de come�ar o discurso alegando n�o poder competir em beleza e eleg�ncia com as suas colegas, ouviria apenas um sil�ncio respeitoso e aprovador.

Os homens, que fariam os homens nesse dia? Deus meu, iriam completar o �ltimo ter�o que falta para que a popula��o inteira fique esportiva. O cont�gio far-nos-ia a todos esportivos. Seria a vit�ria �ltima e definitiva da esportividade.

22 de julho

Telegrama da Bahia refere que o Conselheiro est� em Canudos com 2.000 homens (dois mil homens) perfeitamente armados. Que Conselheiro? O Conselheiro. N�o lhe ponhas nome algum, que � sair da poesia e do mist�rio. � o Conselheiro, um homem dizem que fan�tico, levando consigo a toda a parte aqueles dois mil legion�rios. Pelas �ltimas not�cias tinha j� mandado um contingente a Alagoinhas. Temem-se no Pombal e outros lugares os seus assaltos.

Jornais recentes afirmam tamb�m que os c�lebres clavinoteiros de Belmonte t�m fugido, em turmas, para o sul, atravessando a comarca de Porto-Seguro. Essa outra horda, para empregar o termo do profano vulgo que odeio, n�o obedece ao mesmo chefe. Tem outro ou mais de um, entre eles o que responde ao nome de Cara de Graxa. Jornais e telegramas dizem dos clavinoteiros e dos sequazes do Conselheiro que s�o criminosos; nem outra palavra pode sair de c�rebros alinhados, registrados, qualificados, c�rebros eleitores e contribuintes. Para n�s, artistas, � a renascen�a, � um raio de sol que, atrav�s da chuva mi�da e aborrecida, vem dourar-nos a janela e a alma. � a poesia que nos levanta do meio da prosa chilra e dura deste fim de s�culo. Nos climas �speros, a �rvore que o inverno despiu � novamente enfolhada pela primavera, essa eterna florista que aprendeu n�o sei onde e n�o esquece o que lhe ensinaram. A arte � a �rvore despida: eis que lhe rebentam folhas novas e verdes.

Sim, meus amigos. Os dois mil homens do Conselheiro, que v�o de vila em vila, assim como os clavinoteiros de Belmonte, que se metem pelo sert�o, comendo o que arrebatam, acampando em vez de morar, levando mo�as naturalmente, mo�as cativas, chorosas e belas, s�o os piratas dos poetas de 1830. Poetas de 1894, a� tendes mat�ria nova e fecunda. Recordai vossos pais; cantai, como Hugo, a can��o dos piratas:

En mer, les hardis �cumeurs!

Nous allions de Fez � Catane...

Entrai pela Espanha, � ainda a terra da imagina��o de Hugo, esse homem de todas as p�trias; puxai pela mem�ria, ouvireis Espronceda dizer outra can��o de pirata, um que desafia a ordem e a lei, como o nosso Conselheiro. Ide a Veneza; a� Byron recita os versos do Cors�rio no rega�o da bela Guiccioli. Tornai � nossa Am�rica, onde Gon�alves Dias tamb�m cantou o seu pirata. Tudo pirata. O romantismo � pirataria, � o banditismo, � a aventura do salteador que estripa um homem e morre por uma dama.

Crede-me, esse Conselheiro que est� em Canudos com os seus dois mil homens, n�o � o que dizem telegramas e pap�is p�blicos. Imaginai uma legi�o de aventureiros galantes, audazes, sem of�cio nem benef�cio, que detestam o calend�rio, os rel�gios, os impostos, as rever�ncias, tudo o que obriga, alinha e apruma. S�o homens fartos desta vida social e pacata, os mesmos dias, as mesmas caras, os mesmos acontecimentos, os mesmos delitos, as mesmas virtudes. N�o podem crer que o mundo seja uma secretaria de Estado, com o seu livro do ponto, hora de entrada e de sa�da, e desconto por faltas. O pr�prio amor � regulado por lei; os cons�rcios celebram-se por um regulamento em casa do pretor, e por um ritual na casa de Deus, tudo com etiqueta dos carros e casacas, palavras simb�licas, gestos de conven��o. Nem a morte escapa � regulamenta��o universal; o finado h� de ter velas e responsos, um caix�o fechado, um carro que o leve, uma sepultura numerada, como a casa em que viveu... N�o, por Satan�s! Os partid�rios do Conselheiro lembraram-se dos piratas rom�nticos, sacudiram as sand�lias � porta da civiliza��o e sa�ram � vida livre.

A vida livre, para evitar a morte igualmente livre, precisa comer, e da� alguns poss�veis assaltos. Assim tamb�m o amor livre. Eles n�o ir�o �s vilas pedir mo�as em casamento. Suponho que se casam a cavalo, levando as noivas � garupa, enquanto as m�es ficam solu�ando e gritando � porta das casas ou � beira dos rios. As esposas do Conselheiro, essas s�o raptadas em verso, naturalmente:

Sa Hautesse aime les primeurs,

Nous vous ferons mahom�tane...

Maometana ou outra coisa, pois nada sabemos da religi�o desses, nem dos clavinoteiros, a verdade � que todas elas se afei�oar�o ao reg�men, se reg�men se pode chamar a vida err�tica. Tamb�m h� estrelas err�ticas, dir�o elas, para se consolarem. Que outra coisa podemos supor de tamanho n�mero de gente? Olhai que tudo cresce, que os ex�rcitos de hoje n�o s�o j� os dos tempos rom�nticos, nem as armas, nem os legisladores, nem os contribuintes, nada. Quando tudo cresce, n�o se h� de exigir que os aventureiros de Canudos, Alagoinhas e Belmonte cantem ainda aquele ex�guo n�mero de piratas da cantiga:

Dans la gal�re capitaine,

Nous �tions quatre-vingts rameurs,

mas mil, dois mil, no m�nimo. Do mesmo modo, � poetas, devemos compor versos extraordin�rios e rimas inauditas. Fora com as cantigas de pouco f�lego; vamos faz�-las de mil estrofes, com estribilho de cinq�enta versos e versos compridos, dois decass�labos atados por um alexandrino e uma redondilha. P�lion sobre Ossa, versos de Adamastor, versos de Enc�lado. Rimemos o Atl�ntico com o Pac�fico, a via-l�ctea com as areias do mar, ambi��es com malogros, empr�stimos com calotes, tudo ao som das polcas que temos visto compor, vender e dan�ar s� no Rio de Janeiro. � vertigem das vertigens!

29 de julho

Trapisonda j� n�o existe! Dizem telegramas que um terremoto a destruiu inteiramente. Constantinopla, a dar cr�dito �s not�cias telegr�ficas que h� cerca de duas semanas s�o aqui recebidas, deve estar quase destru�da tamb�m. Os mortos s�o muitos, os feridos muit�ssimos, as perdas materiais calculam-se por milh�es de piastras.

Tempo houve em que tais fen�menos seriam considerados como provas claras de que a inten��o de Deus era destruir a casa otomana. Hoje, n�o s� n�o se diz isso, mas ainda pode ser que os cardeais da santa igreja cat�lica assinem algumas liras em benef�cio das v�timas do desastre. Outro � o s�culo. Vimos o papa escrever �s igrejas cism�ticas e her�ticas, para aconselhar-lhes que se acolhessem ao gr�mio cat�lico, formando um s� rebanho e um s� pastor. O czar reata as rela��es com o sumo pont�fice. O pr�prio sult�o da Turquia, se bem me recordo, mandou uma carta de parab�ns a Le�o XIII, quando este celebrou o seu jubileu de ordena��o. Agora mesmo o rabino de Fran�a teceu grandes louvores � cabe�a vis�vel da Igreja.

H� um vento de toler�ncia no mundo, vento brando, como lhe cumpre, feito de amor e boa vontade. Deixai l� que a China e o Jap�o declarem guerra entre si, e que o pobre rei da Cor�ia, segundo soubemos ontem pelo cabo, seja o primeiro prisioneiro dos japoneses ou dos jap�es, como diziam os velhos cl�ssicos. N�o duvido que seja a �ltima guerra. Pode ser que, al�m dessa, ainda haja outra; mas depois est�o acabadas as guerras, o mundo espiritual em perfeita unidade concilia todos os antagonismos sociais, nacionais e pol�ticos, e faz caminhar a civiliza��o para aquele sumo grau que a espera.

Nisso estamos de acordo. A quest�o � saber onde fica esse grau sumo, se no fim, quando o mundo n�o chegar para mais ningu�m, se no princ�pio, quando ele era de sobra. Quest�o mais �rdua do que parece. Podemos conceber que, quando � terra faltar espa�o, este mundo ser� uma infinita Chicago, com casas de vinte e trinta andares. O dinheiro, que � primeira vista pode parecer que n�o baste, h� de bastar, se a produ��o do ouro continuar na propor��o dos algarismos publicados anteontem por uma das nossas folhas, dos quais se v� que s� a produ��o africana dobra p�s com cabe�a. A fam�lia Rothschild n�o morrer�, por aquela lei que p�e o rem�dio ao p� do mal, e o empr�stimo � m�o das urg�ncias. Quando venha a faltar o ouro, teremos a prata, e, acabada a prata, ficar� o n�quel, com as modifica��es do projeto Coelho Rodrigues, para que n�o emigre. Em �ltimo caso, recorreremos ao honesto papel, mais valioso, pela sua fabrica��o, que todas outras mat�rias, e, por isso mesmo que � moeda fiduci�ria, melhor exprime a solidariedade humana.

Tudo isso � verdade. Mas, n�o cessando a produ��o da gente humana, a conseq��ncia � que tudo h� de ir crescendo, at� que o solvet soeclum venha destruir o que a civiliza��o fez desde o primeiro ao sumo grau. Teste David cum Sybilla. Ora, eu contesto, ambas estas autoridades. N�o creio que um sonho t�o bonito acabe t�o friamente. Mais vale ent�o continuar a guerra, que se incumbir� de preparar alojamentos para as gera��es vindouras, e liquidar� os or�amentos, com saldos, � verdade, mas sem aquele excesso de saldos que ainda h� pouco perturbavam as finan�as anglo-americanas.

Outro � o meu sonho. Creio que o sumo grau est� no princ�pio, e a ele tornaremos. Eis aqui o processo. A civiliza��o remontar� o rio b�blico, a Escritura ser� vivida para tr�s, at� chegar ao ponto em que Deus p�s Ad�o e Eva no para�so. Haver� outro para�so, com Ad�o e Eva, �ltimo casal, que resumir� em si os tempos, as id�ias, os sentimentos, toda a floresc�ncia moral e mental da primavera humana, atrav�s dos s�culos. A l�ngua atual n�o conhece palavras que pintem o que ser� esse dia paradis�aco, os campos verdes, os ares lavados, as �guas pur�ssimas e frescas.

Surge uma d�vida. O �ltimo casal acabar� tudo, no derradeiro enlevo do sumo grau, ou repetir� a conversa��o do G�nesis, para dar outro surto � humanidade, j� ent�o perfeita e mais que perfeita? Problema dif�cil. H� raz�es boas para crer na extin��o, e outras n�o menos boas para admitir a renova��o aperfei�oada. Talvez a mesma d�vida assalte o esp�rito do derradeiro casal. Cuido ouvir este trecho de di�logo no para�so do fim:

� Que te parece, Eva?

Ad�o, � certo que h� boas raz�es de um lado e boas raz�es de outro, como dizia, h� muitos s�culos, um escritor...

� Paz � sua alma!

� Am�m!

� Mas, dada a igualdade das raz�es, quais preferes tu, mulher?

� Homem, eu dizer as que prefiro, n�o digo. Pergunta-me se o dia � claro e se a noite � escura, e a minha resposta ser� que a noite � escura, quando n�o h� luar, e o dia � claro, quando h� sol.

� Bem, ent�o parece-te...

� Parece-me que os figos e os sapotis est�o frescos. Ontem, as �guas do rio desusavam com muita velocidade. O colibri dan�a em cima da flor, e a flor exala um cheiro suav�ssimo. Que flor preferes tu, Ad�o?

� A da tua boca, Eva. E que flor preferes tu?

� A que deve estar no cimo daquela montanha, Ad�o.

� Vou colh�-la para ti, Eva.

Nisto a serpente dir� com a voz mel�flua que o diabo lhe deu:

Si cette histoire vous emb�te,

Nous allons la recomencer.

Mas, Deus, vendo o que � bom, como na Escritura, acudir�:  � N�o, meus filhos, para experi�ncia basta.

5 de agosto

Quereis ver o que s�o destinos? Escutai.

Ultrajada por Sexto Tarq��nio, uma noite, Lucr�cia resolve n�o sobreviver � desonra, mas primeiro denuncia ao marido e ao pai a aleivosia daquele h�spede, e pede-lhes que a vinguem. Eles juram ving�-la, e procuram tir�-la da afli��o dizendo-lhe que s� a alma � culpada, n�o o corpo, e que n�o h� crime onde n�o houve aquiesc�ncia. A honesta mo�a fecha os ouvidos � consola��o e ao racioc�nio, e, sacando o punhal que trazia escondido, embebe-o no peito e morre.

Esse punhal podia ter ficado no peito da hero�na, sem que ningu�m mais soubesse dele; mas, arrancado por Bruto, serviu de l�baro � revolu��o que fez baquear a realeza e passou o governo � aristocracia romana. Tanto bastou para que Tito Livio lhe desse um lugar de honra na hist�ria, entre en�rgicos discursos de vingan�a. O punhal ficou sendo cl�ssico. Pelo duplo car�ter de arma dom�stica e p�blica, serve tanto a exaltar a virtude conjugal, como a dar for�a e luz � eloq��ncia pol�tica.

Bem sei que Roma n�o � a Cachoeira, nem as gazetas dessa cidade baiana podem competir com historiadores de g�nio. Mas � isso mesmo que deploro. Essa parcialidade dos tempos, que s� recolhem, conservam e transmitem as a��es encomendadas nos bons livros, � que me entristece, para n�o dizer que me indigna. Cachoeira n�o � Roma, mas o punhal de Lucr�cia, por mais digno que seja dos enc�mios do mundo, n�o ocupa tanto lugar na hist�ria, que n�o fique um canto para o punhal de Martinha. Entretanto, vereis que esta pobre arma vai ser consumida pela ferrugem da obscuridade.

Martinha n�o � certamente Lucr�cia. Parece-me at�, se bem entendo uma express�o do jornal A Ordem, que � exatamente o contr�rio. �Martinha (diz ele) � uma rapariga franzina, moderna ainda, e muito conhecida nesta cidade, de onde � natural�. Se � mo�a, se � natural da Cachoeira, onde � muito conhecida, que quer dizer moderna? Naturalmente quer dizer que faz parte da �ltima leva de Citera. Esta condi��o, em vez de prejudicar o paralelo dos punhais, d�-lhe maior realce, como ides ver. Por outro, lado, conv�m notar que, se h� contrastes das pessoas, h� uma coincid�ncia de lugar: Martinha mora na Rua do Pag�o, nome que faz lembrar a religi�o da esposa de Colatino.

As circunst�ncias dos dois atos s�o diversas. Martinha n�o deu hospedagem a nenhum mo�o de sangue r�gio ou de outra qualidade. Andava a passeio, � noite, um domingo do m�s passado. O Sexto Tarq��nio da localidade, crist�mente chamado Jo�o, com o sobrenome de Limeira, agrediu e insultou a mo�a, irritado naturalmente com os seus desd�ns. Martinha recolheu-se � casa. Nova agress�o, � porta. Martinha, indignada, mas ainda prudente, disse ao importuno: �N�o se aproxime, que eu lhe furo�. Jo�o Limeira aproximou-se, ela deu-lhe uma punhalada, que o matou instantaneamente.

Talvez esper�sseis que ela se matasse a si pr�pria. Esperar�eis o imposs�vel, e mostrar�eis que me n�o entendesses. A diferen�a das duas a��es � justamente a que vai do suic�dio ao homic�dio. A romana confia a vingan�a ao marido e ao pai. A cachoeirense vinga-se por si pr�pria, e, notai bem, vinga-se de uma simples inten��o. As pessoas s�o desiguais, mas for�a � dizer que a a��o da primeira n�o � mais corajosa que a da segunda, sendo que esta cede a tal ou qual sutileza de motivos, natural deste s�culo complicado.

Isto posto, em que � que o punhal de Martinha � inferior ao de Lucr�cia? Nem � inferior, mas at� certo ponto � superior. Martinha n�o profere uma frase de Tito Livio, n�o vai a Jo�o de Barros, alcunhado o Tito Livio portugu�s, nem ao nosso Jo�o Francisco Lisboa, grande escritor de igual valia. N�o quer sanefas liter�rias, n�o ensaia atitudes de trag�dia, n�o faz daqueles gestos orat�rias que a hist�ria antiga p�e nos seus personagens. N�o; ela diz simplesmente e incorretamente: �N�o se aproxime que eu lhe firo�. A palmat�ria dos gram�ticos pode punir essa express�o; n�o importa, o eu lhe furo traz um valor natal e popular, que vale por todas as belas frases de Lucr�cia. E depois, que tocante eufemismo! Furar por matar; n�o sei se Martinha inventou esta aplica��o; mas, fosse ela ou outra a autora, � um achado do povo, que n�o manuseia tratados de ret�rica, e sabe �s vezes mais que os ret�ricos de of�cio.

Com tudo isso, arrojo de a��o, defesa pr�pria, simplicidade de palavra, Martinha n�o ver� o seu punhal no mesmo feixe de armas que os tempos resguardam da ferrugem. O punhal de Carlota Corday, o de Ravaillac, o de Booth, todos esses e ainda outros far�o cortejo ao punhal de Lucr�cia, luzidos e prontos para a tribuna, para a disserta��o, para a palestra. O de Martinha ir� rio abaixo do esquecimento. Tais s�o as coisas deste mundo! Tal � a desigualdade dos destinos!

Se, ao menos, o punhal de Lucr�cia tivesse existido, v�; mas tal alma, nem tal a��o, nem tal inj�ria, existiram jamais, � tudo uma pura lenda, que a hist�ria meteu nos seus livros. A mentira usurpa assim a coroa da verdade, e o punhal de Martinha, que existiu e existe, n�o lograr� ocupar um lugarzinho ao p� do de Lucr�cia, pura fic��o. N�o quero mal �s fic��es, amo-as, acredito nelas, acho-as prefer�veis �s realidades; nem por isso deixo de filosofar sobre o destino das coisas tang�veis em compara��o com as imagin�rias. Grande sabedoria � inventar um p�ssaro sem asas, descrev�-lo, faz�-lo ver a todos, e acabar acreditando que n�o h� p�ssaros com asas... Mas n�o falemos mais em Martinha.

12 de agosto

Anteontem, dez de agosto, achando-se reunidas algumas pessoas, falou-se casualmente da emiss�o de trezentos contos de t�tulos, autorizada pela assembl�ia do Maranh�o. Queriam uns que fosse papel-moeda, outros que n�o. Dos primeiros alguns davam o ato por leg�timo, outros negavam a legitimidade, mas admitiam a conveni�ncia. Travou-se debate. O mais extremado opinou que o direito de emitir era inerente ao homem, qualquer um podia imprimir as suas notas, e tanto melhor se as recebessem. Citou, como argumento, os bilhetes que circulam no interior, e concluiu sacando do bolso uma c�dula de duzentos mil r�is, que apanhou em Maragogipe, impressa na mesma casa de Nova-York que imprime as nossas notas p�blicas.

Nesse terreno o debate foi n�o s� brilhante mas fastidioso. As mat�rias financeiras e econ�micas s�o graves. Geralmente, os esp�ritos que n�o conseguem ver claro nem dizer claro d�o para a economia pol�tica e as finan�as, atribuindo assim � ci�ncia de muitos var�es ilustres a obscuridade que est� neles pr�prios. Conheci um homem, primor de alegria, que andou carrancudo um ano inteiro, por haver descoberto que papel-moeda era uma coisa e moeda-papel outra; n�o dizia mais nada, n�o dava bons dias, mas papel-moeda, nem boas noites, mas moeda-papel. Era l�gubre; um cemit�rio, ainda com chuva, ainda de noite, era um centro de hilaridade ao p� daquele desgra�ado. Melhorou no fim de um ano, mas j� n�o era o mesmo. A alegria, trazia-lhe n�o sei que ar torcido que mais parecia esc�rnio...

Do debate travado saiu, entretanto, uma id�ia, a id�ia de termos aqui a nossa moeda municipal. Contra ela protestavam os que eram pela unidade da emiss�o; os outros pegaram deles pelos ombros e os puseram na rua, esquecendo que as assembl�ias n�o se inventaram para conciliar os homens, mas para legalizar o desacordo deles. Ficamos n�s. A id�ia foi estudada e desenvolvida. Chegamos a formular um projeto autorizando o prefeito a emitir at� dois mil contos de r�is. Um, mais escrupuloso, queria que a emiss�o fosse garantida pelas propriedades municipais; mas esta sub-id�ia n�o foi aceita. Com efeito, a propriedade municipal � incerta e dif�cil de definir. As �rvores das ruas s�o pr�prios municipais? No caso afirmativo, como se explica que o meu criado Jos� Rodrigues as tenha comprado ao empreiteiro dos cal�amentos do bairro, para me poupar as despesas da lenha? A discuss�o tornou-se bizantina, resolvemo-nos pela emiss�o pura e simples, sem garantia, al�m da confian�a do contribuinte e da lealdade do emissor. Conclu�do o projeto, acrescentou-se que um de n�s iria d�-lo de presente ao conselho municipal.

Mas aqui surgiu uma d�vida: Haver� conselho municipal? A legisla��o era pela afirmativa. A imprensa di�ria, superficialmente lida, n�o o era menos. V�rios fen�menos, por�m, faziam suspeitar que o conselho municipal n�o existia. A linguagem atribu�da ao seu presidente, na sess�o de quarta-feira, era um desses fen�menos. Disse ele (pelo que referem os jornais) que o conselho, convocado desde 3 do m�s passado, raras vezes se reunira; assim, vendo que os membros n�o compareciam, ia oficiar-lhes pessoalmente chamando-os aos trabalho. H� a� contradi��o nos termos, porquanto, se o conselho foi convocado desde mais de um m�s, e n�o se reunia, � que n�o tinha membros, e se n�o tinha membros n�o era conselho. Um dos presentes defendeu, entretanto, a probabilidade da exist�ncia.

� H� raz�es para crer que o conselho existe, disse ele. A primeira � que a vinte e oito do m�s passado houve sess�o, proferiram-se alguns discursos, resolvendo-se afinal que era preciso ler e meditar as mat�rias sujeitas a delibera��o. Deu-se at� um incidente que explica at� certo ponto a falta de sess�o nos outros dias. Um dos intendentes, referindo-se a um velho projeto, disse: �Estando a comiss�o em d�vida sobre alguns pontos do projeto, desejava que o seu autor aparecesse nesta casa, a fim de interrog�-lo; S. Exa. por�m, n�o tem aparecido...� Daqui se pode concluir que n�o h� freq��ncia, que um intendente aparece, �s vezes, que � recebido com demonstra��es de saudade: �Ora seja muito bem aparecido!� Mas n�o parece clara a conclus�o contra a exist�ncia do conselho. A segunda raz�o que me faz vacilar na negativa da exist�ncia � que, intimados pessoalmente no dia 7, o conselho fez sess�o logo a 9. Verdade � que j� hoje, 10, n�o houve sess�o. Enfim, tenho um ind�cio veemente de que o conselho existe, � a resigna��o do cargo por dois membros. Est� nos jornais.

A maioria n�o aceitou este modo de ver. A publica��o dos atos do conselho n�o era prova da exist�ncia deste, podiam ser variedades liter�rias. A literatura, como Proteu, troca de formas, e nisso est� a condi��o da sua vitalidade. Podia ser tamb�m um processo engenhoso de mostrar a necessidade de termos um conselho municipal. Quem se n�o lembra da famosa Batalha de Dorking, op�sculo publicado h� anos, descrevendo uma batalha que n�o houve, mas pode haver, se a Inglaterra n�o aumentar as for�as navais? J� se escreveu uma Hist�ria do que n�o aconteceu. Demais, � necessidade da imprensa agradar aos leitores, dando-lhes mat�ria interessante e principalmente nova. Ora, se o conselho municipal n�o existe, nada mais novo que sup�-lo trabalhando.

Essa opini�o da maioria irritou os poucos que admitiam a probabilidade da exist�ncia, dando em resultado afirmarem agora o que antes era para eles simples presun��o. Um da minoria ergueu-se e demonstrou a exist�ncia do conselho pela considera��o de que o munic�pio � a base da sociedade e dizendo coisas latinas acerca do munic�pio romano. Naturalmente, a maioria indignou-se. Um, para provar que o preopinante errava, chamou-lhe asno, ao que retorquiu aquele que as suas orelhas eram felizmente curtas. Essa alus�o �s orelhas compridas do outro fez voar um tinteiro e ia come�ar a dan�a das bengalas, quando me ocorreu uma id�ia excelente.

� Meus amigos, disse eu, pe�o-vos um minuto de aten��o. Estamos aqui a discutir a exist�ncia do conselho municipal, a prop�sito da emiss�o de t�tulos maranhenses, que talvez n�o exista, tal qual o conselho. Mas, dado que a emiss�o de t�tulos seja real, � certo que h� de durar pouco, tanto mais que � por antecipa��o de receita, enquanto que aqui est� outra emiss�o do Maranh�o, muito mais duvidosa que essa. Este dia 10 de agosto � o anivers�rio do nascimento de Gon�alves Dias. H� setenta e um anos que o Maranh�o no-lo deu, h� trinta que o mar no-lo levou, e os seus versos de grande poeta perduram, t�o vi�osos, t�o coloridos, t�o vibrantes como nasceram. Viva a poesia, meus amigos! Viva a sacrossanta literatura! como dizia Flaubert. N�o sei se existem intendentes, mas os Timbiras existem.

19 de agosto

Tem havidograndes cercos e entradas da pol�cia em casas de jogo. Sistematicamente, a autoridade procura dispersar os religion�rios da Fortuna, e trancar os antros da perdi��o. Esta frase n�o � nova, mas o v�cio tamb�m � velho, e n�o se p�e remendo novo em pano velho, diz a Escritura. J� se jogava no tempo da Escritura; lan�aram-se dados sobre a t�nica de Jesus Cristo. Na China, em que h� tudo desde muitos milhares de anos, � prov�vel que o jogo se perca na noite dos tempos. Maom�, que tinha algumas partes de grande homem, apesar de ser o pr�prio c�o tinhoso, consentiu o uso do xadrez aos seus �rabes, e fez muito bem; � um jogo que n�o admite quinielas, e, apesar de ter cavalos, n�o se d� ao aperfei�oamento da ra�a cavalar, como os v�rios derbys deste mundo.

Antes de ir adiante, deixem-me p�r aqui uma observa��o que fiz e me pareceu digna de nota. Compilador do s�culo vinte, quando folheares a cole��o da Gazeta de Not�cias, do ano da gra�a de 1894, e deres com estas linhas, n�o v�s adiante sem saber qual foi a minha observa��o. N�o � que lhe atribua nenhuma mina de ouro, nem grande m�rito; mas h� de ser agrad�vel aos meus manes saber que um homem de 1944 d� alguma aten��o a uma velha cr�nica de meio s�culo. E se levares a piedade ao ponto de escrever em algum livro ou revista: �Um escritor do s�culo XIX achou um caso de cor local que n�o nos parece destitu�do de interesse...�, se fizeres isto, podes acrescentar como o soldado da can��o francesa:

Du haut du ciel, � ta demeure derni�re, �

Mon colonel, tu dois �tre content.

Sim, meu jovem capit�o, ficarei contente, desde j� te aben�oou, compilador do s�culo vinte; mas vamos � minha observa��o.

A marcha ordin�ria da pol�cia � entrar na casa, apreender a roleta, as cartas, os dados, multar o dono em quinhentos mil-r�is e sair. Enquanto ela entra, os fregueses escondem-se ou fogem pelos muros ou pelos telhados. O dono da casa raramente foge; afeito � guerra, sabe que recebeu um bal�zio, e for�a � deixar algum sangue. Quando, por�m, acontece serem todos apanhados entre o 10 e o 22, ou entre a sota e o �s, parece que h� gestos de acatamento e considera��o. � quase prov�vel que, terminada a a��o policial, todos eles acompanhem os agentes at� o patamar, com rever�ncias.

Ora bem; telegramas de Espanha dizem que a pol�cia deu em uma casa de jogo de Madri, onde achou muitos fidalgos. Que pensais que fizeram os fregueses? Que fugiram pelos fundos ou pelos telhados? N�o, senhor, os fregueses correram aos trabucos que haviam trazido consigo e travaram combate com a pol�cia. N�o dizem os telegramas se venceram ou foram vencidos, nem quantos morreram. Tamb�m n�o quero sab�-lo. O que me importa em tudo isso � a cor local. Vede bem como estamos na Espanha. Um fidalgo, que ter� talvez o direito de se cobrir diante do rei, jamais consentir� que um aguazil lhe deite m�o ao ombro, e primeiro a decepar� com uma bala.

Essa not�cia, que parece nada, explica o fracasso da nossa �pera Nacional. O caso da tavolagem de Madri daria nas m�os de um M�rim�e uma novela como a Carmen, de onde viria um maestro extrair uma �pera. Os espanh�is t�m a sua �pera, que � a zarzuela. N�o lhes h�o de faltar assuntos, pois que sabem fugir da realidade chata das lutas incruentas, e os bons fidalgos defendem o rei de copas com o mesmo brio e prontid�o com que defenderiam o rei da Espanha. Como fazermos a mesma coisa? N�o s� n�o h� trabucos nas nossas casas de jogo, mas as pr�prias bengalas s�o esquecidas nos momentos de crise. Ao primeiro apito, pernas. Ao primeiro vulto, muros. Quando sucede faltarem as pernas e os muros, sobram sorrisos e barretadas. Nunca deixarei de aprovar uma atitude ou um movimento que exprima respeito � autoridade e reconhecimento impl�cito do erro; mas com isto fazem-se catecismos, ap�logos morais e partes de pol�cia. �peras � que n�o.

Explicado assim o fracasso da nossa �pera Nacional, deixem-me confessar que nem tudo s�o �peras neste mundo. H� palavras sem m�sica. Da� as nossas dilig�ncias, que, se perdem pelo lado est�tico, lucram pelo lado moral. Por isso mesmo, conv�m apoi�-las. Toda repress�o � pouca. Se, por�m, basta o zelo da autoridade e a energia dos seus agentes, n�o sei. Pode suceder que a a��o da pol�cia seja igual � das Danaides, e que o imenso tonel n�o chegue a depositar um litro de �gua. Primeiro seria preciso calafet�-lo, a fim de que a �gua n�o se escoe da Rua do Lavradio para a dos Inv�lidos. Onde est�, por�m, esse tanoeiro cicl�pico?

N�o induzam daqui que eu quero ver interrompido o servi�o das Danaides, nem concluam da cita��o do telegrama de Madri que aprovo o uso do trabuco. N�o, Deus meu; tanto n�o quero uma coisa, nem aprovo outra, que aplaudo ambas as contr�rias. E perdoem-me se insisto neste ponto. Nem todos os leitores concluem logicamente. Muitos h� que, se algu�m acha o Rangel mais elegante que o Bastos, exclamam convencidos:

� Ah! j� sei, � amigo do Rangel!

E todo o tempo � pouco para replicar:

� N�o, homem de Deus, n�o sou amigo nem inimigo do Rangel; creio at� que ele me deve dez tost�es. O que digo, � que, comparado com o Bastos, o Rangel � mais elegante.

� Pobre Bastos! �dio velho n�o cansa. Por que n�o confessa logo que o detesta?

� Mas eu n�o detesto o Bastos; simpatizo at� com ele, e, se bem me lembro, devo-lhe um favor, n�o pequeno, aqui h� anos, tanto mais digno de lembran�a quanto foi espont�neo...

� Mas por que lhe chama lapuz?

� Que lapuz? N�o disse tal. Disse que acho o Rangel mais elegante...

� Que o adora, em suma.

N�o h� sair daqui. O melhor, em tais casos � calar a boca, ou encerrar o escrito, se se escreve. Viva Deus! Creio que est� finda a cr�nica.

28 de agosto

Que vale a ru�na de uma cidade ao p� da ru�na de um cora��o? Cren�as santas, cren�as aben�oadas, que s�o quarteir�es de casas, ruas inteiras, pal�cios, monumentos que o tempo desfaz, comparados com uma s� de v�s que se perde? Eu cria em S. Bartolomeu. Esperava o dia 24 de agosto, como quem espera o dia do noivado, t�o somente por causa daqueles grandes ventos que o santo mandava a este mundo. Quando era crian�a, diziam-me que era o diabo que andava solto, e acreditei que sim; mas, com os anos percebi que o diabo � menos violento que insidioso; quando se faz vento, � antes brisa que tuf�o. A brisa � mansa e velhaca, � a pr�pria serpente tentadora do mal que se mete entre Ad�o e Eva para seduzi-los e perd�-los:

Lembras-te ainda dessa noite, Elisa?

Que doce brisa respirava ali!

Outro � o processo de Deus. O vento do c�u � furac�o, destr�i, arrasa, castiga. Foi o que achei em rela��o ao dia de S. Bartolomeu, logo que tive o uso da raz�o. Compreendi que era o santo que soprava todas as c�leras celestes. Este ano esperei, como nos outros, o dia 24 de agosto. Assim, quando na v�spera, � tarde, comecei a ver poeira e a ouvir uma coisa parecida com vento forte, senti um alegr�o. Notai que eu execro o vento, maiormente o tuf�o. De todos os meteoros � o que me bole com os nervos e me tira o sono. Trovoadas s�o comigo; aguaceiros, principalmente se estou em casa, s�o agrad�veis de escutar. Vento, nem sopro. Por este ano esperava o dia de S. Bartolomeu com extraordin�ria ansiedade, � talvez para ver se o vento levava aquele resto de ponte que fica em frente � praia da Gl�ria.

Creio que essa obra prendia-se ao plano de atestar uma parte do mar; n�o se tendo realizado o plano, a ponte ficou, do mesmo modo que ficaram na rua dos Ourives os trilhos de uma linha de bondes que se n�o fez. Nisto o mar parece-se com a terra. Nem h� raz�o clara para a��o diferente. O tempo trouxe algumas inj�rias � obra, mas a ponte subsiste com os seus danos, � espera que os anos mais vagarosos para as obras dos homens, que para os mesmos homens, consuma esse produto da engenharia hidr�ulica.

Entre par�ntesis, n�o se pense que sou oposto a qualquer id�ia de aterrar parte da nossa ba�a. Sou de opini�o que temos ba�a de mais. O nosso com�rcio mar�timo � vasto e numeroso, mas este porto comporta mil vezes mais navios dos que entram aqui, carregam e descarregam, e para que h� de ficar in�til uma parte do mar? Calculemos que se aterrava metade dele; era o mesmo que alargar a cidade. Ruas novas, casas e casas, tudo isso rendia mais que a simples vista da �gua movedi�a e sem pr�stimo. As ruas podiam ser de dois modos, ou estreitas, para se alargarem daqui a anos, mediante uma boa lei de desapropria��o, ou j� largas, para evitar fadigas ulteriores. Eu adotaria o segundo alvitre, mas por uma raz�o oposta, para estreitar as ruas, mais tarde, quando a popula��o crescesse. � bom ir pensando no futuro. Telegramas de S. Paulo dizem que foram edificadas naquela cidade, nos �ltimos seis meses, mais de quatrocentas casas; naturalmente, havia espa�o para elas. N�o o havendo aqui, for�a � prev�-lo.

N�o sei por que raz�o, uma vez come�ado o aterro do porto, em frente � Gl�ria, n�o ir�amos ao resto e n�o o aterrar�amos inteiramente. Nada de abanar a cabe�a; leiam primeiro. N�o est� provado que os portos sejam indispens�veis �s cidades. Ao contr�rio, h� e teria havido grandes, fortes e pr�speras cidades sem portos. O porto � um acidente. Por outro lado, as popula��es crescem, a nossa vai crescendo, e ou havemos de aumentar as casas para cima, ou alarg�-las. J� n�o h� espa�o c� dentro. Os sub�rbios n�o est�o inteiramente povoados, mas s�o sub�rbios. A cidade, propriamente dita, � c� em baixo.

Se tendes imagina��o, fechai os olhos e contemplai toda essa imensa ba�a aterrada e edificada. A quest�o do corte do Passeio P�blico ficava resolvida; cerceava-se-lhe o preciso para alargar a rua, ou eliminava-se todo, e ainda ficava espa�o para um passeio p�blico enorme. Que metr�pole! que monumentos! que avenidas! Grandes obras, uma estrada de ferro a�rea entre a Laje e Mau�, outra que fosse da atual pra�a do Mercado a Niter�i, ilumina��o el�trica, aquedutos romanos, um teatro l�rico onde est� a ilha Fiscal, outro nas imedia��es da igrejinha de S. Crist�v�o, dez ou quinze circos para aperfei�oamento da ra�a cavalar, est�tuas, chafarizes, piscinas naturais, algumas ruas de �gua para g�ndolas venezianas, um sonho.

Tudo isso custaria dinheiro, � verdade, muito dinheiro. Quanto? Quinhentos, oitocentos mil contos, o duplo, o triplo, fosse o que fosse, uma boa companhia poderia empreender esse cometimento. Uma entrada bastava, dez por cento do capital, era o preciso para os primeiros trabalhos do aterro; depois levantava-se um empr�stimo. Conv�m notar que a renda da companhia principiaria desde as primeiras semanas. Como os pedidos de ch�os para casas futuras deviam ser numeros�ssimos, a companhia podia vend�-los antes do aterro, sob a denomina��o de ch�os ulteriores, com certo abatimento. Assim tamb�m venderia o privil�gio da ilumina��o, dos esgotos, da via��o p�blica. Podia tamb�m vender os peixes que existissem antes de come�ar a aterrar o mar. Eram tudo fontes de riqueza e aux�lios para a realiza��o da obra.

Bem; mas, n�o se realizando este sonho, parece-me que o frangalho de ponte que existe diante da praia da Gl�ria, � antes um desadorno que um adorno. �til n�o �, visto achar-se j� com duas ou tr�s solu��es de continuidade. Nem �til, nem moral. � uma s�rie de paus fincados, com outros convulsos. Na mesma praia da Gl�ria, c� em cima, houve at� h� pouco uma rel�quia de n�o sei que coisas russas, montanhas, creio, que ali estaria at� agora tapando a vista e aborrecendo a alma, se um inc�ndio ben�fico n�o acabasse com o que os donos abandonaram. N�o pe�o fogo para a ponte; mas � por isso mesmo que esperava ansiosamente o dia de S�o Bartolomeu.

Veio o dia... Primeiro veio a v�spera, que me deu alguma esperan�a, como acima ficou dito; houve poeira, galhos de �rvores arrancados, voaram alguns chap�us. O dia, por�m, oh! triste dia de S. Bartolomeu, chuvoso e pacato, sem um soprozinho para consola��o. O �nico fen�meno importante foi o desconcerto de um bonde el�trico, que obrigou muita gente a vir a p� da Gl�ria at� a rua do Ouvidor; mas quando me lembro que isto se pode dar em qualquer dia, deixo de atribuir o caso ao santo. V�o-se os deuses. Morrem as doces cren�as aben�oadas. Ru�nas morais, que s�o ao p� de v�s as ru�nas de um imp�rio?

2 de setembro

Acabo de ler que os condutores de bondes tiram anualmente para si, das passagens que recebem, mais de mil contos de r�is. S� a Companhia do Jardim Bot�nico perdeu por essa via, no ano passado, trezentos e sessenta contos. Escrevo por extenso todas as quantias, n�o s� por evitar enganos de impress�o, f�ceis de dar com algarismos, mas ainda para n�o assustar logo � primeira vista, se os n�meros sa�rem certos. Pode acontecer tamb�m, que tais n�meros, sendo grandes, gerem incredulidade, e nada mais duro que escrever para incr�dulos.

Parece que as companhias t�m experimentado v�rios meios de fiscalizar a cobran�a, sem claro efeito. Atribui-se ao finado Miller, gerente que foi da Companhia do Jardim Bot�nico, um dito mais gracioso que verdadeiro, assaz expressivo do ceticismo que distinguia aquele am�vel alem�o. Dizia ele (se � verdade) que, pondo fiscais aos condutores, comiam condutores e fiscais, melhor era que s� comessem condutores. H� nisso parcialidade. Ou o espiritismo � nada, ou Miller foi condutor de bonde em alguma exist�ncia anterior, e da� essa prote��o exclusiva a uma classe. N�o haveria bondes, mas havia homens. Miller ter� sido condutor de homens, os quais, juntos em na��o, formam um vasto bonde, ora atolado e parado, como a China, ora tirado por eletricidade, como o Jap�o.

Mas eu n�o creio que Miller tenha dito semelhante coisa; h� de ser inven��o do cocheiro. Ningu�m acusa o cocheiro de coniv�ncia na subtra��o dos mil e tantos contos, sendo ali�s certo que, no organismo pol�tico e parlamentar do bonde, ele � o presidente do conselho, o chefe do gabinete. O condutor � o rei constitucional, que reina e n�o governa, os passageiros s�o os contribuintes. Que o condutor n�o governa, v�-se a todo instante pela desaten��o do cocheiro � campainha, que o manda parar. �Advirto Vossa Majestade, diz o cocheiro com o gesto, que a responsabilidade do governo � minha, e eu s� obede�o � vontade do Parlamento, cujas r�deas levo aqui seguras.� Segundo toque de campainha recomenda ao chefe do gabinete que, nesse caso, pe�a �s C�maras um voto de aprova��o. �Perfeitamente�, responde o cocheiro, e requer o voto com duas fortes lambadas. O parlamento, cioso das suas prerrogativas, empaca; � justamente a ocasi�o que o passageiro �gil e sagaz aproveita para descer e entrar em casa.

N�o � preciso demonstrar que as sociedades an�nimas, como as pol�ticas, s�o outros tantos bondes, e se Miller n�o foi condutor de algumas destas, � que o foi de algumas daquelas. Mas deixemos suposi��es gratuitas. Ningu�m jura ter ouvido ao pr�prio Miller as palavras que a lenda lhe atribui. Que ficam elas valendo? Valem o que valem outras tantas palavras hist�ricas. N�o percamos tempo com fic��es.

Vamos antes a duas esp�cies de subtra��o, que devem ser contadas na soma total, � uma contra as companhias, outra contra os passageiros. A primeira � rara, mas existe, como as anomalias do organismo. Tem-se visto algum passageiro tirar modestamente do bolso o n�quel da passagem, � ou n�o tir�-lo (h� duas escolas) � e ir olhando cheio de melancolia pelas casas que lhe ficam � direita ou � esquerda, segundo a ponta do banco em que est�. Os olhos derramam id�ias tristes. Se o condutor, distra�do ou atrapalhado na cobran�a, n�o convida o passageiro a id�ias chistosas, d�-se este por pago, e o n�quel torna surdamente para a algibeira de onde saiu, ou, se n�o saiu, l� fica.

A segunda esp�cie de subtra��o � tamb�m rara, e ainda mais prejudicial ao passageiro � companhia. Consiste em pedir ao condutor que espere o troco da nota que este lhe deu. �s vezes nem � preciso pedir, faz um gesto ou n�o faz nada: subentende-se que toda nota tem troco. O passageiro prossegue na leitura ou na conversa��o interrompida, se n�o vai simplesmente pensando na instabilidade das coisas desta vida. Acontece que chega a casa ou � esquina da rua em que mora, e manda parar o bonde. Igualmente sens�vel ao aspecto melanc�lico das habita��es humanas, o condutor toca maquinalmente a campainha, e o homem desce, louvando ainda uma vez esta condu��o t�o barata, que lhe permite ir por um tost�o do Largo de S�o Francisco ao Campo de S�o Crist�v�o.

Este segundo caso � de consci�ncia. Com efeito, se o condutor n�o deu troco ao passageiro, h� de entregar a nota � companhia? N�o; seria fazer com que cobrasse dez vezes a mesma passagem. H� de trocar a nota para entregar s� a passagem e ficar com o resto? Seria legitimar uma divis�o criminosa. H� de anunciar a nota? Seria publicar a sua pr�pria distra��o, e demais arriscar o emprego, coisa que um pai de fam�lia n�o deve fazer. A �nica solu��o � guardar tudo.

Mas, ainda sem estes dois elementos, parece que a perda anual � grande, e algum rem�dio � necess�rio. A id�ia de interessar os pr�prios passageiros, ligados por um la�o de caridade, pode ser fecunda, e, em todo caso, � elevada. O �nico receio que tenho, � da pouca resist�ncia nossa, por pregui�a de �nimo ou outra coisa. O interesse � mais constante. Jos� Rodrigues, a quem consultei sobre esta mat�ria, disse-me que isto de perder s�o os �nus do of�cio; tamb�m a companhia de que ele tinha deb�ntures, perdeu-os todos. Mas lembrou-me um meio engenhoso e �til: incumbir os acionistas de vigiarem por seus pr�prios olhos a cobran�a das passagens. Interessados em recolher todo o dinheiro, ser�o mais severos que ningu�m, mais pontuais, n�o ficar� vint�m nem conto de r�is da caixa.

9 de setembro

A morte de Mancinelli deu lugar a uma observa��o, naturalmente t�o velha ou pouco menos velha que o mundo, a saber, que o homem � um animal de sonhos e mist�rios. N�o gosta das verdades simples. Assim, relativamente no motivo do suic�dio, ouvi muitas vers�es remotas e complicadas. A mais espantosa foi que Mancinelli estava com ordem de pris�o, por ter mandado lan�ar fogo ao Politeama, e recorrera � morte, n�o por desespero, mas por temor.

Confessemos que � ir um pouco longe. Entretanto, fa�amos justi�a aos homens, a realidade era mais dif�cil de crer que a inven��o e a fantasia. Um empres�rio que se mata por n�o poder pagar aos credores, or�a pela F�nix e pela Sibila. Era natural n�o admitir que, em tal situa��o, um empres�rio prefira a bala ao paquete. O paquete � a solu��o comum, mas tamb�m h� casos de simples discurso explicativo, palavras duras, uma redu��o, uma conven��o, uma infra��o e o sil�ncio. N�o me lembra nenhum caso mortal.

O pobre e fino artista foi o primeiro, e por muitos e muitos anos ser� o �nico, porque eu n�o creio que nenhum outro, nas mesmas condi��es, se meta t�o cedo em tal of�cio, para o qual n�o basta o sentimento da arte. N�o o conheci de perto, nem de longe, mas parece que era profundamente sens�vel, tinha o orgulho alto, o pundonor agudo e o sentimento da responsabilidade viv�ssimo. N�o podendo lutar, preferiu a morte, que se lhe afigurou mais f�cil que a vida e mais necess�ria tamb�m.

H� justamente um m�s, deu-se em Oxford um suic�dio, que, a certo respeito � o de Mancinelli. Foi o de John Mowat. Este erudito era bibliotec�rio da Universidade. Nomeado membro do Congresso das Ci�ncias que ali se reunia agora, teve medo de n�o poder desempenhar cabalmente o mandato, pegou de uma corda e enforcou-se. Sabia-se que era homem de grande impressionabilidade. Vivendo feliz, sossegado, entregue aos livros, temeu c� fora um fiasco. Compreendendo que a gente inglesa tamb�m recusasse tal motivo, e preferisse crer, visto tratar-se de um bibliotec�rio, que ele deitara fogo � biblioteca de Alexandria.

Realmente, matar-se um homem por suspeitar que pode ficar abaixo de um cargo � coisa que, ainda escrita, ningu�m cr�; parece uma p�gina de Swift. Antes de tudo, esse sentimento de inferioridade � rar�ssimo. Quando existe, fica t�o fundo na consci�ncia, que s� o olho perspicaz do observador pode senti-lo e palp�-lo c� de fora. A apar�ncia � contr�ria; o ar da pessoa, o tom, o aspecto, tudo persuade � multid�o que o cargo � que � pequeno. A verdade, por�m, � que Mowat matou-se por causa dessa mod�stia doentia, quando o seu dever era ser sadio e forte, crer que podia arrancar uma estrela do c�u, e, obrigado a faz�-lo, tir�-la da algibeira.

Num e noutro caso, como nos demais, surge a quest�o de saber se o suic�dio � um ato de coragem ou de fraqueza. Quest�o velha. Tem sido muito discutida, como a de saber qual � maior, se C�sar ou Napole�o; mas esta � a mais recente e ind�gena. Pode dizer-se que os dois grandes homens equilibram-se, nos votos, mas a quest�o do suic�dio � antes resolvida no sentido da fraqueza que no da coragem. � um problema psicol�gico f�cil de tratar entre o Largo do Machado e o da Carioca. Se o bonde for el�trico, a solu��o � achada em metade do caminho.

Segundo os c�nones, o suic�dio � um atentado ao Criador, e o nosso primeiro e recente arcebispo aproveitou o caso Mancinelli para lembr�-lo aos p�rocos e a todo o clero, e conseq�entemente que os sufr�gios eclesi�sticos s�o negados aos que se matam. A circular de D. Jo�o Esberard � s�bria, en�rgica e verdadeira; recorda que a sociedade civil e a filosofia condenam o suic�dio, e que a natureza o considera com horror. No mesmo dia da expedi��o da circular (quinta-feira) um homem que padecia de mol�stia dolorosa ou incur�vel, talvez uma e outra coisa, recorreu � morte como a melhor das tisanas. Suponho que n�o ter� lido a palavra do prelado; mas outros suicidas vir�o depois dela, pois que os c�nones s�o mais antigos, a filosofia tamb�m, e mais que todos a natureza.

Conta Plutarco que houve, durante algum tempo, em Mileto, uma coisa que ele chama conjura��o, mas que eu, mais moderno, direi epidemia, e era que as mo�as do lugar entraram a matar-se umas ap�s outras. A autoridade p�blica, para acudir a tamanho perigo, decretou que os cad�veres das mo�as que dali em diante se matassem, seriam arrastados pelas ruas, inteiramente nus. Cessaram os suic�dios. O pudor acabou com o que n�o puderam conselhos nem l�grimas. A priva��o dos sufr�gios eclesi�sticos � assaz forte para os crentes, embora n�o seja sempre decisiva: mas a incredulidade do s�culo e a frouxid�o dos pr�prios crentes h�o de tornar improf�cua muita vez a interven��o do prelado.

Pela minha parte, estou com os c�nones, com a filosofia, com a sociedade e com a natureza, sem negar que s�o dois belos versos aqueles com que o poeta Gar��o fecha a ode que comp�s ao suic�dio:

Todos podem tirar a vida ao homem,

Ningu�m lhe tira a morte.

Convenho que a morte seja propriedade inalien�vel do homem, mas h� de ser com a condi��o de a conservar inculta, de lhe n�o meter arado nem enxada. Condi��o que n�o se pode crer segura, nem geralmente aceita. S�o mat�rias complicadas, longas, e cada vez sinto menos papel debaixo da pena. Enchamos o que falta com uma revela��o e uma observa��o.

A revela��o � um grito d'alma que ouvi, quando a not�cia do suic�dio de Mancinelli chegou a um lugar onde est�vamos eu e um amigo. �Ora p�lulas! bradou este meu amigo; � outro empres�rio que me leva a assinatura.� Consolei-o dizendo que as assinaturas do Teatro L�rico, perdidas ou interrompidas neste mundo, s�o pagas em tresdobro no C�u. A esperan�a de ouvir eternamente os Huguenotes e o Lohengrin alegrou a alma diletante e crist� do meu amigo. Disse-lhe que os anjos, como a eternidade � longa, estudam as �peras todas, para indeniza��o das algibeiras e dos ouvidos defraudados pelo suic�dio ou pelo paquete; acrescendo que os maestros no C�u ser�o os regentes da orquestra das suas �peras, menos os judeus, que poder�o mandar pessoa de confian�a.

Quanto ao reparo, � um pouco velho, mas serve. Verificou-se ainda uma vez a supremacia da m�sica em nossa alma. Certamente, as circunst�ncias da morte de Mancinelli, as qualidades simp�ticas do homem, os dons do artista, a honradez do car�ter, contribu�ram muito para o terr�vel efeito da not�cia. Creio, por�m, que uma parte do efeito originou-se na condi��o de empres�rio l�rico. A verdade � que n�s amamos a m�sica sobre todas as coisas e as prima-donas como a n�s mesmos.

16 de setembro

Que boas que s�o as semanas pobres! As semanas ricas s�o ruidosas e enfeitadas, aborrec�veis, em suma. Uma semana pobre chega � porta do gabinete, humilde e medrosa:

� Meu caro senhor, eu pouco tenho que lhe dar. Trago as algibeiras vazias; quando muito, tenho aqui esta cabe�a quebrada, a cabe�a do Matias...

� Mas que quero eu mais, minha amiga? Uma cabe�a � um mundo... Matias, que Matias?

� Matias, o leiloeiro que passava ontem pela Rua de S�o Jos�, escorregou e caiu... Foi uma casca de banana.

� Mas h� cascas de banana na Rua de S�o Jos�?

� Onde � que n�o h� cascas de bananas? Nem no c�u, onde n�o se come outra fruta, com toda certeza, que � fruta celestial. Mate-me Deus com bananas. Gosto delas cruas, com queijo de Minas, assada com a��car, a��car e canela... Dizem que � muito nutritiva.

Confirmo este parecer, e a� vamos, eu e a semana pobre, papel abaixo, falando de mil coisas que se ligam � banana, desde a bot�nica at� a pol�tica. Tudo sai da cabe�a do Matias. N�o h� tempo nem espa�o, h� s� eternidade e infinito, que nos levam consigo; vamos pegando aqui de uma flor, ali de uma pedra, uma estrela, um raio, os cabelos de Medusa, as pontas do Diabo, micr�bios e beijos, todos os beijos que se t�m consumido, at� que damos por n�s no fim do papel. S�o assim as semanas pobres.

Mas as semanas ricas! Uma semana como esta que ontem acabou farta de sucessos, de aventuras, de palavras, uma semana em que at� o c�mbio come�ou a esticar o pesco�o pode ser boa para quem gostar de bulha e de acontecimentos. Para mim que amo o sossego e a paz � a pior de todas as visitas. As semanas ricas exigem v�rias cerim�nias, algum servi�o, muitas cortesias. Demais, s�o trapalhonas, despejam as algibeiras sem ordem e a gente n�o sabe por onde lhe pegue, tantas e tais s�o as coisas que trazem consigo. N�o h� tempo de fazer estilo com elas, nem abrir a porta � imagina��o. Todo ele � pouco para acudir aos fatos.

� Como � que V. Exa. p�de vir t�o carregado assim, n�o me dir�?

� N�o � tudo.

� Ainda h� mais fatos?

� Tenho-os ali fora, na carruagem; trouxe comigo os de maior melindre, e vou mandar trazer os outros pelo lacaio... Pedro!

� N�o se incomode V. Exa.; eu mando o Jos� Rodrigues. Jos� Rodrigues! V� ali � carruagem desta senhora e traga os pacotes que l� achar. V�m todos os pacotes?

� Todos, menos o edif�cio da F�brica da Chitas, que afinal recebeu o �ltimo piparote do tempo e caiu. Pelo resultado, podemos dizer que foi o dedo da Provid�ncia que o deitou abaixo; n�o matou ningu�m. Imagine se o bonde que descia passasse no momento de cair o monstro, e que o homem que queria ir ver na casa arruinada a cadela que dava leite aos filhos houvesse chegado ao lugar onde estavam os c�es. Que desastre, santo Deus! Que terr�vel desastre!

� Terr�vel, minha senhora? N�o nego que fosse feio, mas o mal seria muito menor que o bem. Perd�o; n�o gesticule antes de ouvir at� o fim... Repito que o bem compensaria o mal. Imagine que morria gente, que havia pernas esmigalhadas, ventres estripados, cr�nios arrebentados, l�grimas, gritos, vi�vas, �rf�os, ang�stias, desesperos... Era triste, mas que como��o p�blica! que assunto f�rtil para tr�s dias! Recorde-se da Mortona.

� Que Mortona?

� Creio que houve um desastre deste nome; n�o me lembro bem, mas foi neg�cio em que se falou tr�s dias. N�s precisamos de como��es p�blicas, s�o os banhos el�tricos da cidade. Como duram pouco, devem ser fortes. Olhe o caso Mancinelli...

� A minha mana mais velha � que o trouxe consigo. Foi um suic�dio, creio.

� Foi, um horr�vel suic�dio que abalou a cidade em seus fundamentos. No dia da morte, cerca de mil pessoas foram ver o cad�ver do triste empres�rio. Quando se deu o primeiro espet�culo a favor dos artistas, acudiram ao teatro dezessete pessoas, n�o contando os porteiros, que entram por of�cio. N�o h� que admirar nessa diferen�a de algarismos; as como��es fortes s�o naturalmente curtas. Fortes e longas, seriam a mais horr�vel das nevroses. Foi uma pena n�o ter passado um bonde cheio de gente, na ocasi�o em que ruiu a F�brica das Chitas; cheio de gente, isto �, de crian�as sem m�es, maridos sem esposas, vi�vas costureiras, sem os filhos, e muitos passageiros, muitos pingentes, como dizem dos que v�o pendurados nos estribos, incomodando os outros. Creia V. Exa.; uma vez que os homens j� n�o comp�em trag�dias, � preciso que Deus as fa�a, para que este teatro do mundo varie de espet�culo. Tudo fandango, minha senhora! Seria demais.

� Como o senhor � perverso!

� Eu? Mas...

� Vamos aos outros sucessos destes sete dias; trago muitos.

� Perd�o; quero primeiro lavar-me da pecha que me p�s. Eu perverso?

� Danado.

� Eu danado? Mas em que � que sou danado e perverso? N�o lhe disse, note bem, que eu faria ruir o edif�cio da F�brica das Chitas, quando passasse o bonde, mas que era bom que ele ru�sse quando o bonde passasse. H� um abismo...

� Pois sim; vamos ao mais. Aqui est�o dois fatos importantes... um grande abismo. Nem falo s� pelos outros, mas tamb�m por mim. N�o tenho d�vida em confessar que o espet�culo de uma perna alanhada, quebrada, ensang�entada, � muito mais interessante que o da simples cal�a que a veste. As cal�as, esses simples e banais canudos de pano, n�o d�o como��o. As pr�prias cal�as femininas, quando comovem n�o � por serem cal�as...

� Vamos aos sucessos.

�... mas por serem cal�as cal�adas. � outro abismo. Repare que hoje s� vejo abismos. H� uma chuva de abismos; a imagem n�o � boa, mas que h� bom neste s�culo, minha senhora, excluindo a ocupa��o do Egito? Dizem que se descobriu um elemento novo. Talvez seja falso, mas pode ser que n�o; tudo � relativo. O relativo � inimigo do absoluto: o absoluto, quando n�o � Deus, � (com licen�a) o tenor que canta as gl�rias divinas. Come�o a variar, minha senhora; n�o me sinto bem...

� Ent�o acabemos depressa; � tarde, preciso retirar-me.

�...se � que n�o estou pior. O pior � inimigo do bom, dizem; mas os dicion�rios negam absolutamente essa proposi��o, e eu vou com eles...

� Oh! o senhor faz-me nervosa!

�...n�o s� por serem dicion�rios, mas por serem livros grossos. Oh! V. Exa. n�o sabe o que s�o esses livros altos e de pondera��o. Os dicion�rios, se n�o s�o eternos, deviam s�-lo. Uma s� p�gina, um s� dicion�rio, eterno; era o ideal da sistematiza��o. A sistematiza��o �, para falar verdade...

� N�o posso mais, adeus!

� Jos� Rodrigues, fecha a porta; se esta senhora voltar, dize-lhe que sa�. Ah!

23 de setembro

Os depoimentos desta semana complicaram de tal maneira o caso da bigamia Louzada, que � imposs�vel destrinch�-lo, sem o aux�lio de uma grande doutrina. Essa doutrina, eu, que algumas vezes me ri dela, venho proclam�-la bem alto, como a �ltima e verdadeira.

Com efeito, vimos que a primeira mulher do capit�o � negada por ele, que afirma ser apenas sua cunhada. Outros, por�m, dizem que a primeira mulher � esta mesma que a� est�, e quem o diz � o vig�rio que os casou em 1870, e o padrinho, que assistiu � cerim�nia. Mas eis a� surge a certid�o de �bito e o n�mero da sepultura da primeira esposa, que, de outra parte, s�o negadas, porque a pessoa morta n�o � a mesma e tinha nome diverso. H� assim uma pessoa enterrada e viva, mulher, cunhada e estranha, um enigma para cinco pol�cias juntas, quanto mais uma.

Vinde, por�m, ao espiritismo, e vereis tudo claro como �gua. Eu n�o cria no espiritismo at� junho �ltimo, quando li na Uni�o Esp�rita que, h� anos, um distinto jurisconsulto nosso, antigo deputado por Mato Grosso, consentiu em assistir a uma experi�ncia. Foi invocado o esp�rito da sogra do deputado e respondeu o Marqu�s de Abaet�: �Meu amigo; o espiritismo � uma verdade. Abaet��. Ca�ram-me as cataratas dos olhos. Certamente o caso n�o era novo; mais de uma resposta destas aparecem, que eu sempre atribu� � simula��o. A circunst�ncia, por�m, da assinatura � que me clareou a alma, n�o s� porque o marqu�s era homem verdadeiro, mas ainda porque o esp�rito assinara, n�o o seu nome de batismo, mas o t�tulo mobili�rio. Se houvesse charlatanismo, teria sa�do o nome de Ant�nio, para fazer crer que os esp�ritos desencarnados deixam neste mundo todas as distin��es. A assinatura do t�tulo prova a autenticidade da resposta e a verdade da doutrina.

Sendo a doutrina verdadeira, est� explicada a confus�o da esposa, da cunhada e da senhora estranha, que se d� no processo do capit�o, porquanto os doutores da escola ensinam que os esp�ritos renascem muita vez mortos, isto �, os filhos encarnam-se nos pais, nas m�es e n�o � raro um menino voltar a este mundo filho de um primo. Da� essa complica��o de pessoas, que a pol�cia n�o deslindar� nunca, sem o aux�lio desta grande doutrina moderna e eterna.

Converta-se a pol�cia. N�o h� desdouro em abra�ar a verdade, ainda que outros a contestem; todas as grandes verdades acham grandes incr�dulos. A resposta do marqu�s prova que os homens, de envolta com a carne, que � mat�ria, n�o deixam o t�tulo, que � uma forma particular de esp�rito. Quando o Jap�o come�ou a ter esp�rito, n�o adotou s� o reg�men parlamentar, nacionalizou tamb�m os condes, e l� tem, entre outros, o seu Conde Ito, que dizem ser estadista eminente. A China, invejosa e pregui�osa, ergueu a custo as p�lpebras e murmurou como no nosso antigo Alcazar da Rua Uruguaiana: Vous avez de l'esprit? Nous aussi. E criou um marqu�s, o Marqu�s Tcheng, mas n�o foi adiante.

Quanto a mim, n�o s� creio no espiritismo, mas desenvolvo a doutrina. Desconfiai de doutrinas que nascem � maneira de Minerva, completas e armadas. Confiai nas que crescem com o tempo. Sim, vou al�m dos meus doutores; creio firmemente que um esp�rito de homem pode reencarnar-se em um animal. Em Mogi-Mirim, Estado de S�o Paulo, acaba de enlouquecer um burro. Assim o conta a Ordem por estas palavras: �Segunda-feira passada, um burro do Dr. Santo di Prospero enlouqueceu repentinamente�. E refere os destro�os que o animal fez at� achar a morte. Ora, esta loucura do burro mostra claramente que o infeliz perdeu a raz�o. Que esp�rito estaria encarnado nesse pobre animal, amigo do homem, seu companheiro, e muita vez seu substituto? Talvez um g�nio. A prova � que o perdeu. Com quatro p�s, n�o pode entrar onde n�s entramos com dois. Quanta vez teria ele dito consigo: � N�o fosse a minha ilus�o em reencarnar-me nesta besta, e estaria agora entre pessoas honradas e ilustradas, falando em vez de zurrar, colhendo palmas, em vez de pancadaria. � bem feito; a minha id�ia de incorporar o burro na sociedade humana, se era generosa, n�o era pr�tica, porque o homem nunca perder� o preconceito dos seus dois p�s.

Outro ponto que me parece deve ser examinado e adicionado � nossa grande doutrina, � a volta dos esp�ritos, encarnados (se assim posso dizer) em simples obras humanas, ve�culo ou outro objeto. Penso, entretanto, que a grada��o necess�ria a todas as coisas exige para esta nova encarna��o que o esp�rito haja primeiro tornado em algum bruto. Assim � que um esp�rito, desde que tenha sido reencarnado na tartaruga, logo que se desencarne, pode voltar novamente encarnado no bonde el�trico. N�o dou isto como dogma, mas � doutrina assaz prov�vel. J� n�o digo o mesmo da id�ia (se a h�) de que um servi�o pode ser reencarnado em outro. Servi�o � propriamente o efeito da atividade e do esfor�o humano em uma dada aplica��o. Tirai-lhe essa condi��o, e n�o h� servi�o. � um resultado, nada mais. Pode n�o prestar, ser descurado, n�o valer dois carac�is, ou ao contr�rio pode n�o ser excelente e perfeito, mas � sempre um resultado. Quem disser, por exemplo, que o servi�o da antiga Companhia de bondes do Jardim Bot�nico est� reencarnado no novo, provar� com isto que de certo tempo a esta parte s� tem andado de carro, mas andar de carro n�o � condi��o para ser espiritista. Ao contr�rio, a nossa doutrina prefere os humildes aos orgulhosos. Quer a f� e a ci�ncia, n�o cocheiros embonecados, nem cavalos briosos.

Voltando � bigamia do capit�o, digo novamente � pol�cia que estude o espiritismo e achar� p� nessa confus�o de senhoras. Sem ele, nada h� claro nem s�lido, tudo � prec�rio, escuro e an�rquico. Se vos disserem que � vezo de todas as doutrinas deste mundo darem-se por salvadoras e definitivas, acreditai e afirmai que sim, excetuando sempre a nossa, que � a �nica definitiva e verdadeira. Am�m.

30 de setembro

N�o escrevo para ti, leitor do costume, nem para ti, venerando arcebispo, que ainda h� pouco recebeste o p�lio na nossa catedral de S. Sebasti�o. N�o esperes que venha dizer mal de ti, em primeiro lugar porque o mal s� se diz �por tr�s das pessoas�, locu��o popular e graciosa; em segundo lugar, porque venho pedir-te um favor.

O favor que te pe�o, meu caro arcebispo, n�o � um benef�cio propriamente eclesi�stico, nem carta de empenho, nem dinheiro de contado. B�n��o n�o � preciso pedir-ta; ela � de todo o rebanho, e, ainda que em mim os v�cios superem as virtudes, terei sempre a por��o dela que me sirva, n�o de pr�mio, que o n�o mere�o, mas de vi�tico.

Meu caro arcebispo, n�o te pe�o nenhum milagre. Nem milagres s�o obras f�ceis de fazer ou de aceitar. A mais incr�dula, a respeito deles, � a pr�pria igreja, que acaba de declarar que os milagres de Maria de Ara�jo s�o simples embustes. Os louros de Bernadette tiravam o sono a essa mo�a do Juazeiro, que se meteu a milagrar tamb�m, nas ocasi�es da comunh�o, e � prov�vel que comungasse todos os dias. Em v�o o bispo do Cear�, depois de bem examinado o caso, reconheceu e declarou, em carta pastoral, �que eram fatos naturais, acompanhados de algumas circunst�ncias artificiais�; o povo continuava a crer em Maria de Ara�jo, e n�o s� leigos mas at� padres iam v�-la ao Juazeiro. Como sabes, venerando prelado, a quest�o foi submetida � Santa S�, que considerou os fatos e os condenou, tendo-os por �grav�ssima e detest�vel irrever�ncia � santa eucaristia�, e ordenando que as peregrina��es � casa de Maria de Ara�jo fossem vedadas, e assim tamb�m quaisquer livros que a defendessem, e a simples conversa��o sobre tais milagres, e por fim que se queimassem os panos ensang�entados e outras rel�quias da miraculosa senhora.

Eis a� Maria de Ara�jo obrigada a trocar de of�cio. Eu, se fosse ela, casava-me e tinha filhos, que n�o � pequeno milagre, por mais natural que no-lo digam.

Perde a celebridade, � certo, mas n�o se pode ter tudo neste mundo, alguma coisa se h� de guardar para o outro, e particularmente aos famintos anunciou Jesus que seriam fartos. N�o haver� Zola que a ponha em letra redonda e vibrante, para deleite de ambos os mundos. Paci�ncia; ter� nos filhos os seus melhores autores, e basta que um deles seja um Santo Agostinho, para canoniz�-la pelo louvor filial, antes que a igreja o fa�a pela autoridade divina, como sucedeu � Santa M�nica. Esta n�o fez milagres na terra, n�o teve panos ensang�entados, nem outros artif�cios; ganhou o c�u com piedade e do�ura, virtudes t�o excelsas que domaram a alma do marido e da pr�pria m�e do marido.

Mas a quem estou ensinando os fastos da igreja? Perdoa, meu rico prelado, perdoa-me esses descuidos da pena, t�o pouco experta em mat�rias eclesi�sticas. Perdoa-me, e vamos ao meu pedido. H�s de ter notado que, para pedinte, sou um tanto falador, sem advertir que a melhor s�plica � a mais breve. Tamb�m eu ou�o a suplicantes, porque tamb�m sou bispo, e a minha diocese, caro D. Jo�o Esberard, n�o tem menos nem mais pecados que as outras, e da� a necessidade da paci�ncia, para que nos toleremos uns aos outros. Mas n�o h� paci�ncia que baste para ouvir um suplicante derramado. Todo suplicante conciso pode estar certo de despacho pronto, porque fixou bem o que disse, sem cansar com palavras sobejas. V�s bem que sou o contr�rio. Colhamos pois a vela ao estilo.

Pe�o-te um favor grande, em nome da est�tica. A est�tica, venerando pastor, � a �nica face das coisas que se me apresenta de modo claro e intelig�vel. Tudo o mais � confuso para estes pobres olhos que a terra h� de comer, e n�o comer� grande coisa, que a vista � pouca e a beleza nenhuma. N�o cuides que, falando assim, pe�o coisa estranha ao teu of�cio. H� muitos anos, li em qualquer parte, que a moral � a est�tica das a��es. Pois troquemos a frase, e digamos que a est�tica � a moral do gosto, e a tua obriga��o, caro mestre da �tica, � defender a est�tica.

Eis aqui o favor. Manda deitar abaixo uma torre. N�o me refiro a torres dessas cujos sinos tocam operetas e chamam � ora��o por boca de D. Juanita. A torre cuja demoli��o te pe�o, � a da Matriz da Gl�ria. Conheces bem o templo e o frontisp�cio. N�o sei se eles e a torre entraram no mesmo plano do arquiteto; todos os monstros, por isso mesmo que est�o na natureza, podem aparecer na arte. Mas n�o � fora de prop�sito imaginar que a torre � posterior, e que foi ali posta para corrigir pela voz dos sinos o sil�ncio das colunas. Bom sentimento, decerto, religioso e pio, mas o efeito foi contr�rio, porque a torre e as colunas detestam-se, e a casa de Deus deve ser a casa do amor.

Sei o que valem sinos, lembra-me ainda agora a doce impress�o que me deixou a leitura do cap�tulo de Chateaubriand, a respeito deles. Mas, prelado amigo, uma s� exce��o n�o ser� mais que a confirma��o da regra. Manda deitar abaixo a torre da Gl�ria. Se os sinos s�o precisos para chamar os fi�is � missa, manda p�-los no fundo da igreja, sem torre, ou na casa do sacrist�o, e benze a casa, e benze o sacrist�o, tudo � melhor que essa torre em tal templo. Ou ent�o faze outra coisa, � mais dif�cil, � verdade, mas que me n�o ofender� em nada, - manda sacrificar o templo � torre, e que fique a torre s�.

E aqui me fico, para o que for do teu servi�o. Relendo estas linhas, advirto que uma s� vez te n�o dei Excel�ncia, como te cabe pela eleva��o do posto. N�o foi por imitar a B�blia, nem a Conven��o Francesa, mas por medo de ficar em caminho. S�o tantas as Excel�ncias que se cruzam nas sess�es da Intend�ncia Municipal, que bem poucas h�o de ficar dispon�veis nas tipografias. Para n�o deixar a carta em meio, falei-te a ti, como se fala ao Senhor.

7 de outubro

Esta semana devia ser escrita com letras de ouro. Ap�s tr�s meses de espera, de sorteio, de convites, de multas, de paci�ncia e de cita��es, constituiu-se o j�ri! � a segunda vez este ano. Talvez seja a pen�ltima vez deste s�culo.

Quando eu abri os olhos � vida achei do j�ri a mesma no��o que passei aos outros meninos que viessem depois: � uma nobre institui��o, uma institui��o liberal, o cidad�o julgado por seus pares, etc., toda aquela por��o de frases feitas que se devem dar aos homens para o caso em que estes precisem de id�ias.

As frases feitas s�o a companhia cooperativa do esp�rito. D�o o trabalho �nico de as meter na cabe�a, guard�-las e aplic�-las oportunamente, sem dispensa de convic��o, � claro, nem daquele fino sentimento de originalidade que faz de um molambo seda. Nos casos apertados d�o mat�ria para um discurso inteiro e longo, � dizem, mas pode ser exagera��o.

Um dia, � � dia nefasto! � descobri em mim dois homens, eu e eu mesmo, tal qual sucedeu a Cam�es, naquela redondilha c�lebre: Entre mim mesmo e mim. A semelhan�a do fen�meno encheu-me a alma com grandes abondan�as, para falar ainda como o pr�prio poeta. Sim; eu era dois, senti bem que, al�m de mim, havia eu mesmo. Ora, um dos homens que eu era dizia ao outro que a nobre institui��o do j�ri, institui��o liberal, o julgamento dos pares, etc., n�o parecia estar no gosto do nosso povo carioca. Este povo era intimado e multado, e nem por isso deixava os seus neg�cios para ir ser juiz. Ao que respondeu o outro homem que a culpa era da c�mara municipal que n�o cobrava as multas. Se cobrasse as multas, o povo iria. Espanto do primeiro homem, acostumado a crer que tudo o que se imprime acontece ou acontecer�. Retifica��o do primeiro: �Nem sempre; � preciso deixar uma parte para ingl�s ver. Ingl�s gosta de ver suas institui��es armadas em toda a parte�.

Assisti a esse duelo de raz�es, examinando-as com tal imparcialidade, que n�o estou longe de crer que, al�m dos dois homens, surdira em mim um terceiro. Nisto fui superior ao poeta. Examinei as raz�es, e desesperando de conciliar os autores, aventei uma id�ia que me pareceu fecunda: estipendiar os jurados. Todo servi�o merece recompensa, disse eu, e se o juiz de direito � pago, por que o n�o ser� o juiz de fato? Replicaram os dois que n�o era uso em tal institui��o; ao que o terceiro homem (sempre eu!) replicou dizendo que os usos amoldam-se aos tempos e aos lugares. Usos n�o s�o leis, e as pr�prias leis n�o s�o eternas, salvo os tratados de perp�tua amizade, que ainda assim t�m dura��o m�dia de 17 1/2 anos. Tempo houve em que as comiss�es fiscais das sociedades an�nimas eram gratuitas; hoje s�o pagas. S�o pagos todos os que comp�em o tribunal do j�ri, o presidente, o procurador da justi�a, os advogados, os porteiros, possivelmente as testemunhas; a que t�tulo s� os jurados, que deixam os seus neg�cios, h�o de trabalhar de gra�a?

Notemos que o j�ri, dif�cil de constitui��o, uma vez constitu�do, � pontual e cumpre o seu dever. Tem at� uma particularidade, as suas sess�es secretas s�o secretas, ao contr�rio das sess�es secretas no senado, que s�o p�blicas. Esta semana foi particularmente f�rtil em sess�es secretas do senado, as quais foram mais p�blicas ainda que as p�blicas, por isso que sendo secretas, toda a gente gosta de saber o que l� se passou. A pr�pria reclama��o de um dos membros do senado contra a divulga��o das sess�es foi divulgada.

Eu, antes de ver explicada a divulga��o, quisera ver explicado o segredo. � assim no senado de Washington; mas, l� mesmo, por ocasi�o de algumas nomea��es de Cleveland, na anterior presid�ncia deste homem de Estado, membros houve que lembraram a id�ia de fazer tais sess�es p�blicas. Um escritor c�lebre, admirador da Am�rica, ponderou a tal respeito que a discuss�o p�blica dos neg�cios � o que mais conv�m �s democracias. Deus meu! � uma banalidade, mas foi o que ele escreveu; n�o lhe posso atribuir um pensamento raro, profundo ou inteiramente novo. O que ele disse foi isso. Nem por ser banal, a id�ia � falsa; ao contr�rio, h� nela a sabedoria de todo mundo. Pelo que, e o mais dos autos, n�o vejo clara a necessidade das sess�es secretas, mas tamb�m n�o digo que n�o seja clar�ssima. Todas as conclus�es s�o poss�veis, uma vez que � o mesmo sol que as alumia, com igual imparcialidade. A lua, m�e das ilus�es, n�o tem parte nisto; mas o sol, pai das verdades, n�o o � s� das verdades louras, como os seus raios fazem crer; tamb�m o � das verdades morenas.

Isto posto, n�o admira que se d� em mim, neste instante, uma equa��o de sentimentos relativamente � lei municipal que estabelece lota��o de passageiros para os bondes, sob pena de serem multadas as companhias. Entre mim mesmo e mim travou-se a princ�pio grande debate. Um quer que a autoridade n�o tire ao passageiro o direito de ir incomodado, quando se pendura feito pingente. Outro replica que o passageiro pode ir incomodado uma vez que n�o incomode os demais, e mostra o rem�dio ao mal, que � aumentar o n�mero dos ve�culos e alterar as tabelas das viagens. Protesto do primeiro, que � acionista, e defende os dividendos. O segundo alega que � p�blico e quer ser bem servido.

Grande seria o meu desconsolo e terr�vel a luta, se eu n�o achasse um modo de conciliar as opini�es; digo mal, de as afastar para os lados. Esse modo � a esperan�a que nutro de que a lei municipal n�o ser� cumprida. Os seis meses dados, para que ela entre em execu��o, s�o suficientes para que os novos carros se comprem e as tabelas se alterem; mas n�o haver� carros novos no fim dos seis meses, e aparecer� um pedido de prorroga��o por mais um semestre, digamos um ano. D�- se o ano. No fim dele a ter�a parte dos atuais intendentes estar�o mortos, outra ter�a parte haver� abandonado a pol�tica, poucos restar�o nos seus lugares. Mas, francamente, quem mais se lembrar� da lei? Leis n�o s�o dores, que se fazem lembrar doendo; leis n�o doem. Algumas s� doem, quando se aplicam; mas n�o aplicadas, elas e n�s gozamos perfeita sa�de. Quando muito, marcar-se-� novo prazo, e ser� o �ltimo, dois anos, que n�o acabar�o mais. Um conselho dou aqui �s companhias: n�o discutam este neg�cio, deixem passar o tempo, e o sil�ncio far� da s�.

14 de outubro

Um cabograma... Por que n�o adotaremos esta palavra? A rigor n�o preciso dela; para transmitir as poucas not�cias que tenho, basta-me o velho telegrama. Mas as necessidades gerais crescem, e a altera��o da coisa traz naturalmente a altera��o do nome. Vede o homem que vai na frente do bonde el�trico. Tendo a seu cargo o motor, deixou de ser cocheiro, como os que regem bestas, e chamamos-lhe motorneiro em vez de motoreiro, por uma raz�o de eufonia. H� quem diga que o pr�prio nome de cocheiro n�o cabe aos outros, mas � ir longe de mais, e em mat�ria de l�ngua, quem quer tudo muito explicado, arrisca-se a n�o explicar nada.

Custa muito passar adiante, sem dizer alguma coisa das �ltimas interrup��es el�tricas; mas se eu n�o falei da morte do mocinho grego, vendedor de balas, que o bonde el�trico mandou para o outro mundo, h� duas semanas, n�o � justo que fale dos terr�veis sustos de quinta-feira passada. O pobre mo�o grego se tivesse nascido antigamente, e entrasse nos jogos ol�mpicos, escapava ao desastre do largo do Machado. Dado que fosse um dia destru�do pelos cavalos, como o jovem Hip�lito, teria cantores c�lebres, em vez de expirar obscuramente no hospital, t�o obscuramente que eu pr�prio, que lhe decorara o nome, j� o esqueci.

Mas, como ia dizendo, um cabograma ou telegrama, � escolha, deu-nos not�cia de haver falecido o c�lebre humorista americano Holmes. N�o � mat�ria para cr�nica. Se os mortos v�o depressa, mais depressa v�o os mortos de terras alongadas, e para a minha conversa��o dominical tanto importam c�lebres como obscuros. Holmes, entretanto, escreveu em um de seus livros, o Autocrata � meta do almo�o, este pensamento de natureza social e pol�tica: �O cavalo de corrida n�o � institui��o republicana; o cavalo de trote � que o �. Tal � o seu bilhete de entrada na minha cr�nica. Aprofundemos este pensamento.

Antes de tudo, notemos que ao nosso Conselho Municipal, por inexplic�vel coincid�ncia, foi apresentado esta mesma semana um projeto de resolu��o, cujo texto, se fosse claro, poderia corresponder ao pensamento de Holmes; mas, conquanto a� se fale em corridas a cavalo, n�o estando estas palavras ligadas �s outras por ordem natural e l�gica, antes confusamente, n�o t�m sentido certo, nada se podendo concluir com seguran�a. A verdade, por�m, � que o conselho trata de combater por v�rios modos, n�o sei se sempre adequados, mas de cora��o, as m�ltiplas formas do jogo p�blico. Um dos seus projetos, redigido em 1893, e revivido agora pelo pr�prio autor, que vai longe neste particular que n�o se contenta de proibir a venda dos bilhetes de loteria nas ruas, chega a proibi-la expressamente. �� expressamente proibido vend�-los nas ruas e pra�as, etc.� diz o art. 2.� � Expressamente � n�o h� por onde fugir.

Indo ao pensamento de Holmes, descubro que a melhor maneira de penetr�-lo � t�o somente l�-lo. Que o leitor o leia; penetre bem o sentido daquelas palavras, n�o lhe sendo preciso mais que paci�ncia e tempo; eu n�o tenho pressa, e aqui o espero, com a pena na m�o. Talvez haja alguma exagera��o quando o ilustre americano compara o cavalo de corrida �s mesas de roleta, � roulette tables; mas quando, assim considerado, o apropria a duas fases sociais, definidas por ele com grande agudeza, n�o parece que exagero muito. Em compensa��o, a pintura do cavalo de trote, puxando o �nibus, o carro do padeiro e outros ve�culos �teis, basta que seja t�o �til como os ve�culos, para que a devamos ter ante os olhos, de prefer�ncia a outros emblemas.

N�o tenho pressa. Enquanto meditas e eu espero, Artur Napole�o conclui o hino que vai ser oferecido ao Estado do Esp�rito Santo por um de seus filhos. Sobre isto ouvi duas opini�es contr�rias. Uma dizia que n�o achava boa a oferta.

� N�o o digo por desfazer na obra, que n�o conhe�o, nem na inten��o, que � filial, menos ainda no Estado, que a merece. Eu preferia mandar comprar um exemplar �nico da Constitui��o Federal, impresso em pergaminho, encadernado em couro ou em ouro. Ou ent�o uma carta prof�tica do Brasil, � o Brasil um s�culo depois. Tamb�m podia ser um grande �lbum em que os chefes de todos os Estados brasileiros escrevessem algumas palavras de solidariedade e conc�rdia, qualquer coisa que pudesse meter cada vez mais fundo na alma dos nossos patr�cios do Esp�rito Santo o sentimento da unidade nacional... Um hino parece levar id�ias de particularismo...

� Discordo, respondeu a outra opini�o, pela boca de um homem magro, que ia na ponta do banco, porque esta conversa��o era no bonde, ontem de manh�, em viagem para o Jardim Bot�nico.

� Discorda?

� Sim, n�o acho inconveniente o hino, e tanto melhor se cada Estado tiver o seu hino particular. As flores que comp�em um ramalhete, Sr. Dem�trio, podem conservar as cores e formas pr�prias, uma vez que o ramilhete esteja bem unido e fortemente apertado. A grande unidade faz-se de pequenas unidades...

A conversa��o foi andando assim, talhada em aforismos, enquanto eu descia do bonde, metia-me em outro e tornava atr�s. Os animais, apesar de serem de trote, ignoravam este outro aforismo - time is money � ou por n�o saberem ingl�s, ou por n�o saberem capim. Tinha chuviscado, mas o chuvisco cessou, ficando o ar sombrio e meio fresco. Apesar disso, ou por isso, trago uma dor de cabe�a enfadonha que me obriga a parar aqui.

21 de outubro

Toda esta semana foi de amores. A Gazeta deu-nos o cap�tulo exot�rico do anel de V�nus desenhado a tra�o grosso na m�o aberta do costume. Da Bahia veio a triste not�cia de um assassinato por amor, um cad�ver de mo�a que apareceu, sem cabe�a nem vestidos. Aqui foi envenenada uma dama. Julgou-se o processo do b�gamo Louzada. Enfim, o intendente municipal Dr. Capelli fundamentou uma lei regulando a prostitui��o p�blica, � �a vaga V�nus�, diria um finado amigo meu, velho dado a cl�ssicos.

Outro amigo meu, que n�o gostava de romances, costumava excetuar t�o somente os de Julio Verne, dizendo que neles a gente aprendia. O mesmo digo dos discursos do Dr. Capelli. N�o s�o simples justifica��es r�pidas e locais de um projeto de lei, mas verdadeiras monografias. Que se questione sobre a oportunidade de alguns desenvolvimentos, � admiss�vel, mas ningu�m negar� que tais desenvolvimentos s�o completos, e que o assunto fica esgotado. Quanto ao estilo, meio did�tico, meio imaginoso, est� com o assunto. N�o perde por imaginoso. Na hist�ria h� Macaulay e Michelet, e tudo � hist�ria. Nas nossas c�maras legislativas perde-se antes por seco e desordenado. Mo�os que brilharam nas associa��es acad�micas e liter�rias entendem que, uma vez entrados na delibera��o pol�tica, devem despir-se da cl�mide e da met�fora, e falar ch�o e natural. N�o pode ser; o natural e o ch�o t�m cabida no parlamento, quando s�o as pr�prias armas do lutador; mas se este as possui mais belas, com incrusta��es art�sticas e ricas, � insensato deix�-las � porta e receber do porteiro um canivete ordin�rio.

Amor! assunto eterno e fecundo! Primeiro vagido da terra, �ltimo estertor da cria��o! Quem, falando de amor, n�o sentir agitar-se-lhe a alma e reverdecer a natureza, pode crer que desconhece a mais profunda sensa��o da vida e o mais belo espet�culo do universo. Mas, por isso mesmo que o amor � assim, cumpre que n�o seja de outro modo, n�o permitir que se corrompa, que se desvirtue, que se acanalhe. Onde e quando n�o for poss�vel tolher o mal, � necess�rio acudir-lhe com a lei, e obstar � inunda��o pela canaliza��o. Creio ser esta a tese do discurso do Sr. Capelli. N�o a pode haver mais alta nem mais oportuna.

Direi de passagem que apareceram ontem alguns protestos contra dois ou tr�s per�odos do discurso, vinte e quatro horas depois deste publicado, por parte de intendentes que declaram n�o os ter ouvido. N�o conhe�o a ac�stica da sala das sess�es municipais; n�o juro que seja m�, visto que o texto impresso do discurso est� cheio de aplausos, e houve um ponto em que os apartes foram muitos e calorosos. Um dos intendentes que ora protestam atribui as injusti�as de tais trechos � revis�o do manuscrito. Assim pode ser; em todo caso, as inten��es est�o salvas.

O que fica do discurso, exclu�dos esses trechos, e mais um que n�o cito para n�o alongar a cr�nica, � digno de apre�o e considera��o. N�o h� monografia do amor, digna de tal nome, que n�o comece pelo reino vegetal. O Sr. Capelli principia por a�, antes de passar ao animal; chegando a este, explica a divis�o dos sexos e o seu destino. Num per�odo vibrante, mostra o nosso f�sico alcan�ando a diviniza��o, isto �, vindo da promiscuidade at� Epaminondas, que defende Tebas, at� Coriolano, que cede aos rogos da m�e, at� S�crates, que bebe a cicuta. Todos os nomes simb�licos do amor espiritual s�o assim atados no ramalhete dos s�culos: Colombo, Gutenberg, Joana d'Arc, Werther, Julieta, Romeu, Dante e Jesus Cristo. Feito isso, como o principal do discurso era a prostitui��o, o orador entra neste vasto cap�tulo.

O hist�rico da prostitui��o � naturalmente extenso, mas completo. Vem do mundo primitivo, Cald�ia, Egito, P�rsia, etc., com larga c�pia de nomes e a��es, mitos e costumes. Da� passa � Gr�cia e a Roma. As mulheres p�blicas da Gr�cia s�o estudadas e nomeadas com esmero, os seus usos descritos minuciosamente, as anedotas lembradas � lembradas igualmente as com�dias de Arist�fanes, e todos quantos, homens ou mulheres, est�o ligados a tal assunto. Roma oferece campo vasto, desde a loba at� Heliog�balo. N�o transcrevo os nomes; teria de contar a pr�pria hist�ria romana. Nenhum escapou dos que valiam a pena, por�m de imperadores ou poetas, de deusas ou matronas, as institui��es com os seus t�tulos, as deprava��es com as suas origens e conseq��ncias. Chegando a Heliog�balo, mostrou o orador que a degenera��o humana tocara o z�nite. �O momento hist�rico era solene, disse ele, foi ent�o que apareceu Cristo.�

Cristo trouxe naturalmente � mem�ria a Madalena, e depois dela algumas santas, cuja vida impura se regenerou pelo batismo e pela penit�ncia. A apoteose crist� � brilhante; mas hist�ria � hist�ria, e for�a foi dizer que a prostitui��o voltou ao mundo. Na descri��o dessa recrudesc�ncia do mal, nada � poupado nem escondido, seja a hediondez dos v�cios, seja a grandeza da consterna��o. Aqui ocorreu um incidente que perturbou a serenidade do discurso. O orador apelou para um novo Cristo, que viesse fazer a obra do primeiro, e disse que esse Cristo novo era Augusto Comte...

Muitos intendentes interromperam com protestos, e estavam no seu direito, uma vez que t�m opini�o contr�ria; mas podiam ficar no protesto. N�o sucedeu assim. O Sr. Maia de Lacerda bradou: Oh! oh! e retirou-se da sala. O Sr. Capelli insistiu, os protestos continuaram.

O Sr. Barcellos afirmou que o positivismo era doutrina subversiva. Defendeu-se o orador, pedindo que lhe respeitassem a liberdade de pensamento. Travou-se di�logo. Cresceram os n�o-apoiados. O Sr. Capelli parodiou Voltaire, dizendo que, se Augusto Comte n�o tivesse existido, era preciso invent�-lo. O Sr. Pinheiro bradou: �Chega de malucos!�. Enfim, o orador compreendendo que iria fugindo ao assunto, limitou-se a protestar em defesa das suas id�ias e continuou.

Esse lastim�vel incidente ocorreu na terceira coluna do discurso, e ele teve sete e meia. V�-se que n�o posso acompanh�-lo, e, ali�s, a parte que ent�o come�ou n�o foi a menos interessante. O discurso enumera as causas da prostitui��o. A primeira � a pr�pria constitui��o da mulher. Segue-se o erotismo, e a este prop�sito cita o c�lebre verso de Hugo: Oh! n'insultez jamais une femme qui tombe! Vem depois a educa��o, e explica que a educa��o � prefer�vel � instru��o... O luxo e a vaidade s�o as causas imediatas. A escravid�o foi uma. Os internatos, a leitura de romances, os costumes, a mancebia, os casamentos contrariados e desproporcionados, a necessidade, a paix�o e os D. Juans. De passagem, historiou a prostitui��o no Rio de Janeiro, desde D. Jo�o VI, passando pelos bailes do Rachado, do Pharoux, do Rocambole e outros. Nomeando muitas ruas degradadas pela vida airada, repetia naturalmente muitos nomes de santos, dando lugar a este aparte do Sr. Duarte Teixeira: �Arre! quanto santo!�

Vieram finalmente os rem�dios, que s�o quatro: a educa��o da mulher, a proibi��o legal da mancebia, o div�rcio e a regulamenta��o da prostitui��o p�blica. Toda essa parte � serena. H� imagens tocantes. �No p�rtico da humanidade a mulher aparece como a estrela do amor�. Depois, vem o projeto, que cont�m cinco artigos. Ser� aprovado? H� de ser. Ser� cumprido?

28 de outubro

O momento � japon�s. Vede o contraste daquele povo que, enquanto acorda o mundo com o an�ncio de uma nova pot�ncia militar e pol�tica, manda um comiss�rio ver as terras de S�o Paulo, para c� estabelecer alguns dos seus bra�os de paz. Esse comiss�rio, que se chama Sho  Nemotre, escreveu uma carta ao Correio Paulistano dizendo as impress�es que leva daquela parte do Brasil. �Levo, da minha visita ao Estado de S. Paulo, as impress�es mais favor�veis, e n�o vacilo em afirmar que acho esta regi�o uma das mais belas e ricas do mundo. Pela minha visita posso afian�ar que o Brasil e o Jap�o far�o feliz amizade, a emigra��o ser� em breve encetada e o com�rcio ser� reciprocamente grande.�

Ao mesmo tempo, o Sr. Dr. Lacerda Werneck, um dos nossos lavradores esclarecidos e competentes, acaba de publicar um artigo comemorando os esfor�os empregados para a pr�xima vinda de trabalhadores japoneses. �� do Jap�o (diz ele) que nos h� de vir a restaura��o da nossa lavoura.� S. Exa. fala com entusiasmo daquela na��o civilizada e pr�spera, e das suas recentes vit�rias sobre a China.

N�o esque�amos a circunst�ncia de vir do Jap�o o novo ministro italiano, segundo li na Not�cia de quinta-feira, fato que, se � intencional, mostra da parte do rei Humberto a inten��o de ser agrad�vel ao nosso pa�s, e, se � casual, prova o que eu dizia a princ�pio e, repito, que o momento � japon�s. Tamb�m eu creio nas excel�ncias japonesas, e daria todos os tratados de Tien-Tsin por um s� de Yokohama.

N�o sou nenhuma alma ingrata que negue ao chim os seus poucos m�ritos; confesso-os, e chego a aplaudir alguns. O maior deles � o ch�, merecimento grande, que vale ainda mais que a filosofia e a porcelana. E o maior valor da porcelana, para mim, � justamente servir de ve�culo ao ch�. O ch� � o �nico parceiro digno do caf�. Temos tentado fazer com que o primeiro venha plantar o segundo, e ainda me lembra a primeira entrada de chins, vestidos de azul, que deram para vender pescado, com uma vara ao ombro e dois cestos pendentes, � o mesmo aparelho dos atuais peixeiros italianos. Agora mesmo h� fazendas que adotaram o chim, e, n�o h� muitas semanas, vi aqui uns tr�s que pareciam alegres, � por boca do int�rprete, � verdade, e das tradu��es faladas se pode dizer o mesmo que das escritas, que as h� lindas e p�rfidas. De resto, que nos importa a alegria ou a tristeza dos chins?

A tristeza � natural que a tenham agora, se acaso o int�rprete lhes l� os jornais; mas � prov�vel que n�o os leia. Melhor � que ignorem e trabalhem. Antes plantar caf� no Brasil que �plantar figueira� na Cor�ia, perseguidos pelo marechal Yamagata. J� este nome � c�lebre! J� o almirante Ito � famoso! Do primeiro disse a Gazeta que � o Moltke do Jap�o. Um e outro v�o dando galhardamente o recado que a consci�ncia nacional lhes encomendou para fins hist�ricos.

Aqui, h� anos, o mundo inventou uma coisa chamada japonismo. Nem foi precisamente o mundo, mas os irm�os de Goncourt, que assim o declaram e eu acredito, n�o tendo raz�o para duvidar da afirma��o. O Journal des Goncourt est� cheio de japonismo. Uma p�gina de 31 de mar�o de 1875 fala do �grande movimento japon�s�, e acrescenta, por m�o de Edmundo: �a �t� tout d'abord quelques originaux, comme mon fr�re et moi...

Esse �grande movimento japon�s� n�o era o que parece � primeira vista; reduzia-se a colecionar objetos do Jap�o, sedas, armas, vasos, figurinhas, brinquedos. Espalhou-se o japonismo. N�s o tivemos e o temos. Esta mesma semana fez-se um grande leil�o na rua do Senador Vergueiro, em que houve larga c�pia de sedas e m�veis japoneses, dizem-me que bonitos. Muitos os possuem e de gosto. Chegamos (aqui ao menos) a uma coisa, que n�o sei se defina bem chamando-lhe a banalidade do raro.

Mas, enquanto os irm�os de Goncourt inventaram o japonismo, que faria o Jap�o, propriamente dito? Inventava-se a si mesmo. Forjava a espada que um dia viria p�r na balan�a dos destinos da �sia. Enquanto uns coligiam as suas galantarias, ele armava as coura�as e for�as modernas e os aparelhos liberais. Mudava a forma de governo e apurava os costumes, decretava uma constitui��o, duas c�maras, um minist�rio como outras na��es cultas vieram fazendo desde a Revolu��o Francesa, cuja alma era mais ou menos introduzida em corpos de fei��o brit�nica. Vimos agora mesmo que o Mikado, abertas as c�maras, proferia a fala do trono, e ouvia delas uma resposta, � maneira dos comuns de Inglaterra, mas uma resposta de todos os diabos, mais para o resto do mundo que para o pr�prio governo. Este acaba de recusar interven��es da Europa, nega armist�cios, n�o quer padrinhos nem m�dicos naquele duelo, e parece que h� de acabar por dizer e fazer coisas mais duras.

S�o dois inimigos velhos; mas n�o basta que o �dio seja velho, � de mister que seja fecundo, capaz e superior. Ora, � tal o desprezo que os japoneses t�m aos chins, que a vit�ria deles n�o pode oferecer d�vida alguma. Os chins n�o acabar�o logo, nem t�o cedo, � n�o se desfazem tantos milh�es de haveres como se despacha um prato de arroz com dois pauzinhos, � mas, ainda que se fossem embora logo e de vez, como o ch� n�o � s� dos chins, eu continuaria a tomar a minha ch�vena, como um simples russo, e as coisas ficariam no mesmo lugar.

O momento � japon�s. Que esses bra�os venham lavrar a terra, e plantar, n�o s� o caf�, mas tamb�m o ch�, se quiserem. Se forem muitos e trouxerem os seus jornais, livros e revistas de clubes, e at� as suas mo�as, alguma necessidade haver� de aprender a l�ngua deles. O padre Lucena escreveu, h� tr�s s�culos, que � l�ngua superior � latina, e tal opini�o, em boca de padre, vale por vinte academias. Tenho pena de n�o estar em idade de a aprender tamb�m. Estudaria com o pr�prio comiss�rio Sho Nemotre, que esteve agora em S. Paulo; ensinar-lhe-ia a nossa l�ngua, e chegar�amos � convic��o de que o almirante Ito � descendente de uma fam�lia de Itu, e que os japoneses foram os primeiros povoadores do Brasil, tanto que aqui deixaram a japona. Ruim trocadilho; mas o melhor escrito deve parecer-se com a vida, e a vida �, muitas vezes, um trocadilho ordin�rio.

4 de novembro

� verdade trivial que, quando o rumor � grande, perdem-se naturalmente as vozes pequenas. Foi o que se deu esta semana.

A semana foi toda de combatividade, para falar como os frenologistas. Tudo esteve na tela da discuss�o, desde a luz este�rica at� a demora dos processos, desde as carnes verdes at� a liberdade de cabotagem. De algumas quest�es, como a da luz este�rica, sei apenas que, se a lesse, n�o estaria vivo. A das carnes verdes � propriamente de n�s todos; mas a disposi��o em que me acho, de passar a vegetariano, desinteressa-me da solu��o, e tanto faz que haja monop�lio, como liberdade. A liberdade � um mist�rio, escreveu Montaigne, e eu acrescento que o monop�lio � outro mist�rio, e, se tudo s�o mist�rios neste mundo, como no outro, fiquem-se com os seus mist�rios, que eu me vou aos meus espinafres.

De resto, nos neg�cios que n�o interessam diretamente, n�o � meu costume perder o tempo que posso empregar em coisas de obriga��o. � assim que aprovo e aprovarei sempre uma passagem que li na ata da reuni�o de comerciante, que se fez na Intend�ncia Municipal, para tratar da crise de transportes. Orando, o Sr. Ant�nio Wernek observou que havia pouca gente na sala. Respondeu-lhe um dos presentes, em aparte: �Eu, se n�o fosse o pedido de um amigo, n�o estaria aqui�. Digo que aprovo, mas com restri��es, porque n�o h� amigos que me arranquem de casa, para ir cuidar dos seus neg�cios. Os amigos t�m outros fins, se n�o amigos, se n�o s�o mandados pelo diabo para tentar um homem que est� quieto.

N�o obstante a pequena concorr�ncia, parece que o rumor do debate foi grande, pouco menor que o da quest�o de cabotagem na C�mara dos Deputados. Mas, para mim, em mat�ria de navega��o, tudo � navegar, tudo � encomendar a alma a Deus e ao piloto. A melhor navega��o � ainda a daquelas conchas cor de neve, com uma ondina dentro, olhos cor do c�u, tran�as cor de sol, toda em verso e toda no aconchego do gabinete. Mormente em dias de chuva, como os desta semana, � navega��o excelente, e aqui a tive, em primeiro lugar com o nosso Coelho Neto, que ali�s n�o falou em verso, nem trouxe daquelas figuras do Norte ou do Levante, ainda a musa costuma lev�-lo, vestido, ora de n�voas, ora de sol. N�o foi o Coelho Neto das Baladilhas, mas o dos Bilhetes Postais (dois livros em um ano), por antonom�sia Anselmo Ribas. P�ginas de humour e de fantasia, em que a imagina��o e o sentimento se casam ainda uma vez, ante esse pretor de sua elei��o. Derramados na imprensa, pareciam esquecidos; coligidos no livro, v�-se que deviam ser lembrados e relembrados. A segunda concha...

A segunda concha trouxe deveras uma ondina, uma senhora, e veio cheia de versos, os Versos, de J�lia Cortines. Esta poetisa de temperamento e de verdade disse-me coisas pensadas e sentidas, em uma linguagem inteiramente pessoal e forte. Que poetisa � esta? L�cio de Mendon�a � que apresenta o livro em um pref�cio necess�rio, n�o s� para dar-nos mais uma p�gina vibrante de simpatia, mas ainda para convidar essa multid�o de distra�dos a deter-se um pouco a ler. Lede o livro; h� nele uma voca��o e uma alma, e n�o � sem raz�o que J�lia Cortines traduz � p�g. 94, um canto de Leopardi. A alma desta mo�a tem uma corda dorida de Leopardi. A dor � velha; o talento � que a faz nova, e aqui a achareis nov�ssima. J�lia Cortines vem sentar-se ao p� de Zalina Rolim, outra poetisa de verdade, que sabe rimar os seus sentimentos com arte fina, delicada e pura. O Cora��o, livro desta outra mo�a, terno, a espa�os tristes, mas � menos amargo que o daquela; n�o tem os mesmos desesperos...

Eia! foge, foge, poesia amiga, basta de recordar as horas de ontem e de anteontem. A culpa foi da C�mara dos Deputados, com a sua navega��o de cabotagem, que me fez falar da tua concha eterna, para a qual tudo s�o mares largos e n�o h� leis nem Constitui��es que vinguem. Anda, vai, que o cisne te leve �gua fora com as tuas h�spedes novas e nossas.

Voltemos ao que eu dizia do rumor grande, que faz morrer as vozes pequenas. N�o ouviste decerto uma dessas vozes discretas, mas eloq�entes; n�o leste a puni��o de tr�s j�queis. Um, por nome Jos� Nogueira, n�o disputou a corrida com �nimo de ganhar; foi suspenso por tr�s meses. Outro, H. Cousins, �atrapalhou a carreira ao cavalo S�lvio�; teve a multa de quinhentos mil-r�is. Outro, finalmente, Hor�cio Perazzo, foi suspenso por seis meses, porque, al�m de n�o disputar a corrida com �nimo de ganhar, ofendeu com a espora uma �gua.

Estes castigos encheram-me de espanto, n�o que os ache duros, nem injustos; creio que sejam merecidos, visto o delito, que � grave. Os cap�tulos da acusa��o s�o tais, que nenhum esp�rito reto achar� defesa para eles. O meu assombro vem de que eu considerava o j�quei parte integrante do cavalo. Cuidei que, lan�ados na corrida, formavam uma s� pessoa, moral e f�sica, um lutador �nico. N�o supunha que as duas vontades se dividissem, a ponto de uma correr com �nimo de ganhar a palma, e outra de a perder; menos ainda que o complemento humano de um cavalo embara�ava a marcha de outro cavalo, e muito menos que se lembrasse de ofender uma �gua com a espora. Se os animais fossem cartas, em vez de cavalos, dir-se-ia que os homens furtavam no jogo.

Quinhentos mil-r�is de multa! Pelas asas do P�gaso! devem ser ricos, esses funcion�rios. Tr�s e seis meses de suspens�o! Como sustentar�o agora as fam�lias, se as t�m, ou a si mesmos, que tamb�m comem? N�o ir�o empregar-se na Intend�ncia Municipal, onde a demora dos ordenados faz presumir que os j�queis do expediente andam suspensos por a��es semelhantes. N�o h�o de ir puxar carro�a. Voca��o teatral n�o creio que possuam. Se s�o ricos, bem; mas, ent�o, por que � que n�o fundaram, h� dois ou tr�s anos, uma sociedade banc�ria, ou de outra esp�cie, onde podiam agora atrapalhar a marcha dos outros cavalos, esporear as �guas alheias, e, em caso de necessidade, correr sem �nimo de ganhar a partida? Este �ltimo ponto n�o seria comum, antes rar�ssimo; mas basta que fosse poss�vel. Nem � outra a regra crist�, que manda perder a terra para ganhar o c�u. Sem contar que n�o haveria suspens�es nem multas.

11 de novembro

A antiguidade cerca-me por todos os lados. E n�o me dou mal com isso. H� nela um aroma que, ainda aplicado a coisas modernas, como que lhes toca a natureza. Os bandidos da atual Gr�cia, por exemplo, t�m melhor sabor que o clavinoteiros da Bahia. Quando a gente l� que alguns sujeitos foram estripados na Tess�lia ou Maratona, n�o sabe se l� um jornal ou Plutarco. N�o sucede o mesmo com a comarca de Ilh�us. Os gatunos de Atenas levam o dinheiro e o rel�gio, mas em nome de Homero. Verdadeiramente n�o s�o furtos, s�o reminisc�ncias cl�ssicas.

Quinta-feira um telegrama de Londres noticiou que acabava de ser publicada uma vers�o inglesa da Eneida, por Gladstone. Aqui h� antigo e velho. N�o � o caso do Sr. Zama, que, para escrever de capit�es, foi busc�-los � antiguidade, e aqui no-los deu h� duas semanas; o Sr. Zama � relativamente mo�o. Gladstone � velho e teima em n�o envelhecer. � octogen�rio, podia contentar-se com a doce carreira de macr�bio e s� vir � imprensa quando fosse para o cemit�rio. N�o quer; nem ele, nem Verdi. Um faz �peras, outro saiu do parlamento com uma catarata, operou a catarata e publicou a Eneida em ingl�s, para mostrar aos ingleses como Virg�lio escreveria em ingl�s, se fosse ingl�s. E n�o ser� ingl�s Virg�lio?

Como se n�o bastasse essa revivesc�ncia antiga, e mais o livro do Sr. Zama, parece-me Carlos Dias com os Cen�rios, um banho enorme da antiguidade. J� � bom que um livro responda ao t�tulo, e � o caso deste, em que os cen�rios s�o cen�rios, sem ponta de drama, ou raramente. Que levou este mo�o de vinte anos ao gosto da antiguidade? Diz ele, na p�gina �ltima, que foi uma mulher; eu, antes de ler a �ltima p�gina, cuidei que era simples efeito de leitura, com extraordin�ria tend�ncia natural. Leconte de Lisle e Flaubert lhe ter�o dado a ocasi�o de ir �s grandezas mortas, e a Profiss�o de F�, no desd�m dos modernos, faz lembrar o soneto do poeta rom�ntico.

Mas n�o se trata aqui da antiguidade simples, her�ica ou tr�gica, tal como a achamos nas p�ginas de Homero ou S�focles. A antiguidade que este mo�o de talento prefere, � a complicada, requintada ou decadente, os grandes quadros de luxo e de lux�ria, o enorme, o assombroso, o babil�nico. H� muitas mulheres neste livro, e de toda casta, e de v�ria forma. Pede-lhe vigor, pede-lhe calor e colorido, ach�-los-�s. N�o lhe pe�as, � ao seu Nero, por exemplo, � a filosofia em que Hamerling envolve a vida e a morte do imperador. Este grande poeta deu � farta daqueles quadros lascivos ou terr�veis, em que a sua imagina��o se compraz; mas, corre por todo o poema um fluido interior, a ironia final do C�sar sai de envolta com o sentimento da realidade �ltima: �O desejo da morte acabou a minha insaci�vel sede da vida�.

Ao fechar o livro dos Cen�rios, disse comigo: �Bem, a antiguidade acabou�. � �N�o acabou, bradou um jornal; aqui est� uma nova descoberta, uma cole��o recente de papiros gregos. J� est�o discriminados cinco mil�. � �Cinco mil!� pulei eu. E o jornal, com bonomia: �Cinco mil, por ora; dizem coisas interessantes da vida comum dos gregos, h� entre eles uma par�dia da Il�ada, uma novela, explica��es de um discurso de Dem�stenes... Pertence tudo ao museu de Berlim�.

� Basta, � muita antiguidade; venhamos aos modernos.

� Perd�o, acudiu outra folha, a Fran�a tamb�m descobriu agora alguma coisa para competir com a rival germ�nica; achou em Delos duas est�tuas de Apolo. Mais Apolos. Puro m�rmore. Achou tamb�m paredes de casas antigas, cuja pintura parece de ontem. Os assuntos s�o mitol�gicos ou dom�sticos, e servem...

� Basta!

� N�o basta; Babil�nia tamb�m � gente, insinua uma gazeta; Babil�nia, em que tanta coisa se tem descoberto, revelou agora uma vasta sala atulhada de ret�bulos inscritos... Coisas preciosas! j� est�o com a Inglaterra, a Fran�a, a Alemanha e os Estados Unidos da Am�rica. Sim; n�o � � toa que estes americanos s�o ingleses de origem. T�m o gosto da antiguidade; e, como inventam telefone e outros milagres, podem pagar caro essas rel�quias. H� ainda...

Sacudi fora os jornais e cheguei � janela. A antiguidade � boa, mas � preciso descansar um pouco e respirar ares modernos. Reconheci ent�o que tudo hoje me anda impregnado do antigo e, que, por mais que busque o vivo e o moderno, o antigo � que me cai nas m�os. Quando n�o � o antigo, � o velho, Gladstone substitui Virg�lio. A comiss�o uruguaia que a� est�, trazendo medalhas comemorativas da campanha do Paraguai, n�o sendo propriamente antiga, fala de coisas velhas aos mo�os. Campanha do Paraguai! Mas ent�o, houve alguma campanha do Paraguai? Onde fica o Paraguai? Os que j� forem entrados na hist�ria e na geografia, poder�o descrever essa guerra, quase t�o bem como a de Jugurta. Faltar-lhes-�, por�m, a sensa��o do tempo.

Oh! a sensa��o do tempo! A vista dos soldados que entravam e sa�am de semana em semana, de m�s em m�s, a �nsia das not�cias, a leitura dos feitos her�icos, trazidos de repente por um paquete ou um transporte de guerra... N�o t�nhamos ainda este cabo telegr�fico, instrumento destinado a amesquinhar tudo, a dividir as novidades em talhadas finas, poucas e breves. Naquele tempo as batalhas vinham por inteiro, com as bandeiras tomadas, os mortos e feridos, n�mero de prisioneiros, nomes dos her�is do dia, as pr�prias partes oficiais. Uma vida intensa de cinco anos. J� l� vai um quarto de s�culo. Os que ainda mamavam quando Os�rio ganhava a grande batalha, podem aplaudi-lo amanh� revivido no bronze, mas n�o ter�o o sentimento exato daqueles dias...

18 de novembro

Uma semana que inaugura na segunda-feira uma est�tua e na quinta um governo, que � qualquer dessas outras semanas que se despacham brincando. Isto em princ�pio; agora, se atenderdes � solenidade especial dos dois atos, � significa��o de cada um deles, � multid�o de gente que concorreu a ambos, chegareis � conclus�o de que tais sucessos, n�o cabem numa estreita cr�nica. Um mestre de prosa, autor de narrativas lindas, curtas e duradouras, confessou um dia que o que mais apreciava na hist�ria, eram as anedotas. N�o discuto a confiss�o; digo s� que, aplicada a este of�cio de cronista, � mais que verdadeira. N�o � para aqui que se fizeram as generaliza��es, nem os grandes fatos p�blicos. Esta �, no banquete dos acontecimentos, a mesa dos meninos.

J� a imprensa, por seus editoriais, narrou e comentou largamente os dois acontecimentos. Os�rio foi revivido, depois de o ser no bronze, e Bernardelli glorificado pela grandeza e perfei��o com que perpetuou a figura do her�i. Quando � posse do Sr. presidente da Rep�blica, as manifesta��es de entusiasmo do povo, e as esperan�as dessa primeira transmiss�o do poder, por ordem natural e pac�fica, foram registradas na imprensa di�ria, � espera que o sejam devidamente no livro. Nem foram esquecidos os servi�os reais daquele que ora deixou o poder, para repousar das fadigas de dois longos anos de luta e de trabalho.

N�o nego que um pouco de filosofia possa ter entrada nesta coluna, contanto que seja leve e ridente. As sensa��es tamb�m podem ser contadas, se n�o cansarem muito pela extens�o ou pela mat�ria; para n�o ir mais longe, o que se deu comigo, por ocasi�o da posse, no Senado. Quinta-feira, quando ali cheguei, j� achei mais convidados que congressistas, e mais pulm�es que ar respir�vel. Na entrada da sala das sess�es, fronteira � mesa da presid�ncia, muitas senhoras iam invadindo pouco a pouco a mesa da presid�ncia, muitas senhoras iam invadindo pouco a pouco o espa�o at� conquist�-lo de todo. Era novo; mais novo ainda a entrada de uma senhora, que foi sentar-se na cadeira do Bar�o de S�o Louren�o. Ao menos, o lugar era o mesmo; a cadeira pode ser que fosse outra. Da� a pouco, alguns deputados e senadores ofereciam �s senhoras as suas poltronas, e todos aqueles vestidos claros vieram alternar com as casacas pretas.

Quando isto se deu, tive uma vis�o do passado, uma daquelas vis�es chamadas imperiais (duas por ano), em que o regimento nunca perdia os seus direitos. Tudo era medido, regrado e solit�rio. Faltava agora tudo, at� a figura do porteiro, que nesses dias solenes cal�ava as meias pretas e os sapatos de fivela, enfiava os cal��es, e punha aos ombros a capa. Os senadores, como tinham farda especial, vinham todos com ela, exceto algum padre, que trazia a farda da igreja. O Bar�o de S�o Louren�o se ali ressuscitasse, compreenderia, ao aspecto da sala, que as institui��es eram outras, t�o outras como provavelmente a sua cadeira. Aquela gente numerosa, rumorosa e mesclada esperava algu�m, que n�o era o imperador. Certo, eu amo a regra e dou pasto � ordem. Mas n�o � s� na poesia que souvent un beau d�sordre est un effet de l'art. Nos atos p�blicos tamb�m; aquela mistura de damas e cavalheiros de legisladores e convidados, n�o das institui��es, mas do momento, exprimia um �estado da alma� popular. N�o seria propriamente um efeito da arte, concordo, e sim da natureza; mas que � a natureza sen�o uma arte anterior?

Gambetta achava que a Rep�blica Francesa �n�o tinha mulheres�. A nossa, ao que vi outro dia, tem boa c�pia delas. Elegantes, cumpre diz�-lo, e t�o cheias de ardor, que foram as primeiras ou das primeiras pessoas que deram palmas, quando entrou o presidente da Rep�blica. Vede a nossa felicidade: sentadas nas pr�prias cadeiras do legislador, nenhuma delas pensava ocupar, nem pensa ainda em ocup�-las � for�a de votos.

N�o as teremos t�o cedo em clubes, pedindo direitos pol�ticos. S�o ainda caseiras como as antigas romanas, e, se nem todas fiam l�, muitas a vestem, e vestem bem, sem pensar em construir ou destruir minist�rios.

N�s � que fazemos minist�rios, e, se j� os n�o fazemos nas C�maras, h� sempre a imprensa, por onde se podem dar indica��es ao chefe de Estado. O velho costume de recomendar nomes, por meio de listas publicadas a pedido nos jornais, ressuscitou agora, de onde se deve concluir que n�o havia morrido. Vimos listas impressas, desde muito antes da posse, a maior parte com algum nome absolutamente desconhecido. Esta particularidade deu-me que pensar. Por que esses colaboradores an�nimos do Poder Executivo? E por que, entre nomes sabidos, um que se n�o sabe a quem pertence? Resolvi a primeira parte da quest�o, depois de algum esfor�o. A segunda foi mais dif�cil, mas n�o imposs�vel. N�o h� imposs�veis.

O que me trouxe a chave do enigma, foi a pr�pria elei��o presidencial. As urnas deram cerca de trezentos mil votos ao Sr. Dr. Prudente de Morais, muitas centenas a alguns nomes de significa��o republicana ou mon�rquica, algumas dezenas a outros, seguindo-se uma multid�o de nomes sabidos ou pouco sabidos, que apenas puderam contar um voto. Quando se apurou a elei��o, parei diante do problema. Que queria dizer essa multid�o de cidad�os com um voto cada um? A raz�o e a mem�ria explicaram-me o caso. A mem�ria repetiu-me a palavra que ouvi, h� ano, a algu�m, eleitor e organizador de uma lista de candidatos � deputa��o. Vendo-lhe a lista, composta de nomes conhecidos, exceto um, perguntei quem era este.

� N�o � candidato, disse-me ele, n�o ter� mais de vinte a vinte e cinco votos, mas � um companheiro aqui do bairro; queremos fazer-lhe esta manifesta��ozinha de amigos.

Conclu� o que o leitor j� percebeu, isto �, que a amizade � engenhosa, e a gratid�o infinita, podendo ir do pudim ao voto. O voto, pela sua natureza pol�tica, � ainda mais nobre que o pudim, e deve ser mais saboroso, pelo fato de obrigar � impress�o do nome votado. Guarda-se a ata eleitoral, que n�o ter� nunca outono. Toda gl�ria � primavera.

Toda gl�ria � primavera. A est�tua de Os�rio vinha naturalmente depois desta m�xima, mas o pulo � t�o grande, e o papel vai acabando com tal presteza, que o melhor � n�o tornar ao assunto. Fique a est�tua com os seus dois colaboradores, o escultor e o soldado; eu contento-me em contempl�-la e passar, e a lembrar-me das gera��es futuras que n�o h�o de contemplar como eu.

25 de novembro

V�o acabando as festas uruguaias. Daqui a pouco, amanh�, n�o haver� mais que lembran�as das lumin�rias, m�sicas, flores, dan�as, corridas, passeios, e tantas outras coisas que alegraram por alguns dias a cidade. Hoje � a regata de Botafogo, ontem foi o baile do Cassino, anteontem foi a festa do Corcovado... N�o escrevo pic-nic, por ter a respeito deste voc�bulo duas d�vidas, uma maior outra menor, como diziam os antigos pregoeiros de pra�as judiciais

Aqui est� a maior. Sabe-se que esta palavra veio-nos dos franceses que escrevem pique-nique. Como � que n�s, que temos o gosto de ado�ar a pron�ncia e muitas vezes alongar a palavra, adotamos esta forma r�spida e breve: pic-nic! Eis a� um mist�rio, tanto mais profundo quanto que eu, quando era rapaz (anteontem, pouco mais ou menos), lia e escrevia pique-nique, � francesa. Que a forma pic-nic nos viesse de Portugal nos livros e correspond�ncias dos �ltimos anos sendo a forma que mais se ajusta � pron�ncia da nossa antiga metr�pole, � o que primeiro ocorre aos inadvertidos. Eu, sem negar que assim escrevam os �ltimos livros e correspond�ncias daquela origem, lembrei que Caldas Aulete adota pique-nique; resposta que n�o presta muito para o caso, mas n�o tenho outra � m�o.

N�o me digas, leitor esperto, que a palavra � de origem inglesa, mas que os ingleses escrevem pick-nick. Sabes muito bem que ela nos veio de Fran�a, onde lhe tiraram as cal�as londrinas, para vesti-la � moda de Paris, neste caso particular � a nossa pr�pria moda. Vede frac dos franceses. Usamos hoje esta forma, que � a original, n�s que t�nhamos adotado anteontem (era eu rapaz) a forma ado�ada de fraque.

A outra d�vida, a menor, quase n�o chega a ser d�vida, se refletirmos que as palavras mudam de significado com o andar do tempo ou quando passam de uma regi�o a outra. Assim que, pique-nique era aqui, banquete, ou como melhor nome haja, em que cada conviva entra com a sua quota. Quando um s� � que paga o pato e o resto, a coisa tinha outro nome. A palavra ficou significando, ao que parece, um banquete campestre.

Foi naturalmente para acabar com tais d�vidas que o Sr. Dr. Castro Lopes inventou a palavra convescote. O Sr. Dr. Castro Lopes � a nossa Academia Francesa. Esta, h� cerca de um m�s, admitiu no seu dicion�rio a palavra atualidade. Em v�o a pobre atualidade andou por livros e jornais, conversa��es e discursos; em v�o Littr� a incluiu no seu dicion�rio. A Academia n�o lhe deu ouvidos. S� quando uma esp�cie de sufr�gio universal decretou a express�o, � que ela canonizou. Donde se infere que o Sr. Castro Lopes, sendo a nossa Academia Francesa, � tamb�m o contr�rio dela. � a academia pela autoridade, � o contr�rio pelo m�todo. Longe de esperar que as palavras envelhe�am c� fora, ele as comp�e novas, com os elementos que tira da sua erudi��o, d�-lhes a b�n��o e manda-as por esse mundo. O mesmo paralelo se pode fazer entre ele e a Igreja Cat�lica. Igreja, tendo igual autoridade, procede como a academia, n�o inventa dogmas, define-os.

Convescote tem prosperado, posto n�o seja claro, � primeira vista, como engrossador, termo recente, de aplica��o pol�tica, expressivo que faz imagem, como dizem os franceses. � certo que a clareza deste vem do verbo donde saiu. Quem o inventou? Talvez algum c�tico, por horas mortas, relembrando uma prociss�o qualquer; mas tamb�m pode ser obra de algum religion�rio, aborrecido com ver aumentar o n�mero de fi�is. As religi�es pol�ticas diferem das outras em que os fi�is da primeira hora n�o gostam de ver fi�is das outras horas. Parecem-lhes inimigos; � verdade que as convers�es, tendo os seus motivos na consci�ncia, escapam � verifica��o humana e � poss�vel que um homem se ache, repentinamente, cat�lico menos pelos dogmas que pelas galhetas. As galhetas fazem engrossar muito. Mas fosse quem fosse o inventor do voc�bulo, certo � que este, apesar de an�nimo e popular, ou por isso mesmo, espalhou-se e prosperou; n�o admirar� que fique na l�ngua, e se houver, a� por 1950, uma Academia Brasileira, pode bem ser que venha a inclu�-lo no seu dicion�rio. O Sr. Dr. Castro Lopes poderia recomend�-lo a um alto destino.

Oh! se o nosso venerando latinista me desse uma palavra que, substituindo mentira, n�o fosse inverdade! Creio que esta segunda palavra nasceu no parlamento, obra de algum orador indignado e cauteloso, que, n�o querendo ir at� a mentira, achou que inexatid�o era frouxa demais. N�o nego perfei��o � inverdade, nem eufonia, nem coisa nenhuma. Digo s� que me � antip�tica. A simpatia � o meu l�xico. A raz�o por que eu nunca explodo, nem gosto que os outros explodam, n�o � porque este verbo n�o seja elegante, belo, sonoro, e principalmente necess�rio; � porque ele n�o vai com o meu cora��o. Le coeur a des raisons que la raison ne conna�t pas, disse um moralista.

A outra palavra, mentira, essa � simp�tica, mas faltam-lhe maneiras e anda sempre gr�vida de tumultos. H� cerca de quinze dias, em sess�o do Conselho Municipal, caiu da boca de um intendente no rosto de outro, e foi uma agita��o tal, que obrigou o presidente a suspender os trabalhos por alguns minutos. Reaberta a sess�o, o presidente pediu aos seus colegas que discutissem com a maior modera��o; pedido excessivo, eu contentar-me-ia com a menor, era bastante para n�o ir t�o longe.

De resto, a agita��o � sinal de vida e melhor � que o Conselho se agite que durma. Esta semana o caso da bandeira, que � um dos mais graciosos, agitou bastante a alma municipal. Se o leste, � in�til contar; se o n�o leste, � dif�cil. Refiro-me � bandeira que apareceu hasteada na sala das sess�es do Conselho, em dia de gala, sem se saber o que era nem quem a tinha ali posto. Pelo debate viu-se que a bandeira era positivista e que um empregado superior a havia hasteado, depois de consentir nisso o presidente. O presidente explicou-se. Um intendente prop�s que a bandeira fosse recolhida ao Museu Nacional, por ser �obra de algum merecimento�. Outro chamou-lhe trapo. O positivismo foi atacado. Crescendo o debate, alargou-se o assunto e as origens da revolu��o do Rio Grande do Sul foram achadas no positivismo, bem como a est�tua de Monroe e um epis�dio do asilo de mendicidade.

Se assim �, explica-se o apostolado antipositivista, fundado esta semana, e n�o pode haver maior alegria para o apostolado positivista; n�o se faz guerra a fantasmas, a n�o ser no livro de Cervantes. Mas que pensa de tudo isto um habitante do planeta Marte, que est� espiando c� para baixo com grandes olhos ir�nicos?

A bandeira n�o teve destino, foi a conclus�o de tudo, e n�o ser de admirar que torne a aparecer no primeiro dia de gala, para dar lugar a nova discuss�o, � coisa util�ssima, pois da discuss�o nasce a verdade. Para mim, a bandeira caiu do c�u. Sem ela esta p�gina que come�ou pedante, acabaria ainda mais pedante.

2 de dezembro

Quando me leres, poucas horas ter�o passado depois da tua volta do Cassino. Vieste da festa Alencar, � domingo, n�o tens de ir aos teu neg�cios, ou aos teus passeios, se �s mulher, como me pareces. Os teus dedos n�o s�o de homem. Mas, homem ou mulher, quem quer que sejas tu, se foste ao Cassino, pensa que fizeste uma boa obra, e, se n�o foste, pensa em Alencar, que � ainda uma obra excelente. Ver�s em breve erguida a est�tua. Uma est�tua por alguns livros!

Olha, tens um bom meio de examinar se o homem vale o monumento, etc. � domingo, l� alguns dos tais livros. Ou ent�o, se queres uma boa id�ia dele, pega no livro de Araripe J�nior, estudo imparcial e completo, publicado agora em segunda edi��o. Araripe J�nior nasceu para a cr�tica; sabe ver claro e dizer bem. � o autor de Greg�rio de Matos, creio que basta. Se j� conheces Jos� de Alencar, n�o perdes nada em rel�-lo; ganha-se sempre em reler o que merece, acrescendo que achar�s aqui um modo de amar o romancista, vendo-lhe distintamente todas as fei��es, as belas e as menos belas, que � perp�tuo, e o que � perec�vel. Ao cabo, fica sempre uma est�tua do chefe dos chefes.

Queres mais? Abre este outro livro recente, Estudos Brasileiros, de Jos� Ver�ssimo. A� tens um cap�tulo inteiro sobre Alencar, com particularidade de tratar justamente da cerim�nia da primeira pedra do monumento, e, a prop�sito dele, da figura do nosso grande romancista nacional. � a segunda s�rie de estudos que Jos� Ver�ssimo publica, e cumpre o que diz no t�tulo; � brasileiro, puro brasileiro. Da compet�ncia dele nada direi que n�o saibas: � conhecida e reconhecida. H� l� certo n�mero de p�ginas que mostram que h� nele muita benevol�ncia. N�o digo quais sejam: adivinha-se o enigma lendo o livro; se, ainda lendo, n�o o decifrares, � que me n�o conheces.

E assim, relendo as cr�ticas, relendo os romances, ganhar�s o teu domingo, livre das outras lembran�as, como desta ruim semana. Guerra e peste; n�o digo fome, para n�o mentir, mas os pre�os das coisas s�o j� t�o atrevidos, que a gente come para n�o morrer.

A peste, essa anda perto, como espiando a gente. Oh! gr�o de areia de Cromwell, que vales tu, ao p� do bacilo v�rgula? Qualquer Cromwell de hoje, com infinitamente menos que um gr�o de areia cai do mais alto poder da terra no fundo da maior cova. Francamente, prefiro os tempos em que as doen�as, se n�o eram maleitas, barrigas d'�gua, ou espinhela ca�da, tinham causas metaf�sicas e curavam-se com rezas e sangrias, benzimentos e sanguessugas. A descoberta do bacilo foi um desastre. Antigamente, adoecia-se; hoje mata-se primeiro o bacilo de doen�a, depois adoece-se, e o resto da vida d� apenas para morrer.

Tantas pessoas t�m j� visto o bacilo v�rgula e toda a mais pontua��o bacilar, que n�o se me d� dizer que o vi tamb�m. Come�a a ser distin��o. Um homem capaz n�o pode j� existir sem ter visto, uma vez que seja, essa extraordin�ria criatura. O bacilo v�rgula � a Sarah Bernhardt da patologia, o cisne preto dos lagos intestinais, o bicho de sete cabe�as, n�o t�o raro, nem t�o fabuloso. Quero crer que todas essas v�rgulas que vou deitando entre as ora��es, n�o s�o mais que bacilos, j� sem veneno, temperando assim a patologia com a ortografia, � ou vice-versa.

Quanto � guerra, houve apenas duas noites de combate, investidas a quart�is e corpos de guarda, nacionais contra policiais, gregos contra troianos, tudo por causa de uma Helena, que se n�o sabe quem seja. Ouvi ou li que foi por causa de um chap�u. � pouco; mas lembremo-nos que assim como o bacilo v�rgula substituiu o gr�o de areia de Cromwell, assim o chap�u substitui a mulher, e tudo ir� diminuindo... Somos chegados �s coisas microsc�picas, n�o tardam as invis�veis, at� que venham as imposs�veis. Um chap�u de palhinha de It�lia deu para um vaudeville; este, de palha mais rude, deu para uma trag�dia. Tudo � chap�u.

N�o quero saber de assassinatos, nem de suic�dios, nem das longas hist�rias que eles trouxeram � hora da conversa��o; � sempre demais. Tamb�m n�o vi nem quero saber o que houve com as pernas de um pobre mo�o, no Catete, que ficaram embaixo de um bonde da Companhia Jardim Bot�nico. Ouvi que se perderam. N�o � a primeira pessoa a quem isto acontece, nem ser� a �ltima. A Companhia pode defender-se muito bem, citando Victor Hugo, que perdeu uma filha por desastre, e resignadamente comparou a cria��o a uma roda:

Que la cr�ation est une grande roue

Qui ne peut se mouvoir sans �craser quelqu'un.

A mesma coisa dir� a Companhia Jardim Bot�nico, em prosa ou verso, mas sempre a mesma coisa: � �Eu sou como a grande roda da cria��o, n�o posso andar sem esmagar alguma pessoa�. Compara��o en�rgica e verdadeira. A fatalidade do of�cio � que a leva a quebrar as pernas aos outros. O pessoal desta companhia � carinhoso, o hor�rio pontual, nenhum atropelo, nenhum descarrilamento, as ordens policiais contra os reboques s�o cumpridas t�o exatamente, que n�o h� cora��o bem formado que n�o chegue a entusiasmar-se. Se ainda vemos dois ou tr�s carros puxados por um el�trico, � porque a eletricidade atrai irresistivelmente, e os carros prendem-se uns aos outros; mas a administra��o estuda um plano que ponha termo a esse esc�ndalo das leis naturais.

Terras h� em que os casos, como os do Catete, s�o punidos com pris�o, indeniza��o e outras penas; mas para que mais penas, al�m das que a vida traz consigo? Demais, os processos s�o longos, n�o contando que a admir�vel institui��o do j�ri � � a melhor escola evang�lica destes arredores: �Quem estiver inocente, que lhe atire a primeira pedra!� exclama ele com o soberbo gesto de Jesus. E o r�u, seja de ferimento ou simples estelionato, � restitu�do ao of�cio de roda da cria��o.

O melhor � n�o punir nada. A consci�ncia � o mais cru dos chicotes. O dividendo � outro. Uma companhia de carris que reparta igualmente aleij�es ao p�blico e lucros a si mesma, ver� nestes o seu pr�prio castigo se � caso de castigo; se o n�o �, para que faz�-la padecer duas vezes?

N�o creio que o per�odo anterior esteja claro. Este vai sair menos claro ainda, visto que � dif�cil ser fiel aos princ�pios e n�o querer que o prefeito saia das urnas. A verdade, por�m, � que eu prefiro um prefeito nomeado a um prefeito eleito, � ao menos, por ora. Jos� Rodrigues, a quem consulto em certos casos, vai mais longe, entendendo que os pr�prios intendentes deviam ser nomeados. � homem de arrocho; o pai era saquarema.

Menos claro que tudo, � este per�odo final. Tem-se discutido se o Hosp�cio Nacional de Alienados deve ficar com o Estado ou tornar � Santa Casa de Miseric�rdia. Consultei a este respeito um doido, que me declarou chamar-se Duque do C�ucaso e da Crac�via, Conde Estel�rio, filho de Prometeu, etc., e a sua resposta foi esta:

� Se � verdade que o Hosp�cio foi levantado com o dinheiro de loterias e de t�tulos mobili�rios, que o Jos� Clemente chamava impostos sobre a vaidade, � evidente que o Hosp�cio deve ser entregue aos doidos, e eles que o administrem. O grande Erasmo (� Deus!) escreveu que andar atr�s da fortuna e de distin��es � uma esp�cie de loucura mansa; logo, a institui��o, fundada por doidos, deve ir aos doidos, � ao menos, por experi�ncia. � o que me parece! � o que parece ao grande pr�ncipe Estel�rio, bispo, episcopus, papam... O seu a seu dono.

9 de dezembro

Tudo tende � vacina. Depois da var�ola, a raiva; depois da raiva, a difteria; n�o tarda a vez do c�lera-morbo. O bacilo-v�rgula, que nos est� dando que fazer, passar� em breve do terr�vel mal que �, a uma simples cultura cient�fica, logo de amadores, at� ro�ar pela banalidade. Uma vez regulamentado, far� parte dos caf�s e confeitarias. Que digo? Entrar� nos c�digos de civilidade, oferecer-se-� �s visitas um c�lix de c�lera-morbo ou de outro qualquer licor. Os cavalheiros perguntar�o graciosamente �s damas: �V. Exa. j� tomou hoje o seu bacilo?� Far-se-�o trocadilhos.

� Que tal este v�rgula?

� Vale um ponto de admira��o!

Todas as mol�stias ir�o assim cedendo ao homem, n�o ficando � natureza outro recurso mais que reformar a patologia. N�o bastar�o guerras e desastres para abrir caminho �s gera��es futuras; e demais a guerra pode acabar tamb�m, e os pr�prios desastres, quem sabe? obedecer�o a uma lei, que se descobrir� e se emendar� algum dia. Sem desastres nem guerras, com as doen�as reduzidas, sem conventos, prolongada a velhice at� �s idades b�blicas, onde ir� parar este mundo? S� um grande carregamento, � doce m�e e amiga Natureza; s� um carregamento infinito de mol�stias novas.

Mas a vacina n�o se deve limitar ao corpo; � preciso aplic�-la � alma e aos costumes, come�ando na palavra e acabando no governo dos homens. J� a temos na palavra, ao menos, na palavra pol�tica. Gra�as �s culturas sucessivas, podemos hoje chamar bandido a um advers�rio, e, �s vezes, a um velho amigo, com quem tenhamos alguma pequena desintelig�ncia. Est� assentado que bandido � um divergente. Corja de bandidos � um grupo de pessoas que entende diversamente de outra um artigo da Constitui��o. Quando os bandidos s�o tamb�m infames, � que venceram as elei��es, ou legalmente, ou aproximativamente. Com tais culturas enrija-se a alma, poupam-se �dios, n�o se perde o apetite nem a considera��o. Antes do fim do s�culo, bandido valer� tanto como magro ou canhoto.

Assim tamb�m as opini�es. A vacina das opini�es � dif�cil, n�o como opera��o, mas como aceita��o do princ�pio. Diz-se, e com raz�o, que o micr�bio � sempre um mal; ora, a minha opini�o � um bem, logo... Erro, grande erro. A minha opini�o � um bem, de certo, mas a tua opini�o � um mal, e do veneno da tua � que eu me devo preservar, por meio de inje��es a tempo, a fim de que, se tiver a desgra�a de trocar a minha opini�o pela tua, n�o pade�a as terr�veis conseq��ncias que as id�ias detest�veis trazem sempre consigo. E porque n�o � s� a tua id�ia que � perversa, mas todas as outras, desde que eu me vacine de todas, estou apto a receb�-las sucessivamente, sem perigo, antes com lucro.

O bacilo zig-zag, causa da embriaguez... Mas para que ir mais longe? Conhecido o princ�pio, sabido que tudo deriva de um micr�bio, inclusive o v�cio e a virtude, obt�m-se pelo mesmo processo a elimina��o de tantos males. O boato tem sido descomposto de l�ngua e de pena, � um monstro, um inimigo p�blico, � o diabo, sem advertirem os autores de nomes t�o feios, que o boato � a cultura atenuada do acontecimento. Daqui em diante a hist�ria se far� com aux�lio da bacteriologia.

As elei��es, � uma das mais terr�veis enfermidades que podem atacar o organismo social, � perderam a viol�ncia, e dentro em pouco perder�o a pr�pria exist�ncia nesta cidade, gra�as � cultura do respectivo bacilo. Aposto que o leitor n�o sabe que tem de eleger no �ltimo domingo deste m�s os seus representantes municipais? N�o sabe. Se soubesse, j� andaria no trabalho da escolha do candidato, em reuni�es p�blicas, ouvindo pacientemente a todos que viessem dizer-lhe o que pensam e o que podem fazer. Quando menos, estaria lendo as circulares dos candidatos, cujos nomes andariam j� de boca em boca, desde dois e tr�s meses, ou apresentados por si mesmos, ou indicados por diret�rios.

Nem o leitor julgaria somente das id�ias e dos planos dos candidatos, conheceria igualmente do estilo e da linguagem deles. Sei que a circular n�o basta; pode ser obra de algum amigo, sabedor de gram�tica e de ret�rica. O discurso, por�m, mostrar� o homem, e, ainda quando seja alheio e decorado, os ouvintes t�m o recurso de lan�ar a desordem no rebanho das palavras e das id�ias do orador. Este, roto o fio da ora��o, acabar� dando por paus e por pedras. Deus meu! n�o exijo raptos de eloq��ncia. Os discursos municipais podem ser mal feitos, sem conex�o, nem l�gica, nem clareza, atrapalhados, aborrecidos; � neg�cio que, salvos os gastos da impress�o, s� importa � fama dos autores. Mas as leis? O munic�pio tem leis, e as leis devem ser escritas.

Agora mesmo, anteontem, foi promulgada a lei que autoriza o Prefeito a regularizar a dire��o dos ve�culos. Esta lei tem um art. 2� que diz assim:

�Art. 2�. Os trilhos que servem de leito a ve�culos (bondes), os quais sobre os mesmos rodam normalmente, poder�o ser mudados para lugares diversos dos que ocupam, somente com pr�via aquiesc�ncia do conselho, exceto quando se tratar de ligeiras mudan�as de trilhos na mesma rua ou outra mais pr�xima e mais larga do que aquela em que entronca, os mesmos assentados�.

Este art. 2.� n�o est� escrito. As palavras que o deviam compor, n�o sa�ram do tinteiro; sa�ram outras, inteiramente estranhas, e ainda assim, com a grande pressa que havia, foram deixadas no papel para que se arrumassem por si mesmas; ora, as ora��es, como os regimentos, n�o marcham bem sen�o com muita li��o do instrutor. As conseq��ncias s�o naturalmente graves. Como h� de o Prefeito cumprir esse artigo? Como hei de eu obedecer a outras leis que saiam assim desconjuntadas? J� n�o trato de algumas conseq��ncias m�nimas. Conhe�o uma pessoa, muito dada a met�foras, que nunca mais dir� bonde, e sim �ve�culo que roda normalmente sobre trilhos�.

O legislador municipal achou-se aqui na mesma dificuldade em que, h� anos, esteve o redator de um projeto de lei contra os capoeiras. N�o me recordo das palavras todas empregadas na defini��o dos delitos; as primeiras eram estas: �Usar de agilidade�... Compreendo o escr�pulo em definir bem o capoeira; mas porque n�o disse simplesmente capoeira? N�o estivesse eu com pressa (os minutos correm) e iria pesquisar o texto de um ato ministerial do princ�pio do s�culo, em que se davam ordens contra os capoeiras � mas s� capoeiras, nada mais.

Sendo preciso escrever as leis municipais, n�o seria fora de prop�sito criar um ou dois lugares de redatores, nomeando-se para eles pessoas gramaticadas. A� est� uma id�ia que podia servir a algum candidato, em circular ou discurso, se n�o estiv�ssemos vacinados contra o v�rus eleitoral. A capital n�o quer saber de si. Alguns candidatos obscuros, lembrados por cidad�os ainda mais obscuros, ir�o aparecendo na �ltima semana. Os mais econ�micos mandar�o apontar o seu nome, com duas linhas de impress�o, entre o licor depurativo de taiui� e o xarope de alcatr�o e jata�. O mais ser� trabalhinho surdo, pedido particular e absten��o do costume, achaques leves que n�o matam nem amofinam. Teremos, depois do �ltimo domingo deste m�s, outro vaudeville como o de anteontem? Mudemos os homens se � preciso, mas n�o se perca a boa e velha chala�a. A pe�a � da verdadeira escola dos vaudevilles, enredo complicado, ditos alegres, muito qui-pro-quo, di�logo vivo, desfecho inesperado, ainda que pouco claro. Os couplets finais viv�ssimos. Mas por que chamar a esta pe�a Sunt lacrymae rerum?

16 de dezembro

Um telegrama de S�o Petersburgo anunciou anteontem que a bailarina Labushka cometeu suic�dio. N�o traz a causa; mas, dizendo que ela era amante do finado imperador, fica entendido que se matou de saudade.

Que eu n�o tenha, � alma eslava, � Cle�patra sem Egito, que eu n�o tenha a lira de Byron para cantar aqui a tua melanc�lica aventura! Possu�as o amor de um potentado. O telegrama diz que eras amante �declarada�, isto �, aceita como as demais institui��es do pa�s. Sem protocolo, nem outras etiquetas, pela �nica lei de Eros, dan�avas com ele a redowa da mocidade. Naturalmente eras a professora, por isso que eras bailarina de of�cio; ele, disc�pulo, timbrava em n�o perder o compasso, e a Santa R�ssia, que dizem ser imensa, era para v�s ambos infinita.

Um dia, a morte, que tamb�m gosta de dan�ar, pegou no teu imperador e transferiu-o a outra R�ssia, ainda mais infinita. A tristeza universal foi grande, porque era um homem bom e justo. Daqui mesmo, desta remota capital americana, vimos os grandiosos funerais e ouvimos as lamenta��es p�blicas. N�o nos chegaram as tuas, porque h� sempre um recanto surdo para as dores irregulares. Agora, por�m, que tudo acabou, eis a� reboa o som de um tiro, que faltava, para completar os funerais do autocrata. Rival da morte, quiseste ir dan�ar com ele a redowa da eternidade.

H� aqui um mist�rio. N�o � vulgar em bailarinas essa fidelidade verdadeiramente eterna. Muitas vezes choram; estanques as l�grimas, recolhem as recorda��es do morto, outras tintas l�grimas cristalizadas em diamantes, contam os t�tulos de d�vida p�blica, est�o certos; as sedas s�o ainda novas, todos os tapetes vieram da P�rsia ou da Turquia. Se h� palacete, dado em dia de anos, as paredes, que viram o homem, passam a ver t�o-somente a sombra do homem, fixada nos ricos m�veis do sal�o e do resto. Se n�o h� palacete, h� leiloeiros para vender a mob�lia. Como lev�-la � velha hospedaria de outras terras, Belgrado ou Veneza, aonde a meia vi�va se abriga para descansar do morto, e de onde sai, �s vezes, pelo bra�o de um marido, bar�o aut�ntico e mais aut�ntico mendigo?

Eis o que se d� no mundo da pirueta. O teu suic�dio, por�m, �ltima homenagem, e (perdoem-me a exagera��o) a mais eloq�ente das milhares que recebeu a mem�ria do imperador, o teu suic�dio � um mist�rio. Grande mist�rio, que s� o mundo eslavo � capaz de dar. Foi telegrama o que li? Foi alguma p�gina de Dostoievski? A conclus�o �ltima � que amavas. Sacrificaste uma aposentadoria grossa, a fama, a curiosidade p�blica, as mem�rias que podias escrever ou mandar escrever, e, antes delas, as entrevistas para os jornais, os interrogat�rios que te fariam sobre os h�bitos do imperador e os teus pr�prios h�bitos, e quantos copos de ch� bebias diariamente, as cores mais do teu gosto, as roupas mais do teu uso, quem foram teus pais, se tiveste algum tio, se esse tio era alto, se era coronel, se era reformado, quando se reformou, quem foi o ministro que assinou a reforma, etc., um ros�rio de not�cias interessantes para o p�blico de ambos os mundos. Tudo sacrificaste por um mist�rio.

Mist�rios nunca nos aborreceram; a prova � que folgamos agora diante de dois mist�rios enormes, dois verdadeiros abismos (insond�veis). Sempre gostamos do inextric�vel. Este pa�s n�o detesta as quest�es simples, nem as solu��es transparentes, mas n�o se pode dizer que as adore. A raz�o n�o est� s� na sedu��o do obscuro e do complexo, est� ainda em que o obscuro e o complexo abrem a porta � controv�rsia. Ora, a controv�rsia, se n�o nasceu conosco, foi pelo fato inteiramente fortuito, de haver nascido antes; se se n�o tem apressado em vir a este mundo, era nossa irm� g�mea; se temos de a deixar neste mundo, � porque ainda c� ficar�o homens. Mas vamos aos nossos dois mist�rios.

O primeiro deles anda j� t�o safado, que at� me custa escrever o nome; � o c�mbio. Est� outra vez no �tapete da discuss�o�. O segundo � recente, � nov�ssimo, come�a a entrar no debate; � o bacilo v�rgula. Os mist�rios da religi�o n�o nos ascendem uns contra os outros; para crer neles basta a f�, e a f� n�o discute. Os do encilhamento aturdiram por alguns dias ou semanas; mas desde que se descobriu que o dinheiro ca�a do c�u, o mist�rio perdeu a raz�o de ser. Quem, naquele tempo, p�s uma cesta, uma gamela, uma barrica, uma vasilha qualquer, no luar ou �s estrelas, e achou-se de manh� com cinco, dez, vinte mil contos, entendeu logo que s� por falsifica��o � que fazemos dinheiro c� embaixo. Ouro puro e copioso � que cai do eterno azul.

Eu, quando era pequenino, achei ainda uma usan�a da noite de S�o Jo�o. Era expor um copo cheio d��gua ao sereno, e despejar dentro um ovo de galinha. De manh� ia-se ver a forma do ovo; se era navio, a pessoa tinha de embarcar; se era uma casa, viria a ser propriet�ria, etc. Consultei uma vez o bom do santo; vi, claramente visto, � vi um navio; tinha de embarcar. Ainda n�o embarquei, mas enquanto houver navios no mar, n�o perco a esperan�a. Por ocasi�o do encilhamento, a maior parte das pessoas, n�o podendo sacudir fora as cren�as da meninice, n�o punham gamelas vazias ao sereno, mas um copo com �gua e ovo. De manh�, viam navios, e ainda agora n�o v�em outra coisa. Por que n�o puseram gamelas? Vivam as gamelas! Ou, se � l�cito citar versos, digamos com o cantor dos Timbiras:

......... Paz aos Gamelas

Renome e gl�ria...

H� quem queira filiar o c�mbio aos costumes do encilhamento. A pessoa que me disse isto, provavelmente soube explicar-se; eu � que n�o soube entend�-la. � uma complica��o de dinheiro que se ganha ou se perde, sem saber como, anonimamente, com resigna��o geral de baixistas e altistas. Um embrulho. Mas h� de ser ilus�o, por for�a. Quem se lembra daqueles belos dias do encilhamento, sente que eles acabaram, como os belos dias de Aranjuez. Onde est� agora o del�rio? onde est�o as imagina��es? As estradas na lua, o anel de Saturno, a pele de ursos polares, onde v�o todos esses sonhos deslumbrantes, que nos fizeram viver, pois que a vida es sue�o, segundo o poeta?

Tais sonhos ainda s�o poss�veis com o mist�rio do bacilo v�rgula. Toda esta semana andou agitado esse bicho da terra t�o pequeno, para citar outro poeta, o terceiro ou quarto que me vem ao bico da pena. H� dias assim; mas eu suponho que hoje esta aflu�ncia de lembran�as po�ticas � porque a poesia � tamb�m um mist�rio, e todos os mist�rios s�o mais ou menos parentes uns dos outros. Suponho, n�o afirmo; depois do que tenho lido sobre o famoso bacilo, n�o afirmo nada; tamb�m n�o nego. Autoridades respeit�veis dizem que o bacilo mata, pelo modo asi�tico; outras tamb�m respeit�veis juram que o bacilo n�o mata.

Hippocrate dit oui, et Gallien dit non.

23 de dezembro

A semana acabou fresca, tendo come�ado e continuado horrivelmente c�lida. At� quinta-feira � noite ningu�m podia respirar. Sexta-feira trouxe mudan�a de tempo e baixa de temperatura. O fen�meno explicar-se-ia naturalmente, em qualquer ocasi�o, mas houve uma coincid�ncia que me leva a atribu�-lo a causas transcendentais. Se cuidas que aludo ao encerramento do Congresso Nacional, enganaste. O calor do Congresso tinha-se ido, h� muito, com a C�mara dos Deputados. O Senado, apesar da troca de reg�men e do m�nimo da idade, h� de ser sempre a antiga Sib�ria, pelo pr�prio car�ter da institui��o. N�o, a causa foi outra.

A causa foi o banquete que o ministro da Su�cia e Noruega deu aos comandantes e oficiais da corveta e da canhoneira ancoradas no nosso porto, banquete a que assistiram os c�nsules da Holanda e da Dinamarca. Homens do Norte, amassados com gelo, curtidos com ventos �speros, uma vez reunidos � volta da mesa, comunicaram uns aos outros as sensa��es antigas, e, por sugest�o, transportaram para aqui algumas bra�adas daqueles climas remotos. Estando em dezembro, evocaram o seu inverno deles, que n�o � o nosso mo�o l�pido de S�o Jo�o, mas um velho pesado do Natal. J� antes da sopa, deviam tremer de frio. Eu pr�prio, ao ler-lhes os nomes, levantei a gola do fraque. Os bigodes pingavam neve. As rajadas de vento levavam os guardanapos.

Tendo sido na noite de quarta-feira o banquete escandinavo, o nosso c�u ainda resistiu durante a quinta-feira, e com tal desespero que parecia queimar tudo; mas na sexta-feira j� n�o p�de, e n�o teve rem�dio sen�o chover e ventar. N�o choveu, nem ventou muito, n�o chegou a nevar, mas fez-nos respirar, e basta. O que talvez n�o baste, � a explica��o. Esp�ritos rasteiros n�o podem aceitar raz�es de certa eleva��o, mas com esses n�o se teima. Faz-se o que fiz sexta-feira ao meu criado, quando ele me entrou no gabinete para anunciar que n�o havia carne. Trazia os cabelos em p�, os olhos esbugalhados, a boca aberta, e s� falou depois que a minha frieza, totalmente escandinava, n�o correspondendo a tanto assombro, acendeu nele o desejo de me dar a grande novidade. Eu, cada vez mais escandinavo, respondia-lhe que, se n�o havia carne, havia outras coisas. N�o contestou a sabedoria da resposta, mas confessou que a raz�o do espanto e consterna��o em que vinha, era o receio de n�o haver mais carne neste mundo.

� N�o entendo de leis, concluiu Jos� Rodrigues, cuidei que era alguma lei nova que mandava acabar com a carne...

Este Jos� Rodrigues � bom, � diligente, respeitoso, mas coxeia do intelecto, n�o que seja doido, mas � est�pido. N�o digo burro; burro com fala seria mais inteligente que ele. Ontem, depois do almo�o, veio ter comigo, trazendo uma folha na m�o:

� Patr�o, leio aqui estes dois an�ncios: �Para tosses rebeldes, xarope de jaramacaru�. � �Para intendente municipal, Calisto Jos� de Paiva�. Qual destes dois rem�dios � melhor? E que mol�stia � essa que nunca vi?

� Tu �s tolo, Jos� Rodrigues.

� Com perd�o da palavra, sim, senhor.

� Pois se as mol�stias s�o duas, como � que me perguntas qual dos rem�dios � melhor? � claro que ambos s�o bons, um para tosses rebeldes, outro para intendente municipal.

� E esta mol�stia � como a neurastenia, que o patr�o me ensinou a dizer, e ainda n�o sei se digo direito, � a tal mol�stia nova, que � bem antiga; � a que cham�vamos espinhela ca�da. Ou intendente ser� assim coisa de dentes?... O patr�o desculpe; eu n�o andei por escolas, n�o aprendi leis nem medicina...

� Jos� Rodrigues, h� coisas que, n�o se entendendo logo, nunca mais se entendem. Onde andas tu que n�o sabes o que � intendente? Sabes o que � vereador?

� Vereador, sei; � o homem que o povo p�e na C�mara para ver as coisas da cidade, a limpeza, a �gua, os lampi�es.

� Pois � a mesma coisa.

� A mesma coisa? Entendo; � como a espinhela ca�da, que hoje se chama anatomia ou neurastenia. Pois, sim, senhor. Intendente � o mesmo que vereador. Cura-se ent�o com o Paiva do an�ncio? Mas, se o Paiva � rem�dio, conforme diz o patr�o, n�o entendo que se aplique a neurastenia ou intendente...

� Tu n�o est�s bom, Jos� Rodrigues; vai-te embora.

� Para dizer a minha verdade, bom, bom, n�o estou; amanheci com uma dor do lado, que n�o posso respirar, e � por isso que vim perguntar ao patr�o se era melhor o xarope, se o Paiva. Talvez o Paiva seja mais barato que o xarope. Isto de rem�dios, n�o � o serem mais caros... �s vezes os mais caros n�o prestam para nada, e um de pouco pre�o cura que faz gosto. Mas, enfim, n�o fa�o quest�o de pre�o. A sa�de merece tudo: Vou ao Paiva... isto �, o jornal fala tamb�m de um Canedo, para a mesma mol�stia... N�o � Canedo que se diz? Talvez o Canedo seja ainda mais barato que o Paiva.

� Isto � coisa que s� � vista das contas do botic�rio. Toma o que puderes; mas, antes disso, faz-me um favor. Vai ver se estou no Largo da Carioca.

� Sim, senhor... Se n�o estiver, volto?

� Espera primeiro at� �s cinco horas; se at� �s cinco horas n�o me achares, � que eu n�o estou, e ent�o volta para casa.

� Muito bem; mas se o patr�o l� estiver, que quer que lhe fa�a?

� Puxa-me o nariz.

� Ah! isso n�o! Confian�as dessas n�o s�o comigo. Gracejar, gracejo e o patr�o faz-me o favor de rir; mas n�o se puxa o nariz a um homem...

� Bem, d�-me ent�o as boas tardes e vem-te embora para casa.

� Perfeitamente.

Enquanto ele ia ao Largo da Carioca, fui-me eu �s notas da semana, e n�o achei mais nada que valesse a pena, salvo o planeta que se descobriu entre Marte e Merc�rio. Mas isso mesmo, para quem n�o � astr�nomo, vale pouco ou nada; n�o que as grandezas do C�u estejam trancadas aos olhos ignaros, francas est�o, e o �nfimo dos homens pode admir�-las. N�o � isso; � que um astr�nomo diria sobre este novo planeta coisas importantes. Que direi eu? Nada ou algum absurdo. Buscaria achar alguma rela��o entre os planetas que aparecem e as cidades que amea�am desaparecer com terremotos. A Cal�bria padeceu mais com eles que com os salteadores; pouco � o ch�o seguro debaixo dos p�s das belas italianas ou do fort�ssimo Crispi. Na Hungria houve um tremor h� dois dias; outras partes do mundo t�m sido abaladas.

Andar� a Terra com dores de parto, e alguma coisa vai sair dela, que ningu�m espera nem sonha? Tudo � poss�vel. Quem sabe se o planeta novo n�o foi o filho que ela deu � luz por ocasi�o dos tremores italianos? Assim, podemos fazer uma astronomia nova; todos os planetas s�o filhos do cons�rcio da Terra e do Sol, cuja primog�nita � a Lua, an�mica e solteirona. Os demais planetas nasceram pequenos, cresceram com os anos, casaram e povoaram o c�u com estrelas. A� est� uma astronomia que J�lio Verne podia meter em romances, e Flammarion em d�cimas.

Tamb�m se pode tirar daqui uma pol�tica internacional. Quando a �frica e o que resta por ocupar e civilizar, estiver ocupado e civilizado, os planetas que aparecerem, ficar�o pertencendo aos pa�ses cujas entranhas houverem sido abaladas na ocasi�o com terremotos; s�o propriamente seus filhos. Restar� conquist�-los; mas o tetraneto de Edson ter� resolvido este problema, colocando os planetas ao alcance dos homens, por meio de um parafuso el�trico e quase infinito.

30 de dezembro

A sorte � tudo. Os acontecimentos tecem-se como as pe�as de teatro, e representam-se da mesma maneira. A �nica diferen�a � que n�o h� ensaios; nem o autor nem os atores precisam deles. Levantado o pano, come�a a representa��o, e todos sabem os pap�is sem os terem lido. A sorte � o ponto.

Esse pequeno ex�rdio � a melhor explica��o que posso dar do drama da Pra�a da Rep�blica, e a mais viva condena��o da teimosia com que alguns jornais pediram a demoli��o dos pavilh�es e arcos das festas uruguaias. Ainda bem que n�o pediram tamb�m a elimina��o de tr�s grinaldas de folhas secas, j� sem cara de folhas, que ainda pendem dos arcos de g�s na Rua de S�o Jos�. Oh! n�o me tirem essas pobres grinaldas! N�o fazem mal a ningu�m, n�o tolhem a vista, n�o escondem gatunos, e s�o verdadeiras m�ximas. Quando des�o por ali, com a mem�ria cheia de algumas folhas verdes que vieram comigo no bonde, acontece-me quase sempre parar diante delas. E elas dizem-me coisas infinitas sobre a caducidade das folhas verdes, e o prazer com que as ou�o n�o tem nome na Terra nem provavelmente no C�u. Ergo bibamus! E a� me vou contente ao trabalho. N�o � novo o que elas dizem, nem ser�o as �ltimas que o dir�o. A banalidade repele-se de s�culo a s�culo, e ir� at� � consuma��o dos s�culos; n�o � folha que perca o vi�o.

Vindo ao pavilh�o da Pra�a da Rep�blica, o acontecimento de quinta-feira provou que ele era necess�rio, porque a sorte, que rege este mundo, j� estava com o drama nas m�os para apont�-lo aos atores! E os atores foram cabais no desempenho. O gatuno que resistiu ao ataque de alguns homens de boa vontade dava um magn�fico bandido. Um simples gatuno n�o defende com tanto ardor a liberdade, posto que a liberdade seja um grande benef�cio. As armas do gatuno s�o as pernas. Ele foge ao clamor p�blico, � espada da pol�cia, � cadeia; pode dar um cascudo, um empurr�o; matar, n�o mata. � certo que o tal Puga n�o podia fugir; mas os Pugas de len�os e outras miudezas, em casos tais, n�o tendo por onde fugir, entregam-se; preferem a pris�o simples aos complicados remorsos. A pr�pria casa, ap�lices, terrenos e outros bens, havidos capciosamente, n�o tiram o sono. O sangue, sim, o sangue perturba as noites.

Da� veio a suspeita de ser este Puga doido, � e parece confirm�-la a declara��o que ele fez de chamar-se Jesus Cristo. A declara��o n�o basta, e podia ser um estratagema; mas h� tal circunst�ncia que me faz crer que ele � deveras alienado: � ser espanhol. Os bandidos espanh�is, embora salteiem e despojem a gente, n�o deixam de respeitar a religi�o. Dizem que levam bentinhos consigo, ouvem missas, quase que confessam os seus pecados.

A trag�dia, se deveras � doido, foi assim mais tr�gica. Essa luta em um desv�o, entre um louco e alguns homens valentes, um dos quais morreu e os outros sa�ram feridos, deve ter sido extraordinariamente l�gubre. Tal espet�culo, � claro, estava determinado. Era preciso que fosse em lugar que pudesse conter o milhar de espectadores que teve; logo, a Pra�a da Rep�blica; devia ser o alto de edif�cio vazio e livre, para onde s� se pudesse ir por uma escada de m�o; logo, o pavilh�o das festas. Tudo vinha assim disposto, era s� cumpri-lo � risca.

Os espectadores, que tamb�m fizeram parte do espet�culo, desempenharam bem o seu papel, mas parece que o haviam aprendido em Shakespeare. Assim � que, simultaneamente, aplaudiram os corajosos que subiam a escada de m�o, e apupavam os que iam s� a meio caminho e desciam amedrontados. Aclama��es e assobios, de mistura, enchiam os ares, at� a cena final, quando o Puga, subjugado, desceu ferido tamb�m. A� Shakespeare cedeu o passo a Lynch, outro tr�gico, sem igual g�nio, mas com a mesma inconsci�ncia do g�nio, cujo �nico defeito � n�o ter feito mais que uma trag�dia em sua vida. A pol�cia interveio para se n�o representar outra pe�a, e, se salvou a vida ao Puga, praticou um ato muito menos liberal, que foi restaurar a censura dram�tica.

Ao enterramento do soldado que acabou a vida naquela luta, creio que acompanhou menos gente, os que pegaram no caix�o, e alguns amigos particulares, se � que os tinha. O cocheiro acompanhou porque ia guiando os burros. Concluamos que o homem ama a luta e respeita a morte; entusiasta diante do her�i, fica naturalmente triste e solit�rio diante do cad�ver, e deixa-o ir para onde todos havemos de ir, mais tarde ou mais cedo.

Resumindo, direi ainda mais uma vez que a sorte � tudo, e n�o s�o os livros que t�m os seus fados. Tamb�m os t�m os arcos e os pavilh�es. Que digo? Tamb�m os t�m as pr�prias palavras. H� dias, o Sr. General Roberto Ferreira, referindo-se a uma not�cia, encabe�ou o seu artigo com estas palavras: Consta n�o; � exato. E todos discutiram o artigo, afirmando uns que constava, outros que era exato. A reflex�o que tirei da� foi longa e profunda, n�o por causa da mat�ria em si mesma, n�o � comigo, mas por outra coisa que vou dizer, n�o tendo segredos para os meus leitores.

Conhe�o desde muito o velho Constar, era eu bem menino; lembra-me remotamente que foi um carioca, Ant�nio de Morais Silva, que o apresentou em nossa casa. Velho, disse eu? Na idade, era-o; mas na pessoa era um dos mais robustos homens que tenho visto. Alto, forte, pulso grosso, esp�duas longas; dir-se-ia um Atlas. O moral correspondia ao f�sico. Era afirmativo, autorit�rio, dogm�tico. Quando referia um caso, havia de crer-se por for�a. As pr�prias hist�rias da carocha, que contava para divertir-nos, deviam ser aceitas como fatos aut�nticos. O carioca Morais, que tenho grande f� nele, dizia que era assim mesmo, e ningu�m podia descrer de um, que era arriscar-se a levar um peteleco de ambos.

Poucos anos depois, tornando a v�-lo, caiu-me a alma aos p�s � a alma e o chap�u, porque ia justamente cumpriment�-lo, quando lhe ouvi dizer com a voz tr�mula e abafada: �Suponho... ouvi que... dar-se-� que seja?... Tudo � poss�vel.� N�o me conhecia! Respondi-lhe que era eu mesmo, em carne e osso, e indaguei da sa�de dele. Algum tempo deixou vagar os olhos em derredor, cochilou do esquerdo, depois do direito, e com um grande suspiro, redarg�iu que ouvira dizer que ia bem, mas n�o podia afirm�-lo; era mat�ria incerta. �Macacoas�, disse-lhe eu rindo para anim�-lo. �Tamb�m n�o, isto �, creio que n�o�, respondeu o homem. Dei-lhe o bra�o, e convidei-o a ir tomar caf� ou sorvete. Hesitou, mas acabou aceitando.

Conversamos cerca de meia hora. Deus de miseric�rdia! N�o era j� o dogm�tico de outro tempo, cujas afirma��es, como espadas, cortavam toda discuss�o. Era um velho tonto, vago, dubitativo, incerto do que via, do que ouvia, do que bebia. Tomou um sorvete, crendo que era caf� e achou o caf� extremamente gelado. H� sorvetes de caf�, disse eu, para ver se o traria � afirma��o antiga; concordou que sim, embora pudesse ser que n�o. Um c�tico! um triste c�tico!

Que � isto sen�o a sorte? A sorte, e s� ela, tirou ao velho Constar o gosto das id�ias definitivas e dos fatos averiguados. A sorte, e s� ela, decidir� da elei��o do dia 6 de janeiro. Podem contar, somar e multiplicar os votos; a elei��o h� de ser o que ela quiser. A pe�a est� pronta. N�o nos espantemos do que virmos; preparemo-nos para analisar as cenas, os lances, o di�logo, porque a pe�a est� feita.

A sorte acaba de golpear-me cruamente. Sempre cuidei que o meu sil�ncio modesto e expressivo indicasse ao Sr. Presidente da Rep�blica onde estava a pessoa mais apta (posso agora diz�-lo sem mod�stia) para o cargo de prefeito. S. Exa. n�o me viu. Outrageons Fortune! Tu �s a causa desta preteri��o. Sem ti, o prefeito era eu, e eu te pagaria, sorte afrontosa, elevando-te um templo no mesmo lugar onde est� o pavilh�o das festas uruguaias.

1895

6 de janeiro

Se a pedra de S�sifo n�o andasse j� t�o gasta, era boa ocasi�o de dar com ela na cabe�a dos leitores, a prop�sito do ano que come�a. Mas tanto tem rolado esta pedra, que n�o vale um dos paralelep�pedos das nossas ruas. Melhor � dizer simplesmente que a� chegou um anuo, que veio render o outro, montando guarda �s nossas esperan�as, � espera que venha rend�-lo outro ano, o de 1896, depois o de 1897, em seguida o de 1898, logo o de 1899, enfim o de 1900...

Que inveja que tenho ao cronista que houver de saudar desta mesma coluna o sol do s�culo XX! Que belas coisas que ele h� de dizer, erguendo-se na ponta dos p�s, para crescer com o assunto, todo auroras e folhas verdes! Naturalmente maldir� o s�culo XIX, com as suas guerras e rebeli�es, pampeiros e terremotos, anarquia e despotismo, coisas que n�o trar� consigo o s�culo XX, um s�culo que se respeitar�, que amar� os homens, dando-lhes a paz, antes de tudo, e a ci�ncia, que � of�cio de pac�ficos.

A doutrina microbiana, vencedora na patologia, ser� aplicada � pol�tica, e os povos curar-se-�o das revolu��es e maus governos, dando-se-lhes um mau governo atenuado e logo depois uma inje��o revolucion�ria. Ter�o assim uma pequena febre, suar�o um tudo-nada de sangue e no fim de tr�s dias estar�o curados para sempre. Chamfort, no s�culo XVIII, deu-nos a c�lebre defini��o da sociedade, que se comp�e de duas classes, dizia ele, uma que tem mais apetite que jantares, outra que tem mais jantares que apetite.

Pois o s�culo XX trar� a equival�ncia dos jantares e dos apetites, em tal perfei��o que a sociedade, para fugir � monotonia e dar mais sabor � comida, adotar� um sistema de jejuns volunt�rios. Depois da fome, o amor. O amor deixar� de ser esta coisa corrupta e supersticiosa; reduzido a fun��o p�blica e obrigat�ria, ficar� com todas as vantagens, sem nenhum dos �nus. O Estado alimentar� as mulheres e educar� os filhos, oriundos daquela sineta dos jesu�tas do Paraguai, que o senador Zacarias fez soar um dia no senado, com grave esc�ndalo dos anci�os colegas. Grave � um modo de dizer, o esc�ndalo � outro. N�o houve nada, a n�o ser o efeito explosivo da cita��o, caindo da boca de homem n�o menos austero que eminente.

Mas n�o roubemos o cronista do m�s de janeiro de 1900. Ele, se lhe der na cabe�a, que diga alguma palavra dos seus antecessores, boa ou m�, que � tamb�m um modo de louvar ou descompor o s�culo extinto. Venhamos ao presente.

O presente � a chuva que cai menos que em Petr�polis, onde parece que o dil�vio arrasou tudo, ou quase tudo, se devo crer nas not�cias; mas eu creio em poucas coisas, leitor amigo. Creio em ti, e ainda assim � por um dever de cortesia, n�o sabendo quem sejas, nem se mereces algum cr�dito. Suponhamos que sim. Creio em teu av�, uma vez que �s seu neto, e se j� � morto; creio ainda mais nele que em ti. Vivam os mortos! Os mortos n�o nos levam os rel�gios. Ao contr�rio, deixam os rel�gios, e s�o os vivos que os levam, se n�o h� cuidado com eles. Morram os vivos!

Podeis concluir da� a disposi��o em que estou. Francamente, se esta chuva que vai refrescando o ver�o, fosse, n�o digo um dil�vio universal, mas uma calamidade semelhante � de Petr�polis, eu aplaudiria d�alma, contanto que me ficasse o gosto poeta, e pudesse ver da minha janela naufr�gio dos outros.

Hoje h� aqui, na capital da Uni�o grandes naufr�gios e alguns salvamentos. Falo por met�fora, aludo �s elei��es. Recomp�e-se a intend�ncia, e os primeiros naufr�gios est�o j� decretados, s�o os intendentes antigos. Com todo o respeito devido � lei, n�o entendi bem a raz�o que determinou a incompatibilidade dos intendentes que acabaram. S� se foi pol�tica, mat�ria estranha �s minhas cogita��es; mas indo s�, pelo ju�zo ordin�rio, n�o alcan�o a incompatibilidade dos antigos intendentes. Se eram bons, e fossem eleitos, continu�vamos a gozar das do�uras de uma boa legislatura municipal. Se n�o prestavam para nada, n�o seriam reeleitos; mas supondo que o fossem, quem pode impedir que o povo queira ser mal governado? � um direito anterior e superior a todas as leis. Assim se perde a liberdade. Hoje impedem-me de meter um pulha na intend�ncia, amanh� pro�bem-me andar com o meu colete de ramagens, depois de amanh� decreta-se o figurino municipal.

Entretanto (vede as inconseq��ncias de um esp�rito reto!), entretanto, foi bom que se incompatibilizassem os intendentes; n�o incompatibilizados, eram quase certo que seriam eleitos, um por um, ou todos ao mesmo tempo, e eu n�o teria o gosto de ver na intend�ncia dois amigos particulares, um amigo velho, e um amigo mo�o, um pelo 2� distrito, outro pelo 3�, e n�o digo mais para n�o parecer que os recomendo. S�o do primeiro turno.

Mas deixemos a pol�tica e voltemo-nos para o acontecimento liter�rio da semana, que foi a Revista Brasileira. � a terceira que com este t�tulo se inicia. O primeiro n�mero agradou a toda gente que ama este g�nero de publica��es, e a aptid�o especial do Sr. J. Ver�ssimo, diretor da Revista, � boa garantia dos que se lhe seguirem. Citando os nomes de Araripe J�nior, Affonso Arinos, S�lvio Romero, Medeiros e Albuquerque, Said Ali e Parlagreco, que assinam os trabalhos deste n�mero, terei dito quanto baste para avali�-lo. Oxal� que o meio corresponda � obra. Franceses, ingleses e alem�es ap�iam as suas publica��es desta ordem, e, se quisermos ficar na Am�rica, � suficiente saber que, n�o hoje, mas h� meio s�culo, em 1840, uma revista para a qual entrou Poe, tinha apenas cinco mil assinantes, os quais subiram a cinq�enta e cinco mil, ao fim de dois anos. N�o paguem o talento, se querem; mas d�em os cinco mil assinantes � Revista Brasileira. � ainda um dos melhores modos de imitar New York.

13 de janeiro

Foi a semana dos cad�veres; mas, por mais que eles aparecessem e me entrassem pelos olhos, custou-me desviar a vista deste telegrama de Viena: �Embaixadores japoneses procuram uma princesa europ�ia para casar com o pr�ncipe herdeiro, e, se n�o acharem, procurar�o uma americana opulenta.�

Pelo que vai grifado, deveis perceber que o que mais me atrai nesse telegrama, n�o � a arte oportuna do Jap�o, que pede uma princesa europ�ia no momento em que afirma o seu poder pol�tico e militar. As fam�lias r�gias n�o podem estranhar o pedido; tendo adotado institui��es europ�ias, � natural que o Jap�o queira complet�-las por meio de uma princesa, institui��o viva. Elei��es, minist�rio, parlamento, mo��es de confian�a, or�amento e impostos votados, todo esse aparelho de civiliza��o e de liberdade funciona perfeitamente em T�kio; por que n�o h� de funcionar uma princesa?  Racionalmente, n�o h� negativa que valha.

� poss�vel, por�m, que as princesas europ�ias n�o aceitem a proposta e d�em pretextos em vez de raz�es. T�kio � t�o longe! A l�ngua � t�o dif�cil! e t�o complicada! Tudo isso previa a chancelaria japonesa; se nenhuma princesa europ�ia quiser o trono que se lhe oferece, recorrer� �s grandes herdeiras americanas. � isto que me prende os olhos. Sim, eu creio que os embaixadores japoneses n�o tornam com o t�lamo vazio. H� herdeira americana destinada a ser imperatriz do sol-nascente.

Que destino que � o das herdeiras norte-americanas! Muitas delas penetraram e penetram nas mais cerradas aristocracias europ�ias. H� duquesas, cujos pais n�o foram nada, antes de milion�rios deste lado do Atl�ntico. Bras�es velhos e d�lares novos fazem boa companhia. Na batalha da vida, como na de Ricardo III, o grito � o mesmo: �Um cavalo! um cavalo! meu reino por um cavalo!� �Um milh�o! um milh�o! meu nome por um milh�o!� �Um castelo! um castelo! meu milh�o por um castelo!� Tal � a universalidade de Shakespeare. Demais, (n�o sou mulher, n�o posso sentir bem o que digo) creio que h� de haver certo gosto particular em dar � luz um duque. Que n�o ser� em dar � luz um imperador?

Se algum fabricante de papel de Pensilv�nia tem de ser av� do futuro mikado, este s�culo acaba como principiou, e o pai de Bernadotte acha um emulo no industrial americano. Este, pensando em dar nova forma aos trapos velhos, fundar� uma dinastia. Do papel que houver fabricado, � prov�vel que muitas folhas hajam servido para escrever belas p�ginas; mas a melhor delas, a magn�fica, ser� esse poema, conto ou ode, que fizer de uma simples herdeira a imperatriz futura. O resto � com os cronistas japoneses. N�o faltar� algum que o d� por um grande rei, t�o amigo das letras e protetor de livros, que os seus s�ditos lhe puseram o cognome de fabricante de papel. A hist�ria � muitas vezes isso: um trocadilho.

Assim explicada a atra��o do telegrama, n�o tenho d�vida em fitar os cad�veres da semana, que foi uma semana de cad�veres, como ficou dito. Outro trocadilho. Muitos foram os que viemos recolhendo, de domingo para c� ou diretamente do mar, ou das praias a que ele os arrojou. Alguns foram barra fora, como se achassem curto o trajeto entre a vida e a morte. Ainda podem aparecer outros, a morte � fecunda.

Muita gente citou agora, por ocasi�o da Terceira, o desastre da Especuladora, h� meio s�culo. H� quem se lembre que o mundo existia h� cinq�enta anos, e que as m�quinas n�o s�o mais novas. Algum dia, se o mundo ainda durar meio s�culo, e houver outra explos�o nas barcas de Niter�i, � prov�vel que algu�m se lembre da cat�strofe da Terceira, e at� as not�cias e artigos de hoje. Estilo, meus senhores, deitem estilo nas descri��es e coment�rios; os jornalistas de 1944 poder�o muito bem transcrevei-os, e n�o � bonito aparecer despenteado aos olhos do futuro. Como se chamar� a barca desse tempo? A� est� um objeto de apostas, agora que front�es e book-makers tiveram alguns dias de f�rias.

Uma das coisas que me doeram na cat�strofe da Terceira foi a injusti�a feita aos passageiros da Quinta. Todos, � uma, condenaram esses homens que, segundo se disse, amea�aram o mestre da barca com rev�lveres, palavras e punhos, se ele fosse em socorro dos passageiros da Terceira. Taxou-se este procedimento de desumano, de feras, de inqualific�vel, e o que vale aos pobres homens da Quinta, � n�o se haver nomeado ningu�m. Um deles � que se nomeou no inqu�rito. Aos outros fica o recurso de dizer que n�o vinham na Quinta.

J� se lhes deixou uma pequena aberta, dizendo que n�o foram todos que amea�aram o mestre, mas certo n�mero deles. A unanimidade desumana pode ficar assim reduzida a uma piedosa maioria, que n�o teve meio de reagir contra meia d�zia de perversos.

Ningu�m defendeu essas v�timas, n�o menos lastimosas que as outras, e mais interessantes, pois est�o vivas, e as outras morreram. Cavemos fundo no assunto. N�o consta que houvesse entre os passageiros das duas barcas a menor sombra de inimizade pessoal. O que se disse, � e raras vezes a imprensa se ver� assim t�o concorde, � � que os passageiros da Quinta, por medo de alguma explos�o, deixaram morrer os da Terceira. N�o houve prop�sito, mas um arrebatamento geral, e n�o contra a Terceira, mas em favor da Quinta. Compreendeis a diferen�a? � mister distinguir os motivos. Se o ato da Quinta fosse aproveitar o desastre da Terceira para deixar morrer a gente que l� vinha, n�o havia nos dicion�rios nem nas brigas de carroceiros voc�bulo assaz duro para condenar semelhante ato de covardia.

Tratando-se, por�m, de salvar os passageiros da Quinta, a que cederam, eles, sen�o a um sentimento de conserva��o, mais forte neles que o da caridade, mas n�o menos leg�timo? Serva te ipsum. A blague francesa disse que o conde Ugolino comeu os filhos para conservar-lhes um pai. Os passageiros da Quinta, sem chegar a esse extremo de voracidade, conservaram �s v�timas alguns cidad�os sobreviventes, com tanto maior m�rito que nenhum la�o de sangue os prendia aos outros.

H� anos, deu-se um naufr�gio no Rio da Prata. N�o me lembra o nome nem a na��o do navio; ficou-me de mem�ria um epis�dio. Vinham a bordo um noivo e uma noiva, ambos na flor da idade, e a �gua ia ser para eles, a um tempo, o t�lamo e o t�mulo. Os poetas, que estavam em terra almo�ando, perderam essa bela id�ia, porque os noivos n�o morreram. Um velho conseguira agarrar-se a uma t�bua ou o que quer que era, que o arrancava � morte certa. Os dois noivos estavam prestes a perder-se. Ent�o o velho, vendo a aflitiva situa��o de ambos, lembrou-se de lhes dar a t�bua ou cinta de salva��o, dizendo-lhes com do�ura: �Voc�s est�o mo�os, devem viver.� E, ficando sem algum socorro, mergulhou na �gua e sucumbiu. Os noivos, escapando com vida, referiram o caso em terra, onde o entusiasmo foi enorme. Os di�rios escreveram brilhantes artigos em homenagem ao velho. A opini�o moveu-se; surgiu a id�ia de perpetuar em bronze a mem�ria de t�o nobre a��o, mas n�o foi adiante.

Certamente a a��o foi sublime; mas nem todas as a��es podem ser sublimes. Nem todas s�o simplesmente belas, como a daqueles que salvaram alguns passageiros da Terceira, sem os conhecer, por impulso de humanidade. Belas foram e virtuosas; mas a beleza e a virtude n�o s�o as notas surradas de papel-moeda, que andam em todas as algibeiras. S�o as moedas de ouro que os cambistas da rua Primeiro de Mar�o exp�em nas vitrinas, que pelo atual c�mbio custam caro. Nem h� s� pessoas que salvaram vidas. H� outras que d�o dinheiro para os �rf�os e vi�vas, e outras que se oferecem para educar as crian�as cujos pais pereceram na cat�strofe da Terceira. Nem tudo � o tombadilho da Quinta.

20 de janeiro

A semana ia andando, meia interessante, com os seus book-makers, front�es e outras liberdades, e mais a lei municipal, que as regulou, segundo uns, e, segundo outros, as suprimiu. N�o examino qual dos verbos cabe ao caso; mas, relativamente aos substantivos regulados ou suprimidos, guio-me pela significa��o direta. Por isso indignei-me, quando vi o ato do prefeito e da policia. Pois que! exclamei; pa�ses como a R�ssia t�m ou tiveram censura liter�ria, mas nunca se lembraram de regular ou suprimir escritores e arquitetos; por que � que, no regime democr�tico, a autoridade me impede de p�r um front�o na minha casa, ou fazer um livro, se n�o tiver mais que fazer?

Um senhor que ia a meu lado (era no bonde, e eu penso alto nos bondes) fez-me o favor de dizer que era engano meu, que os book-makers, apesar do nome nunca escreveram livros e que h� entre uma casa e outra mais front�es do que sonha minha v� filologia. Perguntei-lhe se falava serio ou brincando; respondeu-me que s�rio, e deu-me em penhor o seu cart�o. N�o digo o nome porque este senhor quer conservar o inc�gnito; nem posso afirmar se cheguei a l�-lo, tais eram os t�tulos cient�ficos, honor�rios e outros que o precediam.

Agradeci-lhe a explica��o; ele retrucou afavelmente que esta vida � uma troca de favores, e bem podia ser que eu lhe explicasse algum dia por que � que as colunas telef�nicas, derrubadas na praia da Gl�ria, h� tr�s meses, em um conflito de eletricidade, continuam deitadas no ch�o. Disse-lhe que ia estudar essa problema, n�o momentoso, e recordei-lhe que as montanhas russas duraram muito mais tempo, na rua da mesma Gl�ria, e que a ponte que entra pelo mar da mesma Gl�ria, se a mar� a n�o levar no s�culo entrante, n�o a levar�o os homens.

� As for�as cegas da natureza s�o mais poderosas que as for�as humanas, disse ele axiomaticamente.

Gostei da resposta. Eu aprecio muito os axiomas, mormente se a pessoa que os emite traz j� um ar axiom�tico. Satisfeito com a explica��o do que era book-maker e front�o, no sentido legislativo e municipal, entendi que se tratava de vedar ou regular uma liberdade ou duas, e que toda a quest�o versava sobre o verbo aplic�vel ao ato. Assim posta a quest�o, reduzida unicamente � aplica��o do verbo, estamos como no conc�lio de Nic�ia, e o s�mbolo que sair daqui ser� n�o menos respeit�vel que o outro, mal comparando. Qual � o verbo, na minha opini�o? Leitor, eu entendo que o homem tem duas pernas para ir por dois caminhos. O verbo, a meu ver, depende do sujeito. Se o sujeito � sapiente, o verbo � rir. Ride, si sapis. Se � melanc�lico, o verbo � chorar. Sunt lacrymae rerum. � a �nica solu��o razo�vel, porque atende ao temperamento de cada um.

Quanto ao paciente da ora��o, leitor e disc�pulo amigo, a minha perna direita afirma que � o que sai perdendo; mas a esquerda, que tamb�m estuda sintaxe, diz que � o que sai ganhando. Eu, como ambas as pernas s�o minhas, hesito na solu��o. Se a civiliza��o ainda estivesse em outra idade, eu responderia de um modo evasivo. Mas j� n�o h� fronteiras. O �ltimo que vi foi em cena, o Fronteiro d' �frica, escrito n�o sei por quem (tenho id�ia vaga de que era um Abrantes), o qual arrancava palmas no teatro de S. Pedro de Alc�ntara. Tempos dos mouros. Muita cutilada, muito viva, muita fidelidade portuguesa, tudo por dois mil r�is, cadeira. Onde v�o esses dias? Tornemos � semana.

A semana ia andando, como disse, cai aqui, cai acol�, e teria chegado ao fim, sem grandes assombros nem lances inesperados, se n�o fosse o trov�o de Fran�a. Quando menos cuid�vamos, resignou o presidente, um presidente que havia sido achado para n�o resignar nunca. Dizem que foi ato de fraqueza. A mensagem dele confessa que lhe faltava apoio. Qualquer que seja a causa, ou sejam ambas, � mat�ria pol�tica, e naturalmente estranha �s minhas cogita��es. Venhamos � est�tica.

Pelo lado est�tico � que o ato de Casimiro P�rier me pareceu. med�ocre. Diz um telegrama, que a m�e do ex-presidente op�s-se � ren�ncia. A recente morte do �ltimo rei de N�poles, trouxe � mem�ria o hero�smo da jovem princesa, sua mulher, em Gaeta que encheu o mundo inteiro de admira��o. Os dois fatos provam que a rep�blica, como a monarquia, pode achar no governo mais do que a gra�a e a distin��o de uma senhora. Por que se n�o h� de abolir a lei s�lica nas rep�blicas? Se a mulher pode ser eleitora, por que n�o poderemos elevai-a � presid�ncia? O nascimento d� uma Catarina da R�ssia ou uma Isabel de Inglaterra, por que n�o h� de o sufr�gio da na��o escolher uma dama robusta capaz de governo? Onde h� melhor regime que entre as abelhas? O mais que pode suceder, em um povo de namorados como o nosso, � dispersarem-se os votos, pela prova de afei��o que muitos eleitores querer�o dar �s amigas da sua alma; mas com poucos votos se governa muito bem.

Talvez estejamos a julgar mal, c� de longe. Pode ser que a impopularidade do ex-presidente come�asse a separar dele os homens p�blicos, e, para se n�o achar amanh� s�, ele preferiu sair hoje mesmo. Isto, dado que realmente fosse impopular. Donde viria a impopularidade de P�rier? Do nome? Da pessoa? Dos colarinhos? Realmente, os colarinhos, � maruja, em qualquer tempo n�o eram graves; vindos depois dos de Carnot, eram inadmiss�veis. Um chefe de Estado, rigorosamente falando, n�o pode ter a liberdade dos colarinhos. Nesse ponto o novo presidente � mais correto. Os retratos que vi dele trazem o colarinho teso e alto. Assim que, al�m das suas qualidades pol�ticas e morais, F�lix Faure possui mais a de saber concordar o pesco�o com o poder.

27 de janeiro

Se h� ainda boas fadas por esse mundo, com certeza estar�o agora junto ao ber�o do partido parlamentar, que vai nascer ou nasceu esta semana. O ber�o h� de ser enorme, muito maior que o t�mulo que Heine queria para o seu amor. E elas predir-lhe-�o grande futuro, brilhante e talvez pr�ximo. N�o v�s contar a proximidade como � uso daqueles que pensam que o mundo acaba sexta-feira ou s�bado; falo de uma proximidade relativa. N�o sou procurador de fadas, mas juro que h� de ser, assim; se for o contr�rio, fa�amos de conta que n�o jurei nada.

Aparentemente, a ocasi�o n�o � pr�pria � cria��o de um partido parlamentar, agora que os presidentes est�o abdicando por n�o poderem formar minist�rios. Mas � s� aparentemente. Indo ao fundo das coisas, veremos que o caso do presidente argentino (ali�s n�o aplic�vel) pode explicar-se com os suic�dios de imita��o, o do presidente franc�s ter� tido causas diversas. Ainda quando os dois fen�menos procedam da mesma causa �nica, resta provar que isto tem alguma coisa com o parlamentarismo. E quando provado, ainda h� que provar que um sistema acarreta consigo as mesmas conseq��ncias, qualquer que seja o meio em que respire. A pr�pria diversidade daquelas duas rep�blicas mostra que tenho raz�o.

Relevem-me que lhes fale assim grosso, fora das minhas frouxas melodias de menino, porque eu sou menino, leitor da minha alma; assim me chama um velho amigo, olho claro, cabe�a firme, sobre a qual, s� por esta exata no��o que ele tem dos tempos e das pessoas, edificarei a minha igreja. Apesar disso, tenho uns dias, umas horas, em que dou para subir a montanha e doutrinar os homens. A natureza, que n�o faz saltos, me rep�e no caminho direito, que � na plan�cie.

Mas, enfim, para acabar com isto, uma vez que comecei por a�, direi que o partido parlamentar est� com visos de querer viver. Cabe aos presidencialistas, lutar bastante para n�o correrem o risco de verem o princ�pio contr�rio infiltrar-se nas institui��es. O Sr. Saraiva, que nunca foi inventor de governos, prop�s na Constituinte uma emenda que ningu�m quis, e realmente n�o trazia boa cara. Refiro-me � emenda que reduzia a dois anos o prazo da presid�ncia da Rep�blica. � primeira vista era um presidencialismo vertiginoso; mas, bem considerado, era um parlamentarismo autom�tico. Os dois anos n�o eram s� da presid�ncia, mas virtualmente eram tamb�m do minist�rio. N�o se pode dizer que tal prazo fosse excessivamente curto, mas estava longe de ser uma eternidade; era meia eternidade. Se tivesse sido deputado, o Sr. Cezar Zama, dado aos seus estudos romanos, viria propor ao congresso uma emenda constitucional que reduzisse a presid�ncia ao consulado, e os dois anos a um. Os minist�rios teriam assim um anuo apenas. Era o parlamentarismo hiper-autom�tico.

N�o me digas que confundo alhos com bugalhos, ignorando que parlamentarismo quer dizer governo de parlamento, � coisa que nada tem com prazos curtos nem compridos. Eu sei o que digo, leitor; tu � que n�o sabes o que l�s. Desculpa, se falo assim a um amigo, mas n�o � com estranhos que se h� de ter tal ou qual liberdade de express�o, � com amigos, ou n�o h� estima nem confian�a.

Para n�o ouvir novo dichote, calo-me em rela��o a outro partido, que tamb�m nasceu esta semana, e j� publicou manifesto. � do primeiro distrito da capital. N�o pede parlamentarismo, embora admita alguma reforma constitucional, quando houvermos entrado no regime met�lico e outros. Tem por fim organizar a opini�o p�blica. O fim � �til e o estilo n�o � mau, salvo alguns modos de dizer, ali�s bonitos, mas que esta pobre alma cansada e s�ptica j� mal suporta. Tal qual o est�mago, que n�o mais aceita certos manjares. Como Epicuro p�e a alma no est�mago, vem da� essa coincid�ncia de fastio. A terra da promiss�o, por exemplo, j� n�o � comigo. Citei-a muita vez, chamando-lhe, no segundo caso, pelo nome de Cana�, por causa das belas rimas (manh�, lou��, etc.) mas tudo isso foi-se com os ventos.

Prosa ou verso, n�o quero j� saber de Cana�, a n�o ser que me levem at� l� os pretores encarregados de apurar as elei��es municipais. Mas quando? O fim da apura��o, se eu a vir algum dia, h� de ser como Mois�s viu a terra da promiss�o, de longe e do alto, � digamos por um �culo, pois que o �culo est� inventado. S� Josu� a pisar�, mas Josu� ainda n�o nasceu. Bem sei que os pretores, em vez de fazer trabalho a olho, esgaravatam todas as atas, e, o que � mais, todos os artigos de lei. Sendo assim severos, que ser� da virtude e da verdade, � da verdade eleitoral, ao menos? Que importa que em uma se��o de distrito haja mais c�dulas que eleitores? Outra ter� mais eleitores que c�dulas, e tudo se compensa. Adeus, o calor � muito.

3 de fevereiro

Andam listas de assinaturas para uma peti��o ao Congresso Nacional. H� j� cerca de duzentas assinaturas, e espera-se que daqui at� maio passar�o de mil. Com o que se conta obter dos Estados, chegar-se-� a um total de cinco ou seis mil.

N�o � demais para reformar a Constitui��o. Com efeito, trata-se de reform�-la, embora os inventores da id�ia declarem que n�o � propriamente reforma, mas acr�scimo de um artigo. Este sofisma � transparente. N�o se emenda nenhum dos artigos constitucionais, mas a mat�ria do artigo aditivo � tal que altera o direito de representa��o, estabelecendo um caso de hereditariedade, contr�rio ao princ�pio democr�tico.

N�o li a peti��o, mas algu�m que a leu afirma que o que se requer ao congresso � nada menos que isto: Quando acontecer que um deputado, senador ou intendente municipal, deixe de tomar assento ou por morte, ou porque a apura��o das atas eleitorais seja t�o demorada que primeiro se esgote o prazo do mandato, o diploma do intendente, do deputado ou do senador passar� ao leg�timo herdeiro do eleito, na linha direta. Quis-se estender ao genro o direito ao diploma, visto que a filha n�o pode ocupar nenhum daqueles cargos; mas, tal id�ia, foi rejeitada por grande maioria. Tamb�m se examinou se o eleito, em caso de doen�a mortal, sobrevinda seis meses depois de come�ada a apura��o dos votos, e na falta de herdeiro direto, podia legar o diploma por testamento. Os que defendiam essa outra id�ia, e eram poucos, fundavam-se em que o mandato � uma propriedade tempor�ria de natureza pol�tica, dada pela soberania nacional, para utilidade p�blica, se era transmiss�vel por efeito do sangue, igualmente o podia ser por efeito da vontade.

Negou-se esta conclus�o, e a peti��o limita-se ao exposto.

O exposto � incompreens�vel. Entendo o caso de morte; mas, como se h� de entender o de demora na apura��o dos votos Se a peti��o desse, para essa segunda hip�tese, um ter�o do prazo do mandato ou um limite fixo, digamos um ano, isto �, se determinasse que, no caso em que a apura��o eleitoral durasse um ano, o intendente, deputado ou senador poderia transmitir ao seu herdeiro var�o o mandato recebido nas urnas, entendia-se a medida. Mas estabelec�-la para quando a apura��o v� al�m do prazo do mandato, � absurdo. Que � ent�o que o eleito transmite se o mandato acabou? N�o desconhe�o que a apura��o pode ultrapassar o prazo do mandato, mas para esse caso a medida h� de ser outra.

Outra obje��o. Suponhamos que a apura��o das �ltimas elei��es municipais, j� adiantada, acabe dentro de tr�s meses. Pode um intendente eleito transmitir o mandato, no fim de t�o curto prazo? Parece que devia haver um limite m�nimo e outro m�ximo, seis meses e um ano. N�o faltam obje��es � reforma que se vai pedir ao Congresso. Uma das mais s�rias � a que respeita �s opini�es pol�ticas. Pode haver transmiss�o de diploma no caso em que o filho do eleito professa opini�es diversas ou contrarias �s do pai? Evidentemente n�o, porque os eleitores, votando no pai, votaram em certa ordem de id�ias, que n�o podem ser exclu�das da representa��o, sem audi�ncia deles. � veross�mil que alguns filhos mudem de id�ias, ajustando as suas ao diploma, desde que n�o podem ajustar o diploma �s suas; Lambem se pode dizer, com bons fundamentos, que um diploma � em si mesmo um mundo de id�ias. Conheci um homem que n�o possu�a nenhuma antes de diplomado; uma vez diplomado, n�o s� as tinha para dar, como para as vender. Talvez o leitor conhecesse outro homem assim. O que n�o falta neste mundo s�o homens.

Esperemos o resultado. N�o creio que tal reforma passe; ela � contraria, n�o s� aos princ�pios democr�ticos, mas � boa raz�o. O que louvo na peti��o que est� sendo assinada � o uso desse direito por parte do povo para requerer o que lhe parece necess�rio ao bem p�blico. S� condeno a circula��o clandestina. Que h� que esconder no uso da peti��o? Que mania � essa de tratar um direito como se fora um crime?

Afinal, talvez fosse melhor trocar o modo eleitoral, substituindo o voto pela sorte. A sorte � f�cil e expedita; escrevem-se os nomes dos candidatos, metem-se as c�dulas dentro de um chap�u, e o nome escrito na c�dula que sair � o eleito. Com este processo, fica reduzida a apura��o a quinze dias, mais ou menos. N�o � menos democr�tico. Cidades, antigas o tiveram, de parceria com o outro, e Arist�teles faz a tal respeito excelentes reflex�es no cap�tulo dos chap�us. Que seja sujeito � fraude, acredito; mas tudo corre o mesmo perigo. Um amigo meu, tendo de deixar o lugar que exercia em um conselho de cinco, assistia � cerim�nia das c�dulas e do chap�u. Sa�a o seu nome e sa�a ele. De noite, quando dormia, apareceu-lhe um anjo, que lhe falou por estas palavras: �Proc�pio, todas as c�dulas tinham o teu nome, porque nenhum dos outros queria sair; para outra vez l� as c�dulas, antes que as enrolem e te enrolem�.

Disse que bastava isto; resta-me agora, j� que estamos no cap�tulo das peti��es, propor uma aos altos poderes do c�u. H� mostras evidentes de nojo de Deus para com os homens; tal � a explica��o dos desastres cont�nuos, das tempestades de neve na Europa, das de �gua, ventos e raios nesta cidade, quarta-feira �ltima, da manga d'�gua no Amparo, de tantos outros temporais, males diversos, grandes e acumulados.

As criaturas humanas v�o imitando os desconcertos da natureza. Na Espanha, o general Fuentes pespega um sopapo no embaixador marroquino, diz um telegrama. Outro refere que na �ustria a embaixatriz japonesa acaba de converter-se ao catolicismo... Deus meu, n�o h� loucura em ser cat�lico; mas as embaixatrizes n�o nos tinham acostumado a esses atos de diverg�ncia com os embaixadores, seus maridos. Assim, s� por uma sublime loucura se explicar� esta convers�o, que o marido chamar� apostasia. Tamb�m pode ser que a convers�o n�o passe de um ardil diplom�tico do embaixador, para ser agrad�vel ao governo de Sua Majestade Cat�lica. Se estivesse na Turquia, talvez a esposa se fizesse mu�ulmana. Quando fores a Roma, ser romano, diz o ad�gio.

Oh! s�culos idos em que S. Francisco Xavier andou por aquelas partes do Jap�o, China e �ndia, a recolher almas dentro da rede crist�! Hoje s�o elas mesmas que v�o buscar o pescador cat�lico. � verdade que o papa acaba de condecorar um raj�, sect�rio de Buda; mas � tamb�m verdade que este raj� auxilia do seu bolsinho a funda��o de conventos crist�os. Vento de concilia��o e de eq�idade, tempera estes nossos ares controversos e turvos.

10 de fevereiro

As pessoas que foram crian�as, n�o esqueceram de certo a velha quest�o que se lhes propunha, sobre qual nasceu primeiro, se o ovo, se a galinha. Eu, cuja ast�cia era ent�o igual, pelo menos, � de Ulysses, achava uma solu��o ao problema, dizendo que quem primeiro nasceu foi o galo. Replicavam-me que n�o era isto, que a quest�o era outra, e repetiam os termos dela, muito explicados. Debalde citava eu o caso de Ad�o, nascido antes de Eva e de Caim; fechavam a cara e tornavam ao ovo e � galinha.

Esta semana lembrei-me do velho problema insol�vel. Com os olhos, � n�o nos camarotes da quarta ordem, ao fundo, e o p� na casinha do ponto, como o Rossi, � mas pensativamente postos no ch�o, repeti o mon�logo de Hamlet, perguntando a mim mesmo o que � que nasceu primeiro, se a baixa do c�mbio, se o boato. Se ainda tivesse a antiga ast�cia, diria que primeiro nasceram os bancos. Onde vai, por�m, a minha ast�cia? Perdi-a com a inf�ncia. A inoc�ncia em mim foi uma evolu��o, apareceu com a puberdade, cresceu com a juventude, vai subindo com estes anos maduros, a tal ponto que espero acabar com a alma virgem das crian�as que mamam.

N�o citei os bancos e continuei a recitar o mon�logo. O enigma n�o queria sair do caminho. Quem nasceu primeiro? N�o podia ser a baixa do c�mbio. Esta semana, quando ele entrou a baixar, disseram-me que era por efeito de um boato sinistro; logo, quem primeiro nasceu foi o boato. Mas tamb�m me referiram que depois da baixa � que o boato nasceu; logo, a baixa � anterior. Os primeiros raciocinam alegando a sensibilidade nervosa do c�mbio, que mal ouve alguma palavra menos segura, fica logo a tremer, enfraquecem-lhe as pernas, e ele cai. Ao contr�rio, redarg�em os outros, � quando ele cai que o boato aparece, como se a queda fosse, mal comparando, a pr�pria dor do parto. O diabo que os entenda, disse comigo; mas o problema continuava insol�vel, com os seus grandes olhos fulvos espetados em mim.

Nisto ou�o uma terceira opini�o, aqui mesmo, na Gazeta, uma pessoa que n�o conhe�o, e que em artigo de quinta-feira opinou de modo parecido com a minha solu��o do galo. Quem primeiro nasceu foi o papel-moeda; esse peso morto � a causa da baixa, e uma vez que se elimine a causa, eliminado fica o efeito. O rem�dio � reduzir o papel-moeda, mandando vir ouro de fora, e, como n�o seja poss�vel mandai-o vir a t�tulo de empr�stimo, �� chegada a oportunidade de vender a estrada de ferro Central do Brasil�.

A queda que este final do per�odo me fez dar, foi maior que a do c�mbio; fiquei a 8 15/16. Se o per�odo conclu�sse pela venda das Pir�mides, da ponte de Londres ou da Transfigura��o, n�o me assombraria mais. Esperava c�mbio, papel-moeda, ouro, depois mais ouro, mais papel-moeda e mais c�mbio, mas estava t�o pouco preparado para a Central do Brasil, que nem tinha arrumado as malas. Entretanto, o artigo n�o ficou a�; depois da venda da Central, lembra o resgate da estrada de Santos a Jundia�, em 1897, venda subseq�ente, e mais ouro. Em seguida, come�am os milh�es de libras esterlinas e os milhares de contos de r�is, crescendo e multiplicando-se, com tal fecundidade e cintila��o, que me trouxeram � mem�ria os grandes discursos de Thiers, quando ele despejava na c�mara dos deputados, do alto da tribuna, todos os milh�es e bilh�es do or�amento franc�s e da aritm�tica humana. O c�mbio, pelo artigo, n�o tem outro rem�dio sen�o subir a 20 e a 24; n�o logo, logo, mas devagar, para o fim de n�o produzir crises. Acaba-se a baixa, e resolve-se o problema.

O conhecimento que tenho de que a economia pol�tica n�o � a particular, impede-me dizer que tamb�m eu recebo, n�o milh�es, mas milhares de r�is, e, se n�o h� deseleg�ncia em comparar o bra�o humano ao trilho de uma estrada de ferro, e a cabe�a a uma locomotiva, d�o-me esse dinheiro pela minha Central; mas t�o depressa me d�o, como me levam tudo, visto que o homem n�o vive s� da palavra de Deus, mas tamb�m de p�o, e o p�o est� caro. A economia pol�tica, por�m, � outra coisa; ouro entrado, ouro guardado. Por saber disto � que n�o me cito; al�m de que, n�o � bonito que um autor se cite a si mesmo.

H� s� uma sombra no quadro cintilante do c�mbio alto pelo ouro entrado. � que o Congresso Nacional resolveu, por disposi��o de 1892, examinar um dia se h� de ou n�o alienar as estradas federais, todas ou algumas, ou se as h� de arrendar somente, ou continuar a trafeg�-las; e, porque n�o se possa fazer isso sem estudo, ordenou primeiro um inqu�rito, que o governo est� fazendo, segundo li nas folhas publicas, h� algumas semanas. A disposi��o legal de que trato, arreda um pouco a data dos deslumbramentos cambiais, e pode ser at� que quando a Uni�o tiver resolvido transferir ao particular alguma estrada, j� o c�mbio esteja t�o alto, que mal se lhe possa chegar, trepado numa cadeira. N�o digo trepado num banco, para n�o parecer que fa�o trocadilho, � cette fiente de l'esprit, qui vole, � como se dizia em n�o sei que com�dia do Alcazar.

Ao demais, o Congresso n�o tinha em vista o c�mbio, e menos ainda o desta semana. E, francamente, � sem tornar ao problema da anterioridade do c�mbio ou do boato, � quem � que pode com o primeiro destes dois amigos? Contaram-me que na quinta-feira, tendo a Alf�ndega suspendido o servi�o e fechado as portas, em regozijo da solu��o das Miss�es, lembrou-se um inventivo de dizer que a causa da suspens�o e do fechamento era a revolu��o que ia sair � rua. O c�mbio esfriou, como se estivesse na Noruega, e caiu.

E em que dia, Deus de paz e de concilia��o! No pr�prio dia em que uma senten�a final e sem apela��o punha termo � nossa velha querela diplom�tica. Quando nos alegr�vamos com a vit�ria, e repet�amos o nome do homem eminente, Rio Branco, filho de Rio Branco, a cuja sabedoria, capacidade e patriotismo confi�ramos a nossa causa, � que o c�mbio desmaia ao primeiro dito absurdo. N�o; n�o creio na anedota; a prova � que a Alf�ndega j� reabriu as portas, e o c�mbio continua baixo. Por S. Crispim e S. Crispiniano, metam-lhe uns tac�es debaixo dos p�s!

17 de fevereiro

Se a rainha das ilhas Sandwich tivesse procedido como acaba de proceder o rei de Si�o, talvez n�o se achasse, como agora, despojada do trono e condenada � morte, segundo os �ltimos despachos.

O rei de Si�o, pr�ncipe que acode ao doce nome de Chulalongkorn, teve uma id�ia, n�o direi genial, antes banal, e � sobremodo espantosa para mim, que supunha esse potentado superior �s aspira��es liberais do nosso tempo. O rei decretou uma assembl�ia legislativa. N�o houve revolu��o, � claro; tamb�m n�o houve tentativa de revolu��o, conspira��o,. peti��o, qualquer causa que mostrasse da parte do povo o desejo de emparelhar com o Jap�o no parlamentarismo. Foi tudo obra do rei (com licen�a) Chulalongkorn.

Tudo faz crer que a id�ia do soberano foi antes criar um enfeite para a coroa, que propriamente servir � liberdade. � sabido que o homem selvagem come�a pelo adorno, e n�o pelo vestido, ao contr�rio do civilizado, que primeiro se veste, e s� depois de vestido, caso lhe sobre algum dinheiro, busca a ornamenta��o. Liberalmente falando, os siameses estavam nus; o rei quis p�r-lhes um penacho encarnado.

Se n�o foi isso, se o rei est� verdadeiramente atacado de liberalismo ou lib�ralit�, conforme lhe seja mais aplic�vel, conv�m notar que a doen�a n�o � mortal. O decreto, que estatui a assembl�ia legislativa, tem uma fina cl�usula, � a de acabar com ela logo que lhe d� na veneta. Francamente, assim � que deviam ser todas as assembl�ias deste mundo. O receio de morrer obrig�-las-ia a beber a droga do botic�rio, � ou, em estilo nobre, a receber as algemas do poder. H� uma assembl�ia neste mundo (e haver� outras) que pede muita vez a pr�pria dissolu��o: � a c�mara dos comuns. Mas dissolu��o n�o � revoga��o; � a volta dos que forem mais h�beis ou mais fortes. O terror da morte � salutar. Desde que uma assembl�ia saiba que p�de �morrer de morte natural para sempre�, como sucedia aos enforcados judicialmente, � de crer que se fa�a mansa, cort�s, solicita, e n�o encete debate sem perguntar ao seu criador quais s�o as id�ias do anuo, e para onde h�o de convergir os votos.

Al�m dessa cl�usula, que evita os descaminhos, o rei de Si�o comp�s a assembl�ia de poucos membros, os ministros e doze fidalgos. � pouco; mas a experi�ncia tem mostrado que as assembl�ias numerosas s�o antes prejudiciais que �teis. N�o haver� campainha para chamar � ordem, nem os insuport�veis t�mpanos da nova c�mara dos deputados. Tamb�m n�o haver� cont�nuos para levar os pap�is ao presidente. Uma mesa e algumas cadeiras em volta bastar�o. Os neg�cios podem ir de par com o almo�o, e a jovem assembl�ia siamesa votar� o or�amento do futuro exerc�cio bebendo as �ltimas garrafas do exerc�cio atual � sa�de do rei e das novas institui��es.

Mui sagaz ser� quem nos disser o anuo em que desse embri�o legislativo sair� o parlamentarismo. Entretanto, j� n�o � dif�cil prever o tempo em que teremos o nosso parlamentarismo. N�o dou cinco anos; mas suponhamos oito. Os que o fizerem, devem excluir a dissolu��o, conquanto digam alguns que � condi��o indispens�vel desse sistema de governo. N�o h� nada indispens�vel no mundo. Copiar o parlamentarismo ingl�s ser� repetir a a��o de outros Estados; fa�amos um parlamentarismo nosso, local, particular. Sem o direito de dissolver a c�mara, o poder executivo ter� de concordar com os ministros, ficando unicamente � c�mara o direito de discordar deles e de os despedir, entre maio e outubro. Tenho ouvido chamar a isto v�lvula. Tamb�m se pode completar a obra reduzindo o presidente da Rep�blica �s fun��es m�nimas de respirar, comer, digerir, passear, valsar, dar corda ao rel�gio, dizer que vai chover, ou exclamar: �Que calor!�

Mas h� ainda um ponto no decreto siam�s, que, por ser siam�s, n�o deixa de ser imit�vel. � que a assembl�ia legislativa, nos casos de impedimento do rei por mol�stia ou outra causa, promulga as suas pr�prias leis, uma vez que sejam votadas por dois ter�os. Pode-se muito bem incluir esta cl�usula no nosso estatuto parlamentar, reduzindo os dois ter�os � maioria simples (metade e mais um). Destarte n�o h� receio de ver o chefe do Estado descambar das fun��es fisiol�gicas ou de sal�o para as de natureza pol�tica. A assembl�ia facilmente o persuadir� de que h� lindas perspectivas no alto Tocantins, e assumir� por meses os dois poderes constitucionais.

Se a rainha Lilinakalon tem feito o mesmo que acaba de fazer o seu colega de Si�o, n�o estaria em terra desde alguns meses. N�o o fez, ou porque n�o tivesse a id�ia (e h� quem negue originalidade pol�tica �s mulheres), ou por n�o achar meio adequado � reforma. Mas, Deus meu! onde � que n�o h� doze fidalgos para compor uma assembl�ia legislativa? Pode ser tamb�m que n�o previsse a revolu��o contra uma rainha jovem, gra�as � leitura de Cam�es, que s� viu isso entre b�rbaros lusitanos:

Contra uma dama, � duros cavalheiros,

Feros vos amostrais e carniceiros?

N�o valem Cal�opes, quando falam outras musas, seja a liberdade, seja a bolsa, se � certo que no movimento de Honolulu entrou uma opera��o mercantil. Menos ainda pode valer o puro galanteio ou a piedade. A verdade � que a rainha caiu.

N�o satisfeita da queda, tentou reaver o trono, e creio haver lido nos �ltimos despachos que a pobre mo�a foi condenada � morte, e tamb�m que a pena lhe fora comutada. Antes assim. Tudo isso lhe teria sido poupado, se ela decretasse a tempo uma pequena assembl�ia legislativa.

Mas deixemos Honolulu e Bangkok; deixemos nomes estranhos, mormente os de Si�o. Daqui a pouco talvez esteja no trono o filho da segunda mulher do rei, atual herdeiro, o pr�ncipe Chuufa Maha Majiravadh, nome ainda mais doce que o do pai. N�o � na do�ura do nome que est�o os bons sentimentos liberais. C�sar � o mais belo nome do mundo, e foi o dono dele que confiscou a liberdade romana. Esperemos que o futuro rei de Si�o n�o repita o exemplo, antes conclua o reinado decretando que a c�mara legislativa de Bangkok dar� uma resposta � fala do trono. Um de seus filhos aceitar� os ministros da assembl�ia, um de seus netos decretar� a elei��o dos deputados, tal como em Yeddo, Londres e Rio.

24 de fevereiro

Refere um telegrama do sul, que o general Mitre deu esta semana, em n�o sei que cidade argentina, um jantar de quinhentos talheres.

Dispensem-me de dizer desde quando acompanho com admira��o o general Mitre. N�o o vi nascer, nem crescer, nem sentar pra�a. O bu�o mal come�ava a pungir-me, j� ele comandava uma revolu��o, ganhava uma batalha, creio que em Pavon, e assumia o poder. Eleito presidente da rep�blica, foi reeleito por novo prazo, e, terminado este, assistiu � elei��o de Sarmiento, um advogado que era ent�o ministro em Washington. Vi este Sarmiento, quando ele aqui esteve de passagem para Buenos Aires, uma noite, �s dez horas e meia, no antigo Clube Fluminense, onde se hospedava. O clube era na casa da atual secretaria da justi�a e do interior. Sarmiento tomava ch�, sozinho, na grande sala, porque nesses tempos pr�-hist�ricos (1868) tomava-se ch� no clube, entre nove e dez horas. Era um homem cheio de corpo, cara rapada, olhos vivos e grandes. Vinha de estar com o imperador em S. Crist�v�o e trazia ainda a casaca, a gravata branca e, se me n�o falha a mem�ria, uma comenda.

Os amigos do general Mitre, deixando este o poder, deram-lhe em homenagem um jornal, a Naci�n, que ainda agora � dos primeiros e mais ricos daquela Rep�blica. Ao patriota seguiu-se o jornalista, cujos artigos li com muito prazer. Sendo orador, proferia discursos eloq�entes. General�ssimo dos ex�rcitos aliados contra Lopes, fez baixar a c�lebre proclama��o dos �tr�s dias em quart�is, tr�s semanas em campanha e tr�s meses em Assun��o�, que n�o foi sublime, unicamente porque a sorte da guerra disp�s as coisas de outra maneira. A hist�ria � assim. A eternidade depende de pouco.

Pois bem, admirando o general Mitre nas v�rias fases da vida p�blica e no exerc�cio dos seus m�ltiplos talentos, confesso que n�o senti jamais o atordoamento, o alvoro�o, uma coisa que n�o sei como defina, ao ler a not�cia do jantar de quinhentos talheres! � preciso ler isto, n�o com os olhos, n�o com a mem�ria, mas com a imagina��o. E de onde viria a diferen�a da sensa��o �ltima?

Talvez haja em mim, sem que eu saiba, algo pantagru�lico. Confesso que, em rela��o a L�culo, as batalhas que ele ganhou contra Mitr�dates nunca me agitaram tanto a alma como os seus banquetes. N�o conhe�o golpe dado por ele em inimigo que valha este dito ao mordomo, que, por estar o patr�o sozinho, lhe apresentou uma ceia de meia-tigela: �N�o sabes que L�culo ceia em casa de L�culo'� Comidas hom�ricas, tripas rabelaisianas, tudo que excede o limite ordin�rio, acende naturalmente a imagina��o. Jantares de fam�lia s�o a canalha das refei��es.

Pode ser tamb�m que a causa da extraordin�ria sensa��o que me deu o jantar de quinhentos talheres, fosse a triste, a l�vida, a miser�vel inveja da minha alma. Neste caso, se invejei o jantar de quinhentos talheres, foi menos pela comida que pelo pre�o. Eu quisera poder d�-lo, para n�o o dar. Que necessidade h� de fazer quatrocentos e cinq�enta est�magos ingratos, que � o m�nimo das digest�es esquecidas em um banquete de quinhentos? Os cinq�enta est�magos fi�is valem certamente a despena; mas a psicologia do est�mago � t�o complicada e obscura, que a fidelidade g�strica pode ser muita vez uma esperan�a n�o menos g�strica.

T�o de perto seguiu a este jantar de quinhentos talheres a parede dos oper�rios de Cascadura, que n�o pude espantar da mem�ria uma observa��o de Chamfort, a saber, que a sociedade � dividida em duas classes, uma que tem mais apetite que jantares, outra que tem mais jantares que apetite. Os paredistas queriam maior sal�rio e buscavam o pior caminho. H� meios pac�ficos e legais para obter melhoria de vencimentos. O direito de peti��o � de todos. Com ele, pode um cidad�o s�, e assim trinta, trezentos ou tr�s mil, obter justi�a e satisfa��o dos seus leg�timos interesses. N�o � novo nada disto, nem eu estou aqui para dizer coisas novas, mas velhas, coisas que pare�am ao leitor descuidado que � ele mesmo que as est� inventando.

N�o estranhei a parede em si mesma; estranhei que a fizessem oper�rios sem chefes, porque o chefe do partido oper�rio no Distrito Federal � um cidad�o que n�o est� aqui. N�o me consta que esse cidad�o, representante do distrito na c�mara dos deputados, capitaneasse nem animasse jamais coliga��es com o fim de suspender o trabalho; n�o me lembro, pelo menos. O que sei, e toda gente comigo, � que defendia com calor a classe oper�ria e os seus interesses.

Nem ainda me esqueceu o dia em que, metendo-se um deputado do norte ou do sul a propor alguma coisa em favor dos oper�rios da Central do Brasil, o chefe do partido emendou a m�o ao intruso, redarg�indo-lhe que �fosse cuidar dos oper�rios do seu Estado�. Para mim, � este o verdadeiro federalismo. N�o bastam divis�es escritas. Partidos locais, oper�rios estaduais. O problema oper�rio � terr�vel na Europa, em raz�o de ser internacional; mas, se nem o consentirmos nacional, e apenas distrital, teremos facilitado a solu��o, porque a iremos achando por partes, n�o se ocupando os respectivos chefes sen�o do que � propriamente seu. As classes conservadoras, desde que n�o virem os chefes juntos, formando um conc�lio, perdem o susto, e mais depressa poder�o ser vencidas e convencidas.

Tudo isso � pesado, e come�o a achar-me t�o s�rio, que desconfio j� do meu ju�zo. Em dia de carnaval, a loucura � de rigor, mas h� de ser a loucura alegre n�o a l�gubre. Sinto-me l�gubre. O melhor � recolher-me, apesar da saraivada de confete que principia.

3 de mar�o

Tantas s�o as mat�rias em que andamos discordes, que � grande prazer achar uma em que tenhamos a mesma opini�o. Essa mat�ria � o carnaval. N�o h� dois pareceres; todos confessam que este ano foi brilhante, e a mais de um esp�rito azedo e dif�cil de contentar ouvi que a rua do Ouvidor esteve espl�ndida.

Ouvi mais. Ouvi que houve ali janela que se alugou por duzentos mil r�is, e ter� havido outras muitas. � ainda uma causa da harmonia social, porquanto se h� dinheiro que sobre, h� naturalmente concilia��o p�blica. Nas casas de pouco p�o � que o ad�gio acha muito berro e muita sem raz�o. Uma janela e tr�s ou quatro horas por duzentos mil r�is � alguma coisa, mas a alegria vale o pre�o. A alegria � a alma da vida. Os m�scaras divertem-se � farta, e aqueles que os v�o ver passar n�o se divertem menos, n�o contando a troca de confete e de serpentinas, que tamb�m se faz entre desmascarados. Uns e outros esquecem por alguns dias as horas aborrecidas do ano.

Tal � a filosofia do carnaval; mas qual � a etimologia? O Sr. Dr. Castro Lopes reproduziu ter�a-feira a sua explica��o do nome e da festa. Discordando dos que v�em no carnaval uma despedida da carne para entrar no peixe e no jejum da quaresma (caro vale, adeus, carne), entende o nosso ilustrado patr�cio que o carnaval � uma imita��o das lupercais romanas, e que o seu nome vem dali. Nota logo que as lupercais eram celebradas em 15 de fevereiro; matava-se uma cabra, os sacerdotes untavam a cara com o sangue da v�tima, ou atavam uma m�scara no rosto e corriam seminus pela cidade. Isto posto, como � que nasceu o nome carnaval?

Apresenta duas conjecturas, mas adota somente a segunda, por lhe parecer que a primeira exige uma gin�stica dif�cil da parte das letras. Com efeito, sup�e essa primeira hip�tese que a palavra lupercalia perdeu as letras l, p, i, ficando uercala; esta, torcida de tr�s para diante, d� careual; a letra u entre vogais transforma-se em v, e da� careval; finalmente, a corrup��o popular teria introduzido um n depois do r, e ter carneval, que, com o andar dos tempos, chegou a carnaval. Realmente, a marcha seria demasiado longa. As palavras andam muito, em verdade, e nessas jornadas � comum irem perdendo as letras; mas, no caso desta primeira conjectura, a palavra teria n�o s� de as perder, mas de as trocar tanto, que verdadeiramente meteria os p�s pelas m�os, chegando ao mundo moderno de pernas para o ar. Gin�stica dif�cil. A segunda conjectura parece ao Sr. Dr. Castro Lopes mais l�gica, e � a que nos d� por solu��o definitiva do problema.

Ei-la aqui. �Era muito natural, diz o ilustrado ling�ista, que nessas festas se entoasse o canto dos irm�os arvais; muito naturalmente tamb�m ter-se-� dito, �s vezes, a festa do canto arval (cantus arvalis), palavras que produziram o termo carnaval, cortada a �ltima s�laba de cantos e as duas letras finais de arvalis. De canarval a carnaval a diferen�a � t�o f�cil, que ningu�m a por� em d�vida�.

A etimologia tem segredos dif�ceis, mas n�o inviol�veis. A genealogia � a mesma coisa. Quem sabe se o leitor, plebeu e manso, jogador do voltarete e mestre-sala, n�o descende de Nero ou de Cam�es. As fam�lias perdem as letras, como as palavras, e a do leitor ter� perdido a crueldade do imperador e a inspira��o do poeta; mas se o leitor ainda pode matar uma galinha, e se entre os dezoito e vinte anos comp�s algum soneto, n�o se despreze; n�o s� pode descender de Nero ou de Cam�es, mas at� de ambos.

Por isso, n�o digo sim nem n�o � explica��o do Sr. Dr. Castro Lopes. Digo s� que o s�bio M�nage achou, pelo mesmo processo, que o haricot dos franceses vinha do latim faba. � primeira vista parece gracejo; mas eis aqui as raz�es do etimologista: �On a d� dire faba, puis fabaricus, puis fabaricotus, aricotus et enfin haricot�. H� seguramente um ponto de partida conjectural, em ambos os casos. O on a d� dire de M�nage e o ter-se-� dito de Castro Lopes s�o indispens�veis, uma vez que nenhum documento ou monumento nos d� a primeira forma da palavra. O resto � l�gico. Toda a quest�o � saber se esse ponto de partida conjetural � verdadeiro. Mas que h� neste mundo que se possa dizer verdadeiramente verdadeiro Tudo � conjetural. Dai-me um axioma: a linha reta � a mais curta entre dois pontos. Parece-nos que � assim, porque realmente, medindo todas as linhas poss�veis, achamos que a mais curta � a reta; mas quem sabe se � verdade?

O que eu nego ao nosso Castro Lopes, � o papel de Cassandra que se atribui, afirmando que n�o � atendido em nada. N�o o ser� em tudo; mas h� de confessar que o � em algumas coisas. H� palavras propostas por ele, que andam em circula��o, j� pela novidade do cunho, j� pela autoridade do emissor. Card�pio e convescote, s�o usados. N�o � menos usado precon�cio, proposto para o fim de expelir o reclame dos franceses, embora tenhamos reclamo na nossa l�ngua, com o mesmo aspecto, origem e significa��o. Que lhe falta ao nosso reclamo? Falta-lhe a forma erudita, a novidade, certo mist�rio. Eu, se n�o emprego convescote, � porque j� n�o vou a tais patuscadas, n�o � que lhe n�o ache gra�a expressiva. O mesmo digo de card�pio.

Nem tudo se alcan�a neste mundo. Um homem trabalha quarenta anos para s� lhe ficar a obra de um dia. Felizes os que puderem deixar uma palavra ou duas: ter�o contribu�do para o lustre do estilo dos p�steros, e dado ve�culo asseado a uma ou duas id�ias. Filinto El�sio mostra o exemplo do marqu�s de Pombal, que, tendo de expedir uma lei, introduziu nela a palavra apan�gio, logo aceita por todos. �Apan�gio passou; hoje � corrente�, disse o poeta em verso. Ai, marqu�s! marqu�s! digo eu em prosa, quem sabe se de tantas coisas que fizeste, n�o � esta a �nica obra que te h� de ficar?

10 de mar�o

A autoridade recolheu esta semana � deten��o duas feiticeiras e uma cartomante, levando as ferramentas de ambos os of�cios. Achando-se estes inclu�dos no c�digo como delitos, n�o fez mais que a sua obriga��o, ainda que incompletamente.

A minha quest�o � outra. As feiticeiras tinham consigo uma cesta de bugigangas, aves mortas, moedas de dez e vinte r�is, uma perna de ceroula velha, saquinhos contendo feij�o, arroz, farinha, sal, a��car, canjica, penas e cabe�as de frangos. Uma delas, por�m, chamada Umbelina, trazia no bolso n�o menos de quatrocentos e treze mil-r�is. Eis o ponto. Pe�o a aten��o das pessoas cultas.

Nestes tempos em que o p�o � caro e pequeno, e tudo o mais vai pelo mesmo fio, um of�cio que d� quatrocentos e treze mil-r�is pode ser considerado delito? Parece que n�o. Gente que precisa comer, e tem que pagar muito pelo pouco que come, podia roubar ou furtar, infringindo os mandamentos da lei de Deus. Tais mandamentos n�o falam de feiti�aria, mas de furto. A feiti�aria, por isso mesmo que n�o est� entre o homic�dio e a impiedade, � delito inventado pelos homens, e os homens erram. Quando acertam, � preciso examinar a sua afirma��o, comparar o ato ao rendimento, e concluir.

N�o se diga que a feiti�aria � ilus�o das pessoas cr�dulas. Sou indigno de criticar um c�digo, mas deixem-me perguntar ao autor do nosso: Que sabeis disso? Que � ilus�o? Conheceis Poe? N�o � jurisconsulto, posto desse um bom juiz formador da culpa. Ora, Poe escreveu a respeito do povo: �O nariz do povo � a sua imagina��o; por ele � que a gente pode lev�-lo, em qualquer tempo, aonde quiser�. O que chamais ilus�o � a imagina��o do povo, isto �, o seu pr�prio nariz. Como fazeis crime a feiti�aria de o puxar at� o fim da rua, se n�s podemos pux�-lo at� o fim da par�quia, do distrito ou at� do mundo?

No nosso ano terr�vel, vimos esse nariz chegar mais que ao fim do mundo, chegar ao c�u. Ningu�m fez disso crime, alguns fizeram virtude, e ainda os h� virtuosos e credores. Realmente, prometer com um palmo de papel um pal�cio de m�rmore � o mesmo que dar um verdadeiro amor com dois p�s de galinha. A feiticeira fecha o corpo �s mol�stias com uma das suas bugigangas, talvez a ceroula velha, � e h� facultativo (n�o digo competente) que faz a mesma coisa, levando a ceroula nova. Que raz�o h� para fazer de um ato malef�cio, e benef�cio de outro?

O c�digo, como n�o cr� na feiti�aria, faz dela um crime, mas quem diz ao c�digo que a feiticeira n�o � sincera, n�o cr� realmente nas drogas que aplica e nos bens que espalha? A psicologia do c�digo � curiosa. Para ele, os homens s� cr�em aquilo que ele mesmo cr�; fora dele, n�o havendo verdade, n�o h� quem creia outras verdades, � como se a verdade fosse uma s� e tivesse trocos mi�dos para a circula��o moral dos homens.

Tudo isto, por�m, me levaria longe; limitemo-nos ao que fica; e n�o falemos da cartomante, em quem se n�o achou dinheiro, provavelmente porque o tem na caixa econ�mica. Relativamente �s cartomantes, confesso que n�o as considero como as feiticeiras. A cartomancia nasceu com a civiliza��o, isto �, com a corrup��o, pela doutrina de Rousseau. A feiti�aria � natural do homem; vede as tribos primitivas. Que tamb�m o � da mulher, confess�-lo-� o leitor. Se n�o for pessoa extremamente grave, j� h� de ter chamado feiticeira a alguma mo�a. V�o meter na cadeia uma senhora s� porque fecha o corpo alheio com os seus olhos, que valem mais ainda que cabe�as de frangos ou p�s de galinha. Ou p�s de galinha!

Podia dizer de muitas outras feiti�arias, mas seria necess�rio indagar o ponto de semelhan�a, e n�o estou de alma inclinada � demonstra��o. Nem � simples narra��o, Deus dos enfermos! Isto vai saindo ao sabor da pena e tinta. E por estar doente, e com grandes desejos de acudir � feiti�aria, � que me d�i (sempre o interesse pessoal!) a pris�o das duas mulheres. Talvez a moeda de dez r�is me desse sa�de, n�o digo uma s� moeda, mas um milh�o delas.

Sim, eu creio na feiti�aria, como creio nos bichos de Vila Isabel, outra feiti�aria, sem sacos de feij�o. S�o sistemas. Cada sistema tem os seus meios curativos e os seus emblemas particulares. Os bichos de Vila Isabel, mansos ou bravios, fazem ganhar dinheiro depressa, e sem trabalho, tanto como fazem perd�-lo, igualmente depressa e sem trabalho, tudo sem trabalho, n�o contando a viagem de bond, que � longa, v�ria e alegre. Ganha-se mais do que se perde, e tal � o segredo que esses bons animais trouxeram da natureza, que os homens, com toda a civiliza��o antiga e moderna, ainda n�o alcan�aram. N�o sei se a feiti�aria dos bichos d� mais dos quatrocentos e treze mil-r�is da Umbelina; talvez d� mais, o que prova que � melhor.

Al�m dessas, temos muitas outras feiti�arias; mas j� disse, n�o vou adiante. A pena cai-me. N�o trato sequer da pol�tica, ali�s assunto que d� sa�de. H� quem creia que ela � uma bela feiti�aria, e n�o falta quem acrescente que nesta, como na outra, o povo n�o pode nem anda desnarigado; � horrendo e inc�modo.

Tamb�m n�o cito o j�ri, institui��o feiticeira, dizem muitos. Ser-me-ia preciso examinar este ponto, longamente, profundamente, independentemente, e n�o h� em mim agora profundeza, nem independ�ncia, nem me sobra tempo para tais estudos. Eu aprecio esta institui��o que exprime a grande id�ia do julgamento pelos pares; examina-se o fato sem preven��o de magistrados, nem c�mara pr�pria de of�cio, sem nenhuma aten��o � pena. O crime existe? Existe; eis tudo. N�o existe; eis ainda mais. Depois, � para mim institui��o velha, e eu gosto particularmente dos meus velhos sapatos; os novos apertam os p�s, enquanto que um bom par de sapatos folgados � como os dos pr�prios anjos guerreiros, Miguel, etc., etc., etc.

17 de mar�o

O primeiro dia desta semana foi assinalado por um sucesso importante: venceu o burro. Venceu no Jardim Zool�gico, onde vencem o ganso e o tigre. Mas n�o importa o lugar; uma vez que venceu, � para se lhe dar parab�ns, a esse bom e santo companheiro de S. Jorge, na estrada de Jerusal�m, e de Sancho Pan�a, em toda a sua vida, amigo do nosso sertanejo, e, ainda agora, em alguns lugares, rival da estrada de ferro.

Est�vamos afeitos a dizer e ouvir dizer que venciam cavalo Fulano e Sicrano. � verdade que era no Derby e outras arenas de luta animal; mas, enfim, era s� o cavalo que vencia, porque s� ele apostava, deixando dez ou vinte mil r�is nas algibeiras de Pedro, e outras tantas saudades nas de Paulo, Sancho e Martinho. Dizem at� que eram os mil r�is que corriam, e centenas de pessoas que v�o �s pr�prias arenas cr�em que os cavalos s�o puras entidades verbais. Fen�meno explic�vel pela freq��ncia das casas em que n�o h� cavalos: acaba-se crendo que eles n�o existem.

Venceu o burro. Digo venceu para usar do termo impresso; mas o verbo da conversa��o � dar. Deu o burro, amanh� dar� o macaco, depois dar� a on�a, etc. Sexta-feira, achando-me numa loja, vi entrar um mancebo, extraordinariamente jovial, � por natureza ou por outra coisa � e bradava que tinha dado a avestruz, express�o obscura para quem n�o conhece os costumes dos nossos animais. � mais breve, mais viva, e n�o duvido que mais verdadeira. N�o duvido de nada. A zoologia corre assim parelha com a loteria, e tudo acaba em ci�ncia, que � o fim da humanidade.

Tamb�m a arqueologia � ci�ncia, mas h� de ser com a condi��o de estudar as coisas mortas, n�o ressuscit�-las. Se quereis ver a diferen�a de uma e outra ci�ncia, comparai as alegrias vivas do nosso jardim Zool�gico com o projeto de ressuscitar em Atenas, ap�s dois mil anos, os jogos ol�mpicos. Realmente, � preciso ter grande amor a essa ci�ncia de farrapos para ir desenterrar tais jogos. Pois � do que trata agora uma comiss�o, que j� disp�e de fundos e boa vontade. Est� marcado o espet�culo para abril de 1896. N�o h� l� burros nem cavalos; h� s� homens e homens. Corridas a p�, luta corporal, exerc�cios gin�sticos, corridas n�uticas, nata��o, jogos atl�ticos, tudo o que possa esfalfar um homem sem nenhuma vantagem dos espectadores, porque n�o h� apostas. Os pr�mios s�o para os vencedores e honor�ficos. Toda a metaf�sica de Arist�teles. Parece que h� id�ia de repetir tais jogos em Paris, no fim do s�culo, e nos Estados Unidos em 1904. Se tal acontecer, adeus, Am�rica! N�o valia a pena descobri-la h� quatro s�culos, para faz�-la recuar vinte.

Oxal� n�o se lembrem de n�s. Fiquemos com os burros e suas prendas. Bem sei que eles n�o d�o s� dinheiro, d�o tamb�m a morte e pernas quebradas. � o que dizem as estat�sticas do Dr. Viveiros de Castro, o qual acrescenta que o maior n�mero de desastres dessa esp�cie � causado pelos bondes. Parece-lhe que o meio de diminuir tais calamidades � responsabilizar civilmente as companhias; desde que elas paguem as vidas e as pernas dos outros, procurar�o ter cocheiros h�beis e cautelosos, em vez de os ter maus, dar-lhes fuga ou abafar os processos com empenhos.

A primeira observa��o que isto me sugere, � que h� j� muitos respons�veis, o burro, o cocheiro, o bonde e a companhia. � prov�vel que a eletricidade tamb�m tenha culpa. Por que n�o o Padre Eterno, que nos fez a todos? A segunda observa��o � que tal rem�dio, excelente e justo para que os criados n�o nos quebrem os pratos, uma vez que os paguem, � injusto e de duvidosa efic�cia, relativamente �s companhias de bondes. Injusto, porque o dinheiro da companhia � para os dividendos semestrais aos acionistas, e para o custeio do material. Os burros comem pouco, mas comem; os carros andam aos solavancos e descarrilam a mi�do, mas algum dia ter�o de ser concertados, n�o todos a um tempo, mas um ou outro; seria desumano, al�m de contr�rio aos interesses das companhias, fazer andar carros que se desfizessem na rua, ao fim de cinco minutos. Ora, se os desastres houvessem de ser pagos por elas, que ficar� no cofre para as despesas necess�rias?

Terceira observa��o. Se as companhias, no dizer do abalizado criminalista, abafam agora com empenhos os processos dos cocheiros, porque n�o abafar�o os seus pr�prios, quando houverem de pagar vidas e pernas quebradas? Ou j� n�o haver� empenhos? Pode hav�-los at� maiores, uma vez que as companhias tratem de defender, n�o j� os seus auxiliares, mas os pr�prios fundos.

Vamos � quinta e derradeira observa��o. O autor afirma que a lei de 1871, feita para punir os delitos cometidos por imper�cia ou imprud�ncia, tem sido letra morta. Pergunto eu: quem nos dir� que a lei que se fizer para obrigar civilmente as companhias, n�o ser� tamb�m letra morta? Que direito de prefer�ncia tem a lei de 1871? Ou, considerando que a morte da letra de uma lei � antes um desastre que um privil�gio, por que raz�o a nova lei estar� fora do alcance do mesmo astro ruim que matou a antiga? Por outro lado, incumbindo aos ju�zes a execu��o da lei de 1871, e tendo esta ficado letra morta, acaso consta que algum deles a tenha indenizado da vida que perdeu? Como obrigar as companhias � indeniza��o da vida de um homem? Em que � que o homem � superior �  lei?

S�o quest�es melindrosas. No dia 27 deste m�s, por exemplo, come�ar� a ter execu��o a lei de lota��o dos bondes. Suponhamos que n�o come�a; leis n�o s�o eclipses, que, uma vez anunciados cumprem-se pontualmente; e ainda assim esta semana houve um eclipse da lua que ningu�m viu aqui, n�o por falta do eclipse, � verdade, mas por falta da lua. Leis s�o obras humanas, imperfeitas, como os autores. Suponhamos que n�o se cumpre a lei no dia 27; apostemos at� alguma cosa, estou que este burro d�. Como exigir que a lei, n�o cumprida a 27, venha a s�-lo a 28, ou em abril, maio ou qualquer outro m�s do ano? Tamb�m h� leis do esquecimento.

24 de mar�o

Divino equin�cio, nunca me hei de esquecer que te devo a id�ia que vou comunicar aos meus concidad�os. Antes de ti, nos tr�s primeiros dias h�rridos da semana, n�o � poss�vel que tal id�ia me brotasse do c�rebro. Depois, tamb�m n�o. Conhe�o-me, leitor. H� quem pense, transpirando; eu, quando transpiro, n�o penso. Deixo essa fun��o ao meu criado, que, do princ�pio ao fim do ano, pensa sempre, embora seja o contr�rio do que me � agrad�vel; por exemplo, escova-me o chap�u �s avessas. Naturalmente, ralho.

� Mas, patr�o, eu pensava...

� Jos� Rodrigues, brado-lhe exasperado; deixa de pensar alguma vez na vida.

� H� de perdoar, mas o pensamento � influ�ncia que vem dos astros; ningu�m pode ir contra eles.

Ou�o, calo-me e vou andando. Nos dias que correm, ter um criado que pense barato, � t�o rara fruta, que n�o vale a pena discutir com ele a origem das id�ias. Antes mudar de chap�u que de ordenado.

A id�ia que tive quinta-feira, em parte se pode comparar ao chap�u escovado de encontro ao p�lo; mas ser� culpa da escova ou do chap�u? Cuido que do chap�u. O dia correu fresco, a noite fresqu�ssima, as estrelas fulguravam extraordinariamente, e se o meu criado tem raz�o, foram elas que me influ�ram o pensamento. Sa� para a rua. Havia pr�ximo umas bodas. A casa iluminada chamava a aten��o p�blica, muita gente fora, mo�as principalmente, que n�o perdem festas daquelas, e correm � igreja, �s portas, � rua, para ver um noivado. Qualquer pessoa de mediano esp�rito cuidar� que era este assunto que me preocupava. N�o, n�o era; cogitava eleitoralmente, ao passo que rompia os grupos, perguntava a mim mesmo: Por que n�o faremos uma reforma constitucional?

Fala-se muito em elei��es violentas e corruptas, a bico de pena, a bacamarte, a faca e a pau. Nenhuma dessas palavras � nova aos meus ouvidos. Conhe�o-as desde a inf�ncia. Crespas s�o deveras; na entrada do pr�ximo s�culo � for�a mudar de m�todo ou de nomenclatura. Ou o mesmo sistema com outros nomes, ou estes nomes com diversa aplica��o. Como em todas as coisas, h� uma parte verdadeira na acusa��o, e outra falsa, mas eu n�o sei onde uma acaba, nem onde outra come�a. Pelo que respeita � fraude, sem negar os seus m�ritos e proveitos, acho que algumas vezes podem dar canseiras in�teis. Quanto � viol�ncia, sou da fam�lia de Stendhal, que escrevia com o cora��o nas m�os: Mon seul d�faut est de ne pas aimer le sang.

N�o amando o sangue, temendo as incertezas da fraude, e julgando as elei��es necess�rias, como achar um modo de as fazer sem nenhum desses riscos? Formulei ent�o um plano compar�vel ao gesto do meu criado, quando escova o chap�u �s avessas. Suprimo as elei��es. Mas como farei as elei��es, suprimindo-as? Fa�o-as conservando-as. A id�ia n�o � clara; lede-me devagar.

Sabeis muito bem o que eram os pelouros antigamente. Eram umas bolas de cera, onde se guardavam, escritos em papel, os nomes dos candidatos � verea��o; abriam-se as bolas no fim do prazo da lei, e os nomes que sa�am, eram os escolhidos para a magistratura municipal. Pois este processo do antigo reg�men � o que me parece capaz de substituir o atual mecanismo, desenvolvido, adequado ao n�mero de eleitos. Um grave tribunal ficar� incumbido de escrever os nomes, n�o de todos os cidad�os que tiverem condi��es de elegibilidade, mas s� daqueles que, tr�s ou seis meses antes, se declararem candidatos. Outro tribunal ter� a seu cargo abrir os pelouros, ler os nomes, escrev�-los, atest�-los, proclam�-los e public�-los. Esta � a metade da minha id�ia.

A outra metade � o seu natural complemento. Com efeito, restaurar os pelouros, sem mais nada, seria desinteressar o cidad�o da escolha dos magistrados e universalizar a absten��o. Quem quereria sair de casa para assistir � est�ril cerim�nia da leitura de nomes? Poucos, decerto, pouqu�ssimos. Acrescentai a gravidade do tribunal e teremos um espet�culo pr�prio para fazer dormir. N�o tardaria que um partido se organizasse pedindo o antigo processo, com todos os seus riscos e perigos, far-se-ia provavelmente uma revolu��o, correria muito sangue, e este aparelho, restaurado para eliminar o bacamarte, acabaria ao som do bacamarte.

Eis o complemento. O meneio das palavras ser� nem mais nem menos o dos bichos do Jardim Zool�gico. O cidad�o, em vez de votar, aposta. Em vez de apostar no gato ou no le�o, aposta no Alves ou no Azambuja. O Azambuja d�, o Alves n�o d�, distribuem-se os dividendos aos devotos do Azambuja. Para o ano dar� o Alves, se n�o der o Meireles.

Nem h� raz�o para n�o amiudar as elei��es, faz�-las algumas vezes semestrais, bimestrais, mensais, quinzenais, e, tal seja a pouquidade do cargo, semanais. O esp�rito p�blico ficar� deslocado; a opini�o ser� regulada pelos lucros, e dir-se-� que os princ�pios de um partido nos �ltimos dois anos t�m sido mais favorecidos pela Fortuna que os princ�pios adversos. Que mal h� nisso? Os antigos n�o se regeram pela Fortuna? Gregos e romanos, homens que valeram alguma coisa, confiavam a essa deusa o governo da Rep�blica. Um deles (n�o sei qual) dizia que tr�s poderes governam este mundo: Prud�ncia, For�a e Fortuna. N�o podendo eliminar esta, regulemo-la.

O interesse p�blico ser� enorme. Haver� palpites, pedir-se-�o palpites; far-se-� at�, se for preciso, uma legi�o de adivinhos, incumbidos de segredar aos cidad�os os nomes prov�veis ou certos. Haver� folhas especiais, bondes especiais, botequins especiais, onde o cidad�o receba um refresco e um palpite, deixando dois ou tr�s mil-r�is. Esta quantia parece ser mais, e � menos que os mil e duzentos homens que acabam de morrer nas ruas de Lima. Sendo as pequenas revolu��es, em subst�ncia, uma quest�o eleitoral, segue-se que o meu plano zool�gico � prefer�vel ao sistema de suspender a matan�a de tanta gente, por interven��o diplom�tica. A zoologia exclui a diplomacia e n�o mata ningu�m. Mon seul d�faut etc.

31 de mar�o

De quando em quando aparece-nos o conto do vig�rio. Tivemo-lo esta semana, bem contado, bem ouvido, bem vendido, porque os autores da composi��o puderam receber integralmente os lucros do editor.

O conto do vig�rio � o mais antigo g�nero de fic��o que se conhece. A rigor, pode crer-se que o discurso da serpente, induzindo Eva a comer o fruto proibido, foi o texto primitivo do conto. Mas, se h� d�vida sobre isso, n�o a pode haver quanto ao caso de Jac� e seu sogro. Sabe-se que Jac� prop�s a Lab�o que lhe desse todos os filhos das cabras que nascessem malhados. Lab�o concordou, certo de que muitos trariam uma s� cor; mas Jac�, que tinha plano feito, pegou de umas varas de pl�tano, raspou-as em parte, deixando-as assim brancas e verdes a um tempo, e, havendo-as posto nos tanques, as cabras concebiam com os olhos nas varas, e os filhos sa�am malhados. A boa f� de Lab�o foi assim emba�ada pela finura do genro; mas n�o sei que h� na alma humana que Lab�o � que faz sorrir, ao passo que Jac� passa por um var�o arguto e h�bil.

O nosso Lab�o desta semana foi um honesto fazendeiro do Chiador, que, estando em uma rua desta cidade, viu aparecer um homem, que lhe perguntou por outra rua. Nem o fazendeiro, nem o outro desconhecido que ali apareceu tamb�m, tinha not�cia da rua indicada. Grande afli��o do primeiro homem recentemente chegado da Bahia, com vinte contos de r�is de um tio dele, j� falecido, que deixara dezesseis para os n�ufragos da Terceira e quatro para a pessoa que se encarregasse da entrega.

Quem � que, nestes ou em quaisquer tempos, perderia t�o boa ocasi�o de ganhar depressa e sem cansa�o quatro contos de r�is? eu n�o, nem o leitor, nem o fazendeiro do Chiador, que se ofereceu ao desconhecido para ir com ele depositar na Casa Leit�o, Largo de Santa Rita, os dezesseis contos, ficando-lhe os quatro de remunera��o.

� N�o � preciso que o acompanhe, respondeu o desconhecido; basta que o senhor leve o dinheiro, mas primeiro � melhor juntar a este o que traz a� consigo.

� Sim, senhor, anuiu o fazendeiro. Sacou do bolso o dinheiro que tinha (um conto e tanto), entregou-o ao desconhecido, e viu perfeitamente que este o juntou ao ma�o dos vinte; a��o an�loga � das varas de Jac�. O fazendeiro pegou do ma�o todo, despediu-se e guiou para o Largo de Santa Rita. Um homem de m� f� teria ficado com o dinheiro, sem curar dos n�ufragos da Terceira, nem da palavra dada. Em vez disso, que seria mais que deslealdade, o portador chegou � Casa do Leit�o, e tratou de dar os dezesseis contos, ficando com os quatro de recompensa. Foi ent�o que viu que todas as cabras eram malhadas. O seu pr�prio dinheiro, que era de uma s� cor, como as ovelhas de Lab�o, tinha a pele variegada dos jornais velhos do costume.

A prova de que o primeiro movimento n�o � bom, � que o fazendeiro do Chiador correu logo � pol�cia; � o que fazem todos. Mas a pol�cia, n�o podendo ir � cata de uma sombra, nem adivinhar a cara e o nome de pessoas h�beis em fugir, como os her�is dos melodramas, n�o fez mais que distribuir o segundo milheiro do conto do vig�rio, mandando a not�cia aos jornais. Eu, se algum dia os contistas me pegassem, trataria antes de recolher os exemplares da primeira edi��o.

Aos sapientes e pacientes recomendo a bela monografia que podem escrever estudando o conto do vig�rio pelos s�culos atr�s, as suas modifica��es segundo o tempo, a ra�a e o clima. A obra, para ser completa, deve ser imensa. � seguramente maior o n�mero das trag�dias, tanta � a gente que se tem estripado, esfaqueado, degolado, queimado, enforcado, debaixo deste belo sol, desde as batalhas de Josu� at� aos combates das ruas de Lima, onde as autoridades sanit�rias, segundo telegramas de ontem, esfor�am-se grandemente por sanear a cidade �empestada pelos cad�veres que ficaram apodrecidos ao ar livre�. Lembrai-vos que eram mais de mil, e imaginai que o detest�vel fedor de gente morta n�o custa a vit�ria de um princ�pio. O conto � menos numeroso, e, seguramente, menos sublime; mas ainda assim ocupa lugar eminente nas obras de fic��o. Nem � o tamanho que d� primazia � obra, � a feitura dela. O conto do vig�rio n�o � propriamente o de Voltaire, Boccaccio ou Andersen, mas � conto, um conto especial, t�o c�lebre como os outros, e mais lucrativo que nenhum.

Pela minha parte n�o escrevo nada, limito-me a esta breve hist�ria da semana, em que tanta vez perco o fio, como agora, sem saber como passe do conto aos bichos. A proposta municipal para transformar o Jardim Jocol�gico em Jardim Zool�gico, apresentada anteontem, at� certo ponto ata-me as m�os; aguardo a vota��o do Conselho. Quando muito, visto que a proposta ainda n�o � lei, e ainda os bichos guardar�o dinheiro, podia escrever uma peti��o em verso. Vi que esta semana a borboleta ganhou um dia. Juro-vos que n�o sabia da presen�a dela na cole��o dos bichos recreativos, e n�o descrevo a pena que me ficou, porque a l�ngua humana n�o tem palavras para tais l�stimas.

Deus meu! a borboleta na mesma caixa do porco! O lindo inseto t�o prezado de todos, e particularmente dos vitoriosos japoneses, agitando as assas naquele espa�o em que costuma grunhir o animal detestado de Abra�o, de Isaac e de Jac�! Onde nos levareis, anarquia da �tica e da est�tica? Poetas mo�os, juntai-vos e componde a melhor das poliant�ias, um soneto �nico, mas um soneto-legi�o, em que se pe�a aos poderes da Terra e do C�u a exclus�o da borboleta de semelhante orgia. Ganhe o pato, o porco, o peru, o diabo, que � tamb�m animal de lucro, mas fique a borboleta entre as flores, suas primas.

7 de abril

N�o h� quem n�o conhe�a a minha desafei��o � pol�tica, e, por dedu��o, a profunda ignor�ncia que tenho desta arte ou ci�ncia. Nem sequer sei se � arte ou ci�ncia; apenas sei que as opini�es variam a tal respeito. Faltam-me os meios de achar a verdade. Quando era vivo um botic�rio que tive, lido em mat�rias especulativas, a tal ponto que me trocava os rem�dios, recorria a ele comumente, e nunca o apanhei descal�o. A raz�o que o levava a estudar a literatura pol�tica, em vez da farmac�utica, n�o a pude entender nunca, salvo se era o natural pendor do homem, que vai para onde lhe leva o esp�rito. J� perguntei a mim mesmo se era porque na pol�tica haja de tudo, como na botica; mas n�o acertei com a resposta. Deus lhe fale n'alma!

Depois que ele morreu, se acontece algum caso pol�tico em que deva falar, dou-me ao trabalho asp�rrimo de ler tudo o que se tem escrito, desde Arist�teles at� �s mais recentes �publica��es a pedido�, e acabo sabendo ainda menos que os autores destas publica��es. Foi o que me aconteceu esta semana com o caso da Bahia.

N�o confundam com outro caso da Bahia, que chamarei especialmente da povoa��o dos Milagres, onde quatrocentos bandidos, depois de muitas mortes e arrombamentos, destrui��o de altares e de imagens, levaram o ardor ao ponto de desenterrar o cad�ver de um capit�o Canuto, e, depois de o castrarem, arrancaram-lhe uma orelha e a l�ngua, e queimaram o resto.

Pode ser que haja pol�tica nesses movimentos, porque os bandidos de verdade n�o desenterram cad�veres sen�o para levar as j�ias, se as tem; mas eu inclino-me antes a crer em algum sentimento religioso. Esses inculcados bandidos s�o talvez portadores de uma nova f�. A f� abala montanhas: como n�o h� de desenterrar cad�veres, opera��o muito mais f�cil? N�o se destroem imagens, n�o se queimam altares, n�o se matam fam�lias inteiras, n�o se queima um homem morto, sen�o por algum sentimento superior e forte. A inquisi��o tamb�m queimava gente, mas gente viva, e depois de um processo enfadonhamente comprido, com certos regulamentos, tudo frio e sem alma. N�o tinha aquela f�ria, aquele desatino, aquela paix�o formid�vel e invenc�vel.

N�o trato desses mission�rios, que talvez sejam os mesmos que andaram h� tempos em Canavieiras e varias partes, e mataram h� pouco em Santa Quit�ria umas cinco pessoas, sem outro supl�cio al�m dos aparelhos naturais da morte. N�o conhe�o o credo novo; os recentes profetas n�o escrevem nem imprimem nada.

Talvez at� falem pouco. Os melhores oper�rios s�o silenciosos. N�o trato deles, nem do mo�o que acaba de morrer, por a��o de um bonde el�trico, que � o nosso bandido pol�tico ou mission�rio religioso, com um toque cient�fico, inteiramente estranho aos de Milagres e Canavieiras. Concordo que o caso de anteontem � triste; n�o nego que os cocheiros (com perd�o da palavra) dos bondes el�tricos entendem pouco ou nada do of�cio; mas a morte de um ou mais homens n�o vale um problema pol�tico.

Outrossim, n�o quero saber de bichos, que j� me enfadam, nem do jogo de flores. Noutro tempo, este jogo era um divertimento de fam�lia; cada pessoa era uma flor, por escolha pr�pria, cam�lia, sempre-viva, amor perfeito, violeta, e travavam uma conversa��o em que as flores nomeadas, se n�o acudiam em tomar a palavra, pagavam prenda. Tempos buc�licos. Hoje parece que cada flor ou pessoa significa dez tost�es. Tempos pecuni�rios.

Fiquemos no caso da Bahia. Os dois partidos daquele Estado tratam da apura��o dos votos eleitorais; mas sendo a situa��o grav�ssima, e conveniente a paz, fazem-se tentativas de concilia��o, tendo j� entrado nisso o arcebispo, que nada alcan�ou. A interven��o do prelado e o nenhum efeito dos seus esfor�os provam que � s�ria a crise.

Uma das tentativas esteve quase a produzir fruto; foi in�til, porque um dos partidos cedia o ter�o no senado e na c�mara dos deputados, solu��o que o outro partido recusou, exigindo dezoito deputados, maioria e presid�ncia do senado. Ecco il problema.

Esse ceder um ter�o, esse exigir dezoito deputados, no ato da apura��o, juro por todos os santos do c�u e por todas as santas da terra, n�o me entra na cabe�a. Virei e revirei o telegrama, confrontei-o com autores antigos e modernos, estudei a rep�blica de Plat�o e outras concep��es filos�ficas, interroguei os princ�pios, encarei-os de face e de perfil, passei-os da m�o direita para a esquerda, e vice-versa; sem achar em nenhuma gente, por mais grega ou italiana que fosse, um raio de luz que me explicasse a cess�o do ter�o e a exig�ncia dos dezoito.

Menos dif�cil problema � o que resulta de outro telegrama da mesma proced�ncia, ontem publicado, em que se d� o numero total de votos de um distrito superior ao da respectiva popula��o; porquanto, se o que eu ouvia em pequeno, deriva de alguma lei biol�gica, as urnas concebem. Quando era menino, ouvi muita vez afirmar que um grupo de Santa Rita, um eleitor de S. Jos�, um mes�rio de Sant'Anna, �s vezes um simples inspetor de quarteir�o de Santo Antonio, punha a urna de esperan�as. Se isto � verdade, n�o h� problema, h� um mero fen�meno interessante, digno de estudo, e porventura de saudades.

O primeiro caso, sim, � que � problema escuro e indecifr�vel. Como entender o que � acordo na apura��o de votos, cedendo um ter�o ou exigindo dezoito deputados? h� presun��o em dizer isto, pois que da pr�pria avers�o � pol�tica nasce a minha falta de entendimento; mas, enfim, � o que sinto. Dizia o meu botic�rio que, de quando em quando, se devem corrigir os costumes pol�ticos. A carta r�gia de 1671, ao governador do Rio de Janeiro, recomendando-lhe que �se n�o entromettesse nas elei�oens de sojeitos para o governo da Rep�blica�, ficou servindo-nos de norma pol�tica; mas as normas devem alterar-se para se acudir �s necessidades e fei��es do s�culo. A pr�pria igreja, conservando os seus dogmas, tem variado no que � terreno e perec�vel. H� praticas boas, justas e �teis em um s�culo, e m�s ou in�teis em outro. Era uma das p�lulas que me aplicava o meu defunto amigo.

14 de abril

Nada h� pior que oscilar entre dois assuntos. A semana santa chama-me para as coisas sagradas, mas uma id�ia que me veio do Amazonas chama-me para as profanas, e eu fico sem saber para onde me volte primeiro. Estou entre Jerusal�m e Manaus; posso come�ar pela cidade mais remota, e ir depois � mais pr�xima; posso tamb�m fazer o contr�rio.

Havia um meio de combin�-las: era meter-me em uma das montarias ou igarit�s do Amazonas, com o meu amigo Jos� Ver�ssimo, e deixar-me ir com ele, rio abaixo ou acima, ou pelos confluentes, � pesca do pirarucu, do peixe-boi, da tartaruga ou da infinidade de peixes que h� no grande rio e na costa mar�tima. N�o podia ter melhor companheiro; pitoresco e exato, erudito e imaginoso, d�-nos na monografia que acaba de publicar, sob o t�tulo A Pesca na Amaz�nia, um excelente livro para consulta e deleite. Como se trata do pescado amaz�nico e acabamos a semana santa, iria eu assim a Jerusal�m e a Manaus, sem sair do meu gabinete. Mas o bom crist�o acharia que n�o basta pescar, como S�o Pedro, para ser bom crist�o, e os amigos de id�ias novas diriam que n�o h� id�ia nem novidade em moquear o peixe � maneira dos habitantes de �bidos ou Rio Branco. For�a � ir a Manaus e a Jerusal�m.

J� que estou no Amazonas, come�o por Manaus. As folhas chegadas ontem referem que naquela capital a C�mara dos Deputados dividiu-se em duas. Essa dualidade de c�maras de deputados e de senados tende a repetir-se, a multiplicar-se, a fixar-se nos v�rios Estados deste pa�s. N�o s�o fen�menos passageiros; s�o situa��es novas, id�nticas, perdur�veis. Os olhos de pouca vista alcan�am nisto um defeito e um mal, e n�o falta quem pe�a o conserto de um e a extirpa��o de outro. N�o ser� consertar uma lei natural, isto �, viol�-la? N�o ser� extirpar uma vegeta��o espont�nea, isto �, abrir caminho a outra?

Geralmente, as oposi��es n�o gostam dos governos. Partido vencido contesta a elei��o do vencedor, e partido vencedor � simultaneamente vencido, e vice-versa. Tentam-se acordos, dividindo os deputados; mas ningu�m aceita minorias. No antigo reg�men iniciou-se uma representa��o de minorias, para dar nas c�maras um recanto ao partido que estava de baixo. N�o pegou bem, � ou porque a porcentagem era pequena, � ou porque a planta n�o tinha for�a bastante. Continuou praticamente o sistema da lavra �nica.

Os fatos recentes v�o revelando que estamos em v�speras de um direito novo. Sim, leitor atento, � certo que a luta nasce das rivalidades, as rivalidades da posse e a posse da unidade de governo e de representa��o. Se, em vez de uma c�mara, tivermos duas, dois senados em vez de um, tudo coroado por duas administra��es, ambos os partidos trabalhar�o para o benef�cio geral. N�o me digam que tal governo n�o existe nos livros, nem em parte alguma. S�crates, � para n�o citar Taine e consortes � aconselhava ao legislador que, quando houvesse de legislar, tivesse em vista a terra e os homens. Ora os homens aqui amam o governo e a tribuna, gostam de propor, votar, discutir, atacar, defender e os demais verbos, e o partido que n�o folheia a gram�tica pol�tica acha naturalmente que j� n�o h� sintaxe; ao contr�rio, o que tem a gram�tica na m�o julga a linguagem alheia obsoleta ou corrupta. O que estamos vendo � a impress�o em dois exemplares da mesma gram�tica. Vir�o breve os tempos messi�nicos, � melhores ainda que os de Israel, porque l� os lobos deviam dormir com os cordeiros, mas aqui os cordeiros dormir�o com os cordeiros, � falta de lobos.

Enquanto n�o v�m esses tempos messi�nicos, vamo-nos contentando com os da Escritura, e com a semana santa que passou. Assim passo eu de Manaus a Jerusal�m.

H� meia d�zia de assuntos que n�o envelhecem nunca; mas h� um s� em que se pode ser banal, sem parec�-lo, � a trag�dia do G�lgota. T�o divina � ela que a simples repeti��o � novidade. Essa coisa eterna e sublime n�o cansa de ser sublime e eterna. Os s�culos passam sem esgot�-la, as l�nguas sem confundi-la, os homens sem corromp�-la. �O Evangelho fala ao meu cora��o� escrevia Rousseau; � bom que cada homem sinta este peda�o de Rousseau em si mesmo...

Entretanto, se eu adoro o belo Serm�o da Montanha, as par�bolas de Jesus, os duros lances da semana divina, desde a entrada em Jerusal�m at� � morte no Calv�rio, e as mulheres que se abra�aram � cruz, e cuja distin��o foi t�o finamente feita por Lulu Senior, quinta-feira, se tudo isso me faz sentir e pasmar, ainda me fica espa�o na alma para ver e pasmar de outras coisas. Perdoe-me a grandeza do assunto uma reminisc�ncia, ali�s incompleta, pois n�o me lembra o nome do moralista, mas foi um moralista que disse ser a fidelidade dos namorados uma esp�cie de infidelidade relativa, que vai dos olhos aos cabelos, dos cabelos � boca, da boca aos bra�os, e assim passeia por todas as belezas da pessoa amada. Espiritualizemos a observa��o, e apliquemo-la ao Evangelho.

Assim � que, no meio das sublimidades do livro santo, h� lances que me prendem a alma e despertam a aten��o dos meus olhos terrenos. N�o � am�-lo menos; � am�-lo em certas p�ginas. Grande � a morte de Jesus, divina � a sua paci�ncia, infinito � o seu perd�o. A fraqueza de Pilatos � enorme, a ferocidade dos algozes inexced�vel...

Mas, n�o sendo primoroso o �ltimo ato dos disc�pulos, n�o deixa de ser instrutivo. Um, por trinta dinheiros, vendeu o Mestre; os outros, no momento da pris�o, desapareceram, ningu�m mais os viu. Um s� deles, sem se declarar, meteu-se entre a multid�o, e penetrou no pret�rio entre os soldados. Tr�s vezes lhe perguntaram se tamb�m n�o andava com os disc�pulos de Cristo; respondeu que n�o, que nem o conhecia, e, � terceira vez, cantando o galo, lembrou-se da profecia de Cristo, e chorou. S�o Mateus, contando o ato deste disc�pulo, diz que ele entrara no pret�rio, com os soldados, �a ver em que parava o caso�. Hoje dir�amos, se o Evangelho fosse de hoje, �a ver em que paravam as modas�. Tal � a mudan�a das l�nguas e dos tempos!

Este vers�culo do evangelista n�o vale o Serm�o da Montanha, mas, usando da teoria do moralista a que h� pouco aludi, esta � a pontinha da orelha do Evangelho.

21 de abril

Est�o feitas as pazes da China e do Jap�o.

H� muitos anos apareceu aqui uma companhia de acrobatas japoneses. Eram artistas perfeitos, davam novidades, tinham id�ias pr�prias. O efeito foi grande; representaram n�o sei se no Teatro de S. Pedro, onde agora representam, fora de portas, uns engraxadores italianos, se no antigo Provis�rio, cuja hist�ria n�o conto, por muito sabida, mas que devia ser ensinada nas escolas para exemplo do que pode a vontade. Lembro s� que se chamava Provis�rio, e foi constru�do em cinco meses para substituir o Teatro de S. Pedro, que ardera. J� isto � bastante: mas, se nos lembrarmos tamb�m que o Provis�rio foi tal que ficou permanente, e passou a Grande Opera, teremos visto que a vontade � a grande alavanca... O resto acha-se nos discursos de inaugura��o. Tamb�m se pode achar em verso, em algum hino ao progresso, pouco mais ou menos assim:

Bate, Corta, Desfaz, Quebra, Arranca,

Estas pedras que est�o pelo ch�o;

A vontade � a grande alavanca.

Etc., etc.

Sabe-se o resto; � n�o perder de vista a alavanca da vontade e ir por diante derrubando pedreiras, morros, casas velhas, compondo estradas, muros, jardins, muita porta franca, muita parede branca. A vontade � a grande alavanca. Tamb�m se pode fazer o hino sem sentido; � mais dif�cil, mas uma vez que se lhe conserve a rima, tem vida, tem gra�a, ainda que lhe falte metro. Afinal, que � o metro? Uma conven��o. O sentido � outra conven��o.

Bem; onde est�vamos n�s? Ah! nos japoneses. Eram ex�mios; a opini�o geral � que eles n�o prestariam para mais nada, mas que, em subir por uma escada de uma maneira torta, e fazer outras dificuldades, ningu�m os desbancava. Deixaram saudades. Grandes artistas tivemos de outras na��es, Miss Kate Ormond, os irm�os Lees... Onde v�o eles? Talvez ela tenha fundada alguma seita religiosa no Alabama; eles, se n�o dirigem alguma companhia de vapores transatl�nticos, � que dirigem outra coisa... Tudo mudado, tudo passado. Os japoneses, n�o me canso de o dizer, eram ex�mios.

Meti-me, logo que eles se foram embora, a estudar o Jap�o, de longe e nos livros. O pa�s tinha adotado recentemente o governo parlamentar, o minist�rio respons�vel, a fala do trono, a resposta, a interpela��o, a mo��o de confian�a e de desconfian�a, os or�amentos ordin�rios, extraordin�rios, e suplementares. Parte da Europa achava bom, parte ria; uma folha francesa de caricaturas deu um quadro representando a sa�da dos ministros do gabinete imperial com as pastas debaixo do bra�o. Que chap�us! Que casacos! Que sapatos! O Jap�o deixava rir e ia andando, ia estudando, ia pensando. Tinha uma id�ia. Os povos s�o como os homens; quando t�m uma id�ia, deixam rir e v�o andando. Parece que a id�ia do Jap�o era n�o continuar a ser um pa�s unicamente de curiosos ou de estudiosos, de Loti e outros navegadores. Queria ser alguma coisa mais alta, coisa que at� certo ponto mudasse a face da terra.

N�o me digam que a id�ia era ambiciosa. Sei que sim; a quest�o � se a frase � ambiciosa tamb�m, e aqui � que eu vacilo, n�o por falta de convic��o, mas de papel e de tempo. A demonstra��o seria longa. Contentem-se em crer, e v�o seguindo, meio desconfiados, se querem. Concordo que, depois dos boatos montevideanos e rio-grandenses, sobre revolu��es, separa��es e saques, h� lugar para duvidar um pouco das vit�rias japonesas.

Eu creio no Jap�o. Na trag�dia conjugal que houve h� dias na rua do Mattoso, at� a� acho o meu ilustre valente Jap�o. N�o � s� porque tais pe�as t�m l� o mesmo desfecho, mas pelo estilo dos depoimentos das testemunhas do caso. Segundo um velho frade que narrou as viagens de S. Francisco Xavier por aquelas terras, h� ali diversos vocabul�rios para uso das pessoas que falam, a quem falam, de que falam, que idade t�m quando falam e quantos anos t�m aquelas a quem falam, n�o sabendo unicamente se h� diferen�a de var�es ou damas; o Padre Lucena � muito conciso neste capitulo. Pois depoimentos das testemunhas de c� usaram, quando muito, dois vocabul�rios, sendo um deles inteiramente contr�rio ao de S�focles. P�o p�o, queijo queijo. E' claro que a justi�a, sendo cega, n�o v� se � vista, e ent�o n�o cora.

Viva o japonismo! Dizem telegramas que a id�ia secreta do Jap�o � japonizar a China. Acho bom, mas se � s� japonizar a crosta, n�o era preciso fazer-lhe guerra. N�o faltam aqui salas, nem gabinetes, nem adornos jap�nicos. Os irm�os Goncourts gabam-se de terem sido na Europa os inventores do japonismo. Um bom leiloeiro, quando apregoa um vaso sem fei��es vulgares, chama-lhe japon�s, e vende-o mais caro. Viva o japonismo! Quanto a mim, as pazes com a China est�o feitas, e, por mais que as condi��es irritem a Europa, como h� agora mais uma grande pot�ncia no mundo, � preciso contar com a vontade desta, e eu continuarei a ler com simpatia, mas sem f�, a propaganda do Sr. Dr. Nilo Pe�anha a favor do arbitramento entre as na��es. Para deslindar quest�es, creio que o arbitramento vale mais que uma campanha; mas para fazer andar as coisas do mundo e do s�culo, fio mais de Yamagata e seus cong�neres.

28 de abril

Que dil�vio, Deus de No�! Escrevo esta semana dentro de uma arca, esperando acab�-la, quando as �guas todas houverem desaparecido. Caso fiquem, e n�o cessem de cair outras, conclu�-la-ei aqui mesmo, e mand�-la-ei por um pombo-correio. A arca � um bonde. No� � um No� deste s�culo industrial; leva-nos pagando. Fala espanhol, que � com certeza a l�ngua dos primeiros homens.

A princ�pio n�o tive medo; cuidei que eram dessas chuvas que passam logo. Quando, por�m, os elementos se desencadearam deveras, e as ruas ficaram rios, as pra�as mares, ent�o supus que realmente era o fim dos tempos. As �rvores retorciam-se, os chap�us voavam, toalhas de �gua entravam pelas casas, outras desciam dos morros, cor de barro. Carro nem t�lburi dispon�veis. Algum veiculo particular que aparecia, ou levava o dono, ou esperava por ele. bondes apenas, mas poucos, alagados, sem hor�rio, quase sem cortinas. Entramos alguns em um, e o bonde come�ou, n�o a andar, mas a boiar, boiou a noite inteira, ainda agora b�ia.

Imposs�vel foi dormir. Ent�o conversamos, lemos, contamos hist�rias; as senhoras rezavam, as meninas riam. Um sujeito, querendo ligar o interesse municipal ao interesse humano, falou do recuo. A aten��o foi geral e pronta. Vinte minutos depois j� ningu�m queria ouvir as opini�es consubstanciadas no discurso do orador, nem as deste, nem os textos legais e outros. A palavra amola��o come�ou a ro�ar os l�bios. Notei que a maioria presente era de propriet�rios, e naquela situa��o e hora era dif�cil achar mat�ria mais deleitosa de conversa��o; mas o nosso mal verdadeiro, local e perpetuo � a amola��o. H� anos sem febre amarela, o c�lera-morbo aparece �s vezes, o crupe tamb�m e outras enfermidades, mas todas se v�o, e alguns vamos com elas; a amola��o n�o sai nem entra; aqui mora, aqui h� de morrer. O sujeito do recuo teimou, outro desafiou-o, as senhoras pediram que n�o brigassem.

Os homens, cavalheiros at� no dil�vio, intervieram no debate e falaram de outras tantas coisas, uns do sul, outros do norte, alguns do neg�cio dos bichos. Os bichos trouxeram-nos o pensamento ao dil�vio presente e passado, ao bonde e a arca de No�. Pediram-me a velha hist�ria b�blica. Contei-a, como podia, e perguntei-lhes se conheciam o Fruto Proibido. Como a fala n�o sai em grifo, n�o se pode conhecer se a pessoa repete um t�tulo ou alguma frase. Da� o gesto indecoroso de um passageiro, que entrou a assobiar a Norma. Citei ent�o o nome do Coelho Neto, e disse que se tratava de um livro agora publicado.

Coelho Neto conhece a Escritura e gosta dela; mas ser� o seu amor daqueles que aceitam a pessoa amada, apesar de alguns defeitos, ou at� por causa deles? perguntei. Toda a gente se calou, exceto um ingl�s, que me retorquiu que a B�blia n�o tinha defeitos. Concordei com ele, mas expliquei-lhe que, amando Coelho Neto a B�blia, escreveu um livro que a emenda, de onde se v� que n�o � t�o cego o seu amor, que lhe n�o veja algumas lacunas. Mostrei-lhe ent�o que o Fruto Proibido � o contr�rio dos cap�tulos II e III do G�nesis. Em vez de permitir o uso de toda a fruta do para�so, menos a da arvore da ci�ncia do bem e do mal, Coelho Neto encheu o para�so de frutos proibidos, e disse aos homens, mais ou menos, isto:

� Dou-vos aqui um jardim, de cujas arvores n�o podeis comer um s� fruto; mas, como � preciso que vos alimenteis, untei cada fruto com o mel do meu estilo, e ele s� bastara para nutrir-vos.

Os homens obedeceram e obedecem � vontade do jovem Senhor; mas o mel esta t�o entranhado no fruto, e � t�o saboroso, que lamber um e comer o outro � a mesma coisa. Deste modo eliminou a viscosa serpente, e n�o atirou toda a culpa para cima de Eva; guardou a maior parte para si.

Todos acharam engenhosa a id�ia do autor, emendando a escritura, sem parecer faz�-lo, menos o ingl�s, que me perguntou se esse mo�o n�o tinha outra coisa em que ocupar o esp�rito. Tem outras coisas, respondi; ele mesmo confessa no prefacio que escreveu este livro para repousar de outros. � um trabalhador que acha meio de descansar carregando pedra. Comp�e romances, comp�e artigos, comp�e contos, e ainda agora vai tomar a si uma parte da reda��o dos debates parlamentares...

� Sim? interrompeu-nos uma senhora, a mim e a um padre-nosso. Pois se se d� com ele, pe�a-lhe que, depois das paginas que houver de escrever em casa, recolha o seu estilo a algum vaso de porcelana da Sax�nia ou vidro de Veneza, e v� sem ele aos debates. Meu marido, que l� muito (onde andara ele a esta hora, meu Deus!) afirma que � de boa regra n�o confundir os g�neros. Se houver discursos proibidos, literariamente falando, n�o lhes ponha o mel do seu estilo; talvez que assim a virtude torne a este mundo.

Francamente, n�o entendi a senhora, que continuou a rezar o seu padre-nosso: �...seja feita a vossa vontade, assim na terra...� Eu deixei-me ir ao assunto natural da ocasi�o, a abertura do Congresso Nacional. Alguns duvidavam, por causa do dil�vio. Era imposs�vel que deputados e senadores se reunissem debaixo de tanta �gua e vento. Um advers�rio ou inimigo pessoal do Sr. Zama censurou fortemente a este deputado, que traz a hist�ria romana na ponta dos dedos e ainda se n�o lembrou de dizer a Bahia, seu Estado natal, que Roma n�o prosperou com dois senados, mas com um, de onde lhe veio a for�a grande, e escrever por a� um Tito Livio. A pol�tica, durante alguns instantes, tomou conta da conversa��o. Ambos os senadores tiveram defensores, e ardentes. N�o faltou quem os adotasse juntos. Eu cheguei a pensar comigo, se n�o melhorariam as coisas havendo um terceiro senado...

Assim passamos as horas, e rompeu o dia de s�bado, sempre debaixo de �gua. J� havia fome, porque o No� espanhol que nos levava, n�o cuidara da comida, ningu�m jantara, o c�u continuava turvo e a �gua ca�a a jorros. Deu-nos ent�o para dizer mal dos amigos, e afinal de nos mesmos. Raro vinham coisas estranhas ou passadas. Algu�m lembrou a revolu��o de Santiago, prov�ncia argentina, no princ�pio da semana, revolu��o em que morreu um homem e fugiu o governador. O ingl�s disse que n�o se devia chamar revolu��o ao movimento em que morre uma pessoa s�. Qual � a semana, perguntou bufando, em que n�o morre algu�m debaixo de um bonde el�trico? E bonde el�trico � revolu��o? No sentido cient�fico, de certo; mas, como a��o popular, n�o. A diferen�a �nica � que o governador de Santiago desapareceu, coisa que j� n�o faz nenhum cocheiro de bonde, para n�o perder dois ou tr�s dias de ordenado sem necessidade alguma...

A fadiga era tal que ningu�m contestou o ingl�s, e deixou-o falar enquanto quis. Todos abrimos a boca de fome e de sono. Continuamos a boiar, n�o sei por quanto tempo; os nossos rel�gios tinham parado. De repente ouvimos um clamor vago, depois mais claro e forte. Era um rapaz que berrava:

� Vinte contos! Loteria Nacional! Hoje!

Est�vamos em terra.

5 de maio

Antes de acabar o s�culo, quisera dar-lhe um titulo; falo do nosso s�culo fluminense. N�o � de uso que os s�culos se contem na vida das cidades. Roma era o mundo romano. Atenas era a civiliza��o grega. A rigor, as cidades m�dias e m�nimas deviam ter os seus s�culos menores, cinq�enta anos as primeiras e vinte e cinco as outras, � um quarteir�o, como se dizia outrora das sardinhas, e creio que das laranjas tamb�m. Mas a nossa boa capital, por ser a ditosa p�tria minha amada, ou por diversa causa, poderia ter o seu s�culo mais crescido que os de cinq�enta anos. V� cinq�enta anos. Antes que termine este prazo, contado de 1850, procuremos ver que nome se lhe h� de por.

Puxei pela mem�ria, achei, tirei, comparei, fiz, desfiz, sem positivamente chegar a resultado certo at� ontem. Notai que vim desde o princ�pio da semana. N�o quis saber de boatos, nem sucessos, nem dos movimentos de mar e terra, nem da deposi��o e reposi��o do governador das Alagoas, abertura de congresso, nada, nada. Ao cabo de muita pesquisa v�, quase desesperado dos meus esfor�os, consegui achar o nome do s�culo. Pode ser que haja erro; mas essa parte da critica fica para o leitor, a minha parte � crer, � crer e louvar, � n�o digo louvar a maneira de Garret, que atribu�a ao editor todas as coisas excelentes que pensava de si, e n�s com ele. N�o; basta um louvor discreto, meio apagado, leve e breve, um sussurro de admira��o.

Que achei eu do nosso s�culo carioca? Achei que ser� contado como o s�culo dos jardins. � primeira vista parece banalidade. O jardim nasceu com o homem. A primeira resid�ncia do primeiro casal foi um jardim, que ele s� perdeu por se atrasar nos alugueis da obedi�ncia, donde lhe veio o mandado de despejo. Verdade � que, sendo meirinho n�o menos que o arcanjo Miguel, e o texto do mandado a poesia de Milton, segundo cr�em os poetas, valeu a pena perder a casa e ficar ao relento. Vede, por�m, o que � o homem. O arcanjo, depois de lhe revelar uma por��o de coisas sublimes e futuras, disse-lhe que tudo que viesse a saber, n�o o faria mais eminente; mas que, se aprendesse tais e tais virtudes (f�, paci�ncia, amor), n�o teria j� saudades daquele jardim perdido, pois levaria consigo outro melhor e mais deleitoso. N�o obstante, o homem meteu-se a comprar muitos jardins, alguns dos quais ficaram na mem�ria dos tempos, n�o contando os particulares, que s�o infinitos.

Sendo assim, em rela��o ao homem, que h� a respeito do carioca, para se lhe dar ao s�culo a denomina��o especial que proponho? Certo, n�o � s� o amor das flores, em gozo sumo, que me leva a isto. � a eleva��o do sentimento, � a crescente espiritualidade deste amor. N�s amamos as flores, embora nos reservemos o direito de deitar as arvores abaixo, e n�o nos aflijamos que o fa�am sem gra�a nem utilidade.

Nos primeiros tempos do Passeio P�blico, o povo corria para ele, e o nome de Belas Noites, dado a rua das Marrecas, vinha de serem as noites de luar as escolhidas para as passeatas. Sabeis disso; sabeis tamb�m que o povo levava a guitarra, a viola, a cantiga, e provavelmente o namoro. O namoro devia ser inocente, como a viola e os costumes. Onde ir�o eles, costumes e instrumentos? Eram contempor�neos da Revolu��o Francesa, foram com os discursos dela. Enquanto Robespierre ca�a na Conven��o, ouvindo este grito: �Desgra�ado! � o sangue de Danton que te afoga!� o nosso armador cantava com ternura na guitarra:

Vou-me embora, vou-me embora,

Que me d�o para levar?

Saudades, penas e l�grimas

Eu levo para chorar.

Mas reduzamos tudo aos tr�s jardins, que me levam a propor tal titulo a este s�culo da nossa cidade.

O primeiro, chamado Jardim Bot�nico, n�o tinha outrora a concorr�ncia do Passeio P�blico, antes e depois do Glaziou; ficava longe da cidade, n�o havia bondes; apenas �nibus e dilig�ncia. O lugar, por�m, era t�o bonito, a grande alameda de palmeiras t�o agrad�vel, que dava gosto ir l�, por patuscada, ou com a seguran�a de n�o achar muita gente, coisa que para alguns esp�ritos e para certos estados era a del�cia das delicias. Os mon�logos de uns e os di�logos dos outros n�o ficaram escritos; menos ainda foram impressos; mas haveria que aprender neles. Defronte havia uma casa de comida, onde os cansados do passeio iam restaurar as for�as. Tamb�m se ia ali � noite. Uma noite...

Uma noite (v� esta velha anedota) estava um amigo meu no Clube Fluminense, jogando o xadrez, entre nove e dez horas. Era um mocinho, com uma ponta de bigode, e outra de constipa��o. Tinha o plano de acabar a partida, e ir deitar-se. Vieram dizer-lhe que estavam em baixo dois carros abertos, com pessoas dentro, que o mandavam chamar. De um golpe acabou a partida, e desceu.

� Leandrinho, anda ao Jardim Bot�nico; vamos cear.

� N�o posso, estou constipado, e j� tomei ch�; n�o posso.

� Pois n�o ceies, mas fala s�; constipa��o cura-se com a lua. Olha que luar!

Leandrinho subiu a um dos carros, onde iam dois amigos e uma bela mo�a; arranjou-se como p�de, e os carros entraram pela rua do Lavradio. Chegaram ao Jardim Bot�nico. A casa de comida estava fechada; abriu as portas e foi fazer ceia. Eram tr�s as mo�as amadas, tr�s os rapazes amados, e outros tr�s apenas alegres. Um destes, o Leandrinho, quis tratar a constipa��o pela conversa��o; mas foi triste e mero desejo. O amuo de dois namorados, a rusga de outros dois, trouxeram o constrangimento � reuni�o. Quando veio a ceia, todos estavam aborrecidos, mais que todos o Leandrinho, que suspirava pelo momento da volta. A comida e a bebida trouxeram alguma anima��o; ao champanhe estava quase restabelecida a alegria. Recusando tudo, comida ou bebida, Leandrinho n�o p�de deixar de aceitar uma ameixa seca, oferecida por uma das m�os femininas.

� Que mal lhe pode fazer esta fruta inocente?

Realmente, nenhum; Leandrinho comeu a ameixa. Ergueram-se todos da mesa, cantaram ao piano, dan�aram uma quadrilha, fumaram, at� que ouviram bater duas horas. Dispuseram-se � volta, e pediram a conta. Leandrinho, tonto de febre, n�o viu a soma total; ouviu s� que, rateadas as despesas, tinha ele que entrar com a quantia de nove mil e quatrocentos.

� N�o se imagina, dizia ele alguns anos antes de morrer, contando esse caso, n�o se imagina o meu assombro. Tive �mpeto de quebrar tudo; mas era t�o sincero o aspeto dos rapazes, e a presen�a das mo�as obrigava a tanto, que n�o recusei a minha quota. Uma ameixa e uma febre por nove mil e quatrocentos.

Quando ele morreu, o Jardim Bot�nico via j� crescer o numero dos visitantes. N�o transcrevo aqui a estat�stica do m�s passado, para n�o atravancar este artigo com algarismos. Podeis l�-la nos jornais de ontem. O total das pessoas foi 2.950, a saber, 1.461 homens, 990 senhoras e 499 crian�as. A cidade ama os jardins.

Logo depois do Jardim Bot�nico, surgiu o Jardim Zool�gico. N�o � poss�vel contar a concorr�ncia deste; tem sido enorme, e seria infinita, se lhe n�o fechassem as portas; mas h� quem diga que � fechamento tempor�rio, para o fim �nico de reformar e limpar as planta��es, iniciar outras, e abrir as portas oportunamente. N�o sei se a este foram tamb�m Leandrinhos, nem se l� perderam nove mil e quatrocentos; se os n�o perderam, � porque os ganharam.

Terceiro jardim: � o recente jardim Lot�rico. N�o ligo bem estes dois nomes; parece que h� l� corridas, ou que quer que seja, pois as vezes ganha o Camelo, outras o Avestruz, ou o Burro. No dia 3 ganhou o Le�o. No dia 4 at� a hora em que escrevo, n�o sei quem ter� vencido... A cidade � sempre o homem do primeiro jardim. Tem a f�, tem a paci�ncia, tem o amor, mas n�o h� meio de achar um jardim em si mesma, e vai tecendo o s�culo com outros. Creio que fiz um verso: E vai tecendo o s�culo com outros.

12 de maio

No meio dos problemas que nos assoberbam e das paix�es que nos agitam, era talvez ocasi�o de falar da escritura fon�tica. O fonetismo � um calmante. H� quem o defenda convencidamente, mas ningu�m se apaixona a tal ponto, que chegue a perder as estribeiras. � um princ�pio em flor, uma aurora, um esbo�o que se completara algum dia, daqui a um s�culo, ou antes. A Academia Francesa, bastilha ortogr�fica, ruir� com estrondo; os direitos do som, como os do homem, ser�o proclamados a todo o universo. A revolu��o estar� feita. A tuberculose continuara a matar, mas os rem�dios vir�o da farm�cia. Talvez haja um per�odo de transi��o e luta, em que as escolas se definam s� pelo nome; e a pharmacia e a farm�cia defendam o valor das suas drogas pela tabuleta. Ph contra f. Vira a� um problema de pacifica��o, como o que temos no Sul, mas muito f�cil; bastar� restaurar por decreto a velha botica, voc�bulo que s� se pode escrever de um modo. Todos morrer�o com a mesma tisana e pelo mesmo pre�o.

A Am�rica segue os passos da Europa, estudando estas mat�rias. Na do Norte, em New York, uma associa��o filol�gica prop�e grandes altera��es no ingl�s e no franc�s. No franc�s acha que � bonito ou fon�tico escrever demagog, em vez demagogue, e prop�e que se substitua gazete por gazet. Nos aqui poder�amos adotar j� este processo, escrevendo cacet � em vez de cacete; a economia ser� grande, quer se trate de gente viva, quer propriamente de pau. Quanto ao ingl�s, a associa��o de New York converte o benef�cio em d�lares, que � ainda mais fon�tico: �Milh�es de d�lares s�o gastos todos os anos em escritura e impress�o de letras in�teis�. Enfim leio no Jornal do Com�rcio que a associa��o prop�s j� ao Congresso uma lei que obrigue os tip�grafos a se conformarem com altera��es que ela indicara ou j� indicou.

O mal que vejo nessa lei, se vier, � um s�; � que os partidos possam adotar cada um o seu sistema. A elei��o alterar� as fei��es do impresso. Mas tamb�m isto pode ser vantajoso no futuro; as folhas, os anais, as leis, as proclama��es, e finalmente os versos e romances, dir�o pelo aspeto das palavras e per�odo a que pertencem, auxiliando assim a hist�ria e a cr�tica.

As senhoras, enquanto n�o principia essa guerra de escritas, vivem em paz com ortografias e na��es. Sabe-se que as herdeiras americanas fornecem duquesas �s velhas fam�lias da Europa, casando com duques de verdade. Todas as na��es daquele continente possuem belos exemplares da mo�a dos Estados Unidos. H� cerca de dois meses estavam para casar, ou j� tinham casado, n�o sei que duque ou marqu�s da lega��o francesa com uma das belas herdeiras da Am�rica. Ora, como o amor tem uma s� ortografia, pode a Associa��o Filol�gica de New York lutar com a Academia Francesa, para saber como se h� de escrever love e amour; jovem casal usara da �nica ortografia real e verdadeira.

Essa fascina��o pela Europa � vezo de mulheres. Tamb�m h� dois meses casou em T�quio, Jap�o, um conde diplomata, encarregado de neg�cios da �ustria, com uma mo�a japonesa. Essa � fidalga; n�o foi pois o gosto do t�tulo que a levou ao cons�rcio; foi o amor, naturalmente, e logo o desejo da Europa. Era da religi�o b�dica, fez-se cat�lica romana. N�o tardar� que chegue a Viena, onde brilhar� ao lado do esposo, por mais que a matem as saudades de T�quio.

As mo�as brasileiras tamb�m gostam da Europa. J� desde o princ�pio do s�culo XVIII morriam por ela, recitando de cora��o este verso, ainda n�o composto:

�Eu nunca vi Lisboa e tenha pena.�

Lisboa era ent�o, para esta col�nia, toda a Europa. Tinham pena de n�o conhecer Lisboa; mas, como ir at� l�, se os pais n�o podiam deixar o neg�cio? As mo�as eram inventivas, entraram a padecer de voca��o religiosa, queriam ser freiras. Como nesse tempo havia mais religi�o que hoje, ningu�m podia ir contra a voz do c�u, e as nossas patr�cias sa�am a rasgar �as salsas ondas do oceano�, como ent�o se dizia do mar, at� desembarcar em Lisboa.

O governo ficou aterrado. Tal emigra��o despovoava a mais rica das suas col�nias. Cogitou longamente, e expediu o alvar� de 10 de mar�o de 1732 �proibindo a ida das mulheres do Brasil para Portugal, com o pretexto de ser freira�. O pensamento do alvar� era s� pol�tico; mas teve tamb�m um efeito liter�rio, conservando neste pa�s uma das av�s do meu leitor. N�o bastando a proibi��o escrita, o alvar� estabeleceu que fossem castigados os portadores de t�o gracioso contrabando. Eis os seus termos: �O capit�o ou mestre do navio pagar� por cada mulher que trouxer 2.000 cruzados, pagos da cadeia, onde ficar� por tempo de dois meses�.

Dois meses de pris�o, e dois mil cruzados de multa; eram duros; cessou o transporte. Nesse ato do governo da metr�pole, o que mais me penetra a alma, � a frase: pagos da cadeia. Quem seria o oficial de secretaria que achou tal frase, se � que n�o era algum chav�o de leis? Nasceu para escritor, com certeza. Busquem-me a� outra mais simples, mais forte e mais elegante. Os governos modernos t�m a linguagem frouxa, derramada, vaga principalmente, cheia de aten��es e liberalismo. Qualquer lei moderna mais ou menos diria assim: �O capit�o ou mestre de navio, logo que verifique o delito de que trata o artigo tal, ficar� incurso na pena de dois meses e na multa de oitocentos mil r�is por cada mulher que transportar, sendo a multa recolhida ao tesouro, etc.�. Comparai isto com a rudeza e concis�o do alvar�: pagos da cadeia. Quer dizer: primeiro � pegado o. sujeito e metido na pris�o, a� entrega os milhares de cruzados da multa, e depois fica ainda uns dois meses sossegado. Pagos da cadeia!

19 de Maio

�Quando visitei a �frica, em 1891, fui encontrando muitos senadores e deputados, que percorriam aquela regi�o, a fim de averiguar-lhe os recursos e as necessidades. A quest�o argelina tinha sido novamente levantada nas c�maras; discutira-se muito sem resultado; e, como � de uso, resolveram fazer um inqu�rito. Os pol�ticos iam assim esclarecer-se no pr�prio territ�rio�.

N�o citaria t�o longo peda�o de um livro, sen�o pela utilidade que ele pode ter relativamente aos nossos costumes parlamentares. Entenda-se bem; n�o abri o livro para conhecer da quest�o argelina, mas porque o autor, arque�logo de nomeada, convidava-me a ir ver as ru�nas de Cartago. N�o faltam guias sagazes para as terras cartaginesas, sem contar Flaubert, com o g�nio da ressurrei��o, nem Virgilio com o da inven��o. Assim que, foi s� o acaso que me p�s ante os olhos o trecho transcrito. Sabem que n�o entendo de pol�tica, nem de agronomia.

Nem tudo exigira entre nos exame local; mas casos h� em que ele pode ser �til. A quest�o do sul, por exemplo.

A quest�o do sul � o nosso n� g�rdio. H� geral acordo em acabar com ele; a diverg�ncia esta no modo, querendo uns que se desate, outros que se corte. Na C�mara dos deputados, aberta h� oito dias, n�o se tem tratado de outra coisa; todos os discursos, ainda os que n�o querem tocar no sul, acabam nele, ou passam por ele. N�o se fala tranq�ilo, mas ardendo, os apartes fervem, o sussurro cobre a voz dos oradores, n�o h� acordo em suma. Tal qual a quest�o argelina, nas c�maras francesas.

Que compet�ncia tenho eu para aconselhar alvitres? Tanto quanto para fazer caramelos. Contudo, quer-me parecer que, antes de qualquer tentativa de acordo parlamentar, n�o ficava mal um inqu�rito. N�o digo rigoroso inqu�rito, pois que este substantivo s� se liga �quele adjetivo, nos casos meramente policiais. Uma firma comercial de S�o Paulo perdeu esta semana um dos seus s�cios, que se retirou deixando saudades e um desfalque. O tel�grafo referiu o caso, acrescentando que a pol�cia abrira inqu�rito. �' a primeira vez, desde que me entendo, que vejo abrir nesses casos um simples inqu�rito. Tais inqu�ritos s�o sempre rigorosos. Formam estas duas palavras o complemento de um verso para a trag�dia que houver de por em cena algum grave crime:

Crime nefando! Rigoroso inqu�rito!

Nos casos de ci�ncia ou de pol�tica, os inqu�ritos s�o simples. Se tal recurso for agora adotado, podem muitos membros do Congresso ir ver as coisas do sul por seus pr�prios olhos, a fim de recolher informa��es locais e diretas. Aqui surge uma dificuldade n�o pequena. Se, depois de tudo visto, observado, comparado, cada um voltar com a sua opini�o? N�o � improv�vel este resultado. Geralmente, as lutas pol�ticas s�o j� efeito de opini�es anteriores. Os partidos formam-se pela comunh�o das id�ias, e duram pela const�ncia das convic��es. Se a vista de um fato, a audi�ncia de um discurso, bastassem para mudar as opini�es de uma pessoa, onde estariam os partidos? H� pessoas que se persuadem com muito pouco, e mudam de acampamento, mas � com o direito impl�cito de tornar ao primeiro, ou ir a outro, logo que as despersuadam da id�ia nova. S�o casos raros de filosofia. O geral � persistir. Dai �s pedras de uma muralha a faculdade de trocar de atitude, e n�o tereis j� muralha, mas um acervo de fragmentos.

Se alguma beleza h� no que acabo de dizer, � o senso comum que lha d�. S�o tru�smos, s�o velhas banalidades. Renan defendeu a banalidade com tal gra�a, que eu, apesar de ter opini�o adversa, acabei crendo nela a pu-la na minha ladainha: Santa Banalidade, ora pro nobis. Talvez Renan quisesse debicar-me; os grandes escritores t�m dessas tenta��es �nfimas, mas � preciso que n�o sejam pedras de muralhas. E da� pode ser que as pr�prias pedras debiquem os homens...

As pedras valem tamb�m como ru�nas. Possuo um pedacinho de muro antigo de Roma, que me trouxe um dos nossos homens de fino esp�rito e provado talento. Quando h� muita agita��o em volta de mim, vou � gaveta onde tenho um reposit�rio de curiosidades, e pego deste peda�o de ru�na; � a minha paz e a minha alegria. Orgulhoso por ter um peda�o de Roma na gaveta, digo-lhe: �Cascalho velho, d�-me not�cias das tuas fac��es antigas.� Ao que ele responde que houve efetivamente grandes lutas, mais ou menos renhidas, mas acabaram h� muitos anos. Os pr�prios p�ssaros que voavam ent�o sobre elas, sem medo, ou por qualquer outra causa, esses mesmos acabaram. Vieram outros p�ssaros, mas filhos e netos dos primeiros. Nunca dir� que entre os pardais que tem visto, nenhum fosse o pr�prio pardalzinho de L�sbia... E cita logo uns versos de Catulo.

� Latinidade! exclamo; � com o nosso Carlos de Laet. Onde estar� ele?

� Em Minas, respondeu-me hoje o editor de um livro cheio de boa linguagem, de boa li��o, de boa vontade, e tamb�m de coisas velhas contadas a gente nova, e coisas novas contadas a gente velha. Compreendi que este Em Minas era antes o nome do livro de Laet, que a indica��o do lugar em que ele estava. N�o sendo novidade, porque acabava de o ler, e trazia na mem�ria a erudi��o e a gra�a do ilustre escritor, n�o disse mais nada ao meu torr�o de muro romano; ele, por�m, quis saber que tinha esse homem com a cidade antiga, e eu respondi que muito, e li-lhe ent�o uma p�gina do livro.

� Com efeito, disse o meu peda�o de muro, a l�ngua que ele escreve, com pouca corrup��o, creio que � latina. H� Catulos tamb�m por esta terra?

� A ternura � a nossa corda, e o entusiasmo tamb�m. Ambos esses dotes possui este poeta, Alberto de Oliveira, segundo nos diz o mestre introdutor Araripe J�nior, do recente livro Versos e Rimas. T�tulo simples, mas n�o te fieis em t�tulos simples; s�o inventados para guardar versos deleitosos. H� aqui desses que te fartar�o por horas; l� a Extrema Verba, Num telhado, Metempsicose, O muro, Teoria do Orvalho, l� o mais. Esse mo�o sente e gosta de dizer como sente. Canta o eterno feminino.

� N�o conhe�o a express�o.

� � moderna; inven��o do homem, naturalmente, mas uma mulher vingou-se, h� dias � mulher ou pseud�nimo de mulher � D�lia... N�o � a D�lia de T�bulo, D�lia apenas, que escreveu uma pagina na Not�cia de sexta-feira, onde diz com certa gra�a que o mal do mundo vem do �eterno masculino�.

26 de Maio

Sou eleitor, voto, desejo saber o que fazem e dizem os meus representantes. N�o podendo ir �s c�maras, aprovo este meio de fazer da pr�pria casa do eleitor uma galeria, taquigrafando e publicando os discursos. � assim que acompanho a vida dos meus representantes, as opini�es que exprimem, o estilo em que o fazem, as risadas que provocam e os apoiados que alcan�am. A publica��o � a fotografia dos debates.

Entretanto, disse-se agora uma coisa no Conselho Municipal que absolutamente me deixou �s escuras. Um intendente, � e, n�o havendo inj�ria, nisto, n�o sei por que lhe n�o ponho o nome, o Sr. Ces�rio Machado deu este aparte: �H� carros da Companhia Carris Urbanos que podem comportar perfeitamente quatro passageiros em cada banco�. A isto replicou o Sr. Julio Carmo: �Magros como eu, mas n�o gordos como V. Exa.� Explicou o Sr. Ces�rio Machado: �Passageiros regulares�. � claro que, em tais casos, n�o h� meio de conhecer o alcance das afirma��es. Se os intendentes falassem de gordura e magreza, em geral, ter�amos uma id�ia aproximada dos bancos; mas um deles definiu a gordura e a magreza pelos nomes das pessoas, e n�o conhecendo n�s a gordura do Sr. Ces�rio, nem a magreza do Sr. Carmo, ficamos sem entender esta explica��o do primeiro: �Passageiros regulares�. O regular aqui � o termo m�dio entre o primeiro e o segundo.

Como suprir essa lacuna e outras da publica��o dos debates? Empregando a gravura. Uma gravura que nos desse no pr�prio texto, no lugar da troca dos apartes, as figuras dos dois intendentes, com a diferen�a visual da abundancia e da escassez das carnes, e a competente escala m�trica, poria a id�ia inteiramente clara, e qualquer de n�s acharia na pr�pria ata os elementos para julgar da vota��o do conselho. Fora disso, palavras, palavras, palavras.

A gravura pode, na verdade, prestar grandes servi�os a este respeito. Falo aqui, porque j� em outras partes, mormente nos Estados Unidos da Am�rica, ela � a irm� natural do texto. As folhas andam cheias de retratos, cenas, salas, campos, armas, m�quinas, tudo o que pode, melhor ou mais prontamente que palavras, incutir a id�ia no c�rebro do leitor. N�o h� por essas outras terras not�cia de casamento sem retrato dos noivos, nem decreto de nomea��o sem a cara do nomeado. N�s pod�amos ensaiar politicamente, e mais extensamente, essa parte do jornalismo.

Os discursos ilustrados teriam outra vida e melhor efeito. O pensamento do orador, nem sempre claro no texto, ficaria clar�ssimo. As cenas tumultuosas seriam reproduzidas. Uma das regras, que podiam ser fixas, era fazer preceder cada discurso pelo retrato do orador, com a atitude que lhe fosse pr�pria e habitual, ou a que tivesse naquela ocasi�o. Tamb�m se podiam reproduzir pela gravura as figuras de ret�rica, e, quando conviesse, as perora��es.

A amizade pessoal ou pol�tica podia favorecer assim mais um orador que outros, dando maior n�mero de gravuras a um amigo ou correligion�rio. Nem contesto que um ou outro orador, sabendo desenhar, levasse por si mesmo � imprensa as imagens que lhe parecessem necess�rias e dignas. O primeiro caso podia trazer inconvenientes, mas tendo cada um os seus amigos, nenhum ficaria propriamente na mis�ria. O segundo era leg�timo. Al�m de auxiliar a imprensa, aquele orador que assim praticasse, faria a maior parte da sua reputa��o, dever que n�o cabe s� ao homem particular, mas tamb�m ao p�blico

A mim poucas coisas me fortalecem tanto como ver cumprir da parte de um homem, particular ou p�blico, esse dever humano: O verdadeiro homem p�blico � o que n�o deixa esse encargo exclusivamente aos outros, mas toma uma parte, a mais pesada, sobre os seus pr�prios ombros. Nem de outro modo se pode servir utilmente a p�tria. A p�tria � tudo, a rua, a casa, o gabinete, o templo, o campo, o por�o, o telhado, � mais ainda o telhado que o por�o; o telhado confina com o azul, e o azul � o zimb�rio da felicidade...

Nem sempre o ser�, creio; mas os conceitos falsos, e principalmente absolutos, sendo brilhantes, parecem verdades puras. Toda a quest�o � express�-los com o gesto largo e a convic��o nos bei�os. Imaginai que o per�odo anterior � a conclus�o de uma arenga, dita com os bra�os estendidos, as m�os abertas e voltadas para baixo, os polegares unidos, dando uma imagem vaga do zimb�rio. Imaginai isto, dizei se o pr�prio teto azul n�o viria abaixo com palmas.

Alguns, vendo esta minha insist�ncia, supor�o que ando com o c�rebro um pouco desequilibrado. Melancolia � meia dem�ncia. Ora, eu ando melanc�lico, depois que li que acabou a parede dos alfaiates de Buenos Aires. A elegante Buenos Aires � um ponto da terra; mas Nazar� tamb�m o era, e de l� saiu Jesus; tamb�m o era Meca, e de l� saiu Mafamede. Comparo assim coisas t�o essencialmente opostas, como a f� crist� e a peste mu�ulmana, para mostrar que o bem e o mal do mundo podem vir de um ponto escasso. De Buenos-Aires contava eu que viesse uma religi�o nova.

A parede dos alfaiates ia estender-se, alastrar pela Am�rica, transportar-se � Europa, e passar de l� a toda a parte do globo onde o homem veste o homem. A const�ncia dos paredistas, o orgulho do desespero, ajudados pela a��o do tempo, iriam acabando com as casacas, coletes e cal�as. Os criados receberiam ordem de servir em mangas de camisa. A criada obrigaria os amos � ado��o da simples camisa e do resto. A natureza readquiriria assim metade dos seus direitos; era a nova religi�o esperada. Se n�o falo da costureira, � porque a natureza � s� uma, e os vestidos seguiriam o rumo das casacas... A dec�ncia seria muito menor; mas que economia!

2 de junho

Quando me deram not�cia da morte de Saldanha Marinho, veio-me � lembran�a aquele dia de julho de 1868, em que a C�mara liberal viu entrar pela porta o Partido Conservador. H� vinte e sete anos; mas os acontecimentos foram tais e tantos, depois disso, que parece muito mais.

Os liberais voltaram mais tarde, tornaram a cair e a voltar, at� que se foram de vez, como os conservadores, e com uns e outros o Imp�rio.

Jovem leitor, n�o sei se acabavas de nascer ou se andavas ainda na escola. Dado que sim, ouvir�s falar daquele dia de julho, como os rapazes de ent�o ouviam falar da Maioridade ou do fim da Rep�blica de Piratinim, que foi a pacifica��o do Sul, h� meio s�culo.

Certo, n�o ignoras o que eram as recep��es de minist�rios ou de partidos, viste muitas delas, e a �ltima h� seis anos. H�s de lembrar-te que a C�mara enchia-se de gente, galerias, tribunas, recinto. Na �ltima recep��o, em 1889, ouvi que alguns espectadores, cansados de estar em p�, sentaram-se nas pr�prias cadeiras dos deputados. Creio que antigamente n�o vinha muita gente ao recinto, mas a popula��o da cidade era muito menor. A estat�stica � a chave dos costumes. Demais, n�o esque�as a ternura do nosso cora��o, a cultura da amizade, o gosto de servir, a necessidade de mostrar alguma influ�ncia, e por fim a indigna��o, que leva um grande n�mero de pessoas a entrar com os ombros. Compreende-se, ali�s, a curiosidade p�blica. O acontecimento em si mesmo era sempre interessante; depois, a certeza de que se n�o ia ouvir falar de impostos, dava �nimo de penetrar no recinto sagrado. Acrescentai que n�s amamos a esgrima da palavra, e aplaudimos com prazer os golpes certos e bonitos.

Tamb�m houve aplausos em 1868, como em 1889, como nas demais sess�es interessantes, ainda que fossem de simples interpela��es � aos ministros. �As galerias n�o podem dar sinais de aprova��o ou reprova��o�, diziam sonolentamente os presidentes da C�mara. A primeira vez que ouvi esta advert�ncia, fiquei um pouco admirado; supunha que o presidente presidia, e que o mais era uma quest�o de pol�cia interior; mas explicaram-me que a mesa � que era a comiss�o de pol�cia. Compreendi ent�o, e notei uma virtude da galeria, � que aplaudia sempre e n�o pateava nunca.

Ou�o ainda os aplausos de 1868, estrepitosos, sinceros e un�nimes. Os ministros entraram, com Itabora� � frente, e foram ocupar as cadeiras onde dias antes estavam os ministros liberais. Um destes ergueu-se, e em poucas palavras explicou a sa�da do gabinete. N�o me esqueceu ainda a impress�o que deixou em todos a famosa declara��o de que a escolha de Torres Homem n�o era acertada. Zacarias acabava de repeti-la no Senado. Geralmente, as dissolu��es dos gabinetes eram explicadas por frases vagas, e porventura nem sempre ver�dicas. Daquela vez conheceu-se que a explica��o era verdadeira. Disse-se ent�o que a palavra fora buscada para dar ao gabinete as honras da sa�da. Algu�m ouviu por esse tempo, ao pr�prio Zacarias, naquela grande ch�cara de Catumbi, que �desde a quaresma sentia que a queda era inevit�vel�. Grande atleta, quis cair com gra�a.

ltabora� levantou-se e pediu os or�amentos. Foi ent�o que desabou uma tempestade de vozes duras e vibrantes. Posto soubesse que se despedia a si mesma, a C�mara votou uma mo��o de despedida ao minist�rio conservador. Um s� esp�rito sup�s que a mo��o podia desfazer o que estava feito; n�o me lembra o nome, talvez n�o soubesse ler em pol�tica, e da� essa credulidade natural, que se manifestou por um aparte cheio de esperan�as.

Uma das vozes duras e vibrantes foi a de Saldanha Marinho. Escolhido senador pelo Cear�, nessa ocasi�o, bastava-lhe pouco para entrar no Senado � para esper�-lo, ao menos. O sil�ncio era o conselho do s�bio. Diz um prov�rbio �rabe que �da �rvore do sil�ncio pende o seu fruto, a tranq�ilidade�. Diz mal ou diz pouco este prov�rbio, porque a prosperidade � tamb�m um fruto do sil�ncio. Saldanha Marinho podia calar-se e votar, � votar contra o minist�rio, incluir o nome entre os que o recebiam na ponta da lan�a, e at� menos. Crises dessas alcan�am as pessoas. Tamb�m se brilha pela aus�ncia. O senador escolhido deitou fora at� a esperan�a. Ergueu-se, e com poucas palavras atacou o minist�rio e a pr�pria coroa; lembrou 1848, a que chamou estelionato, e deixou-se cair com os amigos. O Senado anulou a elei��o, e Saldanha Marinho n�o tornou na lista tr�plice.

Caiu com os amigos. A a��o foi digna e pode dizer-se rara. Para ir ao Senado, n�o faltavam seges, nem animais seguros. Saldanha ficou a p�. N�o lhe custava nada ser firme; desde que, em 1860, tornara � pol�tica pelo jornalismo, nunca soube ser outra coisa. 1860! Quem se n�o lembra da c�lebre elei��o desse ano, em que Otaviano, Saldanha e Otoni derribaram as portas da C�mara dos Deputados � for�a de pena e de palavra? O lencinho branco de Otoni era a bandeira dessa rebeli�o, que p�s na linha dos suplentes de eleitores os mais ilustres chefes conservadores... � tempos idos! Vencidos e vencedores v�o todos entrando na hist�ria. Alguns restam ainda, encalvecidos ou encanecidos pelo tempo, e dois ou tr�s cingidos de honras merecidas. O que ora se foi, separara-se h� muito dos companheiros, sem perder-lhes a estima e a considera��o. Mudara de campo, se � que se n�o restituiu ao que era por natureza.

9 de junho

N�o estudei com Pangloss; n�o creio que tudo v� pelo melhor no melhor dos mundos poss�veis. Por isso, quando acho que censurar na nossa terra, digo com os meus bot�es: H� de haver males nas terras alheias, olhemos para a Fran�a, para a It�lia, para a R�ssia, para a Inglaterra, e acharemos defeitos iguais, e alguma vez maiores. N�o costumo dizer: �Olhemos para o Jap�o�, porque � o �nico pa�s onde parece que tudo se aproxima do otimismo de Pangloss. Vede este pedacinho da proclama��o do mikado ao povo, depois de vencida a China: �Regozijemos-nos pelas nossas recentes vit�rias, mas � ainda longe o caminho da civiliza��o que temos de percorrer... N�o nos deixemos guiar por sentimentos de amor pr�prio excessivo, caminhemos modesta e esfor�adamente para a perfei��o das nossas defesas militares, sem cair no extremo... O governo opor-se-� a todos quantos, desvanecidos pelas nossas recentes vit�rias, buscarem ofender as pot�ncias amigas do Jap�o, e principalmente a China...� Que diferen�a entre esta e as proclama��es dos outros grandes Estados! Em verdade, essa linguagem prova que o Jap�o � algu�m; mas, ainda assim, imposs�vel que l� n�o haja tratantes. Notemos uma coisa: nos n�o lemos os jornais da oposi��o de T�quio.

A que prop�sito isto? A prop�sito da elei��o da Bahia. Li que na apura��o dos votos apareceram agora centenas de eleitores inventados, contando varias par�quias tr�s e quatro vezes mais do que tinham h� um ano. O espanto e a indigna��o que este fato causou a algumas pessoas, foram grandes, mas a falta de mem�ria dos nossos concidad�os n�o � menor. Quem pode ignorar que essa multiplica��o de eleitores n�o � coisa nova, nem baiana? Sabe-se muito bem que a urna � um �tero. Pe�o licen�a para recordar uma frase, n�o delicada, n�o cort�s, mas vigorosa, que antigamente se aplicava aos casos em que era preciso aumentar as c�dulas; dizia-se: emprenhar a urna. Que admira, com tal for�a de natalidade, que os eleitores cres�am e apare�am?

� um mal, concordo; mas n�o haver� males an�logos em outras terras? Olhemos para a It�lia. As urnas italianas n�o s�o fecundas: a� vai, por�m, um extraordin�rio fen�meno eleitoral.

Sabemos telegraficamente o resultado total da elei��o da c�mara. H� uns tantos deputados governistas, uns tantos radicais, uns tantos socialistas, finalmente um pequeno n�mero de indecisos. Leitor, imita o meu gesto, deixa cair o queixo. Certamente a indecis�o � um estado ou uma qualidade do esp�rito, mas o que me abalou estes pobres nervos cansados, foi imaginar a inten��o dos eleitores que os mandaram para a c�mara. Compreendo que os eleitores governistas perguntassem aos candidatos se eram pelo governo, e votassem neles, e assim os outros seus colegas. N�o acabo de crer que inquirissem de alguns candidatos o que eram, e, ouvindo-lhes que ainda n�o estavam certos disso, corressem a eleg�-los deputados. Uma s� coisa pode explicar o fen�meno, a indecis�o dos pr�prios eleitores; da� a escolha de pessoas n�o mais decididas que eles. Pode ser; mas semelhante mal parece-me ainda maior que a simples fecunda��o das urnas ou a multiplica��o dos algarismos. Onde n�o h� opini�es, � �til invent�-las; mas n�o as ter e mandar para a c�mara pessoas igualmente pobres, nem � �til, nem legitimo.

Vejamos. Qual ser� a situa��o de tais deputados, quando come�arem os seus trabalhos? A indecis�o, antes de fazer mal ao pa�s, faz mal ao pr�prio individuo que a tem consigo. Como falar? Como votar? Podem falar contra e votar a favor, e vice-versa, mas isso mesmo � sair da indecis�o. J� n�o ser�o indecisos, ser�o inconsistentes. Hamlet, indeciso entre o ser e o n�o ser, tem o �nico recurso de sair de cena; os deputados podem fazer a mesma coisa. Saiam do recinto, quando se votar. Enquanto se discutir, n�o falem, n�o d�em apartes, leiam uma pagina de Dante, posto que a leitura seja amarga, uma vez que o poeta p�e justamente os indecisos logo no princ�pio do inferno, almas que n�o deixaram mem�ria de si e s�o desprezadas tanto pela miseric�rdia como pela justi�a:

Fama di loro il mondo esser non lassa;

Misericordia e giustizia li sdegna:

Non ragioniam di lor, ma guarda e passa.

Melhor que tudo, por�m, ser� imitar aquele personagem de uma velha com�dia, que atravessa cinco atos sem saber com qual de duas mo�as h� de casar, e acaba escolhendo uma delas, mas dizendo a parte (o que o deputado pode fazer em voz alta para que os eleitores ou�am): �Creio que teria feito melhor casando com a outra.� Assim se podem fundir a indecis�o e o voto.

Dei um exemplo de defeitos que acham an�logos em outras terras, sem diminu�-las da grandeza, como nos n�o diminuem os nossos. Nem por isso deixamos de caminhar todos na estrada da civiliza��o, uns mais acelerados, outros mais moderados. N�o vamos crer que a civiliza��o � s� este desenvolvimento da hist�ria, esta perfei��o do esp�rito e dos costumes. Nem por ser uma galera magn�fica, deixa de ter os seus mariscos no fundo, que � preciso limpar de tempos a tempos, e assim se explicam as guerras e outros fen�menos.

Um daqueles mariscos... Perdoem-me a compara��o; � o mal de quem escreve com ret�ricas estafadas. O melhor estilo � o que narra as coisas com simpleza, sem atavios carregados e in�teis. V� este e seja o ultimo. Um daqueles mariscos da galera � a desconfian�a m�tua dos homens e a convic��o que alguns t�m da patifaria dos outros. A confian�a nasceu com a terra; a inoc�ncia e a ingenuidade foram os primeiros l�rios. No fim do s�culo passado dormia-se no Rio de Janeiro com as janelas abertas. Mais tarde, a pol�cia j� apalpava as pessoas que eram encontradas, horas mortas, a ver se traziam navalha ou gazua. Afinal, come�amos a ajudar a pol�cia; vendo que outros povos usam do rev�lver, para defesa pr�pria e natural, pegamos do costume, e a maior parte da gente traz agora o seu.

Conquanto a necessidade seja triste, sai da� um melhoramento. Era costume nesta cidade, sempre que a pol�cia prendia algu�m, entoar em volta do agente aquele belo coro da liberdade: N�o pode! N�o pode! Vai acabando o costume. H� dias, tendo um sujeito ferido ou matado a outro, foi perseguido pelo clamor p�blico; como arrancasse a espada ao agente de pol�cia e usasse dela correndo, muitas pessoas correram atr�s e a tiros de revolver conseguiram det�-lo e prend�-lo. O assassino ficou em sangue, verificando-se assim a senten�a da Escritura: �Quem com ferro fere, perecera pelo ferro�. Este processo de capturar a dist�ncia impedira a fuga dos malfeitores.

16 de junho

Guimar�es chama-se ele; ela Cristina. Tinham um filho, a quem puseram o nome de Ab�lio. Cansados de lhe dar maus tratos, pegaram do filho, meteram-no dentro de um caix�o e foram p�-lo em uma estrebaria, onde o pequeno passou tr�s dias, sem comer nem beber, coberto de chagas, recebendo bicadas de galinhas, at� que veio a falecer. Contava dois anos de idade. Sucedeu este caso em Porto Alegre, segundo as �ltimas folhas, que acrescentam terem sido os pais recolhidos � cadeia, e aberto o inqu�rito. A dor do pequeno foi naturalmente grand�ssima, n�o s� pela tenra idade, como porque bicada de galinha d�i muito, mormente em cima de chaga aberta. Tudo isto, com fome e sede, f�-lo passar �um mau quarto de hora�, como dizem os franceses, mas um quarto de hora de tr�s dias; donde se pode inferir que o organismo do menino Ab�lio era apropriado aos tormentos. Se chegasse a homem, dava um lutador resistente; mas a prova de que n�o iria at� l�, � que morreu.

Se n�o fosse Schopenhauer, � prov�vel que eu n�o tratasse deste caso diminuto, simples not�cia de gazetilha. Mas h� na principal das obras daquele fil�sofo um cap�tulo destinado a explicar as causas transcendentes do amor. Ele, que n�o era modesto, afirma que esse estudo � uma p�rola. A explica��o � que dois namorados n�o se escolhem um ao outro pelas causas individuais que presumem, mas porque um ser, que s� pode vir deles, os incita e conjuga. Apliquemos esta teoria ao caso Ab�lio.

Um dia Guimar�es viu Cristina, e Cristina viu Guimar�es. Os olhos de um e de outro trocaram-se, e o cora��o de ambos bateu fortemente. Guimar�es achou em Cristina uma gra�a particular, alguma coisa que nenhuma outra mulher possu�a. Cristina gostou da figura de Guimar�es, reconhecendo que entre todos os homens era um homem �nico. E cada um disse consigo: �Bom consorte para mim!� O resto foi o namoro mais ou menos longo, o pedido da m�o da mo�a, as formalidades, as bodas. Se havia sol ou chuva, quando eles casaram, n�o sei; mas, supondo um c�u escuro e o vento minuano, valeram tanto como a mais fresca das brisas debaixo de um c�u claro. Bem-aventurados os que se possuem, porque eles possuir�o a terra. Assim pensaram eles. Mas o autor de tudo, segundo o nosso fil�sofo, foi unicamente Ab�lio. O menino, que ainda n�o era menino nem nada, disse consigo, logo que os dois se encontraram: �Guimar�es h� de ser meu pai, e Cristina h� de ser minha m�e; n�o quero outro pai nem outra m�e; � preciso que nas�a deles, levando comigo, em resumo, as qualidades que est�o separadas nos dois�. As entrevistas dos namorados era o futuro Ab�lio que as preparava; se eram dif�ceis, ele dava coragem a Guimar�es para afrontar os riscos, e paci�ncia a Cristina para esper�-lo. As cartas eram ditadas por ele. Ab�lio andava no pensamento de ambos, mascarado com o rosto dela, quando estava no dele, e com o dele, se era no pensamento dela. E fazia isso a um tempo, como pessoa que, n�o tendo figura pr�pria, n�o sendo mais que uma id�ia espec�fica, podia viver inteiro em dois lugares, sem quebra da identidade nem da integridade. Falava nos sonhos de Cristina com a voz de Guimar�es, e nos de Guimar�es com a de Cristina, e ambos sentiam que nenhuma outra voz era t�o doce, t�o pura, t�o deleitosa.

Naturalmente, houve alguma vez arrufos. Como explic�-los? Explico-os a meu modo; creio que Ab�lio teve momentos de Hamlet. Uma ou outra vez haver� hesitado e meditado, como o outro: �Ser ou n�o ser, eis a quest�o. Valer� a pena sair da esp�cie para o indiv�duo, passar deste mar infinito a uma simples gota d��gua apenas vis�vel, ou n�o ser� melhor ficar aqui, como outros tantos que se n�o deram ao trabalho de nascer? Nascer, viver, n�o mais. Viver? Lutar, quem sabe?� It is the rub, continuou ele em ingl�s, nos termos do poeta, t�o universal � Shakespeare, que os pr�prios seres futuros j� o trazem de cor.

Enfim, nasceu Ab�lio. N�o contam as folhas coisa alguma acerca dos primeiros dias daquele menino. Podiam ser bons. H� dias bons debaixo do sol. Tamb�m n�o se sabe quando come�aram os castigos, � refiro-me aos castigos duros, os que abriram as primeiras chagas, n�o as pancadinhas do princ�pio, visto que todas as coisas t�m um princ�pio, e muito prov�vel � que nos primeiros tempos da crian�a os golpes fossem aplicados diminutivamente. Se chorava, � porque a l�grima � o suco da dor. Demais, � livre, � mais livre ainda nas crian�as que mamam, que nos homens que n�o mamam.

Chagado, encaixotado, foi levado � estrebaria, onde, por um desconcerto das coisas humanas, em vez de burros, havia galinhas. Sabeis j� que estas, mariscando, comiam ou arrancavam somente peda�os da carne de Ab�lio. A�, nesses tr�s dias, podemos imaginar que Ab�lio, inclinado aos mon�logos, recitasse este outro de sua inven��o: �Quem mandou aqueles dois casarem-se para me trazerem a este mundo? Estava t�o sossegado, t�o fora dele, que bem podiam fazer-me o pequeno favor de me deixarem l�. Que mal lhes fiz eu antes, se n�o era nascido? Que banquete � este em que a primeira coisa que negam ao convidado � p�o e �gua?� 

Nesse ponto do discurso � que o fil�sofo de Dantzig, se fosse vivo e estivesse em Porto Alegre, bradaria com a sua velha irrita��o: �Cala a boca, Ab�lio. Tu n�o s� ignoras a verdade, mas at� esqueces o passado. Que culpa podem ter essas duas criaturas humanas, se tu mesmo � que os ligaste? N�o te lembras que, quando Guimar�es passava e olhava para Cristina, e Cristina para ele, cada um cuidando de si, tu � que os fizeste atra�dos e namorados? Foi a tua �nsia de vir a este mundo que os ligou sob a forma de paix�o e de escolha pessoal. Eles cuidaram fazer o seu neg�cio, e fizeram o teu. Se te saiu mal o neg�cio, a culpa n�o � deles, mas tua, e n�o sei se tua somente... Sobre isto, � melhor que aproveites o tempo que ainda te sobrar das galinhas, para ler o trecho da minha grande obra, em que explico as coisas pelo mi�do. � uma p�rola. Est� no tomo II, livro IV, cap�tulo XLIV... Anda, Ab�lio, a verdade � verdade  ainda � hora da morte. N�o creias nos professores de filosofia, nem na peste de Hegel...�

E Ab�lio, entre duas bicadas:

� Ser� verdade o que dizes, Artur; mas � tamb�m verdade que, antes de c� vir, n�o me do�a nada, e se eu soubesse que teria de acabar assim, �s m�os dos meus pr�prios autores, n�o teria vindo c�. Ui! Ai!

23 de junho

N�o vou ao extremo de atribuir � F�nix Dram�tica qualquer inten��o filos�fica ou simplesmente hist�rica. N�o; a F�nix, como todos os teatros, publicou um an�ncio. Mas o que � que n�o h� dentro de um an�ncio? Durante muitos anos acreditei que as �mo�as distintas, de boa educa��o� que pedem pelos jornais �a prote��o de um senhor vi�vo�, eram v�timas de �dios de fam�lia ou da fatalidade, que buscavam um resto de sentimento medieval neste s�culo de guarda-chuvas. Como supor que eram damas nobremente desocupadas que procuravam emprego honesto? Um an�ncio � um mundo de mist�rios.

O que a F�nix mandou inserir nos jornais n�o traz mist�rios. � a lista do espet�culo composto de v�rias partes, das quais duas especialmente fazem assunto desta medita��o. A primeira � uma com�dia: Artur ou dezesseis anos depois. Quando li este t�tulo tive um sobressalto; depois, n�o sei que fada pegou em mim, pelos cabelos, e levou-me atrav�s dos anos at� aos meus tempos de menino. Ca� em cheio entre os primeiros bonecos que vi na minha vida: eram de pau e tinham gra�a. Santos bonecos, oh! bonecos do meu cora��o, �reis sublimes, fal�veis com eloq��ncia e sintaxe, conquanto fosse eu que falasse por v�s; mas crian�a tem o mau vezo de crer que tudo o que diz � perfeito. �reis sinceros; n�o conheceis isto que os franceses chamam fumisterie, e que, pela nossa l�ngua, poder�amos dizer (aproximadamente) debique. N�o, bonecos da minha inf�ncia, v�s n�o me debic�veis; nem com a sintaxe, nem sem ela.

Nesse tempo n�o tinha visto a com�dia, que era, pelo seu verdadeiro g�nero, um vaudeville. Tamb�m n�o a vi depois, nem agora. Sei que antigamente se representou no Teatro de S�o Pedro de Alc�ntara e no de S�o Francisco. A data da composi��o est� no pr�prio subt�tulo, moda que se perdeu, e na denomina��o dos atos: 1� O Batismo do Barco; 2� O Amor de M�e. Ignoro os nomes dos artistas que a representavam. Podia ser a Jesu�na Montani, que se fizera c�lebre na Gra�a de Deus, ou a Leonor Orsat, afamada na Vendedora de Perus, t�tulos que trazem a mesma data e o mesmo esquecimento. Em volta da pe�a agora anunciada, vi aparecer uma infinidade de sombras, como D. Jo�o viu surgir as das mulheres que o tinham amado e perdido. As velhas reminisc�ncias t�m a particularidade de trazerem a frescura antiga; eu fiquei calado e cabisbaixo.

Pedro Lu�s, o epigram�tico forrado de poeta, contou-me um dia que, estando em Roma, certa noite, ouviu tocar um realejo e n�o p�de suster as l�grimas. Que os manes de meu amigo me perdoem esta revela��o! Aquele esp�rito fino e sarc�stico chorou ao som de um banal instrumento. Certo, ele n�o estava ao p� das ru�nas da antiga Roma, pois que tais ru�nas pediam antes a m�sica do sil�ncio. Havia de ser em alguma rua ou hospedaria; mas demos que fossem ru�nas. A linguagem natural delas � a da caducidade das coisas; nada mais f�cil, em dado caso, que achar nelas um pouco de n�s mesmos. Revia ele os dias da meninice, as festas da ro�a e da cidade? Foi ent�o que algum tocador perdido na noite entrou a moer a m�sica do seu realejo; era a pr�pria voz dos tempos que dava alma �s reminisc�ncias antigas; da� algumas l�grimas.

Eu, n�o por ser mais forte, mas talvez por n�o estar em Roma, n�o chorei quando li o t�tulo de Artur ou Dezesseis Anos Depois. Nem foi porque este outro realejo me trouxesse lembran�as perdidas ou que eu julgava tais. Tamb�m eu vi, na inf�ncia, tocadores que paravam na rua, mo�am a m�sica e estendiam o chap�u para receberem os dois vint�ns de esp�rtula. Cuido que ainda hoje fazem o mesmo; os meninos � que s�o outros, e os dois vint�ns subiram a tost�o. Deus meu! eu bem sei que um trecho de m�sica de realejo n�o vale os Huguenotes, como aquela com�dia pacata e sentimental n�o valia o Filho de Giboyer nem o Pai Pr�digo, que n�s �amos ver, tempos depois, no Gin�sio Dram�tico, � o teatro que h� pouco chamei S�o Francisco, e hoje �, se me n�o engano, uma loja de fazendas.

Agora a segunda parte do an�ncio da F�nix, que parece dar ao todo um ar de paralelo e compensa��o. A segunda parte � uma can�oneta, com este t�tulo sugestivo: Ora Toma, Mariquinhas! N�o posso julgar da can�oneta, porque n�o a ouvi nunca; mas, se, como dizia Garret, h� t�tulos que dispensam livros, este dispensa as coplas; basta-lhe ser o que � para se lhe adivinhar um texto picante, brejeiro, em fraldas de camisa. N�o s�o dezesseis anos, como na com�dia, mas trinta anos ou mais, que decorrem daquele Artur a esta Mariquinhas. H� uma hist�ria entre as duas datas, hist�ria gaiata, ou n�o, segundo a idade e os temperamentos. Da� a significa��o do an�ncio e a sua inconsciente filosofia.

Os que tiverem ido ao teatro, levados uns pela velha com�dia, outros pela can�oneta nova, sa�ram de l� satisfeitos, a seu modo. Tamb�m pode suceder, � e isto ser� a gl�ria do an�ncio, � que os da can�oneta n�o achassem inteiramente ins�pido o sabor da pe�a velha, e que os da pe�a velha sentissem o vinho das coplas subir-lhes � cabe�a. Esses foram pela rua abaixo, de bra�o dado; enquanto o mo�o gargareja com a ingenuidade de Artur a rouquid�o da cantiga nova, o velho recomp�e um pouco da vida exausta com dois trinados da can�oneta.

A can�oneta, como g�nero, nasceu no antigo Alcazar. A princ�pio as cantoras levantavam uma pontinha de nada do vestido, isso mesmo com gesto encolhido e delicado. Anos depois, nos grandes canc�s, mandavam a ponta do p� aos narizes dos cantores. O gesto era feio, mas haviam-se com tal arte que n�o se descompunham, posto se lhes vissem as saias e as meias, � meias lavadas. Enfin, Malherbe vint...

30 de junho

O destino, que conhece o desfecho de cada drama, sorri dos nossos c�lculos, e choraria, se pudesse chorar, das previs�es humanas. Quem volve os olhos atr�s, at� setembro de 1893, naquela manh� em que a cidade acordou com a not�cia de que um almirante sublevara a esquadra, reconhece que estava longe de imaginar o desfecho de semelhante ato, dois amuos depois, no Campo Os�rio. Outro almirante, tomando o comando da subleva��o, foi perecer em combate na fronteira rio-grandense, e o que parecia um epis�dio curto da Rep�blica, transformou-se em longo duelo, terr�vel e mortal. Os acontecimentos levam os homens, como os ventos levam as folhas.

De Saldanha da Gama se pode dizer que, qualquer que seja o modo de julgar o �ltimo ato da sua vida, h� um s� parecer e sentimento a respeito do homem de guerra e do que ele pessoalmente valia. As folhas p�blicas de todos os matizes deram-lhe o apelido de Coriolano; os mais fortes advers�rios puderam dizer, como Tulus, pela l�ngua de Shakespeare:

My rage is gone

And I am struck with sorrow...

Mas, deixemos este assunto melanc�lico, para ir a outro n�o menos melanc�lico, � verdade, mas de outra melancolia. Muitas s�o as melancolias deste mundo. A de Saul n�o � a de Hamlet, a de Lamartine n�o � a de Musset. Talvez as nossas, leitor amigo, sejam diferentes uma da outra, e nesta variedade se pode dizer que est� a gra�a do sentimento.

O Sr. conde de Herzberg, por exemplo, devia ser um homem melanc�lico, e talvez seja intensamente alegre. N�o tenho a honra de conhec�-lo. Parece que a maior parte dos que travam rela��es com ele, fazem-no por toda a eternidade. Eu n�o cheguei ainda �quele apuro de maneiras que permite ser apresentado ao digno conde, nos seus pr�prios carros. Um coveiro de Hamlet diz que o of�cio de coveiro � o mais fidalgo do mundo, por ter sido o of�cio de Ad�o; mas � preciso lembrar que a Empresa Funer�ria n�o estava inventa- da, nem no tempo de Ad�o, nem sequer no de Hamlet.

Seja como for, o que � certo � que a Empresa. Funer�ria, por mais triste que possa ser, n�o � menos lucrativa. Nem h� incompatibilidade entre a melancolia e o lucro; s�o dois fen�menos que se temperam e se completam. O poeta que comparou as l�grimas �s perolas (perdeu-se-lhe o nome, tantos s�o os inventores da compara��o), mostrou clara e poeticamente que a riqueza pode ir com o desespero. Vamos agora ao ponto imediato e principal.

Anuncia-se que a sec��o da Empresa Funer�ria, que estava sob a dire��o do Sr. conde de Herzberg, foi vendida por duzentos e cinq�enta contos. Quando li esta not�cia, senti naturalmente aquele fen�meno que produzem todas as coisas boas deste mundo: veio-me �gua a boca. Depois a reflex�o tomou conta de mim. Duzentos e cinq�enta contos de r�is! Uma sec��o da Empresa Funer�ria! Duzentos contos de r�is para enterrar mortos...

Muito se morre nesta vida, e especialmente nesta cidade. N�o h�, certamente, mais mortos que vivos, mas os mortos s�o muitos. Quanto �s mol�stias que os levam, crescendo com a civiliza��o, fazem t�o bem o seu of�cio, que raro se dir� que matam de mentira. E tudo � preciso enterrar. N�o chego a entender como outrora, e ainda neste s�culo, chegavam �s igrejas para guardar cad�veres. Os cemit�rios vieram, cresceram, multiplicaram-se, e a� temos cinco ou seis dessas necr�poles, inclusive o cemit�rio dos Ingleses, que eu j� conhecia desde crian�a, como uma coisa muito particular. Dizia-se �o cemit�rio dos ingleses�, como se dizia a �constitui��o inglesa�, ou o �parlamento ingl�s� � uma institui��o das ilhas brit�nicas.

Naturalmente, com o tempo foi-se morrendo mais, j� pelas mol�stias entradas, j� pela popula��o crescida, j� pelos nascimentos novos.

A quest�o, por�m, n�o � morrer. A quest�o � o pre�o por que se morre. Uma se��o da Empresa Funer�ria que se pode vender por 250 contos de r�is, prova que a morte no Rio de Janeiro n�o � mais barata que a vida. O p�o � caro, mas o gal�o n�o o � menos; a carne e a belbutina correm parelhas. Os carros, que suponho constituem a se��o vendida, t�m o pre�o marcado nas colunas, nos dourados, nos animais, e parece que tamb�m no cocheiro. O chap�u deste � que � sempre o mesmo, chap�u de couro luzidio, ou mat�ria an�loga, largo em umas cabe�as, estreito em outras, pela raz�o talvez de que o desacordo da cabe�a e do chap�u d� certo tom de melancolia ao cocheiro. Os animais variam, se o pre�o � magro ou gordo. H� casos em que se p�e no cocheiro um peda�o de pano, casos em que n�o. Os anjinhos, salvo a substitui��o do preto pelo encarnado, s�o tratados com a mesma altura de pre�os e varia��o de esplendor e mod�stia.

Se se morresse barato, valia a pena morrer. Comparativamente, entra-se na vida por menor pre�o do que se sai. � uma esp�cie de engodo, um convite em boas maneiras; chega-se a porta, d�-se uma pequena esp�rtula, entra-se e fica-se. Quando se trata de ir embora, acabada a festa, todas as portas est�o tomadas, um guarda em p�, com a tabela dos pre�os na m�o. Precisa-se saber, antes de tudo, qual � a classe em que o vivo quer ir a enterrar: �� Na minha classe; eu sou sapateiro�. O guarda sorri e responde: � � A morte n�o conhece classes sociais, n�o quer saber delas; pr�ncipe ou sapateiro, pode ir em primeira ou terceira, uma vez que pague o pre�o, que � tanto�. Quem n�o iria como pr�ncipe, se o pre�o fosse m�dico? Valia a pena de um sacrif�cio para ser pr�ncipe, ainda na morte.

N�o sei quem ter� comprado a se��o da Empresa Funer�ria; mas creiam que se tivesse dinheiro, quem a comprava era eu. Para que lutar na vida, com a vida e pela vida, se a morte nos pode dar bons lucros. Vede quantas riquezas se fizeram e desfizeram no ano terr�vel e depois dele. Grande parte delas voltou ao seio da ilus�o que as ajudou a nascer. Eram tudo obras da vida, mas a vida n�o � menos voraz que a morte, e devorou as mais pujantes. A morte, ao certo, com os seus carros e cocheiros, chap�u com fumo ou sem fumo, animais magros ou gordos, lutou contra os coches luxuosos da vida, as belas parelhas e as libr�s her�ldicas, venceu-os a todos, e foi vendida por duzentos e cinq�enta contos. Viva a morte! Pode n�o ser muito, mas � certo.

7 de julho

Os mortos n�o v�o t�o depressa, como quer o ad�gio; mas que eles governam os vivos, � coisa dita, sabida e certa. N�o me cabe narrar o que esta cidade viu ontem, por ocasi�o de ser conduzido ao cemit�rio o cad�ver de Floriano Peixoto, nem o que vira antes, ao ser ele transportado para a Cruz dos Militares. Quando, h� sete dias, falei de Saldanha da Gama e dos funerais de Coriolano que lhe deram, estava longe de supor que, poucas horas depois, ter�amos not�cia do �bito do marechal. O destino p�s assim, a curta dist�ncia, uma de outra, a morte de um dos chefes da rebeli�o de 6 de setembro e a do chefe de Estado que tenazmente a combateu e debelou.

A hist�ria � isto. Todos somos os fios do tecido que a m�o do tecel�o vai compondo, para servir aos olhos vindouros, com os seus v�rios aspectos morais e pol�ticos. Assim como os h� s�lidos e brilhantes, assim tamb�m os h� frouxos e desmaiados, n�o contando a multid�o deles que se perde nas cores de que � feito o fundo do quadro. O Marechal Floriano era dos fortes. Um de seus mais ilustres amigos e companheiros, Quintino Bocai�va, definiu na tribuna do Senado, com a eloq��ncia que lhe � pr�pria, a natureza, a situa��o e o papel do finado vice-presidente. Bocai�va, que tanta parte teve nos sucessos de 15 de novembro, � um dos remanescentes daquele grupo de homens, alguns dos quais a morte levou, outros se acham dispersos pela pol�tica, restando os que ainda une o mesmo pensamento de inicia��o. A verdade � que temos vivido muito nestes seis anos, mais que nos que decorreram do combate de Aquidab� � revolu��o de 15 de novembro, vida agitada e r�pida, t�o depressa qu�o cheia de sucessos.

Mas, como digo, os mortos n�o v�o t�o depressa que se percam todos de nossa vista. Ontem era um ex-chefe de Estado que a popula��o conduzia ou via conduzir ao �ltimo jazigo. Hoje comemora-se o centen�rio de um poeta. Digo mal. Nem se comemora, nem � ainda o centen�rio. Este � no fim do m�s; o que se faz hoje, segundo li nas folhas, � convidar os homens de letras para tratarem dos meios de celebrar o primeiro centen�rio da morte de Jos� Bas�lio da Gama. N�o conhe�o o pio brasileiro que tomou a si essa iniciativa; mas tem daqui todo o meu apoio. N�o se vive s� de pol�tica. As musas tamb�m nutrem a alma nacional. Foi o nosso Gonzaga que escreveu com grande acerto que as pir�mides e os obeliscos arrasam-se, mas que as Il�adas e as Eneidas ficam.

Jos� Bas�lio n�o escreveu Eneidas nem Il�adas, mas o Uruguai � obra de um grande e doce poeta, precursor de Gon�alves Dias. Os quatro cantos dos Timbiras, escapos ao naufr�gio, s�o da mesma fam�lia daqueles cinco cantos do poema de Jos� Bas�lio. N�o tem este a popularidade da Mar�lia de Dirceu, sendo-lhe, a certos respeitos, superior, por mais incompleto e menos limado que o ache Garrett; mas o pr�prio Garrett escreveu em 1826 que os brasileiros t�m no poema de Jos� Bas�lio da Gama �a melhor coroa da sua poesia, que nele � verdadeiramente nacional, e leg�tima americana�.

Neste tempo em que o uso do verso solto se perdeu inteiramente, tanto no Brasil como em Portugal, Gonzaga tem essa superioridade sobre o seu patr�cio mineiro. As rimas daquele cantam de si mesmas, quando n�o baste a perfei��o dos seus versos, ao passo que o verso solto de Jos� Bas�lio tem aquela harmonia, seguramente mais dif�cil, a que � preciso chegar pela s� inspira��o e beleza do metro. N�o ser�o sempre perfeitos. O meu bom amigo Muzzio, companheiro de outrora, cr�tico de bom gosto, achava detest�veis aqueles dois famosos versos do Uruguai:

Tropel confuso de cavalaria,

Que combate desordenadamente.

� Isto nunca ser� onomatop�ia, dizia ele; s�o dois maus versos.

Concordava que n�o eram melodiosos, mas defendia a inten��o do poeta, capaz de os fazer com a t�nica usual. Um dia, achei em Filinto El�sio uma imita��o daqueles versos de Jos� Bas�lio da Gama, por sinal que ruim, mas o l�rico portugu�s confessava a imita��o e a origem. N�o quero dizer que isto tornasse mais belos os do poeta mineiro; mas � for�a lembrar o que valia no seu tempo Filinto El�sio, t�o acatado, que meia d�zia de versos seus, elogiando Bocage, bastaram a inspirar a este o c�lebre grito de orgulho e de gl�ria: � Zoilos, tremei! Posteridade, �s minha!

A reuni�o de hoje pode ser prejudicada pela grande como��o de ontem. Outro dia seria melhor. Se alguns homens de letras se juntarem para isto, fa�am obra original, como original foi o poeta no nosso mundo americano. Antes de tudo, seja-me dado pedir alguma coisa: excluam a poliant�ia. Oh! a poliant�ia! Um dia apareceu aqui uma poliant�ia; da� em diante tudo ou quase tudo se fez por essa forma. A coisa, desde que lhe n�o presida o gosto e a escolha, descai naturalmente at� a vulgaridade; o nome, por�m, f�-la-� sempre odiosa, t�o usado e gasto se acha. N�o lhe ponham tal designa��o; qualquer outra, ou nenhuma, � prefer�vel, para coligir as homenagens da nossa gera��o.

No meu tempo de rapaz, era certo fazer-se uma reuni�o liter�ria, onde se recitassem versos e prosas adequadas ao objeto. N�o aconselho este alvitre; al�m de ser costume perdido, e bem perdido, seria grandemente arriscado reviv�-lo. N�o se podem impor programas, nem se h� de tapar a boca aos que a abrirem para dizer alguma coisa fora do ajuste. Uma daquelas reuni�es foi not�vel pela leitura que algu�m fez de um relat�rio, n�o sei sobre qu�, mas era um relat�rio comprido e mal recitado. Um dos convidados era oficial do ex�rcito, estava fardado, e passeava na sala cont�gua, obrigando um chocarreiro a dizer que a diretoria da festa mandara buscar o oficial para prender o leitor do relat�rio, apenas acabada a leitura; mas a leitura, a falar verdade, creio que ainda n�o acabou.

N�o; h� v�rios modos de comemorar o poeta de Lind�ia, dignos do assunto e do tempo. N�o busquem grandeza nem rumor; falta ao poeta a popularidade necess�ria para uma festa que toque a todos. Uma simples festa liter�ria � bastante, desde que tenha gosto e arte. Oficialmente se poder� fazer alguma coisa, o nome do poeta, por exemplo, dado pelo Conselho Municipal a uma das novas ruas. Devo aqui notar que Minas Gerais, que tem o gosto de mudar os nomes �s cidades, n�o deu ainda a nenhuma delas o nome de Gonzaga, e bem podia dar agora a alguma o nome de Lind�ia, se o do cantor desta lhe parece extenso em demasia; qualquer ato, enfim, que mostre o apre�o devido � musa deliciosa de Jos� Bas�lio, o mesmo que, condenado a desterro, p�de com versos alcan�ar a absolvi��o e um lugar de oficial de secretaria.

Eu n�o verei passar teus doze anos,

Alma de amor e de piedade cheia,

Esperam-me os desertos africanos,

�spera, inculta, monstruosa areia,

Ah! tu fazes cessar os tristes danos...

Assim falou ele � filha do Marqu�s de Pombal, como sabeis, e dos versos lhe veio a boa fortuna. A m� fortuna veio-lhe do car�ter, que se conservou fiel ao marqu�s, ainda depois de ca�do, e perdeu com isso o emprego...

Para acabar com poetas. Valentim Magalh�es tornou da Europa. Viu muito em pouco tempo e soube ver bem. Parece-me que teremos um livro dele contando as viagens. Com o esp�rito de observa��o que possui, e a fantasia original e viva, dar-nos-� um volume digno do assunto e de si. O que se pode saber j�, � que, indo a Paris, n�o se perdeu por l�; viu Burgos e Salamanca, viu Roma e Veneza, � Veneza que eu nunca verei, talvez, se a morte me levar antes, como diria M. de La Palisse � Veneza, a �nica, como escrevia h� pouco um autor americano.

14 de julho

Carne e paz foram as doa��es principais da semana. A carne � municipal, a paz � federal, mas nem por isso s�o menos apraz�veis ao homem e ao cidad�o, uma vez que a carne seja barata e a paz eterna. Eterna! Que paz h� eterna neste mundo? A mesma paz dos t�mulos � uma frase. L� h� guerra � guerra no pr�prio homem, luta pela vida. Nem � raro ir c� de fora buscar o morto ao jazigo derradeiro para isto ou para aquilo, como o c�lebre pr�ncipe D. Pedro, que, uma vez rei, fez coroar o cad�ver de D. In�s de Castro. O nosso Jo�o Caetano, quando queria dar alguma solenidade �s representa��es da Nova Castro, anunciava que a trag�dia acabaria com a cena da coroa��o. Obtinha com isto mais uma ou duas centenas de mil-r�is. N�o ficava mais bela a trag�dia; mas o espectador gostava tanto de prolongar a sua pr�pria ilus�o!

Paz e carne. Faz lembrar os jantares de S. Bartolomeu dos M�rtires: vaca e riso. Se com estas duas coisas o arcebispo n�o deixou de ser canonizado, esperemos que nos canonizem tamb�m. Nem creio que haja melhor caminho para o c�u. N�o nego as belezas do jejum, mas o c�u fica t�o longe, que um homem fraco pode cair na estrada, se n�o tiver alguma coisa no est�mago. Que essa seja barata, � o que presumo sair do ato da intend�ncia; e basta isso para ter feito uma sess�o �til.

Um dos intendentes pensa o contr�rio; acha que s� se fizeram torneios orat�rios. Foi o Sr. Hon�rio Gurgel. Ao que retorquiu o Sr. Vieira Fazenda: �Come�ando pelos de V. Exa.�. Replicou o Sr. Hon�rio Gurgel: �Verdadeiros jogos florais, onde o Sr. Fazenda, como sempre, brilhou pela sua fac�ndia�. E o Sr. Vieira Fazenda: �V. Exa. est� continuando a tornar tempo ao Conselho com longos discursos�. � dif�cil crer que haja paz depois de tais remoques; mas se h� leis que explicam tudo, alguma explicar� este fen�meno. Pouco visto em legisla��o, prefiro crer que, se algum sangue correu depois daquilo, foi somente o da vaca aprovada e contratada.

Vaca e riso. Agora � o riso que se anuncia, por meio da pacifica��o do Sul. A guerra � boa, e, dado que seja exato, como pensa um fil�sofo, que ela � a m�e de todas as coisas, preciso � que haja guerras, como h� casamentos. A leitura de batalhas � agrad�vel ao esp�rito. As proclama��es napole�nicas, as descri��es hom�ricas, as oitavas camonianas, lidas no gabinete, d�o id�ia do que ser� o pr�prio espet�culo no campo. A mais de um combatente ouvi contar as belezas tr�gicas da luta entre homens armados, e tenho acompanhado muita vez o jovem Fabr�cio del Dongo na batalha de Waterloo, levados ambos n�s pela m�o de Stendhal. O destino trouxe-me a este campo quieto do gabinete, com sa�da para a Rua do Ouvidor, de maneira que, se adoeci de um olho, n�o o perdi em combate, como sucedeu a Cam�es. Talvez por isso n�o componha iguais versos. Homero, que os perdeu ambos, deixou um grande modelo de arte.

Entre par�ntesis, uma patr�cia nossa que n�o perdeu nenhum dos seus belos olhos de vinte e um anos, mostrou agora mesmo que se podem compor versos, sem quebra da beleza pessoal. N�o � a primeira, decerto. A Marquesa de Alorna j� tinha provado a mesma coisa. A S�vign�, se n�o comp�s versos, fez coisas que os merecem, e era bonita e m�e. N�o cito outras, nem George Sand, que era bela, nem George Eliot, que era feia. Francisca J�lia da Silva, a patr�cia nossa, se � certo o que nos conta Jo�o Ribeiro, no excelente pref�cio dos M�rmores, j� escrevia versos aos quatorze anos. Bem podia dizer, pelo estilo de Bernardim: �Menina e mo�a me levaram da casa de meus pais para longes terras�... Essas terras s�o as da pura mitologia, as de V�nus talhada em m�rmore, as terras dos castelos medievais, para cantar diante deles e delas impassivamente. �Musa Impass�vel�, que � o t�tulo do �ltimo soneto do livro, melhor que tudo pinta esta mo�a insens�vel e fria. Essa impassibilidade ser� a pr�pria natureza da poetisa, ou uma impress�o liter�ria? Eis o que nos dir� aos vinte e cinco anos ou aos trinta. N�o nos sair� jamais uma das choramingas de outro tempo; mas aquele soneto da p. 74, em que �a alma vive e a dor exulta, ambas unidas�, mostra que h� nela uma corda de simpatia e outra de filosofia.

Outro par�ntesis. A Gazeta noticiou que alguns habitantes da esta��o de Lima Duarte pediram ao presidente da Companhia Leopoldina a mudan�a do nome da localidade para o de Lind�ia, agora que � o centen�rio de Bas�lio da Gama. Pela carta que me deram a ler, vejo que p�em assim em andamento a id�ia que me ocorreu h� sete dias. Eu falei ao governo de Minas Gerais; mas os habitantes de Lima Duarte deram-se pressa em pedir para si a designa��o, e � de crer que sejam servidos. Ao que suponho, o presidente da Companhia � o Sr. conselheiro Paulino de Sousa, lido em coisas p�trias, que n�o negar� t�o pequeno favor a t�o grande brasileiro. Demais, a hist�ria tem encontros: o filho do Visconde de Uruguai honrar� assim o cantor do Uruguai. � quase honrar-se a si pr�prio. Provemos que o lemos:

Ser�s lido, Uruguai. Cubra os meus olhos

Embora um dia a escura noite, eterna,

Tu, vive e goza a luz serena e pura;

Vai aos bosques...

Fechados ambos os par�ntesis, tornemos � paz anunciada. Tamb�m ela � �til, como a guerra, e tem a sua hora. O mundo romano dormia em paz algumas vezes. Venha a paz, uma vez que seja honrada e �til. N�o falo por interesse pessoal. Como eu n�o saio a campo a combater, deixo-me nesta situa��o que o povo chama: �ver touros de palanque�. O poeta Lucr�cio, mais profundamente, dizia que era doce, estando em terra, ver naufragar, etc. O resto � sabido. Carne e paz: � muito para uma semana �nica. Vaca e riso: n�o � preciso mais para uma vida inteira � salvo o que mais vale e n�o cabe na cr�nica.

21 de julho

Ontem, s�bado, fez-se a elei��o de um senador pelo Distrito Federal. Votei; estou bem com a lei e a minha consci�ncia. Enquanto se apuravam os votos, vim escrever estas linhas, que provavelmente ningu�m hoje ler�. N�o me perguntem a quem dei o voto; ao eleitor cabe tamb�m o direito de ser discreto. � at� certo ponto um segredo profissional.

A coincid�ncia da elei��o aqui com a da c�mara dos comuns de Inglaterra fez-me naturalmente refletir sobre os processos de ambos os pa�ses. N�o aludo aos trinta mil discursos que se fazem nas ilhas brit�nicas diante de eleitores que desejam ouvir o pensamento dos candidatos. Os candidatos aqui estariam prontos a dizer o que pensam; mas � incerto que as reuni�es fossem concorridas. Demais, basta ler a �ltima sess�o da c�mara dissolvida para conhecer a diversidade dos costumes. Quando um dos ministros deu not�cia de que o gabinete estava demitido e havia sido chamada a oposi��o ao governo, levantou-se o leader desta, e bradou contra o gabinete liberal, por n�o ter dissolvido a c�mara, impondo agora essa tarefa � oposi��o. N�s, quando t�nhamos parlamentarismo, o ato da oposi��o seria diverso; dir-se-iam algumas palavras duras � coroa, outras mais duras aos ministros novos, e cada qual ia cuidar do seu of�cio.

Se cada pa�s tem os seus costumes eleitorais, nem por isso a Inglaterra usa s� de discursos e meetings; h� tamb�m cabala, e grossa. H� at� fraude, se � certo o que dizem telegramas de ontem, sobre haverem os governadores usado dela para impedir a elei��o do leader liberal, do que resultaram meetings, discursos, e pancadaria. Antes a cabala; � leg�tima, natural, verdadeira sele��o de espertos e ativos.

Dizem at� (e para isto chamo a aten��o das leitoras), dizem que as ladies ajudam a cabala eleitoral com grande anima��o. Afirmam que fazem visitas aos eleitores, entram nas pocilgas mais repugnantes, falam ao eleitor e � mulher, pegam dos filhos deles e os p�em ao colo. Acrescentam que, quando saem dali, sacodem as sand�lias, mas contam com o voto; e o voto � certo, porque as ladies do partido adverso fazem a mesma coisa, e o eleitor serve a uma delas, embora seja obrigado a roer a corda � outra. Ningu�m ignora o caso da bela fidalga que concedeu um beijo a um a�ougueiro, � porta do a�ougue, para que ele votasse em Fox.

N�o aconselho �s damas deste pa�s o beijo aos a�ougueiros, nem a outros quaisquer eleitores. Sei que h� muito Fox que mereceria o sacrif�cio: mas nem todos os sacrif�cios se fazem. Entretanto, as mo�as podiam cabalar modestamente. Um aperto de m�o, um requebro de olhos, quatro palavrinhas doces, valem mais que os rudes pedidos masculinos.

Uma coisa que as mo�as podiam alcan�ar, era o comparecimento de todos os mes�rios �s respectivas se��es, para que os eleitores votassem certos e descansados. Ontem encontrei alguns deles inquietos, por acharem uma se��o vazia, sem sombra de mesa que lhes recebesse as c�dulas. Disse-lhes que a doen�a de um, a morte de outro, uma visita, a demora do barbeiro, um carro quebrado, mil acidentes podiam explicar a aus�ncia dos membros da mesa, sem que da� viesse mal ao mundo, uma vez que n�o ca�a o c�u abaixo. N�o obstante, quiseram votar em separado na minha se��o.

N�o entendi a resolu��o, como n�o entendi o boato da Rep�blica em Portugal (j� agora desmentido oficialmente). N�o tendo havido sequer um conto a que se acrescentasse um ponto, era evidente que o boato nascera aqui mesmo de coisa nenhuma. Se o fim era influir no c�mbio, estava justificado. Neg�cio � neg�cio, e n�o sei que seja mais desonesto inventar uma revolu��o incorreta e uma rep�blica sem realidade, que levar-me cem mil-r�is por um objeto do valor de setenta. Ao contr�rio, levando-me cem por setenta, perco trinta mil-r�is certos, ao passo que a coroa de D. Carlos continua a pousar na real cabe�a, sob a forma de um simples chap�u. Os efeitos do c�mbio podem ajudar a uns, em detrimento de outros, � verdade; mas n�o � isso mesmo a luta pela vida?

Quer-me parecer, entretanto, que h� um sindicato formado para explorar a credulidade p�blica. Sem nenhum intento lucrativo, � seu �nico objeto rir um pouco, a fim de curar a incur�vel melancolia dos s�cios. Quinta-feira foi destinada � Rep�blica de Portugal. Dizem que o boato come�ou �s 11 horas; talvez o plano fosse caminhar um pouco e dar �s 2 horas a uni�o ib�rica proclamada, e as duas l�nguas, espanhola e portuguesa, em marcha para uma s� espanhola, e os Lus�adas, convertidos em poema provinciano, traduzido por ordem do ministro do Fomento. �s 3 horas, o sindicato diria que a Inglaterra, amando todos os Egitos poss�veis, no que faz muito bem, teria mandado para o pal�cio das Necessidades um dos seus lordes temporais. �s 4 horas os janotas de Lisboa perguntariam uns aos outros, por gra�a e novidade: How do you do?

Se � isto, continuem. Uma boa organiza��o de imaginosos e discretos pode dar alegria � cidade e ajudar a levar a cruz da vida. Se amanh� ou depois nos derem a entrada de Crispi para um convento, ou a convers�o de Bismarck ao catolicismo, podem abrir uma assinatura e desde j� me inscrevo por um ano.

Esta semana parece de cinco dias; mas n�o lhe dou mais uma hora; adeus.

28 de julho

Raramente leio as not�cias policiais, e n�o sei se fa�o bem. S�o mon�tonas, vulgares, a l�ngua n�o � boa; em compensa��o, podem achar-se p�rolas nesse esterco. Foi o que me sucedeu esta semana, deixando cair os olhos na not�cia do assassinato de Jo�o Ferreira da Silva. N�o foi o nome da v�tima que me prendeu a aten��o, nem o do suposto assassino, nem as demais circunst�ncias citadas no depoimento das testemunhas, as serenatas de viola, o botequim, a bisca e outras. Uma das testemunhas, por exemplo, fala do clube dos Girondinos, que eu n�o conhecia, mas ao qual digo que, se n�o tem por fim perder as cabe�as dos s�cios, melhor � mudar de nome. Sei que a hist�ria n�o se repete. A Revolu��o Francesa e Otelo est�o feitos; nada impede que esta ou aquela cena seja tirada para outras pe�as, e assim se cometem, literariamente falando, os pl�gios. Ora, o nome de Girondinos � sugestivo; d� vontade de levar os portadores ao cadafalso. Tudo isto seja dito, no caso de n�o se tratar de alguma sociedade de dan�a.

Vamos, por�m, ao assassinato da rua da Rela��o. O que me atraiu nesse crime foi a for�a do amor, n�o por ser o motivo da disc�rdia e do ato, � h� muito quem mate e morra por mulheres � mas por apresentar na pessoa de Manuel de Sousa, o suposto assassino, um modelo particular de paix�es contr�rias e m�ltiplas. Foram as tatuagens do corpo do homem que me deslumbraram.

As tatuagens s�o todas ou quase todas amorosas. Bra�os e peito est�o marcados de nomes de mulheres e de s�mbolos de amor. L� est�o as iniciais de uma Isaura Maria da Concei��o, as de Sara Esaltina dos Santos, as de Maria da Silva Fidalga, as de Joaquina Rosa da Concei��o. L� est�o as figuras de um homem e de uma mulher em col�quio amoroso; l� est�o dois cora��es, um atravessado por uma seta, outro por dois punhais em cruz...

Quando os m�dicos examinaram este homem fizeram-no com Lombroso na m�o, e acharam nele os sinais que o c�lebre italiano d� para se conhecer um criminoso nato; da� a veemente suposi��o de ser ele o assassino de Jo�o Ferreira. Eu, para completar o ju�zo cient�fico, mandaria ao mestre Lombroso c�pia das tatuagens, pedindo-lhe que dissesse se um homem t�o dado a amores, que os escrevia em si mesmo, pode ser verdadeiramente criminoso.

Se pode, e se foi ele que matou o outro, n�o ser� o �anjo do assassinato�, como Lamartine chamou a Carlota Corday, mas ser�, como eu lhe chamo, o Eros do assassinato. Na verdade, h� alguma coisa que atenua este crime. Quem tanto ama, que � capaz de escrever em si mesmo alguns dos nomes das mulheres amadas... Sim, apenas quatro, mas � evidente que este homem deve ter amado dezenas delas, sem contar as ingratas. Conv�m notar que traz no corpo, entre as tatuagens p�blicas, um signo de Salom�o. Ora Salom�o, como se sabe, tinha trezentas esposas e setecentas concubinas; da� a devo��o que Manuel de Sousa lhe dedica. E isso mesmo explicar� a voca��o do homic�dio. Salom�o, logo que subiu ao trono, mandou matar algumas pessoas para ensaiar a vontade. Assim as duas voca��es andar�o juntas, e se Manuel de Sousa descende do filho de Davi, coisa poss�vel, tudo estar� mais que explicado.

A for�a do amor � tamanha que at� aparece no conflito do Amap�. Daquela tormenta sabe-se que dois nomes sobrevivem, Cabral e Trajano. O retrato do chefe Cabral, que com tanto ardor defendeu a povoa��o, quando os franceses a invadiram levando tudo a ferro e fogo, est� na loja Natt�; mas n�o � dele que trato. Trajano, que os franceses alegavam ser seu, chegou � capital do Par� onde foi interrogado por mais de um rep�rter, visto e ouvido com extraordin�ria aten��o. A todos respondeu narrando as cenas terr�veis. Dizem os jornais que � homem de seus cinq�enta e cinco anos, inteligente, falando bem o portugu�s, com uma ou outra locu��o afrancesada.

Tudo narrou claramente � e tristemente, decerto, mas, acaso pensais que essas cenas de sangue s�o a sua principal dor? N�o conheceis a natureza e seus espantos. Trajano sente mais que tudo uma caboclinha, sua mulher, que lhe fugiu. Este duro golpe penetrou mais fundo na alma dele que os outros. N�o daria a p�tria pela caboclinha, nem ningu�m lha pede; mas, enquanto a dor lhe d�i, vai confessando o que sente.

Quem sabe se o caso da ilha da Trindade � mais de amor que de navega��o e posse? Agora que o conflito est� findo ou quase findo, gra�as � habilidade e firmeza do governo, podemos conjeturar um pouco sobre este ponto, n�o para explicar poeticamente a a��o inglesa, mas para mostrar que os cora��es mais duros podem ter seus acessos de ternura.

Cam�es chama algures duros navegantes aos seus portugueses. Nem por duros puderam esquivar-se ao amor. Um dia acharam a ilha dos Amores, que V�nus, para os favorecer, ia empurrando no mar, at� encontr�-los. Os descobridores da �ndia desembarcaram. As belezas da floresta, a apari��o das ninfas nuas e seminuas, que iam fugindo aos intrusos, as falas deles e delas, os famintos beijos, o choro mimoso, a ira honesta, e toda a mais descri��o e narra��o, lidas em terra, fazem extraordinariamente arder os cora��es. Imaginai um navio ingl�s, patr�cio de Byron, no alto mar, batido dos ventos e da mis�ria, e dando com uma ilha deserta e inculta. Se os tripulantes estivessem lendo as ordens do almirantado do s�culo XVIII, podia ser que n�o entrassem na ilha; mas liam Cam�es, e exatamente o epis�dio da ilha dos Amores. Desceram � ilha; a imagina��o acesa pela poesia mostra-lhes o que n�o h�; d�o com tran�as de ouro, fraldas de camisa, pernas nuas. Um Veloso, por outro nome ingl�s, d� espantado um grande grito, repete o discurso do personagem de Cam�es, e conclui que sigam as deusas, e vejam se s�o fant�sticas, se verdadeiras. Todos obedeceram, inclusive o Leonardo do poema, e entraram a correr pela mata e pelas �guas, at� que deram por si em um espa�o deserto, sem fruta, sem flores, sem mo�as...

Ouviram alguma coisa, ao longe, a voz de um homem, que falava pela l�ngua do poeta, ainda que em prosa diplom�tica. E dizia a voz estranha uma por��o de coisas que eles, antes de ler Cam�es, deviam trazer de mem�ria. Tornaram a bordo, n�o menos ardentes que desconsolados, e foram consolar-se com o imaginado epis�dio da ilha dos Amores; mas ent�o j� haviam passado as estrofes das ninfas nuas e seminuas; estas tinham-se casado com os navegantes e a deusa principal com o grande capit�o. Os versos j� n�o eram lascivos, mas conceituosos. Um deles lia para os outros escutarem:

E ponde na cobi�a um freio duro,

E na ambi��o tamb�m, etc.

4 de agosto

ANTES DE ESCREVER o nome de Bas�lio da Gama, � for�a escrever o do Dr. Teot�nio de Magalh�es. A este mo�o se deve principalmente a evoca��o que se fez esta semana do poeta do Uruguai. Pessoas que educaram os ouvidos de rapaz com versos de Jos� Bas�lio, n�o tinham na mem�ria o centen�rio da morte do poeta. N�o as crimino por isso, seria criminar-me com elas. Tamb�m n�o ralho dos �ltimos ano deste s�culo, t�o exaustivos para n�s, t�o cheios de sucesso, terra marique. N�o h� lugar para todos, para os vivos e para os mortos principalmente os grandes mortos. Mas como algu�m se lembrou do poeta, esse falou por todos, e muitos seguiram a bandeira do jovem piedoso e modesto, que mostrou possuir o sentimento da gl�ria e da p�tria.

N�o se fez demais para quem muito merecia; mas fez-se bem e com alma. Que os nossos patr�cios de 1995, chegado o dia 20 de julho, recordem-se igualmente que a l�ngua, que a poesia da sua terra, adornam-se dessas flores raras e vividas. Se a vida p�blica ainda impedir que os nomes representativos do nosso g�nio nacional andem na boca e mem�ria do povo, algu�m haver� que se lembre dele, como agora, e o segundo centen�rio de Bas�lio da Gama ser� celebrado, e assim os ulteriores. Que esse modo de viver na posteridade seja ainda urna consola��o! Quando a p� do arque�logo descobre uma est�tua divina e truncada, o mundo abala-se, e a maravilha � recolhida aonde possa ficar por todos os tempos; mas a est�tua ser� uma s�. Ao poeta ressuscitado em cada anivers�rio restar� a vantagem de ser uma nova e rara maravilha.

Tal foi uma das festas da semana, que teve ainda outras. H� tempo de se afligir e tempo de saltar de gosto, diz o Eclesiastes; donde se pode concluir, sem tru�smo, que h� semanas festivas e semanas aborrecidas. No Eclesiastes h� tudo para todos. A pacifica��o do Sul l� est�: �H� tempo de guerra e tempo de paz�. Muita gente entende que este � que � o tempo de paz; muita outra julga, pelo contr�rio, que � ainda o tempo da guerra, e de cada lado se ouvem raz�es caras e fortes. O Eclesiastes, que tem respostas para tudo, alguma dar� a ambas as opini�es; se n�o fosse a urg�ncia do trabalho, iria busc�-la ao pr�prio livro, n�o podendo faz�-lo, contento-me em supor que ele dir� aquilo que tem dito a todos, em todas as l�nguas, principalmente no latim, a que o trasladaram: �Vaidade das vaidades, e tudo � vaidade�.

Napole�o emendou um dia essas palavras do santo livro. Foi justamente em dia de vit�ria. Quis ver os cad�veres dos velhos imperadores austr�acos, foi aonde eles estavam depositados, e gastou largo tempo em contempla��o, ele, imperador tamb�m, at� que murmurou, como no livro: �Vaidade das vaidades, tudo � vaidade�. Mas, logo depois, para corrigir o texto e a si, acrescentou: �Exceto talvez a for�a�. Seja ou n�o exata a anedota, a palavra � verdadeira. Podeis emend�-la ao corso ambicioso, se quiserdes, como ele fez ao desconsolado de Israel, mas h� de ser em outro dia. Os minutos correm: agora � falar da semana e das suas festas alegres.

Uma dessas festas foi o regresso do Sr. Rui Barbosa. Coincidiu com o de Bas�lio da Gama; mas aquele veio de Londres, este da sepultura, e por mais definitiva que seja a sepultura, for�a � confessar que o autor do Uruguai n�o veio de mais longe que o ilustre ministro do governo provis�rio. Talvez de mais perto. A sepultura � a mesma em toda a parte, qualquer que seja o m�rmore e o talento do escultor, ou a simples pedra sem nome ou com ele, posta em cima da cova. A morte � universal. Londres � Londres, tanto para os que a admiram, como para os que a detestam. Um membro da comuna de Paris, visitando a Inglaterra h� anos, escreveu que era um pa�s profundamente insular, tanto no sentido moral, como no geogr�fico. Os que leram as cartas do Sr. Rui Barbosa no Jornal do Com�rcio ter�o sentido que ele, um dos grandes admiradores do g�nio brit�nico reconhece aquilo mesmo na na��o, e particularmente na capital da Inglaterra.

A recep��o do Sr. Rui Barbosa foi mais entusi�stica e ruidosa que de Bas�lio da Gama; diferen�a natural, n�o por causa dos talentos que s�o incompar�veis entre si, mas porque a vida fala mais ao �nimo dos homens, porque o Sr. Rui Barbosa teve grande parte na hist�ria dos �ltimos anos, finalmente porque � algu�m que vem dizer ou fazer alguma coisa. Como essa coisa, se a houver, � certamente pol�tica, troco de caminho e torno-me �s letras, ainda que a� mesmo ache o culto esp�rito do Sr. Rui Barbosa, que tamb�m as pratica e com intimidade. N�o importa, aqui, o que houver de dizer ou fazer, ser� bem-vindo a todos.

Outra festa, n�o propriamente a primeira em data ou lustre, mas em interesse c� da casa, foi o anivers�rio da Gazeta de Not�cias. Completou os seus vinte anos. Vinte anos � alguma coisa na vida de um jornal qualquer, mas na da Gazeta � uma longa p�gina da hist�ria do Jornalismo. O Jornal do Com�rcio lembrou ontem que ela fez uma transforma��o na imprensa. Em verdade, quando a Gazeta apareceu, a dois vint�ns, pequena, feita de not�cias, de anedotas, de ditos picantes, apregoada pelas ruas, houve no p�blico o sentimento de alguma coisa nova, adequada ao esp�rito da cidade. H� vinte anos. As mo�as desta idade n�o se lembraram de fazer agora um gracioso mimo � Gazeta, bordando por suas m�os uma bandeira, ou, em seda o n�mero de 2 de agosto de 1875. S�o duas boas id�ias que em 1896 podem realizar as mo�as de vinte e um anos, e depressa, depressa antes que a Gazeta chegue aos trinta. Aos trinta, por mais amor que haja a esta folha, n�o � f�cil que as senhoras da mesma idade lhe fa�am mimos. Se lessem Balzac, f�-los-iam grandes, e achariam m�os amigas que os recebessem; mas as mo�as deixaram Balzac, pai das mulheres de trinta anos.

11 de agosto

QUE POUCO se leia nesta terra � o que muita gente afirma, h� longos anos; � o que acaba de dizer um bibli�mano na Revista Brasileira. Este, por�m, confirmando a observa��o, d� como uma das causas do desamor � leitura o ruim aspecto dos livros, a forma desigual das edi��es, o mau gosto, em suma. Creio que assim seja, contanto que essa causa entre com outras de igual for�a. Uma destas � a falta de estantes. As nossas grandes marcenarias est�o cheias de m�veis ricos, v�rios de gosto; n�o h� s� cadeiras, mesas, camas, mas toda a sorte de trastes de adorno fielmente copiados dos modelos franceses, alguns com o nome original, o bijou de salon, por exemplo, outros em l�ngua h�brida, como o porte-bibelots Entra-se nos grandes dep�sitos, fica-se deslumbrado pela perfei��o da obra, pela riqueza da mat�ria, pela beleza da forma. Tamb�m se acham l� estantes, � verdade, mas s�o estantes de m�sicas para piano e canto, bem acabadas, v�rio tamanho e muita maneira.

Ora, ningu�m pode comprar o que n�o h�. Mormente os noivos, nem tudo acode. A prova � que, se querem comprar cristais, metais, lou�a, v�o a outras casas, assim tamb�m roupa branca, tape�aria etc.; mas n�o � nelas que achar�o estantes. Nem � natural que um mancebo, prestes a contrair matrim�nio, se lembre de ir a lojas de ferro ou de madeira; quando se lembrasse, refletiria certamente que a mob�lia perderia a unidade. S� as grandes f�bricas poderiam dar boas estantes, com ornamenta��es, e at� sem elas.

A Revista Brasileira � um exemplo de que h� livros com excelente aspecto. Creio que se vende, se n�o se vendesse, n�o seria por falta de mat�ria e valiosa. Mudemos de caminho, que este cheira a an�ncio. Falemos antes da impress�o que este �ltimo n�mero me trouxe. Refiro-me �s primeiras p�ginas de um longo livro, uma biografia de Nabuco, escrita por Nabuco, filho de Nabuco. � o cap�tulo da inf�ncia do finado estadista e jurisconsulto . As vidas dos homens que serviram noutro tempo, e s�o os seus melhores representantes, h�o de interessar sempre �s gera��es que vierem vindo. O interesse, por�m, ser� maior, quando o autor juntar o talento e a piedade filial, como na presente caso. Dizem que na sepultura de Chatham se p�s este letreiro: �O pai do Sr. Pitt�. A revolu��o de 1889 tirou, talvez, ao filho de Nabuco uma consagra��o an�loga. Que ele nos d� com a pena o que nos daria com a palavra e a a��o parlamentares, e outro fosse o reg�men, ou se ele adotasse a constitui��o republicana. H� muitos modos de servir a terra de seus pais.

A impress�o de que falei, vem de anos longos. Desde muito morrera Paran� e j� se aproximava a queda dos conservadores, por interm�dio de Olinda, precursor da ascens�o de Zacarias. Ainda agora vejo Nabuco, j� senador, no fim da bancada da direita, ao p� da janela, no lugar correspondente ao em que ficava, do outro lado, o Marqu�s de Itanha�m, um molho de ossos e peles, tr�pego, sem dentes nem valor pol�tico. Zacarias, quando entrou para o Senado foi sentar-se na bancada inferior � da Nabuco. Eis aqui Eus�bio de Queir�s, chefe dos conservadores, respeitado pela capacidade pol�tica, admirado pelos dotes orat�rios, invejado talvez pelos seus c�lebres amores. Uma grande beleza do tempo andava desde muito ligada ao seu nome. Perdoe-me esta men��o. Era uma senhora alta, outoni�a... S�o migalhas da hist�ria, mas as migalhas devem ser recolhidas. Ainda agora leio que, entre as rel�quias de N�lson, coligidas em Londres, figuram alguns mimos da formosa Hamilton. Nem por se ganharem batalhas navais ou pol�ticas se deixa de ter cora��o. Jequitinhonha acaba de chegar da Europa, com os seus bigodes pouco senatoriais. L� estavam Rio Branco, simples Paranhos, no centro esquerdo, bancada inferior, abaixo de um senador do Rio Grande do Sul, como se chamava? � Ribeiro, um que tinha ao p� da cadeira, no ch�o atapetado, o dicion�rio de Morais e o consultava a mi�do, para verificar se tais palavras de um orador eram ou n�o leg�timas; era um var�o instru�do e lhano. Quem especificar mais? S�o Vicente, Caxias, Abrantes, Maranguape, Cotegipe, Uruguai, ltabora�, Otoni, e tantos, tantos, uns no fim da vida, outros para l� do meio dela, e todo presididos pelo Abaet�, com os seus compridos cabelos brancos.

Eis a� o que fizeram brotar as primeiras p�ginas de Um Estadista do Imp�rio. Ou�o ainda a voz eloq�ente do velho Nabuco, do mesmo modo que ele devia trazer na lembran�a as de Vasconcelos, Ledo Paula Sousa, Lino Coutinho, que ia ouvir, em rapaz, na galeria da C�mara, segundo nos conta o filho. Que este fa�a reviver aqueles e outros tempos, contribuindo para a hist�ria do s�culo XIX, quando algum s�bio de 1950 vier contar as nossas evolu��es pol�ticas.

Como n�o se h� de s� escrever hist�ria pol�tica, aqui est� Coelho Neto, romancista, que podemos chamar historiador, no sentido de contar a vida das almas e dos costumes. � dos nossos primeiros romancistas, e, geralmente falando, dos nossos primeiros escritores; mas � como autor de obras de fic��o que ora vos trago aqui, com o seu recente livro Miragem. Coelho Neto tem o dom da inven��o, da composi��o, da descri��o e da vida, que coroa tudo. N�o vos poderia narrar a �ltima obra, sem lhe cercear o interesse. Parte dela est� na vista imediata das coisas, cenas e cen�rios. N�o h� transportar para aqui os aspectos r�sticos, as vistas do c�u e do mar, as noites dos soldados, a vida da ro�a, os destro�os de Humait�, a marcha das tropas, em 15 de novembro, nem ainda as �ltimas cenas do livro, tristes e verdadeiras. O derradeiro encontro de Tadeu e da m�e � pat�tico. Os personagens vivem, interessam e comovem. A pr�pria terra vive. A miragem, que d� o t�tulo ao livro, � a vista ilus�ria de Tadeu, relativamente ao futuro trabalhado por ele, e o desmentido que o tempo lhe traz, como ao que anda no deserto.

N�o posso dizer mais; chegaria a dizer tudo. A arte dos caracteres mereceria ser aqui indicada com algumas cita��es: os epis�dios, como os amores de Tadeu em Corumb�, a impiedade de Lu�sa acerca dos desregramentos da m�e, a bondade do ferreiro Nas�rio, e outros que mostram em Coelho Neto um observador de pulso.

18 de agosto

O Sr. Herrera y Obes, ex-presidente da Rep�blica Oriental do Uruguai, foi v�tima esta semana de um desastre. Felizmente, os �ltimos telegramas o d�o restabelecido, ou quase restabelecido; not�cia agrad�vel aos que querem bem � nossa vizinha e aos seus homens not�veis e patriotas.

S. Exa. assistia a um concerto musical em Montevid�u, quando o rev�lver que trazia no bolso das cal�as, engatilhado, disparou repentinamente e a bala foi ferir-lhe o p�. O perigo do rev�lver � a facilidade de o meter no bolso j� engatilhado, ou por descuido, ou para mais pronto emprego, em caso de agress�o. Sendo esse o perigo do rev�lver, � tamb�m a sua grande superioridade. Uma metralhadora exigiria a presen�a de um regimento; a carabina n�o se pode trazer na m�o, e provavelmente seria mandada p�r na sala das bengalas. A velha pistola figura s� nos duelos de hoje e nos vaudevilles de 1854. Alguns romances ainda a conservam.

Chamo a aten��o para este fato, porque o uso do rev�lver, se n�o � nacional, � dessas importa��es que assimilamos com facilidade. Pessoas que reputo bem informadas, afirmam que metade dos homens que andam na rua, levam rev�lver consigo. Nas casas dos arrabaldes � costume adotado. Em havendo sombra de ladr�o, rompem tiros de rev�lver de todos os lados, e o ladr�o escapa, se a noite ou as pernas o ajudam.

Tempo houve em que esta boa cidade dormia com as janelas abertas e as portas apenas encostadas. N�o se andava na rua, � noite. O painel do nosso Firmino Monteiro mostra-nos o famoso Vidigal e dois soldados interrogando um tocador de viola. As noites eram para as serenatas, e ainda assim at� certa hora. O capoeira ia surgindo; multiplicou-se; fez-se of�cio, arte ou distra��o... De passagem, lembrarei aos nossos legisladores que andaram buscando e rebuscando circunl�quios para definir o capoeira, que um ato expedido no princ�pio do s�culo, n�o sei se ainda por vice-rei ou se j� por ministro de D. Jo�o VI, tendo de ordenar vigil�ncia e repress�o contra o capoeira, escreveu simplesmente capoeira, e todos entenderam o que era. �s vezes, n�o � mau legislar assim. Que se evitem palavras de moda, destinadas � vida das rosas... Oh! Malherbe! N�o; tornemos � nossa hist�ria.

Mais tarde veio o costume salutar de apalpar as pessoas que eram encontradas na rua, depois da hora de recolher, a ver se traziam navalha ou faca. Simultaneamente, entrou o uso de apalpar as pessoas que levavam carteira no bolso, e por esta via se foi criando a classe dos gatunos. N�o me tachem de esp�rito vil. Este assunto, se n�o � grande, tamb�m n�o � m�nimo e baixo, como alguns poder�o crer. Nem sempre se h� de tratar das id�ias de Plat�o. O assunto � grave e do dia. Os jornais escrevem artigos, em que dizem que a cidade est� uma verdadeira espelunca de ladr�es. Casas e pessoas s�o salteadas, carteiras levadas, cabe�as quebradas, vidas arriscadas ou arrebatadas. Dizem que falta � autoridade a for�a precisa. Um dos artigos de anteontem afirma que metade do corpo de seguran�a � composto de indiv�duos que j� conheciam a pol�cia por a��es menos �teis. Ora, posto que um ad�gio diga que "o diabo depois de velho, fez-se ermit�o", outro h� que diz, pela l�ngua francesa: qui a bu, boira.

Ao que parece, trata-se de propor na c�mara dos deputados uma lei que d� mais for�a � autoridade, contra os ladr�es e malfeitores. N�o sou oposto a leis, mas tenho medo a leis novas, sobre coisas que se devem presumir legisladas. Se o c�digo n�o � claro, mandemos traduzi-lo. Sobretudo, receio que a lei nova elimine o j�ri. Esta institui��o pode errar, mas � uma garantia; pode absolver mais gatunos do que conv�m, pode soltar um homem que dois meses antes condenou a trinta ou quarenta anos de pris�o, e assim praticar outros atos que, aparentemente, fa�am duvidar da aten��o ou da inteireza com que procede. N�o � raz�o para destru�-la. Se erros bastassem para eliminar os seus autores, que homem viveria ainda na terra? Persigamos o salteador, mas n�o lhe fechemos a porta do quintal; pode ser um inocente.

Sem querer, estou falando da vida e da propriedade, e suas garantias, que � o assunto que se examina agora no Rio Grande do Sul. O mundo afinal reduz-se a isto. Tudo se pode converter � vida e � propriedade, e assim se explicam os �dios grandes e terr�veis. Os m�dicos paulistas, que h� pouco celebraram um acordo para n�o tratar doentes remissos, nem ju�zes que deram uma senten�a contra um pedido de honor�rios, podem ter ofendido o nosso sentimentalismo, mas, em subst�ncia, praticaram um a��o forte e virtuosa. Defendem a propriedade. Os doentes que defendam a vida, pagando. O dito do padre Vieira: morra e vingue-se n�o serve a este caso. Doente que morre, n�o se vinga, enterra-se.

25 de agosto

POMBOS-CORREIOS, vulgarmente chamados telegramas, vieram anteontem do Sul para comunicar que a paz est� feita. Tanto bastou para que a cidade se alegrasse, se embandeirasse e iluminasse. Grandes foram as manifesta��es por essa obra generosa, muita gente correu ao pal�cio de Itamarati, onde aclamou e cobriu de flores o presidente da Rep�blica. Natural � que raz�es pol�ticas e patri�ticas determinassem esse ato, para mim bastava que fossem humanas. Homo sum, et nihil humanum, etc. Bem sei que a guerra tamb�m � humana, por mais desumana que nos pare�a; nem n�s estamos aqui s� para cortar, entre amigos, o p�o da cordialidade. Para isso, n�o era preciso sair do �den. N�o percamos de vista que dos dois primeiros irm�os um matou o outro, e tinham todo este mundo por seu. Se algum dia a paz governar universalmente este mundo, come�ar� ent�o a guerra dos mundos entre si, e o infinito ficar� juncado de planetas mortos. Vingar� por �ltimo o sol, at� que o Senhor apague essa �ltima vela para melhor se agasalhar e dormir. Sonhar� Ele conosco?

Felizmente, s�o sucessos remotos, e muita gente dormir� debaixo da terra, antes que comece a derradeira Il�ada, sem Homero. Contentemo-nos com a paz que nos sorri agora, e alegremo-nos de ver irm�os alegres e unidos. Eu, como as letras s�o essencialmente artes de paz, � natural que a sa�de com particular amor. O tumulto das armas nem sempre � favor�vel � poesia.

De resto, a semana come�ou bem para letras e artes. O Sr. Senador Ramiro Barcelos achou, entre os seus cuidados pol�ticos, um momento para pedir que entrasse na ordem do dia o projeto dos direitos autorais. O Sr. presidente do Senado, de pronto acordo, incluiu o projeto na ordem do dia. Resta que o Senado, correspondendo � iniciativa de um e � boa vontade de outro, vote e conclua a lei.

N�o lhe pe�o que discuta. Discuss�es levam tempo, sem adiantar nada. O artigo 6� da Constitui��o est� sendo discutido com anima��o e compet�ncia, sem que ali�s nenhum orador persuada os advers�rios. Cada um votar� como j� pensa. Talvez se pudesse fazer um ensaio de parlamento calado, em que s� se falasse por gestos, como queria um personagem de n�o sei que pe�a de Sardou, achando-se s� com uma senhora. Sardou? N�o afirmo que fosse ele, podia ser Barri�re ou outro: foi uma pe�a que vi h� muitos anos no extinto Teatro de S. Janu�rio, crismado depois em Ateneu Dram�tico, tamb�m extinto, ou no Gin�sio Dram�tico t�o extinto como os outros. Tudo extinto; n�o me ficaram mais que algumas recorda��es da mocidade, brevemente extinta.

Recorda��es da mocidade! N�o sei se mande compor estas palavras em redondo, se em it�lico. V� de ambas as formas. Recorda��es da mocidade. Na pe�a deste nome, j� no fim, quando os rapazes dos primeiros atos t�m fam�lia e posi��o social, algu�m lembra um ritornello, ou � a pr�pria orquestra que o toca � surdina; os personagens fazem um gesto para dan�ar, como outrora, mas o sentimento da gravidade presente os reprime e todos mergulham outra vez nas suas gravatas brancas. E o que te sucede, q�inquagen�rio que ora l�s os livros de todos esses rapazes que trabalham, escrevem e publicam. � o ritornello das gera��es novas; ei-lo que te recordo o ardor agora t�pido, os risos da primavera fugidia, os ares da manh� passada. Bela � a tarde, e noites h� bel�ssimas; mas a frescura da manh� n�o tem parelha na galeria do tempo.

Eis aqui um Magalh�es de Azeredo, que a diplomacia veio buscar no meio dos livros que fazia. Dante, sendo embaixador, deu exemplo aos governos de que um homem pode escrever protocolos e poemas, e fazer t�o bem os poemas, que ainda sa�am melhores que os protocolos. O nosso Domingos de Magalh�es foi diplomata e poeta. N�o conhe�o as suas notas, mas li os seus versos, e regalei-me em crian�a com o Ant�nio Jos�, representado por Jo�o Caetano, para n�o falar no Waterloo, que mam�vamos no ber�o, com a �Can��o do Ex�lio� de Gon�alves Dias.

�Destruindo afinal, as teias que o embara�avam, o Presidente da Rep�blica achou-se, logo, cercado de louros e fores. Nem todas as aranhas fugiram... A mais perigosa ficou�

Este outro Magalh�es � Magalh�es de Azeredo � � dos que nasceram para as letras, governando Deodoro; pertence � gera��o que, mal chegou � maioridade, toda se desfaz em versos e contos. Comp�e-se destes o livro que acaba de publicar com o t�tulo de Alma Primitiva. N�o te enganes; n�o suponhas que � um estudo � por meio de hist�rias imaginadas � da alma humana em flor. Nem ser�s t�o esquecido que te n�o lembre a novela aqui publicada; hist�ria de amor, de ci�me e de vingan�a, um quadro da ro�a, o contraste da alma de um professor com a de um tropeiro. Tal � o primeiro conto; o �ltimo, �Uma Escrava�, � tamb�m um quadro da ro�a, e a meu ver, ainda melhor que o primeiro. � menos um quadro da ro�a que da escravid�o. Aquela D. Belarmina, que manda vergalhar at� sangrar uma mucama de estima��o, por ci�mes do marido, cujo filho a escrava trazia nas entranhas, deve ser neta daquela outra mulher que, pelo mesmo motivo, castigava as escravas, com ti��es acesos pessoalmente aplicados. Di-lo n�o sei que cronista nosso, frade naturalmente; mais recatado que o frade, fiquemos aqui. S�o horrores, que a bondade de muitas haver� compensado; mas um povo forte pinta e narra tudo.

N�o � o conto �nico da ro�a e da escravid�o, nem s� dele se comp�e este livro variado. Creio que a melhor p�gina de todas � a do Ahasverus, quadro terr�vel de um navio levando o c�lera-m�rbo, pelo oceano fora, rejeitado dos portos, rejeitado da vida. � daqueles em que o estilo � mais condensado e vibrante.

N�o cuides, por�m, que todas as p�ginas deste livro s�o cheias de sangue e de morte. Outras s�o estudos tranq�ilos de um sentimento ou de um estado, quadros de costumes ou desenvolvimento de uma id�ia. De Al�m-T�mulo tem o elemento fant�stico, tratado com fina significa��o e sem abuso. O que podes notar em quase todos os seus contos � um ar de fam�lia, uma fei��o mesclada de ingenuidade e melancolia. A melancolia corrige a ingenuidade dando-lhe a intui��o do mal mundano; a ingenuidade tempera a melancolia, tirando-lhe o que possa haver nela triste ou pesado. N�o � s� fisicamente que o Dr. Magalh�es de Azeredo � simp�tico, moralmente atrai. A educa��o mental que lhe deram auxiliou uma natureza d�cil. Os seus h�bitos de trabalho s�o, como suponho, austeros e pacientes. Duvidar� algumas vezes de si? O trabalho dar-lhe-� a mesma f� que tenho no seu futuro.

1 de setembro

AQUILO QUE LULU SENIOR disse anteontem a respeito do professor ingl�s que enforcaram na Guin� trouxe naturalmente a cor alegre que ele empresta a todos os assuntos. As pessoas que n�o l�em telegramas n�o viram a not�cia; ele, que os l�, fez da execu��o do ingl�s e dos autores do ato uma bonita ca�oada. Nada h�, entretanto, mais temeroso nem mais l�gubre.

N�o falo do enforcamento, ordenado pelas autoridades ind�genas. Eu, se fosse autoridade de Guin�, tamb�m condenaria o professor ingl�s, n�o por ser ingl�s, mas por ser professor. Enforcaram o homem, e n�o h� de ser a simples not�cia de um enforcado que fa�a perder o sono nem o apetite. A descri��o do ato faria arrepiar as carnes, mas os telegramas n�o descrevem nada, e o professor foi pendurado fora da nossa vista. Nem mais teremos aqui tal espet�culo; o desuso e por fim a lei acabaram com a forca para sempre, salvo se a lei de Lynch entrar nos nossos costumes; mas n�o me parece que entre.

Quanto ao crime que levou o professor ingl�s ao cadafalso africano, n�o � ainda o que mais me entristece e abate. Dizem que comeu algumas crian�as. Compreendo que o matassem por isso. � um crime hediondo, naturalmente; mas h� outros crimes t�o hediondos, que ainda afligindo a minha alma, n�o me deixam prostrado e quase sem vida. Demais, pode ser que o professor quisesse explicar aos ouvintes o que era canibalismo, cientificamente falando. Pegou de um pequeno e comeu-o. Os ouvintes, sem saber onde ficava a diferen�a entre o canibalismo cient�fico e o vulgar, pediram explica��es; o professor comeu outro pequeno. N�o sendo prov�vel que os esp�ritos da Guin� tenham a compreens�o f�cil de um Arist�teles, continuaram a n�o entender, e o professor continuou a devorar meninos. Foi o que em pedagogia se chama �li��o das coisas�.

Se assim fosse, dever�amos antes lastimar o sacrif�cio que fez tal homem, comendo o semelhante, para o fim de ensinar e civilizar gentes incultas. Mas seria isso? Foi o amor ao ensino, a dedica��o � ci�ncia, a nobre miss�o do progresso e da cultura? Ou estaremos vendo os primeiros sinais de um terr�vel e pr�ximo retrocesso? Vou explicar-me.

Em 1890, foi descoberto e processado em Minas Gerais um antrop�fago. Um s� j� era demais; mas o processo revelou outros, sendo o maior de todos o r�u Clemente, apresentado ao juiz municipal de Gr�o-Mogol, Dr. Belis�rio da Cunha e Melo, ao qual estava sujeito o termo de Salinas, onde se deu o caso.

N�o era este Clemente nenhum vadio, que preferisse comer um homem a pedir-lhe dez tost�es para comer outra coisa. Era lavrador tinha vinte e dois anos de idade. Confessou perante o subdelegado haver matado e comido seis pessoas, dois homens, duas mulheres e duas crian�as. N�o tenham pena de todos os comidos. Um deles, a mo�a Francisca, antes de ser comida por ele, com quem vivia maritalmente, ajudou-o a matar e a comer outra mo�a, de nome Maria. Outro comido, um tal Bas�lio, foi com ele � casa de Fu�o Simpl�cio, onde pernoitaram, estando o dono a dormir, os dois h�spedes com uma m�o-de-pil�o o mataram, assaram e comeram. Mas tempos depois, um s�bado, 29 de novembro de 1890, levado de saudades, matou o companheiro Bas�lio e estava a comer-lhe as coxas, tendo j� dado cabo da parte superior do corpo, quando foi preso. Os dois meninos comidos antes, chamavam-se Vicente e Elesb�o e eram irm�os de Francisca, filhos de Manuela. Por que escapou Manuela? Talvez por n�o ser mo�a. Oh! mocidade! Oh! flor das flores! A mesma antropofagia te prefere e busca. Aos velhos basta que os desgostos os comam.

Importa notar que o inventor da antropofagia, no termo de Salinas n�o foi Clemente, mas um tal Leandro, filho de Sabininha, e mais a mulher por nome Emiliana. Propriamente foram estes os que mataram um menino, e o levaram para casa, e o esfolaram e assaram; mas, quando se tratou de com�-lo, convidaram amigos, entre eles Clemente, que confessou ter recebido uma parte do defunto. A informa��o consta do interrogat�rio. N�o tive outras not�cias nem sei como acabou o processo. H�o de lembrar-se que esse foi o ano terr�vel (1890-91) em que se perdeu e ganhou tanto dinheiro que n�o pude ler mais nada. Comiam-se aqui tamb�m uns aos outros sem ofensa do c�digo � ao menos no cap�tulo do assassinato.

A conclus�o que tiro do caso de Salinas e do caso da Guin� � que estamos talvez prestes a tornar atr�s, cumprindo assim o que diz um fil�sofo � n�o sei se Montaigne � que n�s n�o fazemos mais que andar � roda. H� de custar a crer, mas eu quisera que me explicassem os dois casos, a n�o ser dizendo que tal costume de comer gente � repugnante e b�rbaro, al�m de contr�rio � religi�o; palavra de civilizado, que outro civilizado desmentiu agora mesmo na Guin�. N�o esque�am a proposta de Swift, para tornar as crian�as irlandesas, que s�o infinitas, �teis ao bem p�blico. �Afirmou-me um americano disse ele, meu conhecido de Londres e pessoa capaz, que uma crian�a de boa sa�de e bem nutrida, tendo um ano de idade, � um alimento delicioso, nutritivo e s�o, quer cozido, quer assado, de forno ou de fog�o�. � escusado replicar-me que Swift quis ser apenas ir�nico. Os ingleses � que atribu�ram essa inten��o ao escrito pelo sentimento de repulsa; mas os pr�prios ingleses acabaram de provar na �frica a veracidade e (com as restri��es devidas � humanidade e � religi�o) o patriotismo de Swift.

Talvez o de�o e o americano se hajam enganado em limitar �s crian�as de um ano as qualidades de sabor e nutri��o. Se tornarmos � antropofagia, � evidente que o uso ir� das crian�as aos adultos, e pode j� fixar-se a idade em que a gente ainda deva ser comida: quarenta a quarenta e cinco anos. Acima desta idade, n�o creio que as qualidades primitivas se conservem. Como � prov�vel que a atual civiliza��o subsista em grande parte, � natural�ssimo que se fa�am institui��es pr�prias de cria��o humana, ou por conta do Estado, ou de acordo com a lei das sociedades an�nimas. Penso tamb�m que acabar� o crime de homic�dio, pois que o modo certo de defesa do criminoso ser�, logo que estripe o seu inimigo ou rival, ce�-lo com pessoas de pol�cia.

Horr�vel, concordo, mas n�s n�o fazemos mais que andar � roda, como dizia o outro... Que me n�o posso lembrar se foi realmente Montaigne, pois iria daqui pesquisar o livro, para dar o texto na pr�pria e deliciosa l�ngua dele! Os franceses t�m um estribilho que se poder� aplicar � vida humana, dado que o seu fil�sofo tenha raz�o:

Si cette histoire vous emb�te,

Nous allons la recommencer.

Os portugueses t�m esta outra, para facilitar a marcha, quando s�o dois ou mais que v�o andando:

Um, dois, tr�s;

Acerta o passo, In�s,

Outra vez!

Estribilhos s�o muletas que a gente forte deve dispensar. Quando voltar o costume da antropofagia, n�o h� mais que trocar o �amai-vos uns aos outros�, do Evangelho, por esta doutrina: �Comei-vos uns aos outros�. Bem pensado s�o os dois estribilhos da civiliza��o.

8 de setembro

N�O ME FALEM de anistias, nem de chuvas, nem de frios, nem do naufr�gio do Brit�nia, nem do eclipse da semana. H� pessoas que trazem de cor os eclipses. Tamb�m eu fui assim, gra�as aos almanaques. Um dia, por�m, vendo que o sol e a lua, posto que primitivos, eram ainda os melhores almanaques deste mundo, acabei com os outros. A economia � sens�vel; mas nem por isso ando com os olhos no c�u. Tendo trope�ado tanta vez, como o s�bio antigo, sigo o conselho da velha e n�o tiro os olhos do ch�o: � o mais seguro gesto para n�o cair no po�o.

V�s, que me ledes h� tr�s anos ou mais, duvidareis um pouco desta afirma��o. Sim, � poss�vel que me tenhais visto com os olhos no firmamento, � cata de alguma estrela perdida ou sonhada. N�o o vejo, mas n�o tenho tempo de me reler, nem j� agora rasgo o que a� fica, para dizer outra coisa. Farei de conta que isto � uma retifica��o, � maneira dos escriv�es e outros oficiais, como esta que leio no �ltimo n�mero do Arquivo Municipal: �Proveu mais o dito ouvidor-geral que dos primeiros efeitos desta C�mara se fa�a um tinteiro de prata, na forma do outro que acabou, digo, na forma do outro que serve�. Com um simples digo se p�e o contr�rio.

Esse Arquivo n�o traz s� velhos documentos, mas tamb�m li��es e boas regras. No dito auto de correi��o, que se fez ali pelos fins do primeiro ter�o do s�culo passado, emendou-se muita lacuna e cortou-se muita demasia. "Proveu mais o ouvidor, que por quanto h� grandes queixas do mal que se cobram os foros dos bens do Conselho, por serem dados alguns a pessoas poderosas, e outros a pessoas eclesi�sticas, mandou que daqui em diante se n�o d�em mais a semelhantes pessoas, sen�o dando fiadores ch�os e abonadores..." Os pr�prios governadores n�o escaparam a este terr�vel ouvidor-geral, que tamb�m mandou "que por nenhum caso de hoje em diante se d� mais a nenhum governador desta pra�a ajuda de custo para casas nem para outros efeitos alguns, das rendas da C�mara com pena de os pagarem os oficiais da C�mara e de n�o entrarem mais no governo desta Rep�blica." Enfim, at� mandou que se contratasse um letrado, o licenciado Bento Homem de Oliveira, com o ordenado de trinta e dois mil-r�is por ano.

Trinta e dois mil-r�is por ano! Bom tempo, ah! bom tempo! Apesar da nobreza da terra, n�o vivia ainda nem morria a Marquesa de Tr�s Rios, que s� com m�dicos despendeu (dizem as not�cias de S�o Paulo) cerca de quinhentos contos. Bom tempo, ah! bom tempo, em que se taxava o pre�o a tudo, e o regimento dos alfaiates marcava para um colete, uma v�stia e um cal��o (um terno dir�amos hoje) a quantia de quatro mil-r�is. O torneiro de chifre (of�cio extinto) tinha no seu regimento que um tinteiro grande de escriv�o com tampa custasse quatrocentos r�is, e um dito grande com sua poeira, quatrocentos e oitenta r�is. Que era sua poeira? Talvez a areia que ainda achei, em crian�a, antes que o mata-borr�o servisse tamb�m para enxugar as letras. Usos, costumes, regras e pre�os que se foram com os anos.

Com os s�culos foram ainda outras coisas, e n�o s� desta terra como de alheios � o Egito, para n�o ir mais longe. H� dois Egitos o atual, que, n�o sendo propriamente ilha, � uma esp�cie de ilha brit�nica � e o antigo, que se perde na noite dos tempos. Este � o que o nosso Coelho Neto p�e no Rei Fantasma. N�o conhe�o um nem outro; n�o posso comparar nem dizer nada da ocupa��o inglesa nem da restaura��o Coelho Neto. Tenho que a restaura��o sempre h� de ter sido mais dif�cil que a ocupa��o, mas fio que o nosso patr�cio haver� estudado conscienciosamente a mat�ria.

� certo que o autor, no pr�logo do livro, afirma que este � tradu��o de um velho papiro, trazido do Cairo por um estrangeiro que ali viveu em companhia de Mariette. O estrangeiro veio para aqui em 1888, e com medo das febres meteu-se pelo sert�o levando os papiros, os an�bis, mapas e cachimbos. A� o conheceu, a� trabalharam juntos; morto o estrangeiro, Coelho Neto cedeu a rogos e deu ao prelo o livro.

Conhecemos todos essas f�bulas. S�o inventos que adornam a obra ou d�o maior liberdade ao autor. Aqui, nada tiram nem trocam ao estilo de Coelho Neto, nem afrouxam a viveza da sua imagina��o. A imagina��o � necess�ria nesta casta de obras. A de Flaubert deu realce e vida a Salamb�, sem desarmar o grande escritor da erudi��o precisa para defender-se, no dia em que o acusaram de haver falseado Cartago. Quando o autor � essencialmente erudito, como Ebers, preocupa-se antes de textos e indica��es; pegai na Filha de Um Rei do Egito, contai as notas, chegareis a 525. Ebers nada esqueceu; conta-nos, por exemplo, que o mais velho de dois homens que v�o na barca pelo Nilo �passa a m�o pela barba grisalha, que lhe cerca o queixo e as faces, mas n�o os l�bios�, e manda-nos para as notas, onde nos explica que os espartanos n�o usavam bigodes. N�o sei se Coelho Neto iria a todas as particularidades antigas mas aqui est� uma de todos os tempos, que lhe n�o esqueceu, e trata-se de barca tamb�m, uma que chega � margem para receber o rei: �os remos arvorados gotejavam�... N�o tenho com que analise ou interrogue o autor do Rei Fantasma acerca dos elementos do livro. Sei que este interessa, que as descri��es s�o vivas, que as paix�es ajudam a natureza exterior e a estranheza dos costumes. H� quadros terr�veis; a cena de Amanci e da concubina tem grande movimento, e o supl�cio desta d�i ao ler, t�o viva � a pintura da mo�a, agarrada aos ferros e fugindo aos le�es. O mercado de Peh'n e a paneg�ria de �sis s�o p�ginas fortes e brilhantes.

15 de setembro

Um dia destes, indo a passar pela guarda policial da rua Sete de setembro, fronteira � antiga capela imperial, dei com algumas pessoas paradas e um carro de pol�cia. De dentro da casa sa�a um preto, em camisa, pernas nuas, trazido por duas pra�as. Abriram a portinhola do carro e o preto entrou sem resist�ncia, sentou-se e olhou placidamente para fora. Uma das pra�as recebeu o of�cio de comunica��o, e o carro partiu.

� Que crime cometeu este preto? perguntei a um oficial.

� � um alienado.

Grande foi o abalo que me deu esta simples resposta. Esperava um man�aco ou gatuno, que tivesse lutado e perdido as cal�as. Sempre era algu�m. Mas um pobre homem doido, que da� a pouco estaria no hosp�cio, era um desgra�ado sem personalidade, um organismo sem consci�ncia. E fiquei triste, fiquei arrependido de haver passado por ali, quando a cidade � assaz grande e todos os caminhos levam a Roma. �s vezes basta um sucesso desses para estragar o dia e eram apenas dez horas da manh�. N�o podia andar sem ver um carro, duas pernas nuas, duas pra�as que as metiam no carro... Desviava os olhos, dobrava uma esquina, mas a� vinham as pra�as e as pernas. A vis�o perseguia-me.

De repente, bradou-me uma voz de dentro: �Mas, desgra�ado, examinaste bem aquele preto? Sabes qual � a sua loucura?� A princ�pio n�o dei aten��o a esta pergunta, que me pareceu tola, porquanto bastava que as id�ias dele n�o fossem reais para serem a maior desgra�a deste mundo; a curiosidade de saber o que efetivamente pensava o alienado, fez-me entrar no c�rebro do infeliz. Qualquer outro acharia j� nisto um princ�pio de aliena��o mental; mas a presun��o que tenho de imaginar as coisas que andam na cabe�a dos outros, e acertar com elas algumas vezes, deu-me �nimo para a tentativa.

Lembrou-me que o preto, posto que sem cal�as, n�o era precisamente um sans-culotte. Tinha um ar mesclado de sobranceria e melancolia. N�o se opusera � entrada no carro, nem tentou sair, n�o falou, n�o resmungou. Os olhos que deitou para fora eram, como acima disse, pl�cidos. Suponhamos que ele acreditava ser o gr�o-duque da Toscana. Tanto melhor se j� n�o h� os ducados; era a maior prova da for�a imaginativa do homem.

Assim, em vez de ser levado em carro de pol�cia, ia metido no espl�ndido coche ducal, tirado por duas parelhas de cavalos negros. A rua da Assembl�ia, por onde subiu, apareceu-lhe larga e limpa, com vastas cal�adas, e muitas senhoras nas janelas dando vivas a Ernesto XXIV; era provavelmente o nome deste gr�o-duque p�stumo. No largo da Carioca fizeram-lhe parar o coche, diante da bela esta��o da companhia de Carris do Jardim Bot�nico. Uma por��o de senhoras, abrigadas da chuva, � espera dos bondes, saudaram respeitosamente a Sua Alteza. Sem sair do coche, Ernesto XXIV admirou o edif�cio, n�o s� pelo estilo arquitet�nico, como pelo conforto interior.

Chegado � rua do Lavradio, apeou-se � porta da secretaria da pol�cia. Tapetes, em vez de pontas de cigarros, receberam os p�s do gr�o-duque, conduzido para o sal�o dos embaixadores, enquanto redigiam uma alocu��o. Cansado de esperar, ordenou que lhe levassem a alocu��o onde o achassem, e saiu a p�. Na pra�a Tiradentes viu a pr�pria est�tua na de Pedro I, e admirou a semelhan�a da cabe�a, n�o menos que o brio do gesto. Depois de fazer a volta do gradil, foi convidado por uma comiss�o a entrar e repousar na esta��o dos bondes de Vila Isabel; aceitou e n�o gostou menos deste edif�cio que do do largo da Carioca. Achou at� que os bancos de palhinha de Vila Isabel eram prefer�veis aos bancos da companhia Jardim Bot�nico, estofados e forrados de couro de C�rdova. Ao sair, deixou paga a passagem de mil pessoas indigentes.

J� ent�o muito povo o acompanhava. Descendo a rua do Ouvidor, n�o deixou de notar que era excessivamente larga.

� Uma rua destas, disse Ernesto XXIV, n�o pode exceder de duzentos metros de largura. Tamb�m n�o pode ter uns cinco ou seis metros, como se fosse um beco dos Barbeiros ilustrado. N�o � que os becos estejam fora da civiliza��o; ao contr�rio, toda civiliza��o come�a, moralmente, por um beco. Mas os becos, estreitos em demasia, servem antes ao mexerico, ao boato, � cr�tica mofina, etc. Com um piscar de olhos de uma cal�ada � outra indica-se uma senhora ou um cavalheiro que passa, e a facilidade do gesto convida � murmura��o. H� mais a desvantagem de se atopetar depressa e com pouco. N�o se dir� isto da rua do Ouvidor; mas assim t�o larga, que mal se distinguem as pessoas de um para outro lado, traz perigo diverso e perde talvez na beleza.

Falando e andando, ordenou que o conduzissem � c�mara dos deputados. A multid�o o levou at� l�, entre aclama��es. A mesa, logo que soube da presen�a do gr�o-duque, mandou receb�-lo, e da� a pouco sentava-se Sua Alteza na tribuna do corpo diplom�tico. De p�, a c�mara inteira saudou com vivas o ilustre h�spede, e, a um gesto deste, continuou a discuss�o de um projeto relativo ao c�mbio. �Desta tribuna, senhores...� continuou o orador; e Ernesto XXIV, guiando o bin�culo que lhe dera um camarista, viu efetivamente o orador no alto da tribuna. A lei que se discutia, proposta pelo dito orador, tinha por objeto fazer baixar o c�mbio, cuja al�a afigurava-se a alguns antes um mal que um bem. E o orador citava anedotas pessoais:

� Tudo que se vendia por alto pre�o, h� dois meses, longe de ficar nele, como presumiam ignorantes, vai baixando de um modo, n�o direi vertiginoso, mas r�pido. Ontem deixei de comprar um chap�u alto por 5$000; perguntando ao chapeleiro que raz�o tinha para pedir tal vil pre�o por um objeto importado e quando o c�mbio estava abaixo do par, explicou-me que a eleva��o do c�mbio a 34 permitia-lhe comprar barato os objetos do seu uso, e n�o seria justo nem econ�mico exigir agora por um chap�u mais do que lhe custavam as cal�as e as gravatas. (Apoiados e n�o apoiados). UMA VOZ. � E por que n�o comprou V. Exa. o chap�u? � Respondo ao nobre deputado que por um motivo superior ao meu pr�prio entendimento. (Nenhum rumor). Sinto, receio, assombra-me a possibilidade de ver tudo a decrescer tanto no pre�o, que se d� nova crise econ�mica, ainda n�o vista nem prevista.

Indo a entrar em vota��o o projeto, Ernesto XXIV deixou a c�mara e procurou a intend�ncia municipal. Achou o edif�cio s�lido e asseado. Os empregados estavam alegres com o pagamento adiantado que lhes fizeram dos vencimentos de tr�s meses. Estranhando este costume, ouviu do prefeito que ele se perdia na noite dos tempos e explicava-se pelo excesso de dinheiro que havia nas arcas da prefeitura. Pagas todas as d�vidas do munic�pio, cal�adas e reformadas as ruas, desentulhada a praia da Gl�ria de um princ�pio de ponte que ali ficou, e a enseada de Botafogo de um esbo�o de muro com que se queria alargar a praia, seria desastroso suspender t�o velho uso de fazer adiantamentos aos empregados em proveito de qu�? Em proveito do bolor, que � o que d� no dinheiro parado.

� Sim, confesso que...

N�o p�de acabar. Cerca de cem mil pessoas vieram aclamar o gentil gr�o-duque da Toscana, que honrava assim as nossas plagas. Ernesto XXIV ouviu e proferiu discursos, recebeu uma ta�a de ouro, com dizeres de brilhantes, cinco mo�as bonitas entre dezessete e vinte anos, para seus amores, sapatos envernizados, an�is, uma comenda...

Quando acabei essas e outras imagina��es, perguntei a mim mesmo se o alienado da rua Sete de setembro era t�o infeliz como supusera. Que � para ele uma esteira, um cub�culo e um guarda? coxins, um pal�cio e mo�as bonitas. Talvez o que presumes serem mo�as, pal�cio e coxins n�o passe de um guarda, uma esteira e um cub�culo.

22 de setembro

A SEMANA acabou com um trist�ssimo desastre. Sabeis que foi a morte do Conselheiro Tom�s Coelho, um dos brasileiros mais ilustres da �ltima gera��o do Imp�rio. N�o � mister lembrar os cargos que exerceu naquele reg�men, deputado, senador, duas vezes ministro, na pasta da guerra e da agricultura. Se o Imp�rio n�o tem ca�do, teria sido chefe de governo, talhado para esse cargo pela austeridade, talento, habilidade e influ�ncia pessoal.

Os que o viram de perto poder�o atestar o afinco dos seus estudos e a tenacidade dos seus trabalhos. Unia a gravidade e a afabilidade naquela perfeita harmonia que exprime um car�ter s�rio e bom. No mundo econ�mico exerceu an�loga influ�ncia que tinha no mundo pol�tico. A ambos, e a toda a sociedade deixa verdadeira e grande m�goa. Nem s�o poucos os que devem sentir palpitar o cora��o lembrado e grato.

A morte de Tom�s Coelho, em qualquer circunstancia, seria dolorosa; mas o repentino dela tornou o golpe maior. As 5 horas da tarde de sexta-feira subiu a Rua do Ouvidor, tranq�ilo e conversando; mais de um amigo o cortejou, satisfeito de o ver assim. Nenhum imaginava que quatro horas depois seria cad�ver.

Outro �bito, n�o do homem pol�tico, mas que faz lembrar um var�o igualmente ilustre, come�ou enlutando a semana. H� alguns anos que se despediu deste mundo um dos seus atenienses: Otaviano. Aquele culto e fino esp�rito, que o jornal, que a palestra, e alguma vez a tribuna, viram sempre juvenil, recolhera-se nos �ltimos dias, flagelado por terr�vel enfermidade. N�o perdera o riso, nem o gosto, tinha apenas a natural melancolia dos velhos. Amigos iam passar com ele algumas horas, para ouvi-lo somente, ou para recordar tamb�m. Os rapazes que s� tinham vinte anos n�o conheceram esse homem que foi o mais elegante jornalista do seu tempo, entre os Rochas, e Amarais, quando apenas estreava �este outro que a todos sobreviveu com as mesmas lou�anias de outrora: Bocai�va.�

A casa era no Cosme Velho. As horas da noite eram ali passadas, entre os seus livros, falando de coisas do esp�rito, poesia, filosofia, hist�ria, ou da vida da nossa terra, anedotas pol�ticas, e recorda��es pessoais. Na mesma sala estava a esposa, ainda elegante, a despeito dos anos, espartilhada e toucada, n�o sem esmero, mas com a singeleza pr�pria da matrona. Tinha tamb�m que recordar os tempos da mocidade vitoriosa quando os sal�es a contavam entre as mais belas. O sorriso com que ouvia n�o era constante nem largo, mas a express�o do rosto n�o precisava dele para atrair a D. Eponina as simpatias de todos.

Um dia Otaviano morreu. Como as aves que Chateaubriand viu irem do Ilissus, na emigra��o anual, despediu-se aquela, mas sozinha, n�o como os casais de arriba��o. D. Eponina ficou, mas acaba de sair tamb�m deste mundo. Morreu e enterrou-se quarta-feira. Quantas se foram j�, quantas ajudam o tempo a esquec�-las, at� que a morte as venha buscar tamb�m! Assim v�o umas e outras enquanto este s�culo se fecha e o outro se abre, e a juventude renasce e continua. Isso que a� fica � vulgar, mas � daquele vulgar que h� de sempre parecer novo como as belas tardes e as claras noites. E a regra tamb�m das folhas que caem... Mas, talvez isto vos pare�a Millevoye em prosa; falemos de outro Millevoye sem prosa nem verso.

Refiro-me �s �rvores do mesmo bairro do Cosme Velho, que, segundo li, j� foram e t�m de ser derrubadas pela Botanical Garden. A Gazeta por si, e o Jornal do Com�rcio, por si e por algu�m que lhe escreveu, chamaram a aten��o da autoridade municipal para a destrui��o de tais �rvores, mas a Botanical Garden explicou que se trata de levar o bonde el�trico ao alto do bairro, n�o havendo mais que umas cinco �rvores destinadas � morte. Achei a explica��o aceit�vel. Os bondes de que se trata n�o passam at� aqui do Largo do Machado. As viagens s�o mais longas do que antes, � certo, mas n�o � por causa da eletricidade; s�o mais longas por causa dos comboios de dois e tr�s carros, que param com freq��ncia. A incapacidade de um ou outro dos chamados motorneiros � absolutamente alheia � demora. Pode dar lugar a algum desastre, mas a pr�pria companhia j� provou, com estat�sticas, que os bondes el�tricos fazem morrer muito menos gente que o total dos outros carros.

Demais, � natural que nas terras onde a vegeta��o � pouca, haja mais avareza com ela, e que em Paris se trate de salvar o Bois de Boulogne e outros jardins. Nos pa�ses em que a vegeta��o � de sobra, como aqui, podem despir-se dela as cidades. Uma simples viagem ao sert�o leva-nos a ver o que nunca h�o de ver os parisienses. Assim respondo � Gazeta, n�o que seja acionista da companhia, mas por ter um amigo que o �. Nem sempre os burros h�o de dominar. Se os do Cear� nos deram o exemplo de jornadear ao lado da estrada de ferro, concorrendo com ela no transporte da carga, foi com o �nico fito de defender o carrancismo. Burro � atrasado e teimoso; mas os do Cear� acabaram por ser vencidos. O mesmo h� de acontecer aos nossos. Agora, que a vit�ria da eletricidade no Cosme Velho e nas Laranjeiras devesse ser alcan�ada poupando as �rvores, � poss�vel; mas sobre este ponto n�o conversei com autoridade profissional.

Ao menos conto que n�o ter�o posto abaixo alguma das �rvores da ch�cara de D. Ol�mpia, naquele bairro � a mesma que o Sr. Alu�zio Azevedo afirma ter escrito o Livro de Uma Sogra, que ele acaba de publicar, e que vou acabar de ler.

29 de setembro

QUANDO A VIDA c� fora estiver t�o agitada e aborrecida que se n�o possa viver tranq�ilo e satisfeito, h� um asilo para a minha alma � e para o meu corpo, naturalmente.

N�o � o c�u, como podeis supor. O c�u � bom, mas eu imagino que a paz l� em cima n�o estar� totalmente consolidada. J� l� houve uma rebeli�o; pode haver outras. As pessoas que v�o deste mundo, anistiadas ou perdoadas por Deus, podem ter saudades da terra e pegar em armas. Por pior que a achem, a terra h� de dar saudades, quando ficar t�o longe que mal pare�a um miser�vel pontinho preto no fundo do abismo. � pontinho preto, que foste o meu infinito (exclamar�o os bem-aventurados), quem me dera poder trocar esta chuva de man� pela fome do deserto! O deserto n�o era inteiramente mau; morria-se nele, � verdade, mas vivia-se tamb�m; e uma ou outra vez, como nos povoados, os homens quebravam a cabe�a uns aos outros � sem saber por que, como nos povoados.

N�o, devota amiga da minha alma, o asilo que buscarei, quando a vida for t�o agitada como a desta semana, n�o � o c�u, � o Hosp�cio dos Alienados. N�o nego que o dever comum � padecer comumente, e atacarem-se uns aos outros, para dar raz�o ao bom Renan, que p�s esta senten�a na boca de um latino: �O mundo n�o anda sen�o pelo �dio de dois irm�os inimigos�. Mas, se o mesmo Renan afirma, pela boca do mesmo latino que �este mundo � feito para desconcertar o c�rebro humano�, irei para onde se recolhem os desconcertados, antes que me desconcertem a mim.

Que verei no hosp�cio? O que vistes quarta-feira numa exposi��o de trabalhos feitos pelos pobres doidos, com tal perfei��o que � quase uma fortuna terem perdido o ju�zo. Rendas, flores, obras de l�, carimbos de borracha, facas de pau, uma infinidade de coisas m�nimas, geralmente simples, para as quais n�o se lhes pede mais que aten��o e paci�ncia. N�o fazendo obras mentais e complicadas, tratados de jurisprud�ncia ou constitui��es pol�ticas, nem filosofias nem matem�ticas, podem achar no trabalho um paliativo � loucura, e um pouco de descanso � agita��o interior. Bendito seja o que primeiro cuidou de encher-lhes o tempo com servi�o, e recompor-lhe em parte os fios arrebentados da raz�o.

Mas n�o verei s� isso. Verei um come�o de Epim�nides, uma mulher que entrou dormindo, em 14 de setembro do ano passado, e ainda n�o acordou. J� l� vai um ano. N�o se sabe quando acordar�; creio que pode morrer de velha, como outros que dormem apenas sete ou oito horas por dia, e ir-se-� para a cova, sem ter visto mais nada. Para isso, n�o valer� a pena ter dormido tanto. Mas suponhamos que acorde no fim deste s�culo ou no come�o do outro, n�o ter� visto uma parte da hist�ria, mas ouvir� cont�-la, e melhor � ouvi-la que viv�-la. Com poucas horas de leitura ou de oitiva, receber� not�cia do que se passou em oito ou dez anos, sem ter sido nem atriz nem comparsa, nem p�blico. � o que nos acontece com os s�culos passados. Tamb�m ela nos contar� alguma coisa. Dizem que, desde que entrou para o hosp�cio, deu apenas um gemido, e p�e algumas vezes a l�ngua de fora. O que n�o li � se, al�m de tal letargia, goza do benef�cio da loucura. Pode ser, a natureza tem desses obs�quios complicados.

A� fica dito o que farei e verei para fugir ao tumulto da vida. Mas h� ainda outro recurso, se n�o puder alcan�ar aquele a tempo: um livro que nos interesse, dez, quinze, vinte livros. Disse-vos no fim da outra Semana que ia acabar de ler o Livro de Uma Sogra. Acabei-o muito antes dos acontecimentos que abalaram o esp�rito p�blico.

As letras tamb�m precisam de anistia. A diferen�a � que, para obt�-la, dispensam vota��o. � ato pr�prio; um homem pega em si, mete-se no cantinho do gabinete, entre os seus livros, e elimina o resto. N�o � ego�smo, nem indiferen�a; muitos sabem em segredo o que lhes d�i do mal pol�tico, mas, enfim, n�o � seu of�cio cur�-lo. De todas as coisas humanas, dizia algu�m com outro sentido por diverso objeto, � a �nica que tem o seu fim em si mesma � a arte.

Sirva isto para dizer que a fortuna do livro do Sr. Alu�zio Azevedo � que, escrito para curar um mal, ou suposto mal, perde desde logo a inten��o primeira, para se converter em obra de arte simples. Dona Ol�mpia � um tipo novo de sogra, uma sogra avant la lettre. Antes de saber com quem h� de casar a filha, j� pergunta a si mesma (p. 112) de que maneira �poder� dispor do genro e govern�-lo em sua �ntima vida conjugal�. Quando lhe aparece o futuro genro, consente em dar-lhe a filha, mas pede-lhe obedi�ncia, pede-lhe a palavra, e, para que esta se cumpra, exige um papel em que Leandro avise � pol�cia que n�o acuse ningu�m da sua morte, pois que ele mesmo p�s termo a seus dias; papel que ser� renovado de tr�s em tr�s meses. D. Ol�mpia declara-lhe, com franqueza, que � para salvar a sua impunidade, caso haja de o mandar matar. Leandro aceita a condi��o; talvez tenha a mesma impress�o do leitor, isto �, que a alma de D. Ol�mpia n�o � tal que chegue ao crime.

Cumpre-se, entretanto, o plano estranho e minucioso, que consiste em regular as fun��es conjugais de Leandro e Palmira, como a famosa sineta dos jesu�tas do Paraguai. O marido vai para Botafogo, a mulher para as Laranjeiras. Balzac estudou a quest�o do leito �nico, dos leis unidos, e dos quartos separados; D. Ol�mpia inventa um novo sistema, o de duas casas, longe uma da outra. Palmira concebe, D. Ol�mpia faz com que o genro embarque imediatamente para a Europa, apesar das l�grimas dele e da filha. Quando a mo�a concebe a segunda vez, � o pr�prio genro que se retira para os Estados Unidos. Enfim, D. Ol�mpia morre e deixa o manuscrito que forma este livro, para que o genro e a filha obede�am aos seus preceitos.

Todo esse plano conjugal de D. Ol�mpia responde ao desejo de evitar que a vida comum traga a extin��o do amor no cora��o dos c�njuges. O casamento, a seu ver, � imoral. A mancebia tamb�m � imoral. A rigor, parece-lhe que, nascido o primeiro filho, devia dissolver-se o matrim�nio, porque a mulher e o marido podem acender em outra pessoa o desejo de conceber novo filho, para o qual j� o primeiro c�njuge est� gasto; extinta a ilus�o, � mister outra. D. Ol�mpia quer conservar essa ilus�o entre a filha e o genro. Posto que raciocine o seu plano, e procure dar-lhe um tom especulativo, de mistura com particularidades fisiol�gicas, � certo que n�o possui no��o exata das coisas, nem dos homens.

Napole�o disse um dia, ante os redatores do c�digo civil, que o casamento (entenda-se monogamia) n�o derivava da natureza, e citou o contraste do ocidente com o oriente. Balzac confessa que foram essas palavras que lhe deram a id�ia da Fisiologia. Mas o primeiro faria um c�digo, e o segundo enchia um volume de observa��es soltas e estudos anal�ticos. Diversa coisa � buscar constituir uma fam�lia sobre uma combina��o de atos irreconcili�veis, como rem�dio universal, e algo perigoso D. Ol�mpia, querendo evitar que a filha perdesse o marido pelo costume do matrim�nio, arrisca-se a fazer-lho perder pela interven��o de um amor novo e transatl�ntico.

Tal me parece o livro do Sr. Alu�zio Azevedo. Como ficou dito, � antes um tipo novo de sogra que solu��o de problema. Tem as qualidades habituais do autor, sem os processos anteriores, que, ali�s, a obra n�o comportaria. A narra��o, posto que intercalada de longas reflex�es e cr�ticas, � cheia de interesse e movimento. O estilo � animado e colorido. H� p�ginas de muito m�rito, como o passeio � Tijuca, os namorados adiante, O Dr. C�sar e D. Ol�mpia atr�s. A linguagem em que esta fala da beleza da floresta e das saudades do seu tempo � das mais sentidas e apuradas do livro.

6 de outubro

Quem p�e o nariz fora da porta, v� que este mundo n�o vai bem. A Ag�ncia Havas � melanc�lica. Todos os dias enche os jornais, seus assinantes, de uma torrente de not�cias que, se n�o matam, afligem profundamente. Ao p� delas, que vale o naufr�gio do paquete alem�o Uruguai, em Cabo-Frio? Nada. Que vale o inc�ndio da fabrica da companhia Luz Este�rica? Coisa nenhuma. N�o falo do desaparecimento de uns autos c�lebres, pe�a que est� em segunda representa��o, � espera de terceira, porque n�o � propriamente um drama, embora haja nela um salteador ou coisa que o valha, como nas de Montepin; � um daqueles mist�rios da Idade-M�dia, ornado de algumas express�es modernas sem realidade, como esta: � Ce pauvre Auguste! On l'a mis au poste. � Dame, c'est triste, mais c'est juste. � Ce pauvre Auguste!Express�o sem realidade, pois ningu�m foi nem ir� para a cadeia, por uns autos de nada.

Foi o Chico Moniz Barreto, violinista filho de poeta, que trouxe de Paris aquela esp�cie de mofina popular, que ent�o corria nas escolas e nos teatros. L� v�o trinta anos! Talvez poucos franceses se lembrem dela; eu, que n�o sou franc�s, nem fui a Paris, n�o a perdi de mem�ria por causa do Chico Moniz Barreto, artista de tanto talento, disc�pulo de Allard, um rapaz que era todo arte, brandura e alegria. A gra�a principal estava na pros�dia das mulheres do povo em cuja boca era posto esse trecho de dialogo, � e que o nosso artista baiano imitava, suprimindo os tt �s palavras: � Ce pauvr' Auguss'! On l'a mis au poss'! � Dam' c'est triss' mais c'est juss'! � Ce pauvr' Auguss'! � Pobre frase! pobres mulheres! Foram-se como os tais autos e o veto, le ress'!

Mas tornemos ao presente e � Ag�ncia Havas. S�o rebeli�es sobre rebeli�es, Constantinopla e Cuba, matan�a sobre matan�as, China e Arm�nia. Os crist�os apanham dos mu�ulmanos, os mu�ulmanos apanham de outros religiosos, e todos de todos, at� perderem a vida e a alma. Conspira��es n�o t�m conta; as bombas de dinamite andam l� por fora, como aqui as balas doces, com a diferen�a que n�o as vendem nos bondes, nem os vendedores sujam os passageiros. Os ciclones, vendo os homens ocupados em se destru�rem, enchem as bochechas e sopram a alma pela boca fora, metendo navios no fundo do mar, arrasando casas e planta��es, matando gente e animais. Tempestades terr�veis desencadeiam-se nas costas da Inglaterra e da Fran�a e despeda�am navios contra penedos. Um tuf�o levou anteontem parte da catedral de Metz. A terra treme em v�rios lugares. Os inc�ndios devoram habita��es na R�ssia. As simples febres de Madagascar abrem infinidade de claros nas tropas francesas. Pior � o c�lera-morbo; mais r�pido que um tiro, tomou de assalto a Mold�via, a Cor�ia, a R�ssia, o Jap�o e vai matando como as simples guerras.

Na Espanha, em Granada, os rios transbordam e arrastam consigo casas e culturas. Granada, ai, Granada, que fazes lembrar o velho romance:

Passeava-se el Rey Moro

Por la ciudad de Granada...

romance ou balada, que narra o transbordamento do rio crist�o, arrancando aos mouros o resto da Espanha. Relede os poetas rom�nticos, que chuparam at� o baga�o da laranja mourisca e falaram dela com saudades. Relede o magn�fico intr�ito do Colombo do nosso Porto-Alegre: Jaz vencida Granada... Nem reis agora s�o precisos, pobre Granada, nem poetas te cantam as desgra�as; basta a Ag�ncia Havas. Os jornais que chegarem dir�o as coisas pelo mi�do com aquele amor da atra��o que fazem as boas not�cias.

N�o � mais feliz a It�lia com o banditismo que renasce, � maneira velha, tal qual o cantaram poetas e disseram novelistas. Uns e outros esgotaram a poesia dos costumes; agora � a pol�cia e o c�digo. Parece que a grande mis�ria, filha das colheitas perdidas, cresce ao lado do banditismo e do imposto.

Na Hungria d�-se um fen�meno interessante: desordeiros clericais respondem aos tiros das tropas com pedradas e bengaladas, e h� mortos de parte a parte, mortos e feridos. � que a f� tamb�m inspira as bengalas. Eis a� rebeldes dispostos a vencer; n�o se lhes h� de pedir que desarmem primeiro, se quiserem ser anistiados. Desarmar de qu�? A bengala n�o � sequer um apoio, � um simples adorno de passeio; pouco mais que os suspens�rios, apenas �teis. �teis, digo, sem assumir a responsabilidade da afirma��o. N�o conhe�o a hist�ria dos suspens�rios, sei, quando muito, que C�sar n�o usava deles, nem C�cero, nem Poncio Pilatos. Quando eu era crian�a, toda gente os trazia; mais tarde, n�o sei por que raz�o, elegante ou cient�fica, foram proscritos. Vieram anos, e os suspens�rios com eles, diz-se que para acabar com o mal dos coses. Talvez se v�o outra vez com o s�culo, e tornem com o centen�rio da batalha de Waterloo.

Assim vai o mundo, meu amigo leitor; o mundo � um par de suspens�rios. Comecei dizendo que ele n�o me parece bem, sem esquecer que tem andado pior, e, para n�o ir mais longe, h� justamente um s�culo. Mas a raz�o do meu receio � a cren�a que me devora de que o mal estava acabado, a paz s�lida, e as pr�prias tempestades e mol�stias n�o seriam mais que mitos, lendas, hist�rias para meter medo �s crian�as. Por isso digo que o mundo n�o vai bom, e desconfio que h� algum plano divino, oculto aos olhos humanos. Talvez a terra esteja gr�vida. Que animal se move no �tero desta imensa bolinha de barro, em que nos despeda�amos uns aos outros? N�o sei; pode ser uma grande guerra social, nacional, pol�tica ou religiosa, uma desloca��o de classes ou de ra�as, um enxame de id�ias novas, uma invas�o de b�rbaros, uma nova moral, a queda dos suspens�rios, o aparecimento dos autos.

13 de outubro

Estudemos; � o melhor conselho que, posso dar ao leitor amigo; estudemos. � domingo; n�o tens que ir ao trabalho. J� ouviste a tua missa, apostaste na vaca (antigo) e almo�aste entre a esposa e os pequenos. Em vez de perder o tempo em alguma leitura fr�vola, estudemos.

Temos duas li��es e pod�amos ter sete ou oito; mas eu n�o sou professor que empanzine a estudantes de boa vontade. Demais, h� li��es t�o �bvias que n�o vale a pena encher delas um par�grafo. Por exemplo, a declara��o que fez o Sr. deputado �rico Coelho, esta semana, ao apresentar o projeto do monop�lio do caf�. Declarou S. Exa., incidentemente, que j� na v�spera fora solicitado para, no caso de passar o monop�lio, arranjar alguns empregos. Os deputados riram, mas deviam chorar, pois naturalmente n�o lhes acontece outra coisa com ou sem projetos.

A confiss�o do Sr. �rico Coelho faz lembrar o que sucedeu com Lamartine, chefe do governo revolucion�rio de 1848. Um cozinheiro foi empenhar-se com um deputado para empreg�-lo em casa de Lamartine, �presidente da Rep�blica�, disse o homem. � �Mas ele ainda n�o � presidente�, observou o deputado. Ao que retorquiu o cozinheiro que, se ainda n�o era, havia de s�-lo, e devia ir j� tratando da cozinha. Cozinheiros do monop�lio de caf�, se advert�sseis que Lamartine n�o foi eleito, mas outro, considerar�eis que o mesmo pode suceder ao monop�lio de caf�. Quando n�o seja o mesmo, e a lei passe, � prov�vel que passe daqui a um ou dois anos. Uma lei destas pede longos estudos, longos c�lculos, longas estat�sticas. O melhor � continuardes a cozinha das casas particulares.

A primeira das nossas duas li��es refere-se n�o propriamente ao italiano que trepou � estatua de Pedro I e l� de cima arengou ao povo, mas �s circunst�ncias do caso. Ningu�m sabe o que ele disse, por falar na l�ngua materna, e n�s s� entendemos italiano por m�sica. O que sabemos, n�s que lemos a not�cia, � que, apesar da hora (dez e meia da noite) mais de quatrocentas pessoas se ajuntaram logo na pra�a Tiradentes, e intimaram ao homem que descesse. A ele acontecia-lhe o mesmo que aos de baixo; n�o entendia a l�ngua. V�rios planos surdiram para faz�-lo desmontar o cavalo, � pedradas, um tiro, o corpo de bombeiros, mas nenhum foi adotado, e o tempo ia passando. Afinal um sargento do ex�rcito e uma pra�a de pol�cia treparam � est�tua, e, sem viol�ncia, com boas maneiras e muitas cautelas, desceram o pobre doido.

Ora, enquanto ocorria tudo isto, e as id�ias voavam de todos os lados, alguns propuseram o alvitre de linchar o homem; e, com efeito, t�o depressa ele pousou no ch�o, ergueram-se brados no sentido daquele julgamento sum�rio e definitivo. Outros, por�m, opuseram-se, e o projeto n�o teve piores conseq��ncias.

Este � o ponto da li��o. Aqui temos um grupo de pessoas, todas as quais, particularmente, repeliriam com horror a id�ia de linchar a algu�m, antes defenderiam a v�tima. Juntas, por�m, estavam dispostas a linchar o homem da estatua. Que o cont�gio da id�ia � que produzia esse acordo de tantos, � coisa natural e sabida. Aquilo que n�o nasce em trinta cabe�as separadas, brota em todas elas, uma vez reunidas, conforme a ocasi�o e as circunst�ncias. Motivos diversos sem excluir o sentimento da justi�a e a indigna��o do bem, podem dar azo a a��es dessas, coletivas e sangrentas. Come�o a distrair no serm�o. Vamos � quest�o principal.

A principal quest�o, no caso da est�tua, � o abismo entre o ato e a pena. O homem n�o tinha cometido nenhum crime p�blico nem particular. Subiu ao cavalo de bronze, no que fez muito mal, devia respeitar o monumento; mas, enfim, n�o era delito de sangue que pedisse sangue. A probabilidade de ser doido podia n�o acudir a todos os esp�ritos, excitados pelo atrevimento do sujeito; se pudesse acudir, todos rogariam antes ao c�u que ele fosse descido sem quebrar os ossos, a fim de que, recolhido novamente ao Hosp�cio dos Alienados, recebesse segunda cura, tendo sa�do de l� curado, tr�s ou quatro dias antes.

Esse contraste � que merece particular aten��o. A familiaridade com a morte � bela, nos grandes momentos, e pode ser grandiosa, al�m de necess�ria. Mas, aplicada aos eventos mi�dos, perde a gra�a natural e o poder c�vico, para se converter em deriva��o de maus humores. � reviver a pr�tica dos m�dicos de outro tempo, que a tudo aplicavam sanguessugas e sangrias. Quem nunca esteve com o bra�o estendido, � espera que as bichas ca�ssem de fartas, e n�o viu esguich�-las ali mesmo para lhes tirar o sangue que acabavam de sugar, n�o sabe o que era a medicina velha. N�o havia que dizer, se era necess�ria; mas o uso vulgarizou-se tanto que o mau m�dico antes de atinar com a doen�a, mandava ao enfermo esse vi�tico aborrecido. �s vezes, o mal era um defluxo. Que � a loucura sen�o uma supress�o da transpira��o do esp�rito?

A segunda li��o que devemos ou deves estudar � a que se segue.

Um gatuno furtou diversas j�ias e quatrocentos mil r�is. O Sr. No�mio da Silveira, delegado da 7� circunscri��o urbana, mo�o inteligente e atilado, descobriu o gatuno e o furto. At� aqui tudo � banal. O que n�o � banal, o que nos abre uma larga janela sobre a alma humana, o que nos p�e diante de um fen�meno de alta psicologia, � que o gatuno t�o depressa furtou os quatrocentos mil r�is como os foi depositar na caixa econ�mica. Medita bem, n�o me leias como os que tem pressa de ir apanhar o bonde; l� e reflete. Como � que a mesma consci�ncia pode simultaneamente negar e afirmar a propriedade? Roubar e gastar est� bem; mas pegar do roubo e ir lev�-lo aonde os homens de ordem, os pais de fam�lia, as senhoras trabalhadeiras levam os saldos do sal�rio e os lucros advent�cios, eis a� o que me parece extraordin�rio. N�o me digas que h� viciosas que tamb�m v�o � caixa econ�mica, nem que os bancos recebem dinheiros duvidosos. Of�cio � of�cio, e eu trato aqui do puro furto.

Assim � que, o empregado da caixa, vendo esse homem ir freq�entemente levar uma quantia, adquire a certeza de ser pessoa honesta e poupada, e quando for para o c�u, e o vir l� chegar depois, testemunhar� em favor dele ante S. Pedro. Ao contr�rio, se l� estiver algum dos seus roubados, dir� que � um simples ratoneiro. O porteiro do c�u, que negou tr�s vezes a Cristo e mil vezes se arrependeu, concluir� que, se o homem negou a propriedade por um lado, afirmou-a por outro, o que equivale a um arrependimento, e met�-lo-� onde estivessem as Madalenas de ambos os sexos.

Se eu houvesse de definir a alma humana, em vista da dupla opera��o a que aludo, diria que ela � uma casa de pens�o. Cada quarto abriga um v�cio ou uma virtude. Os bons s�o aqueles em que os v�cios dormem sempre e as virtudes velam e os maus... Adivinhaste o resto; poupas-me o trabalho de concluir a li��o.

20 de outubro

VAMOS TER, no ano pr�ximo, uma visita de grande import�ncia. N�o � Le�o XIII, nem Bismarck, nem Crispi, nem a rainha de Madagascar, nem o imperador da Alemanha, nem Verdi, nem o Marqu�s Ito, nem o Marechal Yamagata. N�o � terremoto nem peste. N�o � golpe de Estado nem c�mbio a 27. Para que mais delongas? � Lu�sa Michel.

Li que um empres�rio americano contratou a diva da anarquia para fazer confer�ncias nos Estados Unidos e na Am�rica do Sul. H� id�ias que s� podem nascer na cabe�a de um norte-americano. S� a alma ianque � capaz de avaliar o que lhe render� uma viagem de discurso daquela famosa mulher, que Paris rejeita e a quem Londres d� a hospedagem que distribui a todos, desde os Bourbons at� os Barb�s. De momento, n�o posso afirmar que Barb�s estivesse em Londres; mas ponho-lhe aqui o nome, por se parecer com Bourbons e contrastar com eles nos princ�pios sociais e pol�ticos. Assim se explicam muitos erros de data e de biografia: necessidades de estilo, equil�brios de ora��o.

Desde que li a not�cia da vinda de Lu�sa Michel ao Rio de Janeiro tenho estado a pensar no efeito do acontecimento. A primeira coisa que Lu�sa Michel ver�, depois da nossa bela ba�a, � o cais Pharoux atulhado de gente curiosa, muda, espantada. A multid�o far-lhe-� alas, com dificuldade, porque todos querer�o v�-la de perto, a cor dos olhos, o modo de andar, a mala. Metida na cabe�a com o empres�rio e o int�rprete, ir� para o Hotel dos Estrangeiros, onde ter� aposentos c�modos e vastos. Os outros h�spedes, em vez de fugirem � companhia, querer�o viver com ela, respirar o mesmo ar, ouvi-la falar de pol�tica, pedir-lhe not�cias da comuna e outras institui��es.

Dez minutos depois de alojada, receber� ela um cart�o de pessoa que lhe deseja falar: � o nosso Lu�s de Castro que vai fazer a sua reportagem fluminense. Lu�sa Michel ficar� admirada da corre��o com que o representante da Gazeta de Not�cias fala franc�s. Perguntar-lhe-� se nasceu em Fran�a.

� N�o, minha senhora, mas estive l� algum tempo; gosto de Paris, amo a l�ngua francesa. Venho da parte da Gazeta de Not�cias para ouvi-la sobre alguns pontos; a entrevista sair� impressa amanh�, com o seu retrato. Pelo meu cart�o, ter� visto que somos xar�s: a senhora � Lu�sa, eu sou Lu�s. Vamos, por�m, ao que importa...

Acabada a entrevista, chegar� um empres�rio de teatro, que vem oferecer a Lu�sa Michel um camarote para a noite seguinte. Um poeta ir� apresentar-lhe o �ltimo livro de versos: Dil�vios Sociais. Tr�s mo�as pedir�o � diva o favor de lhe declarar se vencer� o carneiro ou o le�o.

� O carneiro, minhas senhoras; o carneiro � o povo, h� de vencer, e o le�o ser� esmagado.

� Ent�o n�o devemos comprar no le�o?

� N�o comprem nem vendam. Que � comprar? Que � vender? Tudo � de todos. Oh! esque�am essas locu��es, que s� exprimem id�ias tir�nicas.

Logo depois vir� uma comiss�o do Instituto Hist�rico, dizendo-lhe francamente que n�o aceita os princ�pios que ela defende, mas, desejando recolher documentos e depoimentos para a hist�ria p�tria precisa saber at� que ponto o anarquismo e o comunismo est�o relacionados com esta parte da Am�rica. A diva responder� que por ora, al�m do caso Amap�, n�o h� nada que se possa dizer verdadeiro comunismo aqui. Traz, por�m, id�ias destinadas a destruir e reconstituir a sociedade, e espera que o povo as recolha para o grande dia. A comiss�o diz que nada tem com a vit�ria futura, e retira-se.

� noite: a diva quer jantar; est� a cair de fome; mas anuncia-se outra comiss�o, e por mais que o empres�rio lhe diga que fica para outro dia ou volte depois de jantar, a comiss�o insiste em falar com Lu�sa Michel. N�o vem s� felicit�-la, vem tratar de altos interesses da revolu��o; pede-lhe apenas quinze minutos. Lu�sa Michel manda que a comiss�o entre.

� Madama, dir� um dos cinco membros, o principal motivo que nos traz aqui � o mais grave para n�s. Vimos pedir que V. Exa. nos ampare e proteja com a palavra que Deus lhe deu. Sabemos que V. Exa. vem fazer a revolu��o, e n�s a queremos, n�s a pedimos. . .

� Perd�o, venho s� pregar id�ias.

� Id�ias bastam. Desde que pregue as boas id�ias revolucion�rias podemos considerar tudo feito. Madama, n�s vimos pedir-lhe socorro contra os opressores que nos governam, que nos logram, que nos dominam, que nos empobrecem: os locat�rios. Somos representantes da Uni�o dos Propriet�rios. V. Exa. h� de ter visto algumas casas ainda que poucas, com uma placa em que est� o nome da associa��o que nos manda aqui.

Lu�sa Michel, com os olhos acesos, cheia de como��o, dir� que, tendo chegado agora mesmo, n�o teve tempo de olhar para as casas; pede � comiss�o que lhe conte tudo. Com que ent�o os locat�rios?. ..

� S�o os senhores deste pa�s, madama. N�s somos os servos; da� a nossa Uni�o.

� Na Europa � o contr�rio, observa; os locat�rios, os prolet�rios, os refrat�rios...

� Que diferen�a! Aqui somos n�s que nos ligamos, e ainda assim poucos, porque a maior parte tem medo e retrai-se. O inquilino � tudo. O menor defeito do inquilino, madama, � n�o pagar em dia; h�-os que n�o pagam nunca, outros que mofam do dono da casa. Isto � novo, data de poucos anos. N�s vivemos h� muito, e n�o vimos coisa assim. Imagine V. Exa....� Ent�o os locat�rios s�o tudo?� Tudo e mais alguma coisa. Lu�sa Michel, dando um salto:� Mas ent�o a anarquia est� feita, o comunismo est� feito.� justamente madama, � a anarquia...

� Santa anarquia, caballero, � interromper� a diva, dando este tratamento espanhol ao chefe da comiss�o, � santa, tr�s vezes santa anarquia! Que me vindes pedir, v�s outros, propriet�rios? que vos defenda os alugu�is? Mas que s�o alugu�is? Uma conven��o prec�ria, um instrumento de opress�o, um abuso da for�a. Tolerado como a tortura, a fogueira e as pris�es, os alugu�is t�m de acabar como os demais supl�cios. V�s estais quase no fim. Se vos ligais contra os locat�rios, � que a vossa perda � certa. O governo � dos inquilinos. N�o s�o j� os aristocratas que t�m de ser enforcados: sereis v�s:

�a ira, �a ira, �a ira,

Les propri�taires � la lanterne!

N�o entendendo mais que a �ltima palavra, a comiss�o nem espera que o int�rprete traduza todos os conceitos da grande anarquista; e, sem suspeitar que faz impudicamente um trocadilho ou coisa que o valha, jura que � falso, que os propriet�rios n�o p�em lanternas nas casas, mas encanamentos de g�s. Se o g�s est� caro, n�o � culpa deles, mas das contas belgas ou do gasto excessivo dos inquilinos. H� de ser engra�ado se, al�m de perderem os alugu�is, tiverem de pagar o g�s. E as penas d'�gua? as d�cimas? os consertos?

Lu�sa Michel aproveita uma pausa da comiss�o para soltar tr�s vivas � anarquia e declarar ao empres�rio americano que embarcar� no dia seguinte para ir pregar a outra parte. N�o h� que propagar neste pa�s, onde os propriet�rios se acham em t�o miser�vel e justa condi��o que j� se unem contra os inquilinos; a obra aqui n�o precisava discursos. O empres�rio, indignado, saca do bolso o contrato e mostra-lho. Lu�sa Michel fuzila improp�rios. Que s�o contratos? pergunta. O mesmo que alugu�is, � uma espolia��o. Irrita-se o empres�rio e amea�a. A comiss�o procura aquiet�-lo com palavras inglesas: Time is money, five o'clock... O int�rprete perde-se nas tradu��es. Eu, mais feliz que todos, acabo a semana.

27 de outubro

CONVERS�VAMOS alguns amigos, � volta de uma mesa, eram 5 horas da tarde, bebendo ch�. Cito a hora e o ch� para que se compreenda bem a eleg�ncia dos costumes e das pessoas. Suponho que os ingleses � que inventaram esse uso de beber ch� �s 5 horas. Os franceses imitaram os ingleses, n�s est�vamos vendo se, imitando os franceses h� de haver algu�m que nos imite. Os russos, esses bebem ch� a todas as horas; o samovar est� sempre pronto. Os chineses tamb�m e podem crer-se os homens mais finamente educados do mundo, se a nota da educa��o � beber ch� em pequeno, como diz um ad�gio desta terra de caf�. Creio que chegam � perfei��o de mam�-lo.

Beb�amos ch� e fal�vamos de coisas e loisas. Foi na quarta-feira desta semana. Abriu-se um cap�tulo de mist�rios, de fen�menos obscuros, e concord�vamos todos com Hamlet, relativamente � mis�ria da filosofia. O pr�prio espiritismo teve alguns minutos de aten��o. Sa� de l� envolvido em sombras. Um amigo que me acompanhou p�de distrair-me, falando do plano que tem (ali�s secreto) de ir ler Te�crito, debaixo de alguma �rvore da H�lade. Imaginem que � mo�o, como a antiguidade, ing�nuo e bom, ama e vai casar. Pois com tudo isso, n�o p�de mais que distrair-me, apenas me deixou, as sombras envolveram-me outra vez.

Ent�o, lembrei-me do caso daquela In�s, moradora � Rua dos Arcos n� 18, que achou a morte, assistindo a uma sess�o da Associa��o Esp�rita, Rua do Conde d'Eu. Pode muito bem ser que j� te n�o lembres de In�s, nem da morte, nem do resto. Eu mesmo, a n�o ser o ch� das 5, � prov�vel que houvesse esquecido tudo. Os acontecimentos desta cidade duram tr�s dias � o bastante para que um h�spede cheire mal, segundo outro ad�gio. A primeira not�cia abala a gente toda, � a conversa��o do dia; a segunda j� acha os esp�ritos cansados; a terceira enfastia. Cessam as not�cias, e o acontecimento desaparece, como uns simples autos e outras feituras humanas.

In�s, assistindo � pr�tica do Sr. Abalo, que � o presidente da associa��o, teve um ataque nervoso que, segundo os depoimentos, se transformou em sonambulismo. Transferida pelos fundos da casa n� 146 para a casa n� 144, ali morreu �s 5 horas da manh�. Paulina, que � o m�dium da associa��o, dep�s que In�s nunca antes assistira a tais sess�es, e que j� ali chegara, meio adoentada. Outras pessoas foram ouvidas, entre elas o presidente Abalo, que fez declara��es interessantes. Insistia em que as pr�ticas ali s�o meramente evang�licas, e entrou em minud�ncias que reputo escusadas ao meu fim.

O meu fim � mais alto. N�o quero saber se In�s faleceu do ataque, nem se este foi produzido pela pr�tica evang�lica do presidente, que ali�s declarou na ocasi�o ser coisa desacertada levar �quele lugar pessoas sujeitas a tais crises. Tamb�m n�o quero saber se todas as mol�stias, como diz o m�dium, s�o cur�veis com um pouco d'�gua e um padre-nosso (medicina muito mais crist� que a do Padre Kneipp, que exclui a ora��o) ou se basta este mesmo padre-nosso e a palavra do presidente; ambas as afirma��es se combinam, se atendermos a que a melhor �gua do mundo � a palavra da verdade. Outrossim, n�o indago se o presidente Abalo, como inculca, teria �um poder incompar�vel, caso chegasse a escrever o que fala�. � ponto que entende com a pr�pria doutrina esp�rita.

A quest�o substancial, e posso dizer �nica, � a liberdade. O presidente Abalo e o m�dium Paulina confessaram j� ter sido processados, com outros membros da associa��o, por praticarem o espiritismo. O primeiro acrescentou que, se bem conhe�a o art. 157 do C�digo Penal, exerce o espiritismo de acordo com a disposi��o do art. 72 da Constitui��o.

Os entendidos ter�o resposta f�cil; eu, simples leigo, n�o acho nenhuma. Deixo-me estar entre o C�digo e a Constitui��o, pego de um artigo, pego de outro, leio, releio e tresleio. Realmente, a Constitui��o, m�e do C�digo, acaba com a religi�o do Estado, e n�o lhe importa que cada um tenha a que quiser. Desde que a porta fica assim aberta a todos, em que me hei de fundar para meter na cadeia o espiritismo? Responder-me-�s que � uma burla; mas onde est� o crit�rio para distinguir entre o Evangelho lido pelo presidente Abalo, e o lido pelo vig�rio da minha freguesia? Evangelho por Evangelho, o do meu vig�rio � mais velho, mas uma religi�o n�o � obrigada a ter cabelos brancos. H� religi�es mo�as e robustas. Curar com �gua? Mas o j� citado Padre Kneipp n�o faz outra coisa, e o C�digo, se ele c� vier, deix�-lo-� curar em paz. Quando o m�dium Paulina declara que recebe os esp�ritos, e transmite os seus pensamentos aos membros da associa��o, eu se fosse c�digo, diria ao m�dium Paulina: Uma vez que a Constitui��o te d� o direito de receber os esp�ritos e os corpos, � escolha, fico sem raz�o para autuar-te como mereces, minha fin�ria, mas n�o te exponhas a tirar algum rel�gio aos associados, que isso � comigo.

O espiritismo � uma religi�o, n�o sei se falsa ou verdadeira; ele diz que verdadeira e �nica. Presun��o e �gua benta cada um toma a que quer, segundo outro ad�gio. Hoje tudo vai por ad�gios. Verdadeiros ou n�o, escrevem-se e publicam-se in�meros livros, folhetos, revistas e jornais esp�ritas. Aqui na cidade h� uma folha esp�rita ou duas. N�o se gasta tanto papel, em tantas l�nguas, sen�o crendo que a palavra que se est� escrevendo � a pr�pria verdade. Admito que haja alguns charlat�es; mas o charlatanismo, bem considerado, que outra coisa � sen�o uma bela e forte religi�o, com os seus sacerdotes, o seu rito, os seus princ�pios e os seus cr�dulos, que somos tu e eu?

Tamb�m h� religi�es liter�rias, e o Sr. Pedro Rabelo, no pr�logo da Alma Alheia, alude a algumas e condena-as, chamando-lhes igrejinhas. O Sr. Pedro Rabelo, por�m, n�o � c�digo, � escritor, e se acrescentar que � escritor de futuro, n�o ser� modesto, mas dir� a verdade. Digo-lha eu, que li as oito narrativas de que se comp�e a Alma Alheia, com prazer e cheio de esperan�as. �A Barricada� e o �C�o� s�o os mais conhecidos, e, para mim, os melhores da cole��o. A �Curiosa� � mais que curiosa: � uma predestinada. �Mana Minduca...� Mas, para que hei de citar um por um todos os contos? Basta dizer que o Sr. Pedro Rabelo busca uma id�ia, uma situa��o, alguma coisa que dizer, para transferi-la ao papel. Tem-se notado que o seu estilo � antes imitativo e cita-se um autor, cuja maneira o jovem contista procura assimilar. Pode ser exato em rela��o a alguns contos; ele pr�prio acha que h� diversidade no estilo desta (disparidade � o seu termo), e explica-a pela natureza das composi��es. Bocage escreveu que com a id�ia conv�m casar o estilo, mas defendia um verso banal criticado pelo Padre Jos� Agostinho. A explica��o do Sr. Pedro Rabelo n�o explica o seu caso, nem � preciso. No verdor dos anos � natural n�o acertar logo com a fei��o pr�pria e definitiva, bem como seguir a um e ao outro, conforme as simpatias intelectuais e a impress�o recente. A fei��o h� de vir, a pr�pria, �nica e definitiva, porque o Sr. Pedro Rabelo � daqueles mo�os em quem se pode confiar.

3 de novembro

N�o sei por onde comece, nem por onde acabe. Ante mim tudo � confuso, os fatos giram, cavalgam outros fatos, sobem ao ar e descem � terra, como est�o fazendo as pedras e lavas do vulc�o Llaima. Alguns deles come�am, mas n�o acabam mais, como o parecer da comiss�o do or�amento, apresentado ao senado esta semana. S� os algarismos desse documento...

Tenho visto muito algarismo na minha vida, variando de significa��o, segundo o tamanho e a mat�ria. Vivi por aqueles tempos diluvianos, em que a gente almo�ava milhares de contos de r�is, jantava dezenas de milhares, e ainda lhe ficava est�mago para uns duzentos ou trezentos contos. Os que morreram logo depois, ter�o gozado muito pouco este mundo. Para falar francamente, arrependo-me hoje de n�o ter inventado qualquer coisa, um paladar mec�nico, horas baratas, f�sforos eternos, cal�amento uniforme para as ruas, cavalos e cidad�os, uma de tantas id�ias que acharam dinheiro vadio, e quando um homem n�o o tinha em si, ia busc�-lo � algibeira dos outros, que � a mesma coisa. A minha esperan�a � que tais dias n�o morreram inteiramente, mas a minha tristeza � que, quando eles convalescerem e vierem alumiar outra vez este mundo, provavelmente estarei fora dele. Se alguma coisa merecem os meus pecados, pe�o a Deus a vida precisa para nesses dias futuros incorporar uma companhia, receber vinte por cento das entradas, levantar um empr�stimo para fazer a obra, n�o fazer a obra, fazer as malas e fazer a viagem do c�u com escala pela Europa.

Pois, senhores, nem por ter visto tantos e tamanhos algarismos pude ler friamente os do parecer da comiss�o. J� o Sr. senador Moraes e Barros havia chamado a nossa aten��o para a simples conta total da d�vida, que, se n�o anda na mem�ria de todos os brasileiros, n�o � por falta de algarismos; ser� antes por falta de mem�ria. Mas a mem�ria, apesar dos pesares, n�o vale a imagina��o, e h� um meio seguro de n�o doerem as d�vidas, � imaginar que s�o poucas, e essas poucas fecund�ssimas, n�o as pagando a gente, porque n�o quer, e ainda por se n�o prejudicar. Que � pagar uma d�vida? � suprimir, sem necessidade urgente, a prova do cr�dito que um homem merece. Aument�-la � fazer crescer a prova.

A comiss�o, � ou o relator, se � certo que o parecer � apenas um projeto, segundo li, mas j� me disseram que afinal fica sendo o parecer de todos, � a comiss�o diz muita coisa sobre d�vidas, despesas, juros, dep�sitos, emiss�es, amortiza��es, e outros atos e fen�menos, mas tudo t�o compacto, que n�o me atrevo a entrar por eles. Os algarismos mal d�o passagem aos olhos; � um mato cerrado, alguns com espinhos agud�ssimos, outros t�o folhudos que cegam inteiramente. Com dez sinais �rabes, � incr�vel o que se pode variar na despesa e na correspondente escritura��o. O parecer tem a vantagem de j� trazer tudo somado, de maneira que n�o h� necessidade de andar procurando a quanto sobem quatro parcelas de quinhentos; ele mesmo conclui que s�o dois mil. Se a conta n�o � redonda, o servi�o torna-se inestim�vel. Vai um homem somar as seis grandes por��es da d�vida, h� de acabar cansado, aborrecido e incerto; mas o parecer, somando tudo, d� este total, que � o mesmo recomendado pelo Sr. senador Moraes e Barros � mem�ria dos seus concidad�os: 1.888.475:667$000.

Melhor � desviar os olhos, descansar a cabe�a e ir a outra parte. N�o digo que nos falte confian�a; � necess�rio t�-la, e basta aplicar a n�s o lema italiano: Bras�lia far� da s�. Confian�a e circunspec��o. Mas o pior � que tudo o que ora me cerca, s�o algarismos, e os mais deles grandes. Vede este quadro de t�tulos e a��es, organizado pelo Jornal do Com�rcio e publicado hoje, dia de finados: � uma vertigem de capitais, de emiss�es de valores nominais e efetivos. Pegue deste banco: 10.000:000$000 de capital. Cada a��o 2 200$000. Entrada? 150$. �ltima venda? 600 rs.; ou, por extenso, para evitar erros, seiscentos r�is, menos de duas patacas. A partida � sempre numerosa, como sucede �s tropas que marcham para a guerra, s�o dez mil, vinte, trinta, cem mil. A volta � diminu�da; faz lembrar o final de uma das �peras do Judeu:

T�o alegres que fomos,

T�o tristes que viemos.

Sim, � melhor ir a outra parte, repito; mas aonde? Parece que o teatro � um bom lugar de distra��o; a verdade, por�m, � que a� mesmo esperam-me algarismos tremendos. N�o me refiro ao or�amento do teatro municipal, que o prefeito acaba de sancionar. N�o � quantia de escurecer a vista; mas responda o p�blico �s boas inten��es. N�o me refiro ao or�amento; refiro-me ao n�mero de pap�is dos atores.

Quando eu ia ao teatro, os atores n�o representavam mais de um papel em cada pe�a; �s vezes, menos. Caso havia em que os pap�is eram dados por metade, um ter�o, um quinto. Nunca me esqueceu uma atriz (cujo nome perdi de mem�ria) que chegou ao m�nimo de uma s� frase. Resmungava enfastiadamente as outras: aquela era o cavalo de batalha da noite. Apertada pelo pai, tinha que negar n�o sei que carta ou que quer que era, den�ncia de namoro. Deixava o pai de lado, vinha � frente, fitava a plat�ia, esticava o bra�o, levantava o dedo, e bradava, sublinhando: �Eu, papai, nunca tive um namorado s� na minha vida!� Compreende-se a inten��o da mo�a, contr�ria � do autor, mas muito mais acertada, porque a plat�ia ria a bandeiras despregadas. O contr�rio da Dalila. Ria o p�blico, os bancos riam, as arandelas riam, s� eu n�o ria, por haver j� desaprendido de rir.

Aqui temos agora uma pe�a em que a atriz Palmira, que nunca vi nem ouvi, representa n�o menos de vinte e quatro pap�is. Entre a simples frase da outra e estes vinte e quatro pap�is, h� um abismo e um mundo. � o menos que posso dizer: mil abismos, mil mundos n�o s�o de mais. Fr�goli revelou-nos o modo de ver uma infinidade de pessoas, em cinco minutos, pessoas e vozes, que as tinha todas. Palmira, sem as vozes, dar� os pap�is, mas n�o ficaremos aqui. Outros artistas vir�o, com o duplo e o triplo dos pap�is, e o qu�ntuplo dos aplausos. N�o se conclua que execramos as individualidades �nicas, nem que amamos os que s�o propriamente multicores. � ser temer�rio; concluamos antes, que a variedade deleita.

10 de novembro.

Tr�s pessoas estavam na loja Crashlei, rua do Ouvidor, um mo�o, um mocinho e eu. V�amos, em gazeta inglesa, os retratos do duque de Marlborough e de Miss Consuelo Wanderbiltt, que v�o casar. A noiva � riqu�ssima, o noivo nobil�ssimo, v�o unir os milh�es aos bras�es, e a Europa � Am�rica; n�o � preciso lembrar que a jovem Wanderbiltt � filha do famoso rica�o americano.

Um de n�s tr�s, o mo�o, declarou francamente que n�o acreditava nos milh�es da donzela. A quantia maior em que acredita � um conto de r�is; n�o descr� de dois, acha-os poss�veis; dez parecem-lhe inven��o de c�rebro escaldado. O mocinho j� creu em vinte e sete contos, mas perdeu essa f� ing�nua e pura. Eu, por amor do ocultismo, creio em tudo que escapa aos olhos e aos dedos. Sim, creio nos oitenta mil contos da linda Wanderbiltt, assim como creio nos s�culos de nobreza de Marlborough.

Uma revista c�lebre (v� por conta de Stendhal) opinou no princ�pio deste s�culo  que �h� s� um t�tulo de nobreza, � o de duque; marqu�s � rid�culo; ao nome de duque todos voltam a cabe�a.� Se � assim, o noivo ingl�s paga bem o dote da noiva americana, paga de sobra. As ricas herdeiras americanas amam os nobres herdeiros europeus; n�o h� um ano que um duque franc�s desposou uma rica patr�cia de miss Consuelo. Deste modo, sem bulha nem matinada, unem a democracia � aristocracia e fazem nascer os futuros duques do pr�prio seio que os aboliu. A nobreza europ�ia est� assim enxertada de muito galho transatl�ntico. Naturalmente a observa��o � velha, n�o pe�o alv�ssaras.

Pe�o alv�ssaras por esta outra que fiz no dia seguinte �quele em que estivemos na loja Crashlei, na rua do Ouvidor. Lendo uma correspond�ncia de Breslau, acerca do congresso socialista, dei com a not�cia de fazer parte da assembl�ia, entre outras senhoras, uma de quarenta anos, que, aos vinte e cinco, em 1880, renunciou o t�tulo de duquesa para se fazer pastora de cabras. � nada menos que filha do duque de Wurtemberg e da princesa Matilde de Schamburg de Lippe. O governo wurtembergu�s, para que ela n�o ficasse s� com o nome de Paulina, deu-lhe o de Kirbach (von Kirbach).

A minha observa��o consiste no contraste das duas mo�as, uma que nasce duquesa e bota fora o t�tulo, outra que nasce sem t�tulo e faz-se duquesa. Pastora de cabras, pastora de d�lares. Que querias tu ser, carioca do meu cora��o? A poesia pede cabras, a realidade exige d�lares; funde as duas esp�cies, multiplica os d�lares pelas cabras, e n�o mandes embora o primeiro duque que te aparecer. Vai com ele � igreja da Gl�ria, agora que deu � sua triste torre uma cor de rosa ainda mais triste, casa, embarca, vai a Breslau, n�o digo para fazer parte do congresso socialista; h� muita outra coisa que ver em Breslau, duquesa.

Os japoneses, com quem acabamos de celebrar um tratado de com�rcio, n�o leram decerto a Revista de Edimburgo; se a tivessem lido, teriam decretado os seus duques; por ora est�o nos condes e marqueses. Verdade � que um cronista lusitano do s�culo XVI diz que eles tinham por esse tempo t�tulos v�rios e diferentes � �como c� os duques, marqueses e condes.� Quest�o de tradu��o, mas justamente o que me falta � a not�cia dos voc�bulos originais e seus correspondentes. Entretanto, n�o � fora de prop�sito que eles, assim como aperfei�oaram a p�lvora dos chins e deram-lhes agora com ela, assim tamb�m aperfei�oem as herdeiras ricas, e ningu�m sabe se algum bisneto de Marlborough chegar� a desposar alguma Wanderbiltt de T�quio.

Que as mo�as daquelas terras, como os homens, assimilam facilmente os costumes peregrinos, � fato velho e revelho. N�o h� muitos dias, est�vamos � porta do Laemmert dois dos tr�s da loja Crashlei... N�o digo os nomes dos outros, por n�o lhes ter pedido licen�a, mas eles que o confirmem aos seus amigos, e os amigos destes aos seus, e assim se far�o p�blicos. Est�vamos � porta do Laemmert, quando vimos sair duas parisienses; minto; duas japonesas. Realmente, salvo o tipo, eram duas parisienses puras. Se v�sseis a gra�a com que deram o bra�o aos cavalheiros que iam com elas, as botinas que cal�avam, os tac�es das botinas, o pisar leve e r�pido... Os tac�es diziam claramente que n�o carregavam o peso da �sia, que as duas mo�as eram como aquelas borboletas de papel que os seus av�s faziam avoa�ar no teatro, com o simples movimento do leque. E foram-se, e perderam-se rua acima.

Vamos t�-las agora �s d�zias, se o tratado, que o Sr. Piza negociou, admitir que venham mulheres e uma pequena porcentagem de mo�as da cidade. Mas ainda que venham s� as r�sticas, � gente que, com pouco, fica cidad�. Vamos t�-las modistas, estudantes, professoras. Nas escolas n�o se limitar�o a ensinar portugu�s, ensinar�o tamb�m o seu idioma natal, e, gra�as � facilidade que temos em aprender e ao amor das belezas estranhas, acabaremos por escrever na l�ngua do Mikado. H� quem jure que algumas pessoas n�o falam em outra; mas � opini�o sem grande fundamento. � certo que, no meio da linguagem orat�ria aparecem locu��es, frases, alguma sintaxe estranha, mas, al�m de se n�o poder afirmar que sejam todas do Jap�o, sucede que muitas s�o claramente do Caf� Riche, � e, por serem de caf�, t�m a desculpa nacional.

Venham as professoras, e digam-nos a hist�ria e os costumes do parlamento de T�quio, a fim de que possamos explicar como � que um sistema que entrou t�o bem no Jap�o est� prestes a dar com o presidente do Chile em terra. N�o chego a entender as dificuldades deste presidente. Que, durante alguns dias, os chefes de gabinete poss�veis n�o mostrem grande vontade de subir ao leme do Estado, v�; n�o � natural, mas, um pouco de artif�cio d� gra�a � alma humana, e particularmente � alma pol�tica. J� l� v�o semanas e semanas, e n�o h� meio de alcan�ar um grupo de cinco a seis pessoas que governem a Rep�blica. N�o esque�amos que o Chile fez uma revolu��o para restaurar o sistema parlamentar. Se h� de acabar por n�o ter ministros, Montt deixa a presid�ncia, para n�o fazer de Balmaceda... N�o � claro.

Claro � ainda o princ�pio da cr�nica, o caso do duque de Marlborough e da pr�xima duquesa; t�o claro como o da princesa Colona, que � tamb�m filha de um banqueiro americano, casada h� alguns anos. Rimei acima milh�es com bras�es; posso agora empregar a toante espanhola, e rimar capit�es com capitais, mas podem acusar-me de trocadilho, e eu prefiro ficar calado a fazer um calembour sem g, meus bons amigos da revis�o.

17 de novembro

TAL � O MEU estado, que n�o sei se acabarei isto. A cabe�a d�i-me, os olhos doem-me, todo este corpo d�i-me. Sei que n�o tens nada com as minhas mazelas, nem eu as conto aqui para interessar-te; conto-as, porque h� certo al�vio em dizer a gente o que padece. O interesse � meu, tu podes ir almo�ar ou passear.

Vai passear, e observe o que s�o l�nguas. Se eu escrevesse em franc�s, ter-te-ia feito tal inj�ria, que tu, se fosses brioso, e n�o �s outra coisa, lavarias com sangue. Como escrevo em portugu�s, dei-te apenas um conselho, uma sugest�o; ir�s passear deveras para aproveitar a manh�. Reflete como os homens divergem, como as l�nguas se op�em umas �s outras, como este mundo � um campo de batalha. Reflete, mas n�o deixes de ir passear; se n�o amanhecer chovendo, e a neblina cobrir os morros e as torres, ter�s belo espet�culo, quando o sol romper de todo e der ao terceiro dia das festas da Rep�blica o necess�rio esplendor.

N�o tendo podido ver as outras, vi todavia que estiveram magn�ficas; a grande parada militar, os cumprimentos ao Sr. presidente da Rep�blica, a abertura da exposi��o, os espet�culos de gala, as evolu��es da esquadra, foram cerim�nias bem escolhidas e bem dispostas para celebrar o sexto anivers�rio do advento republicano . Ainda bem que se organizam estas comemora��es e se convida o povo a divertir-se. Cada institui��o precise honrar-se a si mesma e fazer-se querida, e para esta segunda parte n�o basta exercer pontualmente a justi�a e a eq�idade. O povo ama as coisas que o alegram.

Agora come�am as festas. Deodoro estava perto do 15 de novembro, e tratava-se de organizar a nova forma de governo. Era natural que as festas fossem escassas e menos v�rias que as deste ano. Certamente, o chefe do Estado era amigo das gra�as e da alegria. N�o foi ainda esquecido o grande baile dado em Itamarati para festejar o anivers�rio natal�cio do marechal. Encheram-se os sal�es de fardas, casacas e vestidos. Gambetta advertiu um dia que la R�publique manquait de femmes. Compreendia que, numa sociedade polida como a francesa, as mulheres d�o o tom ao governo. As de l� tinham-se retra�do; depois apareceram outras, suponho. C� houve o mesmo retraimento; nomes distintos e belas elegantes eliminaram-se inteiramente. Mas nem foram todas, nem c� se vive tanto de sal�o.

De resto, como disse acima, Deodoro era amigo das gra�as; acabaria por chamar as senhoras em torno do governo. Um dia, por ocasi�o da promessa de cumprir a Constitui��o, tive ocasi�o de observar uma a��o que merece ser contada. Foi a primeira e �nica vez que vi o pal�cio de S. Crist�v�o transformado em parlamento e mal transformado, porque os congressistas, acabada a constituinte, mudaram-se para as antigas casas da cidade. Pouca gente; mais nas tribunas que no recinto, e no recinto mais cadeiras que ocupantes. Anunciou-se que o presidente chegara, uma comiss�o foi receb�-lo � porta, enquanto o presidente do Congresso, � atual presidente da Rep�blica,� descia gravemente os degraus do estrado em que estava a mesa para receb�-lo. Assomou Deodoro, cumprimentou em geral e guiou para a mesa; em caminho, por�m, viu na tribuna das senhoras algumas que conhecia, � ou conhecia-as todas, � e , levando os dedos � boca, fez um gesto cheio de galanteria, acentuado pelo sorriso que o acompanhou. Comparai o gesto, a pessoa, a solenidade, o momento pol�tico, e conclu�.

Eu comparei tudo � e comparei ainda o presidente e o vice-presidente. Aquele proferia as palavras do compromisso com a voz clara e vibrante, que reboou na vasta sala. Desceu depois com o mesmo aprumo, e saiu. A entrada do vice-presidente teve igual cerimonial, mas diferiu logo nas palmas das tribunas, que foram c�lidas e numerosas, ao contr�rio das que saudaram a chegada do primeiro magistrado. O marechal Floriano caminhou para a mesa, cabe�a baixa, passo curto e vagaroso, e quando teve de proferir as palavras do compromisso, f�-lo em voz surda e mal ouvida.

Tal era o contraste das duas naturezas. Quando o poder veio �s m�os de Floriano, pelas raz�es que todos v�s sabeis melhor que eu, pois todos sois pol�ticos, vieram os sucessos do princ�pio do ano, que se prolongaram e desdobraram at� � revolta de setembro e toda a mais guerra civil, que s� agora achou termo, neste primeiro ano do governo do Sr. Dr. Prudente de Morais.

O corpo diplom�tico acentuou anteontem esta circunstancia, por boca do Sr. ministro dos Estados Unidos, no discurso com que apresentou ao honrado presidente da Rep�blica as suas felicita��es e de seus colegas. O governo que terminou h� um ano, s� p�de cuidar da guerra; o que ent�o come�ou, devolvendo a paz aos homens, p�de iniciar de vez as festas novembrinas... Novembrinas saiu-me da pena, por imita��o das festas maias dos argentinos, que a 25 de maio, data da independ�ncia; mas n�o h� mister nomes para fazer festas brilhantes; a quest�o � faz�-las nacionais e populares.

S�o obras de paz. Obra de paz � a exposi��o industrial que se inaugurou sexta-feira, e vai ficar aberta por muitos dias, mostrando ao povo desta cidade o resultado do esfor�o e do trabalho nacional desde o alfinete at� � locomotiva. Depressa esquecemos os males, ainda bem. Isto que pode ser um perigo em certos casos, � um grande benef�cio quando se trata de restaurar a na��o.

24 de novembro

Inaugurou-se mais uma sociedade recreativa, o Cassino Brasileiro. A sess�o foi presidida pelo Sr. visconde de S. Luiz do Maranh�o, que proferiu discurso eloq�ente, segundo leio nas folhas p�blicas. Ap�s ele, falaram outros s�cios, e terminado o debate, o presidente levantou a sess�o, declarando inaugurado o Cassino Brasileiro.

Que faria o leitor, se fosse s�cio, logo que se levantou a sess�o? Pegaria do chap�u para sair. Faria mal. Acabada a sess�o inaugural, come�aram imediatamente as dan�as, que s� acabaram na manh� seguinte. Isto prova ainda uma vez o que n�o precisa de prova, a saber, que n�s amamos a dan�a sobre todas as coisas, e ao nosso par como a n�s mesmos. Dali este caso novo de ser a pr�pria sess�o inaugural a noite do primeiro baile. Nos anais da Terps�core carioca n�o h� outro exemplo. Faz lembrar o velho uso das c�maras, em que o mesmo minuto que v� aprovar a elei��o de um membro, v� aparecer o membro, jurar ou obrigar-se, e sentar-se. As senhoras fizeram aqui de membro eleito; vestidas e toucadas, esperavam apenas que o presidente levantasse a sess�o. Tais haveria que achassem o discurso do Sr. visconde pouco eloq�ente; e os outros aborrecid�ssimos... Em verdade, n�o se pode fazer crer a uma dama, que tem a sua tabela de quadrilhas, valsas e polcas, e j� alguns pares inscritos, que as sess�es inaugurais se fa�am com discursos. Um, dois, tr�s gestos v�; aclama��es no fim, sim, senhor; mas discursos, explica��es de estatutos...

Sim, esquecia-me dizer que houve explica��o, de um dos artigos dos estatutos, feita pelo presidente, e n�o sei se tamb�m por outros oradores. Trata-se de uma condi��o para ser s�cio. A explica��o era desnecess�ria, pois cada reuni�o de homens tem o direito de estabelecer as cl�usulas que quiser, sem que se possa atribu�-las (como disse o Sr. visconde) a sentimentos menos liberais. �A sociedade era recreativa, concluiu S. Exa., e portanto n�o podia admitir em seu seio �nimos eivados de tais sentimentos.� Perfeitamente pensado, mas inutilmente dito, pela raz�o que dei acima, e porque as mo�as esperavam.

N�o � de animo liberal, � nem conservador, � deixar que os ombros das mo�as, os lindos bra�os, o princ�pio do seio, fiquem vadios nas cadeiras, enquanto os homens trocam arengas. Estou certo que um orador prefere a sua ora��o � mais bela esp�dua de mo�a; mas assim como Salom�o em toda a sua gl�ria se cobriu jamais como os l�rios do campo (lede S. Mateus), assim tamb�m nem Dem�stenes com toda a sua eloq��ncia falou melhor que uma esp�dua de mo�a; � esp�dua desembainhada, notai bem, porque, como se l� no mesmo evangelista, n�o se deve esconder a luz debaixo de um alqueire... Mas aqui estou eu a profanar o serm�o da montanha, por amor da est�tica. Deixemos este Cassino, e mais as suas esp�duas nuas e discursos enfeitados.

Que se dance, � a nossa alma, a nossa paix�o social e pol�tica. A pr�pria mo�a que esta semana enlouqueceu, dizem que por efeito do espiritismo, � um caso antes de coreografia que de patologia. A loucura � uma dan�a das id�ias. Quando algu�m sentir que as suas id�ias saracoteiam, arrastam os p�s, ou d�o com eles nos narizes das outras, desconfie que � a polca ou o canc� da dem�ncia. Recolha-se a uma casa de sa�de. N�o se podem atribuir tais efeitos ao espiritismo. A prova de que n�o foi ele que fez enlouquecer a mo�a, � que, n�o h� dois meses, morreu outra mo�a em plena sess�o esp�rita. Se a doidice brotasse da doutrina e da pr�tica, essa outra n�o teria simplesmente morrido; teria dan�ado a valsa das id�ias.

Dan�ar � viver. A guerra, que tamb�m � vida, � um grande bailado, em que os pares se perdem comumente na noite dos tempos, fartos de saracotear. Mu�ulmanos e crist�os dan�am agora ao som da B�blia e do Cor�o, com tal viveza, que n�o s� as pot�ncias da Europa est�o para tirar pares, mas os pr�prios Estados Unidos da Am�rica atam a gravata branca e cal�am as luvas. E' o que nos diz o cabo, e eu creio no cabo, n�o menos que na Ag�ncia Havas, que a toda not�cia grave p�e este natural acr�scimo: �O sucesso est� sendo muito comentado�. N�o o p�s acerca da interven��o americana nos neg�cios turcos; � verdade que a not�cia vinha de Washington, n�o da Europa, onde se comentar� a nova afirma��o desta grande pot�ncia, que de americana se faz universal,

Pelo que li ontem no Jornal do Com�rcio, o capit�o Mahan publicou agora um artigo sobre a doutrina de Monroe e seus corol�rios. O principal fim � mostrar que a grande Rep�blica, para efetuar a sua suserania e prote��o a todas as rep�blicas da Am�rica Central e Meridional, precisa ter uma esquadra adequada aos seus novos destinos. A esquadra se far�, e se tu viveres ainda meio s�culo, ver�s que tudo estar� mudado. Haver� ent�o um Cassino, maior que o Cassino Brasileiro, inaugurado nas Laranjeiras, um grande Cassino Americano, onde estaremos com as nossas fortes esp�duas nuas, e a tabela das valsas e quadrilhas. Notai que as quadrilhas de sal�o j� s�o americanas.

Nesse tempo, em que teremos aprendido o que nos falta para conhecer toda a liberdade, n�o se ouvir�o gritos como os que ora soltam no sul, porque uma mo�a de Porto-Alegre saiu da casa paterna para se meter a freira. As folhas dizem que � fanatismo religioso; pode ser, mas eu acrescento que � um ato de liberdade. Gasparina tem vinte e quatro anos, e desde os quinze pensava j� em ir para o convento. Talvez fosse a leitura do Hamlet que lhe deu tal resolu��o: �Faze-te monja; para que queres ser m�e de pecadores?�

Gasparina n�o fez como Of�lia, obedeceu. Se ainda vivesse o aviso ministerial de 1855, era imposs�vel a Gasparina tomar sequer o v�u de noviciado; mas o aviso perdeu-se. Agora h� plena liberdade, e liberdade n�o � s� o que nos d� gosto. O pai de Gasparina correu ao convento, viu de longe a filha, pediu-lhe que tornasse a casa, onde a m�e enferma poderia morrer com a not�cia do seu ato; ela respondeu-lhe naturalmente com o reino do c�u. As freiras admitiram que a novi�a deixasse o convento, se o bispo tal mandasse. O bispo fez o que eu faria, se fosse bispo, e at� sem ser: negou o consentimento.

Liberdade � liberdade. Vede a velha liberdade inglesa. Agora mesmo, na �ndia, um ingl�s crist�o fez-se mu�ulmano. Cumpridas as cerim�nias, recebeu o nome de Abdul-Hamid. Consentiram-lhe que continuasse vestido como dantes, mas aconselharam-lhe que, para distintivo externo, fizesse uso do fez. Parece que adotou o fez. Crist�o antes, mu�ulmano agora, ficou sempre ingl�s, que � o que se n�o renega ou abjura: � escolhe o verbo, segundo fores amigo ou advers�rio da Gr�-Bretanha; eu por mim agrade�o � m�o de Shakespeare este termo de compara��o com a nossa Of�lia de Porto-Alegre. Adeus.

1 de dezembro

IMAGINO o que se ter� passado em Paris, quando Dumas Filho morreu. Uma das quarenta... N�o cuideis que falo das cadeiras da Academia. Este mundo n�o se comp�e s� de cadeiras acad�micas; tamb�m h� nele interpela��es parlamentares, e dizem que o recente minist�rio tem j� de responder a cerca de quarenta, ou sessenta. Refiro-me justamente �s interpela��es. Uma delas verificou-se depois da morte de Dumas Filho. O interpelante oprimiu naturalmente o minist�rio, o minist�rio sacudiu o interpelante, tudo com o cerimonial de costume, apartes, gritos e protestos; vieram os votos: o minist�rio teve a grande maioria deles. Nada disso tirou � cidade esta id�ia �nica: Dumas Filho morreu. Dumas Filho morreu. Homens, mulheres, fidalgas e burguesas falaram deste �bito como do de um pr�ncipe qualquer. N�o h� j� damas das cam�lias; ele mesmo disse que a mulher que lhe serviu de modelo ao personagem de Margarida Gautier foi uma das �ltimas que tiveram cora��o. Podia parecer paradoxo ou presun��o de mo�o se ele n�o escrevesse isto em 1867, vinte anos depois da morte de Margarida. Demais, se as palavras d�o id�ia das coisas, a segunda metade deste s�culo n�o chega a conhecer a primeira. Cortes�s, ou o que quer que elas eram em 1847, acabaram horizontais, nome que �, por si, um programa inteiro, e � mais poss�vel que j� lhes hajam dado outro nome mais exato e mais cru. N�o faltar�o, por�m, mulheres nem homens, tantas figuras vivas, criadas por ele, tiradas do mundo que passa, para a cena que perpetua. Todos esses, e todos os demais falaram desta morte como de um luto p�blico.

A moda passar� como passou a de Dumas pai, a de Lamartine, a de Musset, a de Stendhal, a de tantos outros, para tornar mais tarde e definitivamente. �s vezes, o eclipse chega a ser esquecimento e ingratid�o. Musset, � que Heine dizia ser o primeiro poeta l�rico da Fran�a, � pedia aos amigos, em belos versos, que lhe plantassem um salgueiro ao p� da cova. Possuo umas lascas e folhas do salgueiro que est� plantado na sepultura do autor das Noites, e que Artur Azevedo me trouxe em 1883; mas n�o foram amigos que o plantaram, n�o foram sequer franceses, foi um ingl�s.

Parece que, indo fazer a visita aos mortos, doeu-lhe n�o ver ali o arbusto pedido e cumprir-se o desejo do poeta. Donde se conclui que os ingleses nem sempre ficam com a ilha da Trindade. H� deles que d�o para amar os poetas e seus suspiros. Tamb�m os h� que, por amor das musas, fazem-se armar soldados. Um deles quando os gregos bradaram pela independ�ncia, pegou em si para ir ajud�-los e n�o chegou ao fim; morreu de doen�a em Missolonghi. Era par de Inglaterra; chamava-se, creio, eu Georges Gordon Noel Byron. Tinha escrito muitos poemas e versos soltos e feito alguns discursos.

A gl�ria veio depois da moda, e p�s Dumas pai no lugar que lhe cabe neste s�culo, como fez aos outros seus rivais. Cada g�nio recebeu a sua palma. Se a moda fizer a Dumas filho o mesmo que aos outros, o tempo operar� igual resgate, e os dois Dumas encher�o juntos o mesmo s�culo. Rara vez se dar� uma sucess�o destas, a gl�ria engendrando a gl�ria, o sangue transmitindo a imortalidade. Sabeis muito bem que, nem por ser filho, o Dumas, que ora faleceu, deixou de ser outra pessoa no teatro, grande e original. Entendeu o teatro de outra maneira, fez dele uma tribuna, mas o pintor era assaz consciente e forte para n�o deixar ao p� ou de envolta com a li��o de moral ou filosofia uma c�pia da sociedade e dos homens do seu tempo. Dizem tamb�m que o filho p�s a vida natural em cena, mas disso j� se gabava o pai em 1833, e creio que ambos, cada qual no seu tempo, tinham raz�o.

Nem por ter saboreado a gl�ria a largos sorvos, perdeu Dumas filho a adora��o que tinha ao pai. Ao velho chegaram a chamar por tro�a �o pai Dumas�. O filho, ao referi-lo, conta uma reminisc�ncia dos sete anos. Era a noite da primeira representa��o de Carlos VII. N�o entendeu nem podia entender nada do que via e ouvia. A pe�a caiu. O autor saiu do teatro, triste e calado, com o pequeno Alexandre pela m�o, este amiudando os passinhos para poder acompanhar as grandes pernadas do pai. Mais tarde, sempre que sa�a da representa��o das pr�prias pe�as, coberto de aplausos, n�o podia esquecer, ao tornar para casa, aquela noite de 1831, e dizia consigo: �Pode ser, mas eu preferia ter escrito Carlos VII, que caiu.� Conheceis todo o resto desse pref�cio do Filho Natural, n�o esquecestes a famosa e c�lebre p�gina em que o autor da Dama das Cam�lias fala ao autor de Antony: �Ent�o come�astes esse trabalho cicl�pico que dura h� quarenta anos...�

Tamb�m o dele durou quarenta anos. A mais de um espantou agora a not�cia dos seus 71 de idade; e ainda anteontem, em casa de um amigo, dizia este com gra�a: �ent�o l� se foi o velho Dumas.� Todos t�nhamos o sentimento de um Dumas mo�o, t�o mo�o como a Dama das Cam�lias. A verdade � que um e outro guardaram o segredo da eterna juventude.

L� se foi toda a cr�nica. Relevai-me de n�o tratar de outros assuntos; este prende ainda com o tempo da nossa adolesc�ncia, a minha e a de outros.

Naquela quadra cada pe�a nova de Dumas Filho ou de Augier, para s� falar de dois mestres, vinha logo impressa no primeiro paquete, os rapazes corriam a l�-la, a traduzi-la, a lev�-la ao teatro, onde os atores a estudavam e a representavam ante um p�blico atento e entusiasta, que a ouvia dez, vinte, trinta vezes. E adverti que n�o era, como agora, teatros de ver�o, com jardim, mesas, cerveja e mulheres com um edif�cio de madeira ao fundo. Eram teatros fechados, alguns tinham as c�lebres e inc�modas travessas, que aumentavam na plat�ia o n�mero dos assentos. Noites de festas; os rapazes corriam a ver a Dama das Cam�lias e o Filho de Giboyer, como seus pais tinham corrido a ver o Kean e Lucr�cia B�rgia. Bons rapazes, onde v�o eles? Uns seguiram o caminho dos autores mortos, outros envelhecem, outros foram para a pol�tica, que � a velhice precoce, outros conservam-se como este que morreu t�o mo�o.

8 de dezembro

Dai-me boa pol�tica e eu vos darei boas finan�as. Quando o Bar�o S�o Louis n�o for mais nada na mem�ria dos homens, este aforismo ainda h� de ser citado, n�o tanto por ser verdadeiro, como por tapar o buraco de uma id�ia. Talvez um dia, algum orador equivocadamente troque os termos e diga: Dai-me boas finan�as, e eu vos darei boa pol�tica. O que lhe merecer� grandes aplausos e dar� nova forma ao aforismo. Assim fazem os alfaiates �s roupas consertadas de um fregu�s.

Nada entendendo de pol�tica nem de finan�as, n�o estou no caso de citar um nem outro, o primitivo e o consertado. Esta semana tivemos os escritos do Sr. senador Oiticica e do Sr. Afonso Pena, presidente do Banco da Rep�blica. Entre uns e outros n�o posso dizer nada. Explico-me. H� nas palavras uma significa��o gramatical que, salvo o caso da pessoa escrever como fala e falar mal, entende-se perfeitamente. O que n�o chego a compreender � a significa��o econ�mica e financeira. Sei o que s�o lastros, n�o ignoro o que s�o emiss�es; mas o que do cons�rcio dos dois voc�bulos entre si e com outros deve sair, � justamente o que me escapa. Podem arregimentar diante de mim os algarismos mais compridos, som�-los, diminu�-los, multiplic�-los, reparti-los, e eu conhe�o se as quatro opera��es est�o certas, mas o que elas podem dizer, financeiramente falando, n�o sei. H� pessoas que n�o confessam isto, por motivos que respeito; algumas chegam a escrever estudos, comp�ndios, an�lises. Eu sou (com perd�o da palavra) nobremente franco.

Em mat�ria de dinheiro, sei que a hist�ria dele combina perfeitamente com a do Para�so terrestre. H� cinq�enta anos, diz uma folha rio-grandense de 21 do m�s passado:

A moeda-papel era coisa rar�ssima no Rio Grande; ouro e prata eram as moedas que mais circulavam, inclusive as de cunho estrangeiro, como as on�as e os patac�es, que a alf�ndega recebia, aquelas a 32$ e estes a 2$.

Para mim, estas palavras s�o mais claras que todos os autores deste mundo. Querem dizer que compr�vamos tudo com ouro e prata, n�o havendo papel sen�o talvez para fazer cole��es semelhantes �s de selos, ocupa��o n�o sei se mais se menos recreativa que o jogo da paci�ncia. Hoje, a circula��o, como Margarida Gauthier, mira-se ao espelho e suspira: Combien je suis chang�e! Hoje quer dizer h� muitos anos. E acrescenta como a hero�na de Dumas Filho: Cependant, le docteur m�a promis de me gu�rir. Que doutor? � o que se n�o sabe ao certo; devia dizer os doutores, ou mais simplesmente a faculdade de Medicina. Realmente, os doutores tinham boa vontade. Conheci dois, h� muitos anos, que eram como a homeopatia e a alopatia, dois sistemas opostos. Uma curava com muitos banhos, outro com um banho s�. Al�m de n�o chegarem a curar a nossa doente com um nem com muitos, eles pr�prios morreram, e a doente vai vivendo com a sua tuberculose. Como a triste Margarida, esta acrescenta no mesmo mon�logo: J'aurai patience.

Provado que n�o entendo de finan�as, espero que me n�o exijam igual prova acerca da pol�tica, posto que a pol�tica seja acess�vel aos mais �nfimos esp�ritos deste mundo. A quest�o, por�m, n�o � de gradua��o, � de cria��o.

Um operoso deputado, o Sr. Dr. Nilo Pe�anha, � acaba de apresentar um projeto de lei destinado a impedir a fraude e as viol�ncias nas elei��es. N�o pode haver mais nobre intuito. N�o h� servi�o mais relevante que este de restituir ao voto popular a liberdade e a sinceridade. � o que eu diria na C�mara se fosse deputado; e, quanto ao projeto, acrescentaria que � combina��o mui pr�pria para alcan�ar aqueles fins t�o �teis. Onde, � hora marcada, n�o houver funcion�rios, o eleitor vai a um tabeli�o e registra o seu voto. Assim que, podem os capangas tolher a reuni�o das mesas eleitorais, podem os mes�rios corruptos (� uma suposi��o) n�o se reunirem de prop�sito: o eleitor abala para o tabeli�o e o voto est� salvo.

Como tabeli�o, � que n�o sei se aprovaria a lei. O tabeli�o � um ente modesto, amigo da obscuridade, metido consigo, com os seus escreventes, com as suas escrituras, com o seu Manual. Traz�-lo ao tumulto dos partidos, � vista das id�ias (outra suposi��o) � trocar o papel desse serventu�rio, que por �ndole e necessidade p�blica � e deve ser sempre imperturb�vel. O menos que veremos com isto � a entrada do tabeli�o no telegrama. Havemos de ler que um tabeli�o, com viol�ncia dos princ�pios e das leis, com afronta da verdade das classifica��es, sem nenhuma esp�cie de pudor, aceitou os votos nulos de menores, de estrangeiros e de mulheres. Outro ser� seq�estrado na v�spera, e o telegrama dir�, ou que resistiu nobremente � inscri��o dos votos, ou que fugiu covardemente ao dever. Alguns adoecer�o no momento psicol�gico. Se algum, por ter parentes no partido teixeirista, mandar espancar pelos escreventes os eleitores dominguistas, cometer� realmente um crime, e incitar� algum colega aparentado com o cabo dos dominguistas a restituir aos teixeiristas as pancadas distribu�das em nome daqueles. Deixemos os tabeli�es onde eles devem ficar, � nos romances de Balzac, nas com�dias de Scribe e na Rua do Ros�rio.

Mas, que rem�dio dou ent�o para fazer todas as elei��es puras? Nenhum, n�o entendo de pol�tica. Sou um homem que, por ler jornais e haver ido em crian�a �s galerias das c�maras, tem visto muita reforma, muito esfor�o sincero para alcan�ar a verdade eleitoral, evitando a fraude e a viol�ncia, mas por n�o saber de pol�tica, fico sem conhecer as causas do malogro de tantas tentativas. Quando a lei das minorias apareceu, refleti que talvez fosse melhor trocar de m�todo, come�ando por fazer uma lei da representa��o das maiorias. Um chefe pol�tico, var�o h�bil, pegou da pena e ensinou, por circular p�blica, o modo de cumprir e descumprir a lei, ou, mais catolicamente, de ir para o C�u comendo carne � sexta-feira. Quest�o de algarismos. Vingou o plano; a lei desapareceu. Vi outras reformas; vi a elei��o direta servir aos dois partidos, conforme a situa��o deles. Vi... Que n�o tenho eu visto com estes pobres olhos?

A �ltima coisa que vi foi que a elei��o � tamb�m outra Margarida Gauthier. Talvez n�o suspire, como as primeiras: Combien je suis chang�e! Mas com certeza atribuir� ao doutor a promessa de a curar, e dir� como a irm� do teatro e a da pra�a: J'aurai patience.

15 de dezembro

Temo errar, mas creio que Lopes Neto foi o primeiro brasileiro que se deixou queimar, por testamento, com todas as formalidades do estilo. As suas cinzas, no discurso dos oradores, foram verdadeiramente cinzas. Agora repousam no lugar indicado pelo testador, e � mais um exemplo que d� a sociedade italiana da incinera��o aos homens que v�o morrer. Estou certo, por�m, que o sentimento produzido nos patr�cios de Lopes Neto foi menos de admira��o que de horror. Toda gente que conhe�o repele a id�ia de ser queimada. Ningu�m abre m�o de ir para baixo da terra integralmente, deixando aos amigos p�stumos do homem o of�cio de lhe comerem os �ltimos bocados.

S�o gostos, s�o costumes. De mim confesso que tal � o medo que tenho de ser enterrado vivo, e morrer l� embaixo, que n�o recusaria ser queimado c� em cima. Poeticamente, a incinera��o � mais bela. Vede os funerais de Heitor. Os troianos gastam nove dias em carregar e amontoar as achas necess�rias para uma imensa fogueira. Quando a Aurora, sempre com aqueles seus dedos cor-de-rosa, abre as portas ao d�cimo dia, o cad�ver � posto no alto da fogueira, e esta arde um dia todo. Na manh� seguinte, apagadas as brasas, com vinho, os lacrimosos irm�os e amigos do magn�nimo Heitor coligem os ossos do her�i e os encerram na urna, que metem na cova, sobre a qual erigem um t�mulo. Da� v�o para o espl�ndido banquete dos funerais no pal�cio do rei Pr�amo.

Bem sei que nem todas as incinera��es podem ter esta fei��o �pica; raras acabar�o um livro de Homero, e a vulgaridade dar� � crema��o, como se lhe chama, um ar chocho e administrativo. O Sr. Conde de Herzberg h� de morrer um dia (que seja tarde!) e ser� inumado, quando menos para ser coerente. Outros condes vir�o, e se a pr�tica do fogo houver j� vencido, poder�o celebrar contrato com a Santa Casa para queimar os cad�veres nos seus pr�prios estabelecimentos. Ent�o � que havemos de aben�oar a mem�ria do atual conde! Naturalmente haver� duas esp�cies de classes, a presente (coches, cavalos, etc.) e a da pr�pria incinera��o, que se distinguir� pelo esplendor, mediania ou mis�ria dos fornos, vestu�rios dos incineradores, qualidade da madeira. Haver� o forno comum substituindo a vala comum dos cemit�rios.

Se isto que vou dizendo parecer demasiado l�gubre, a culpa n�o � minha, mas daquele distinto brasileiro, que morreu duas vezes, a primeira surdamente, a segunda com o estrondo que acabais de ouvir. Confesso que a morte de Lopes Neto veio lembrar-me que ele n�o havia morrido. Os octogen�rios de c�, ou trabalham como Otoni, no Senado, ou descansam das suas grandes fadigas militares, como Tamandar�, que ainda ontem fez anos. H� dias vi Sinimbu, ereto como nos fortes dias da maturidade. Vi tamb�m o mais estupendo de todos, Barbacena, jovem nonagen�rio, que espera firme o princ�pio do s�culo pr�ximo, a fim de o comparar ao deste, e verificar se traz mais ou menos esperan�as que as que ele viu em menino. Posso adivinhar que h� de trazer as mesmas. Os s�culos s�o como os anos que os comp�em.

Lopes Neto foi meter-se na It�lia, para que esquecessem os seus provados talentos e os servi�os que prestou ao Brasil. N�o faltam ali cidades nem vilas onde um homem possa dormir as �ltimas noites, ou andar os �ltimos dias entre um quadro eterno e uma eterna ru�na. A l�ngua que ali se ouve imagino que repercutir� na alma estrangeira como as estrofes dos poetas da terra. Por mais que o velho Crispi e o seu inimigo Cavalloti estraguem o pr�prio idioma com os barbarismos que o parlamento imp�e, um homem de boa vontade pode ouvi-los, com o pensamento nos tercetos de Dante, e se os repetir consigo, acaba crendo que os ouviu do pr�prio poeta. Tudo � sugestivo neste mundo.

Suponho que o nosso finado patr�cio n�o ouviria exclusivamente os poetas. A pol�tica deixa tal unhada no esp�rito, que � dif�cil esquec�-la de todo, mormente aqueles a quem lhes nasceram os dentes nela. Se tem vivido um pouco, mais leria os telegramas que levaram esta semana a toda a It�lia, como ao resto do mundo, a not�cia do desastre de Eritr�ia. Talvez a idade ainda lhe consentisse irritar-se como os patriotas italianos, e clamar com eles pela necessidade da desforra. Sentiria igualmente a dor das m�es e esposas que correram �s secretarias para saber da sorte dos filhos e maridos. Execraria naturalmente aquele negus e todos os seus rases, que disp�em de tantos e inesperados recursos. Mas, pondo de lado a grandeza da dor e o brio dos vencidos, se Lopes Neto tivesse a fortuna de haver esquecido a pol�tica e as suas duras necessidades, acharia sempre algum ret�bulo velho, algum trecho de m�rmore, alguma cantiga de rua, com que passar as manh�s de azul e sol.

Umas das m�ximas que escaparam a mestre Calino � que nem tudo � guerra, nem tudo � paz, e as coisas valem segundo o estado da alma de cada um. O estilo � que n�o traria esses colarinhos altos e gomados, mas ca�dos � marinheira. Calino tinha a virtude de falar claro, a sua tolice era transparente. O que eu quero dizer pela linguagem deste grande descobridor de mel de pau � que nem toda a It�lia � Cipi�o, alguma parte h� de ser Rafael e outros defuntos.

L� ficou entre esses, incinerado como tantos antigos, o homem que deu princ�pio a esta cr�nica, e j� agora lhe dar� fim. O c�u italiano lhe ter� feito lembrar o brasileiro, e quero crer que a sua �ltima palavra foi proferida na nossa l�ngua; mas, como a confus�o das l�nguas veio do orgulho humano, � certo que � o C�u, que � s� um, entende-as todas, como antes de Babel, e tanto faz uma como outra, para merecer bem. A �ltima ou pen�ltima vez que vi Lopes Neto estava com um jovem de quinze anos, filho de Solano L�pez, que apresentava a algumas pessoas, na Rua do Ouvidor. O mo�o sorria sem convic��o; eu pensava nas vicissitudes humanas. Se o pai n�o tivesse feito a guerra, haveria morrido em Assun��o, e talvez ainda estivesse vivo. O filho seria o seu natural sucessor, e o atual presidente do Paraguai n�o estaria no poder. � fortuna! � loteria! � bichos!

22 de dezembro

Se a semana, que ora acaba, for condenada perante a eternidade, n�o ser� por falta de acontecimentos. Teve-os m�ximos, m�dios e m�nimos. Toda ela foi de or�amentos e impostos novos. Criou-se um segundo partido pol�tico. A mensagem de Cleveland estourou como uma bomba, entre o mundo novo e o velho. Chegou a proposta de arbitramento para o neg�cio da ilha da Trindade. Juntai a isto os discursos, os boatos, as den�ncias de contrabando, as diverg�ncias de opini�es, e confessai que poucas semanas levar�o a alcofa t�o cheia.

A quest�o dos impostos, for�a � diz�-lo, sendo a mais imediata, � a que menos tem agitado os esp�ritos. Em verdade, as outras s�o maiores, e entendem com interesses mais altos. Impostos revogam-se ou cerceiam-se um dia. A Trindade tem de ser resolvida eficaz e perpetuamente. A doutrina de Monroe pode alterar a situa��o pol�tica do mundo, e trazer guerra, a n�o ser que traga paz. O futuro descansa nos joelhos dos deuses. Creio que isto � de Homero.

Dos impostos, o �nico discutido nas folhas p�blicas � o que recai sobre produtos farmac�uticos. As drogas importadas v�o pagar mais do duplo, a ver se as da terra se desenvolvem. Um botic�rio j� me avisou que hei de pagar certo rem�dio por mais do dobro do que ora me custa, e n�o � pouco. Deste cidad�o sei que cerca de dois anos tentou faz�-lo no pr�prio laborat�rio, mas saiu-lhe uma droga muito ordin�ria, como me confessou e eu acreditei. A n�o ser que algu�m falsifique o preparado e o d� por pouco menos, n�o me resta mais que dispens�-lo e beber outra coisa. Eu, quando quero dizer algum disparate que n�o magoe o pr�ximo, costumo anunciar que a farm�cia h� de ser a �ltima religi�o deste mundo. E dou por fundamento que o homem estima mais que nenhuma outra coisa a sa�de e a vida, e n�o presa que a farm�cia lhe d� uma e outra, basta que ele o suponha. N�o nego que o homem tenha necessidades morais; concedo o vig�rio, mas n�o me tirem o botic�rio. E assim vou rindo por a� adiante, sem grande disp�ndio de id�ias. Uma id�ia s�, renovada pela ocasi�o, pela disposi��o, pelos ouvintes, d� muito de si. H� tal, que o pr�prio autor sup�e inteiramente nova.

Pois, senhores, estou com vontade de ire declarar, n�o cism�tico, que � escolher entre a droga importada e cara e a fabricada aqui mesmo e pouco menos cara, mas ateu, totalmente ateu. Se a sa�de vai subir tanto de pre�o, melhor � ficar com a doen�a barata. Padece-se, mas sempre haver� com que matar uma galinha para a dieta. E � quem sabe? pode ser que a sa�de tenha mudado de domic�lio, nos saia de qualquer outro armaz�m ou dos ares da Tijuca. Caso haver� em que ela resida em n�s, salvo a parte enferma, e vai sen�o quando, amanhe�amos curados.

Quando o c�lera-morbo aqui apareceu, n�o sei se da primeira, se da segunda vez, morreu muita gente. Era eu crian�a, e nunca me esqueceu um farmac�utico de grandes barbas, que inventou um rem�dio liquido e escuro contra a epidemia. Se curativo ou preservativo, n�o me lembro. O que me lembra, � que a farm�cia e a rua estavam cheias de pessoas armadas de garrafas vazias, que sa�am cheias e pagas. O pre�o era do tempo em que os medicamentos tamb�m se vendiam por moedas fracion�rias; havia rem�dios de 200 r�is, de 600 r�is, etc. A contabilidade atual exige uma grada��o certa, mil r�is, mil e quinhentos, dois mil r�is, dois mil e quinhentos, Tr�s, quatro, cinco, seis, oito, dez, quinze, vinte, etc. O das grandes barbas ajuntou um bom pec�lio; mas por que levou o segredo para a sepultura? Por que n�o imprimiu e distribuiu a f�rmula? Agora, se tal mol�stia c� voltar, teremos de inventar outra coisa, que ter� a novidade por si, � verdade, mas a velhice tamb�m recomenda.

Vede Ayer. H� quantos anos este homem, com um simples peitoral e umas p�lulas, tem restitu�do a sa�de ao mundo inteiro. Conheci-lhe o retrato mo�o; agora � um velho. Mas os anos n�o t�m feito mais que desenvolver os efeitos da inven��o. Ayer chega a servir naquilo mesmo que o cura: a angina dift�rica. �Quando se descobrem os primeiros sintomas da doen�a (diz o Manual de Sa�de, de 1869), e enquanto o medico n�o chega, a garganta deve ser gargarejada ou pintada com sumo puro de lima ou de lim�o. Produz tamb�m efeito o p� de enxofre assoprado na garganta. Pode tamb�m dar-se com vantagem uma dose alta de peitoral de cereja, do Dr. Ayer. Depois da angina dift�rica, tome-se a salsaparrilha do Dr. Ayer, para remover da circula��o o v�rus da doen�a e reconstruir o sistema�. Um chapeleiro do Texas confirma isto, escrevendo que, depois de curado da angina, ficou com a garganta em mau estado, constipava-se a mi�do, e receava que a doen�a tornasse; experimentou o peitoral de Ayer, ficou bom e perdeu o medo. Whartenberg chama-se este chapeleiro. Quem sabe se o chap�u que trago n�o saiu das m�os dele, aos peda�os, para ser depois composto e vendido aqui?

Suponhamos que o imposto alto recaia no peitoral e nas p�lulas do Dr. Ayer. N�o examinei este ponto; mas a conclus�o � interessante. Whartenberg continuar� a mandar-nos os seus chap�us, aos peda�os, e n�s n�o poderemos ingerir o peitoral que restituiu a sa�de a Whartenberg. Estudem isso os competentes; eu passo � organiza��o do partido democr�tico federal.

Segundo li, contrap�e-se este partido ao republicano federal, para formar os dois partidos necess�rios �ao livre jogo das institui��es�, segundo dizem os publicistas. Eu julgo as coisas pelas palavras que as nomeiam e basta ser partido para n�o ser inteiro. Assim, por mais vasto que seja o programa do partido republicano federal, n�o podia conter todos os princ�pios e aspira��es, alguma coisa ficou de fora, com que organizar outro partido. A regra � que haja dois. O dia faz-se de duas partes, a manh� e a tarde. O homem � um composto de dualidades. A principal delas � a alma e o corpo; e o pr�prio corpo tem um par de bra�os, outro de pernas, os olhos s�o dois, as orelhas duas, as ventas duas. Finalmente, n�o h� casamento sem duas pessoas.

Pode haver casamentos de tr�s pessoas, mas tal casamento � um triangulo. N�o confundam com o nosso triangulo eleitoral. Repito o pr�prio nome que lhe da Ibsen, ou antes um dos seus personagens. Os Estados Unidos da Am�rica, com o seu jovem partido populista, j� est�o de tri�ngulo, e a Inglaterra tamb�m com o partido irland�s; dado que este fique desdobrado em parnelistas e n�o parnelistas, haver� quatro, e ser� o caso de dan�arem uma quadrilha, como dizia outro dramaturgo, Dumas, tamb�m pela boca de um dos seus personagens, falando de mulheres. Os partidos franceses, se levarmos em conta as indica��es dos seus lugares na c�mara, chegam a dan�ar uma quadrilha americana.

Entre n�s a quadrilha, mais que americana, american�ssima, poder� entrar em uso,se convertermos os partidos em simples bancadas, desde a bancada mineira at� a bancada goiana. Seria um desastre. Antes o tri�ngulo se vingar o partido monarquista. Se n�o, fiquemos com a simples valsa, o var�o e a dona enla�ados; ele vestido de autoridade, ela toucada de liberdade, correndo a sala toda, ao som da orquestra dos princ�pios.

29 de dezembro

� beira de um ano novo, e quase � beira de outro s�culo, em que se ocupar� esta triste semana? Pode ser que nem tu, nem eu, leitor amigo, vejamos a aurora do s�culo pr�ximo, nem talvez a do ano que vem. Para acabar o ano faltam trinta e seis horas, e em t�o pouco tempo morre-se com facilidade, ainda sem estar enfermo. Tudo � que os dias estejam contados.

Algum haver� que nem precise t�-los contados; desconta-os a si mesmo, como esse pobre Raul Pomp�ia, que deixou a vida inesperadamente, aos trinta e dois anos de idade. Sobravam-lhe talentos, n�o lhe faltavam aplausos nem justi�a aos seus not�veis m�ritos. Estava na idade em que se pode e se trabalha muito. A pol�tica, � certo, veio ao seu caminho para lhe dar aquele rijo abra�o que faz do descuidado transeunte ou do advent�cio namorado um amante perp�tuo. A figura � manca; n�o diz esta outra parte da verdade, � que Raul Pomp�ia n�o seguiu a pol�tica por sedu��o de um partido, mas por for�a de uma situa��o. Como a situa��o ia com o sentimento e o temperamento do homem, achou-se ele partid�rio exaltado e sincero, com as ilus�es todas, � das quais se deve perder metade para fazer a viagem mais leve, � com as ilus�es e os nervos.

Tal morte fez grande impress�o. Daqueles mesmos que n�o comungavam com as suas id�ias pol�ticas, nenhum deixou de lhe fazer justi�a � sinceridade. Eu conheci-o ainda no tempo das puras letras. N�o o vi nas lutas abolicionistas de S�o Paulo. Do Ateneu, que � o principal dos seus livros, ouvi alguns cap�tulos ent�o in�ditos, por iniciativa de um amigo comum. Raul era todo letras, todo poesia, todo Goncourts. Estes dois irm�os famosos tinham qualidades que se ajustavam aos talentos liter�rios e psicol�gicos do nosso jovem patr�cio, que os adorava. Aquele livro era num eco do col�gio, um feixe de reminisc�ncias, que ele soubera evocar e traduzir na l�ngua que lhe era familiar, t�o vibrante e colorida, l�ngua em que comp�s os numerosos escritos da imprensa di�ria, nos quais o estilo respondia aos pensamentos.

A quest�o do suic�dio n�o vem agora � tela. Este velho tema renasce sempre que um homem d� cabo de si, mas � logo enterrado com ele, para renascer com outro. Velha quest�o, velha d�vida. N�o tornou agora � tela, porque o ato de Raul Pomp�ia incutiu em todos uma extraordin�ria sensa��o de assombro. A piedade veio real�ar o ato, com aquela �nica lembran�a do moribundo de dois minutos, pedindo � m�e que acudisse � irm�, v�tima de uma crise nervosa. Que solu��o se dar� ao velho tema? A melhor � ainda a do jovem Hamlet: The rest is silence.

Mas deixemos a morte. A vida chama-nos. Um amigo meu foi ao cemit�rio, trouxe de l� a sensa��o da tranq�ilidade, quase da atra��o do lugar, mas n�o como lugar de mortos, sen�o de vivos. Naturalmente achou naquele ajuntamento de casas brancas e sossegadas uma imagem de vila interior. A capital � o contr�rio. A vida ruidosa chama-nos, leitor amigo, com os seus mil contos de r�is da loteria que correu ontem na Bahia.

A id�ia da ag�ncia-geral, Casa Cam�es & C., de expor na v�spera o cheque dos mil contos de r�is para ser entregue ao possuidor do bilhete a quem sair aquela soma, foi quase genial. N�o bastava dizer ou escrever que o pr�mio � de mil contos e que havia de sair a algu�m. A maior parte dos incr�dulos que ali passavam � falo dos pobres � n�o acreditavam a possibilidade de que tais mil contos lhes sa�ssem a eles. Eram para eles uma soma vaga, incoerc�vel, abstrata, que lhes fugiria sempre. A ag�ncia Cam�es & C. n�o esqueceu ainda os Lus�adas, decerto; h� de lembrar-se da Ilha dos Amores, quando os fortes navegantes d�o com as ninfas nuas, e deitam a correr atr�s delas. Sabe muito melhor que eu, que os rapazes, � for�a de correr, d�o com elas no ch�o. A vit�ria foi certa e igual e, sem que o poema traga a estat�stica dos mo�os e das mo�as, � sabido que ningu�m perdeu na luta, tal qual sucede �s loterias deste continente. Mas o pobre quando v� muita esmola, desconfia. Os mil contos eram uma s� ninfa, que corria por todas as outras, e que ele n�o ousava crer que alcan�asse, ainda recitando os afamados e doces versos da ag�ncia Cam�es & C.:

Oh! n�o me fujas! Assim nunca o breve

Tempo fuja da tua formosura!

Dizer versos � uma coisa, e receber mil contos de r�is � outra. As vezes excluem-se. Quando, por�m, os mil contos se lhe p�em diante dos olhos, sob a forma de um cheque, uma ordem de pagamento, o mais incr�dulo entra e compra um bilhete; aos mais escrupulosos ficar� at� a sensa��o esquisita de estar cometendo um furto, t�o certo lhes parece que o cheque vai atr�s do bilhete, e que ele est� ali, est� na tesouraria do banco. A venda deve ter sido consider�vel.

De resto, quem � que, de um ou de outro modo, n�o exp�e o seu cheque � porta? O pr�prio espiritismo, que se ocupa de altos problemas, fez do Sr. Abalo um cheque vivo, e ningu�m ali entra sem a certeza de que ver� a eternidade, ou definitivamente pela morte, ou provisoriamente pela loucura. Os que n�o t�m certeza e ficam pasmados do pr�mio que lhes cai nas m�os, imitam nisto os que compram bilhetes de loteria para fugir � persegui��o dos vendedores, que trepam aos bondes, e os metem � cara da gente.

O inqu�rito aberto pela pol�cia, por ocasi�o de alguns pr�mios sa�dos aos fregueses, � duas vezes inconstitucional: 1�, por atentar contra a liberdade religiosa; 2�, por ofender a liberdade profissional. Eu, irm�o novi�o, posso morrer sem crime de ningu�m; � um modo de ir conversar outros esp�ritos e associar-me a algum que traga justamente a felicidade ao nosso pa�s. Quanto a ti, irm�o professo, n�o � claro que tanto podes curar por um sistema como por outro? Quem te impede de comerciar, ensinar piano, legislar, consertar pratos, defender ou acusar em ju�zo? Se a pol�cia examina os casos recentes de loucura mais ou menos varrida, produzidos pelas pr�ticas do Sr. Abalo, n�o ataca s� ao Sr. Abalo, mas ao meu cozinheiro tamb�m. Acaso � este respons�vel pelas indigest�es que saem dos seus jantares? Que � a dem�ncia sen�o uma indigest�o do c�rebro?

E acabo �A Semana� sem dizer nada daquele c�o que salvou o Sr. Estruc, na Praia do Flamengo, �s cinco horas da manh�. A rigor, tudo est� dito, uma vez que se sabe que os c�es amam os donos, e o Sr. Estruc era dono deste. Nadava o dono longe da praia, sentiu perder as for�as e gritou por socorro. O c�o, que estava em terra e n�o tirava os olhos dele, percebeu a voz e o perigo, meteu-se no mar, chegou ao dono, segurou-o com os dentes e restitui-o � terra e � vida. Toda a gente ficou abalada com o ato do c�o, que uma folha disse �ser exemplo de nobreza�, mas que eu atribuo ao puro sentimento de gratid�o e de humanidade. Ao ler a not�cia lembrei-me as muitas vezes que tenho visto donos de c�es, metidos em bondes, serem seguidos por eles na rua, desde o Largo da Carioca at� o fim de Botafogo ou das Laranjeiras, e disse comigo: N�o haver� homem, que, sabendo andar, acuda aos pobres-diabos que v�o botando a alma pela boca fora? Mas ocorreu-me que eles s�o t�o amigos dos senhores, que morderiam a m�o dos que quisessem suspender-lhes a carreira, acrescendo que os donos dos c�es poderiam ver com maus olhos esse ato de generosidade.

1896

5 de janeiro

Quisera dizer alguma coisa a este ano de 1896, mas n�o acho nada t�o novo como ele. Pode responder-nos a todos que n�o faremos mais que repetir os amores contados aos que passaram, iguais esperan�as e as mesmas cortesias. �N�o me iludis, � dir� 1896, � sei que me n�o amais desinteressadamente; ego�stas eternos, quereis que eu vos d� sa�de e dinheiro, festas, amores, votos e o mais que n�o cabe neste pequeno discurso. Direis mal de 1895, v�s que o adulastes do mesmo modo quando ele apareceu; direis o mesmo mal de mim, quando vier o meu sucessor.�

Para n�o ouvir tais inj�rias, limito-me a dizer deste ano que ningu�m sabe como ele acabar�, n�o porque traga em si algum sinal meigo ou terr�vel, mas porque � assim com todos eles. Da� a inveja que tenho �s palavras dos homens p�blicos. Agora mesmo o presidente da Rep�blica Francesa declarou, na recep��o do Ano-Bom, que a pol�tica da Fran�a � pac�fica; declara��o que, segundo a Ag�ncia Havas, causou a mais agrad�vel impress�o e seguran�a a toda a Europa. Oh! por que n�o nasci eu assaz pol�tico para entender que palavras dessas podem suster os acontecimentos, ou que um pa�s, ainda que premedite uma guerra, venha denunci�-la no primeiro dia do ano, avisando os advers�rios e assustando o com�rcio e os neutros! Pela minha falta de entendimento, neste particular, declara��es tais n�o me comovem, menos ainda se saem da boca de um presidente como o da Rep�blica Francesa, que � um simples rei constitucional, sem direito de opini�o.

Napole�o III tinha efetivamente a Europa pendente dos l�bios no dia 1� de janeiro; mas esse, pela Constitui��o imperial, era o �nico respons�vel do governo, e, se prometia paz, todos cantavam a paz, sem deixar de espiar para os lados da Fran�a, creio eu. Um dia, declarou ele que os tratados de 1815 tinham deixado de existir, e tal foi o tumulto por aquele mundo todo, que ainda c� nos chegou o eco. Um socialista, Proudhon, respondeu-lhe perguntando, em folheto, se os tratados de 1815 podiam deixar de existir, sem tirar � Europa o direito p�blico. Nesse dia, tive um vislumbre de pol�tica, porque entendi o rumor e as suas causas, sem negar, entretanto, que os anos trazem, com o seu hor�rio, o seu roteiro.

N�o sabemos dos acontecimentos que este nos trar�, mas j� sabemos que nos trouxe a lembran�a de um, � o centen�rio do sino grande de S�o Francisco de Paula. Na v�spera do dia 1� deste m�s, ao passar pelo largo, dei com algumas pessoas olhando para a torre da igreja. N�o entendendo o que era, fui adiante; no dia seguinte, li que se ia festejar o centen�rio do sino grande. N�o me disseram o sentido da celebra��o, se era arqueol�gico, se metal�rgico, se religioso, se simplesmente atrativo da gente amiga de festejar alguma coisa. Cheguei a supor que era uma loteria nova, tantas s�o as que surgem, todos os dias. Loterias h� imposs�veis de entender pelo t�tulo, e nem por isso s�o menos afreguesadas, pois nunca faltam Champollions aos hier�glifos da velha Fortuna.

Isto ou aquilo, o velho sino merece as simpatias p�blicas. Em primeiro lugar, � sino, � n�o devemos esquecer o delicioso cap�tulo que sobre este instrumento da igreja escreveu Chateaubriand. Em segundo lugar, deu bons espet�culos � gente que ia ver c� de baixo o sineiro agarrado a ele. Um dia, � certo, o sineiro voou da torre e veio morrer em peda�os nas pedras do largo; morreu no seu posto.

Aquela igreja tem uma hist�ria interessante. V�s ali na sacristia, entre os retratos de corretores, um velho Siqueira, cal��o e meia, sapatos de fivela, cabeleira posti�a, e chap�u de tr�s bicos na m�o? Foi um dos maiores servi�ais daquela casa. S�ndico durante trinta e um anos, morreu em 1811, merecendo que v� ao fim do primeiro s�culo e entre pelo segundo. O que mais me interessa nele, � a pia fraude que empregava para recolher dinheiro e continuar as obras da igreja. Aos que desanimavam, respondia que contassem com algum milagre do patriarca. De noite, ia ele pr�prio ao adro da igreja, chegava-se � caixa das esmolas e metia-lhe todo o dinheiro que levava, de maneira que, aos s�bados, aberta a caixa, davam com ela pejada do necess�rio para saldar as d�vidas. As rondas seriam poucas, a ilumina��o escassa, fazia-se o milagre e com ele a igreja. N�o digo que os Siqueiras morressem; mas, tendo crescido a pol�cia e paralelamente a virtude, o dinheiro � dado diretamente �s corpora��es, e dali a not�cia �s folhas p�blicas.

N�o faltar� quem pergunte como � que tal milagre, feito �s escondidas, veio a saber-se t�o miudamente que anda em livros. N�o sei responder; provavelmente houve espi�es, se � que o amor da contabilidade exata n�o levou o velho Siqueira a inscrever em cadernos os donativos que fazia. H� outro costume dele que justifica esta minha suposi��o. Siqueira possu�a navios; simulava (sempre a simula��o!) ter neles um marinheiro chamado Francisco de Paula, e pagava � igreja o ordenado correspondente. O donativo era assim ostensivo por amor da contabilidade.

A contabilidade podia trazer-me a coisas mais modernas, se me sobrasse tempo; mas o tempo � quase nenhum. Resta-me o preciso para dizer que tamb�m fez o seu anivers�rio, esta semana, a inaugura��o do Panorama do Rio de Janeiro, na Pra�a Quinze de novembro. Foi em 1891; h� apenas cinco anos, mas os centen�rios n�o s�o blocos inteiros, fazem-se de peda�os. As pir�mides tiveram o mesmo processo. A arte n�o nasceu toda nem junta. O Panorama resistiu, notai bem, �s balas da revolta. Certa casa pr�xima, onde eu ia por obriga��o, foi mais uma vez marcada por elas; na pr�pria sala em que me achei, ca�ram duas. Conservo ainda, ao p� de algumas rel�quias romanas, uma que l� caiu na segunda-feira 2 de outubro de 1893. O Panorama do Rio de Janeiro n�o recebeu nenhuma, ou resistiu-lhes por um prod�gio s� explic�vel � vista dos fins art�sticos da constru��o. Que as paix�es pol�ticas lutem entre si, mas respeitem as artes, ainda nas suas apar�ncias.

Adeus. O sol arde, as cigarras cantam, um c�o late, passam um bonde. Consolemo-nos com a id�ia de que um dia, de todos estes fen�menos, � nem o sol existir�. � banal, mas o calor n�o d� id�ias novas. Adeus.

12 de janeiro

Quando li o relat�rio da pol�cia acerca do Jardim Zool�gico, tive uma como��o t�o grande, que ainda agora mal posso pegar na pena. Vou dizer por qu�. Sabeis que o jogo dos bichos acabou ali h� muito tempo. Carneiro, macaco, elefante, porco, tudo fugiu do Jardim Zool�gico e espalhou-se pelas ruas. Este fen�meno � igual a atos que se d�o na organiza��o das cidades. A princ�pio, os moradores � que v�o buscar a �gua �s fontes; mais tarde, o encanamento � que a leva aos moradores. D�-se com os bichos a mesma coisa. N�o h� casa, n�o h� cozinha, e raro haver� sala que n�o possua uma pia, onde v� ter a �gua de Vila Isabel. H� tal armarinho, onde entre o aperto de m�o e a compra das agulhas a conversa��o n�o tem outro assunto.

� Eu, Sr. Maciel, diz a mo�a examinando as agulhas, sempre tive confian�a no cavalo.

Ele, debru�ando-se:

� Creia, D. Mariquinhas, que � animal seguro. O burro n�o � menos; mas o cavalo � muito mais. As agulhas servem?

Talvez o leitor n�o entenda bem esse esclarecimento. D. Mariquinhas entende; d� dois dedos de palestra, cinco em despedida, e vai direita mandar comprar no cavalo.

Uma empresa lembrou-se de substituir no Jardim Zool�gico o jogo dos animais pelo dos divertimentos. N�o foi mal imaginado; cada bilhete de entrada leva a indica��o de um jogo l�cito, desde o bilhar, que � o primeiro da lista, at� o... Aqui vem a causa da minha como��o. Que pensais, v�s que n�o lestes o relat�rio da pol�cia, que jogo pensais que � o �ltimo, o 25� da lista? � o xadrez. Que vai fazer nessa galera o grave xadrez? � licito, n�o h� d�vida, nem h� coisa mais l�cita que ele; mas o gam�o tamb�m o �, e n�o vejo l� o gam�o.

Quis enganar-me. Quis supor que era um aviso aquela palavra posta no fim da lista, como se dissesse: apos tantos divertimentos, tudo acaba no xadrez da pol�cia. Mas certamente a empresa n�o levaria a paix�o do trocadilho at� o ponto de espantar os fregueses, conquanto esta paix�o seja das mais violentas que podem afligir um homem. Tamb�m n�o creio que fosse ironia pura, um modo de dizer que n�o h� perigo; seria descrer de uma coisa certa. Podem escapar alguns criminosos, como em toda a parte do mundo, mas alguns n�o s�o todos. A� esta, para n�o ir mais longe, o caso do desfalque municipal; � poss�vel que e n�o ache o dinheiro, por esta velha regra que o desfalque, uma vez descoberto, p�e logo umas barbas, e embarca ou finge que embarca; mas o culpado recebera o castigo, � o principal para a moral publica.

Meu bom xadrez, meu querido xadrez, que �s o jogo dos silenciosos, como podes tu dar naquele tumulto de freq�entadores? Quero crer que ningu�m te joga, nem ser� poss�vel faz�-lo. Basta saber que h� uma hora certa, �s seis da tarde, em que sai de dentro de um tubo de ferro uma bandeira com o nome de um jogo. Como podes tu correr a ver o nome da bandeira, se tens de defender o teu rei, � branco ou preto, � ou atacar o contr�rio, preto ou branco? Outra coisa que deve impedir que te joguem, � a vozeria que, segundo o relat�rio da pol�cia, se levanta logo que a bandeira � hasteada. A autoridade explica a vozeria pelo fato de uns perderem e outros ganharem; mas a explica��o da empresa � mais l�gica. Diz ela que o nome do jogo hasteado n�o quer dizer sen�o que tal jogo ser� gratuito dessa hora em diante para todos os freq�entadores do jardim; para os outros ser� preciso comprar bilhete. Creio; mas o que n�o creio, � que dois verdadeiros jogadores do xadrez, aplicados ao ataque e a defesa, possam consentir em deixar t�o nobre a��o para ir ao pau de sebo ou qualquer outra recrea��o gratuita.

Li tudo, li os autos de perguntas feitas a v�rios cidad�os. Um destes, por nome Maia, carpinteiro de of�cio, declarou que, com os tristes dez tost�es de cada bilhete que paga � porta do Jardim Zool�gico, tem j� ganho um conto e quatrocentos mil r�is. N�o disse em que prazo, mas podendo comprar cinco ou mais bilhetes por dia, e sendo a empresa nova, � prov�vel que tenha ajuntado aquele pec�lio em poucas semanas. Em verdade, se um homem pode ganhar tanto dinheiro passeando �s tardes, entre plantas, � espera que a bandeira seja hasteada, � caso para seduzir outras pessoas que n�o sobem dos quatro ou cinco mil r�is por dia com a simples enx�; e os que n�o t�m enx� nem nada?

Tudo pode ser, contanto que me salvem o xadrez. A pol�cia, � ou para n�o confundir este jogo com o nome vulgar da sua pris�o, ou porque efetivamente queira restituir cada um ao seu of�cio, mandou que os bilhetes n�o tragam nenhum nome de divertimento. A opini�o dos interrogados � que, sem isto, todo o fervor buc�lico se perde. N�o conhecendo a for�a inventiva da empresa, n�o sei o que ela far�. Suponhamos que manda imprimir os bilhetes sem nenhum dizer delituoso, mas os faz de cores diferentes. �s mesmas seis horas da tarde, sobe uma bandeira da cor que deve ganhar; a� est� o mesmo processo sem palavras. � dif�cil impedir que os bilhetes sejam de todas as cores nem que as bandeiras subam ao ar na ponta de um pau. A pol�cia s� tem um recurso, � a publica��o que fa�o aqui, antecipadamente, de maneira que a empresa pode j� empregar este sistema sem se desmascarar.

Nem sempre os jardins escondem jogos il�citos. Vede o Jardim Bot�nico; est� publicada a estat�stica das pessoas que l� foram no ano passado: 45.086, isto �, mais 10.427 que o ano de 1894. Notai que dos estrangeiros em tr�nsito o n�mero, que em 1894 foi de 929, subiu no ano passado a 3.622. No total do mesmo ano est�o inclusas 8.188 crian�as. N�o abuso dos algarismos; eu pr�prio n�o me dou muito com eles, mas os que a� v�o, sempre consolam alguma coisa, no tocante � nossa voca��o buc�lica.

Outro jardim � � o ultimo � abriu domingo passado as portas. Entrava-se com bilhete e havia bandeiras hasteadas. A presen�a do Sr. chefe de pol�cia podia fazer desconfiar; mas a circunst�ncia de serem os bilhetes distribu�dos pelo pr�prio Sr. presidente da Rep�blica tranq�ilizou a todos, e, com pouco, reconhecemos que o Gin�sio Nacional n�o encobre nenhuma loteria. Os premiados houveram-se sem jact�ncia nem acanhamento e os bacharelandos prestaram o compromisso regulamentar, modestos e direitos. Um deles fez o discurso do estilo; o Sr. Dr. Paula Lopes falou gravemente em nome da corpora��o docente, at� que o diretor do externato, o Sr. Dr. Jos� Ver�ssimo, encerrou a cerim�nia com um discurso que acabou convidando os jovens bachar�is a serem homens.

Eu n�o quero acrescentar aqui tudo o que penso do Sr. Dr. Jos� Ver�ssimo. Seria levado naturalmente a elogiar a Revista Brasileira, que ele dirige, e a parecer que fa�o um reclamo, quando n�o fa�o mais que publicar a minha opini�o, a saber, que a revista � �tima.

19 de janeiro

Se n�o fosse o receio de cair no desagrado das senhoras, dava-lhes um conselho. O conselho n�o � casto, n�o � sequer respeitoso, mas � econ�mico, e por estes tempos de mais necessidade que dinheiro, a economia � a primeira das virtudes.

V� l� o conselho. Sempre haver� algumas que me perdoem. A poesia brasileira, que os poetas andaram buscando na vida cabocla, n�o deixando mais que os versos bons e maus, isto nos dai agora, senhoras minhas. Fora com obras de modistas; mandai tecer a simples araz�ia, feita de finas plumas, atai-a � cintura e vinde passear c� fora. Podeis trazer um colar de cocos, um cocar de penas e mais nada. Escusai leques, luvas, rendas, brincos, chap�us, tafularia in�til e custos�ssima. A d�vida �nica � o cal�ado. N�o podeis ferir nem macular os p�s acostumados � meia e � botina, nem n�s podemos cal�ar-vos, como Jo�o de Deus queria fazer � descal�a dos seus versos:

Ah! n�o ser eu o m�rmore em que pisas...
Cal�ava-te de beijos.

N�o seria decente nem �til; para essa dificuldade creio que o rem�dio seria inventar uma alpercata nacional, feita de alguma casca brasileira, flex�vel e s�lida. E est�veis prontas. Nos primeiros dias, o espanto seria grande, a vadia��o maior e a circula��o imposs�vel; mas, a tudo se acostuma o homem. Demais, o pr�prio homem teria de mudar o vestu�rio. Um peda�o de couro de boi, em forma de tanga, sapatos atamancados para durarem muito, um chap�u de pele eterna, sem bengala nem guarda-chuva. O guarda-chuva n�o era s� desnecess�rio, mas at� pernicioso, visto que a �nica medicina e a �nica farm�cia baratas passam a ser (como eu dizia a uma amiga minha) o Padre Kneipp e a �gua pura.

Em verdade, esse padre alem�o, nascido para m�dico, descobriu a melhor das medica��es para um povo duramente tanado na sa�de. Quem mais tomar� as p�lulas de Vichy comprimidas, o vinho de Labarraque ou a simples magn�sia de Murray (estrangeiras ou nacionais, pois que o pre�o � o mesmo), quem mais as tomar�, digo, se basta passear na relva molhada, p�s descal�os, com dois minutos de �gua fria no lombo, para n�o adoecer? Conhe�o alguns que v�o trocar a alopatia pela homeopatia, a ver se acham simultaneamente al�vio � dor e �s algibeiras. A homeopatia � o protestantismo da medicina; o kneippismo � uma nova seita, que ainda n�o tem compara��o na hist�ria das religi�es, mas que pode vir a triunfar pela simplicidade. O homem nasceu simples, diz a Escritura; mas ele mesmo � que se meteu em infinitas quest�es. Para que nos meteremos em infinitas beberagens, patr�cios da minha alma?

Dizem que a vida em S�o Paulo � muito cara. Mas S�o Paulo, se quiser, ter� a sa�de barata; basta meter-se-lhe na cabe�a ir adiante de todos como tem ido. Inventar� novos medicamentos e vend�-los-� por pre�o c�modo. Leste a circular do presidente convidando os demais Estados produtores de caf� para uma confer�ncia e um acordo? � documento de iniciativa, ponderado e grave. Aproximando-se a crise da produ��o excessiva, cuida de aparar-lhe os golpes antecipadamente. Mas nem s� de caf� vive o homem, caso em que se acha tamb�m a mulher. Assim que duas paulistas ilustres tratam de abrir carreira �s mo�as pobres para que disputem aos homens alguns misteres, at� agora exclusivos deles. Eis a� outro cuidado pr�tico. Estou que ver�o a flor e o fruto da arvora que plantarem. Quando � vida espiritual das mulheres, basta citar as duas mo�as poetisas que ultimamente se revelaram, uma das quais, D. Zalina Rolim, acaba de perder o pai. A outra, D. J�lia Francisca da Silva, tem a poesia doce e por vezes triste como a desta rival que c� temos e se chama J�lia Cortines; todas tr�s publicaram h� um ano os seus livros.

Falo em poetisas e em mulheres; � o mesmo que falar em Jo�o de Deus, que deve estar a esta hora depositado no panth�on dos Jer�nimos, segundo nos anunciou o tel�grafo. N�o sei se ele adorou poetisas; mas que adorou mulheres, � verdade, e n�o das que pisavam tapetes, mas pedras, ou faziam meia � porta da casa, como aquela Maria, da Carta, que � a mais deliciosa de suas composi��es. Se essa Maria foi a mais amada de todas, n�o podemos sab�-lo, nem ele pr�prio o saberia talvez. H� uma longa composi��o sem t�tulo, de v�rio metro, em que h� l�grimas de tristeza; mas as tristezas podem ser grandes e as l�grimas passageiras ou n�o, sem que da� se tire conclus�o certa. A verdade � que todo ele e o livro s�o mulheres, e todas as mulheres rosas e flores. A simpleza, a facilidade, a espontaneidade de Jo�o de Deus s�o raras, a emo��o verdadeira, o verso cheio de harmonia quase sem arte, ou de arte natural que n�o d� tempo a recomp�-la.

Um dos que ver�o passar o pr�stito de Jo�o de Deus ser� esse outro esquecido, � como esquecido estava o autor das Flores do Campo, patr�cio nosso e poeta inspirado, Luis Guimar�es. N�o digo esquecido no passado, porque os seus versos n�o esquecem aos companheiros nem aos admiradores, mas no presente. Um de seus dignos rivais, Olavo Bilac, deu-nos h� dias dois lindos sonetos do poeta, que ainda nos promete um livro. A doen�a n�o o matou, a solid�o n�o lhe expeliu a musa, antes a conservou t�o maviosa como antes. O que a outros bastaria para descrer da vida e da arte, a este da for�a para empregar na arte os peda�os de vida que lhe deixaram e que valer�o por toda ela. O poeta ainda canta. Cr� no que sempre creu.

H� fen�menos contr�rios. Vede Zola. A Not�cia de sexta-feira traz um telegrama contando o resumo da entrevista de um rep�rter com o c�lebre romancista, acerca da chantagem que apareceu nos jornais franceses. Zola deu as raz�es do mal e conclui que �h� excesso de liberdade e falta de ideais crist�os�. Deus meu! e por que n�o uma cadeira na Academia francesa?

26 de janeiro

Tr�s vezes escrevi o nome do Dr. Abel Parente, tr�s vezes o risquei, tal � a minha avers�o as quest�es pessoais; mas, refletindo que n�o podia contar a minha grande desilus�o sem nomear o autor dela, acabo escrevendo o nome deste distinto; ginecologista.

Ningu�m esqueceu ainda a famosa discuss�o que aqui h� anos se travou, relativamente � esteriliza��o da mulher pelo sistema do Dr. Abel Parente. Ilustres profissionais atacaram e defenderam o nosso h�spede, com tal brilho, calor e evid�ncia que era dif�cil adotar uma opini�o, se ficar olhando para a outra com saudade, como aquele irresoluto da com�dia, que acaba escolhendo uma das duas mo�as a quem namora, mas suspira consigo: �Creio que teria feito melhor escolhendo a outra�.

N�o se falou mais nisso. Italiano, patr�cio de Dante, � prov�vel que o Dr. Abel Parente haja dividido a cl�nica de parteiro esterilizador entre dois versos do poeta, dizendo a uns embri�es: Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate; � e a outros embri�es: Venite a noi parlar, s'altri nol niega. Assim venceu um princ�pio, e n�s fomos cuidar de quest�es novas, civis ou militares, pol�ticas ou judici�rias.

Ultimamente (quinta-feira) escreveu aquele distinto pr�tico uma carta ao Jornal do Com�rcio, contestando que o eucaliptos pudesse curar a febre amarela. N�o que a febre amarela, � ou, cientificamente falando, o tifo icter�ide, � possa ser combatido com tal rem�dio ou com outro. Cr� na serumpatia, e desde logo responde aos que puderem estranhar que ele, ginecologista, se ocupe de serumpatia, dizendo que �a serumpatia � a preocupa��o dos s�bios de todos os pa�ses, que o futuro da medicina esta em seu der�.

At� aqui nenhuma ilus�o me tirou: mas onde a m�o do rude cl�nico rasgou violentamente o v�u que me cobria os olhos, foi naquele ponto em que escreveu isto: �Desde os tempos de Hip�crates at� os nossos dias, a medicina s� se ufana de tr�s rem�dios verdadeiramente eficazes e espec�ficos: o merc�rio contra a s�filis, o quinino contra a malaria, o salicilato de s�dio contra o reumatismo articular�.

N�o acho, n�o conhe�o, n�o posso inventar palavras que digam a prostra��o da minha alma depois de ler o que acabais de ler. V�s, filhos de um s�culo sem f�, podeis ler isso sem abalo; sois felizes. Ainda assim, como simples efeito intelectual, � imposs�vel que aquele trecho da carta vos n�o haja trazido alguma turva��o �s id�ias. Imaginai que ter� sido com este pobre de mim que, mental e moralmente, vivia do contrario, n�o achava limites aos espec�ficos. Li muito Moli�re, muito Bocage, mas eram pessoas de engenho, sem autoridade cient�fica; queriam rir. A pessoa que nos fala agora, tem um poder incontest�vel, � ungido pela ci�ncia.

Criei-me na venera��o da farm�cia. Entre par�ntese, e para responder a um dos meus leitores de Ouro-Preto, se escrevo botica, �s vezes, � por um costume de inf�ncia; ningu�m falava ent�o de outra maneira; os pr�prios farmac�uticos anunciavam-se assim, e a legisla��o chamava-os botic�rios, se me n�o engano. Botica vinha de longe, e propriamente n�o ofendia a ningu�m. Anos depois, entrou a aparecer farm�cia, e pouco a pouco foi tomando conta do terreno, at� que de todo substituiu o primeiro nome. Eu assisti � queda de um e a ascens�o do outro. Os que nasceram posteriormente, acostumados a ouvir farm�cia, chegam a n�o entender o soneto de Tolentino: Numa escura botica encantoados, etc., mas � assim com o resto; palavras aposentam-se. Algumas ainda t�m o magro ordenado sem gratifica��o, que lhes possam dar eruditos; outras caem na mis�ria e morrem de fome.

Mas, como ia dizendo, criei-me e vivi na venera��o da farm�cia. Perdi muita cren�a, o vento levou-me as ilus�es mais verdes do jardim da minha alma; n�o me levou os espec�ficos. Vem agora, n�o um homem qualquer, mas um competente, um augur, e declara p�blico e raso que, no cap�tulo dos espec�ficos, h� s� tr�s; tudo o mais ilus�o. Criatura perversa, inimiga dos cora��es humanos, que direito tens tu de amargurar os meus �ltimos dias, e os alguns desgra�ados, como eu? Que me d�s em troca deste imenso desastre? A simpatia, dizes tu; ah! mas n�o era  melhor decretar a serumpatia como um novo especifico, um canonizado recente, encomend�-la � venera��o dos leigos, por suas virtudes excelsas e sublimes? A ci�ncia saberia o contrario; mas eu morreria com a boca doce dos meus primeiros anos,

Outros se ocupam tamb�m com a serumpatia, e buscam achar a� a morte da febre amarela; mas nenhum deles veio negar os espec�ficos anteriores, n�o j� daquela, mas de todas as doen�as. Um deles, o Dr. Miguel Couto, h� quatro anos trabalha em descobrir por semelhante via o meio de acabar com o nosso flagelo nacional. N�o o achou, mas outros colegas que ainda agora come�am igual trabalho reconhecem que a prioridade pertence ao Dr. Couto; � o que lhe nega o Dr. Abel Parente, cujo argumento � que ele n�o levou a id�ia a efeito, nem escreveu nada. A diferen�a entre um e outro � que, no entender do primeiro, o serum deve ser mais ativo e eficaz, quanto mais pr�ximo o convalescente estiver da termina��o da mol�stia; no do segundo, � que o serum deve ser extra�do tr�s ou quatro semanas depois de iniciada a convalescen�a.

Sobre a prioridade, direi apenas que n�o h� Colombo sem Am�rico Vesp�cio, e por conseguinte pode muito bem vir a ter raz�o o segundo dos facultativos. Este ainda ontem, respondendo ao primeiro, que parece n�o crer que os convalescentes se submetam � sangria, para salvar outros doentes, responde-lhe: �Creio que, salvo as exce��es, todos oferecer�o generosamente o pr�prio sangue para salvar a vida alheia amea�ada; creio que este ato generoso o homem praticaria tamb�m, se soubesse de antem�o que o seu sangue deve servir para salvar a vida de um figadal inimigo, ainda se depois preciso for cravar-lhe um punhal no cora��o e ter o prazer infernal de beber o pr�prio sangue no sangue do inimigo.�

De pleno acordo. A minha �nica d�vida � se, antes de combinado o prazo, o doente receber� facilmente o sangue de um dia ou de quatro semanas. Eu hesitaria. Em suma, o que � preciso, � que a morte n�o continue a dizer aos enfermos que v�o com ter ela:

� Meus filhos, vireis para c� enquanto por l� n�o acertarem com o espec�fico da febre amarela. Eu s� conhe�o tr�s espec�ficos, desde Hip�crates, o merc�rio contra a s�filis, o quinino contra a mal�ria e o silicato de s�dio contra o reumatismo articular, e ainda assim n�o chegaram as encomendas; da� vem que muitos morrem, apesar de muito bem especificados.

2 de fevereiro

Avocat, oh! passons au d�luge! Antes que me digas isso, come�o por ele. N�o esperes ouvir de mim sen�o que foi e vai querendo ser o maior de todos os dil�vios. Sei que o espet�culo do presente tira a mem�ria do passado, e mais d�i uma alfinetada agora que um calo h� um ano. Mas, em verdade, a �gua, depois de ter sido enorme, tornou-se constante, geral e aborrecida.

Mais depressa que as demandas, a chuva deitou abaixo muitas casas que estavam condenadas a isso pela engenharia; mas as demandas tinham por fim justamente demonstrar que as casas n�o podiam cair sem dil�vio, e a prova � que este as derruiu. Se deixou em p� as que n�o estavam condenadas (nem todas), n�o foi culpa minha nem tua, nem talvez dele, mas da constru��o. Ruas fizeram-se lagoas, como sabes, e o tr�nsito ficou interrompido em muitas delas; mas isto n�o � propriamente notici�rio que haja de dizer e repetir o que leste nas folhas da semana, � n�o somente daqui, mas de outras cidades e vilas interiores. Tratando da nossa boa capital, acho que devemos atribuir o dil�vio, esta vez, antes ao amor que a c�lera do c�u. O c�u tamb�m � sanit�rio. Uma grande lavagem pode mais que muitas discuss�es  terap�uticas. Com a chuva que se seguiu ao dil�vio, vimos diminuir os casos da epidemia, enquanto que os simples debates nos jornais n�o salvaram ningu�m da morte.

Podia citar dil�vios anteriores, � os dois, pelo menos, que tivemos nos �ltimos quinze anos, ambos os quais (se me n�o engano) mataram gente com as suas simples �guas.  �guas passadas. O primeiro desses durou uma noite quase inteira; o segundo come�ou a uma ou duas horas da tarde e acabou �s sete. Era domingo, e creio que de P�scoa. Mas um e outro tiveram um predecessor medonho o de 1864, que antecedeu ou sucedeu, um m�s certo, ao dil�vio da pra�a. O da pra�a arrastou consigo todas as casas banc�rias, ficando s� os pr�dios e os credores. N�o perdi nada com um nem outro. Pude, sim, verificar como os poetas acertam quando comparam a multid�o �s �guas. Vi muitas vezes as ruas perpendiculares ao mar cheias de �gua que desciam correndo. Uma dessas vezes foi justamente a do dil�vio de 1864; a sala da reda��o de um jornal, ora morto, estava alagada; desci pela escada, que era uma cachoeira, cheguei as portas de sa�da, todas fechadas, exceto a metade de uma, onde o guarda-livros, com o olho na rua, espreitava a ocasi�o de sair logo que as paredes da casa arreassem. Pois as �guas que desciam por essas e outras ruas n�o eram mais nem menos que as multid�es de gente que desceram por elas no dia do dil�vio banc�rio.

Pior que tudo, por�m, se a tradi��o n�o mente, foram as �guas do monte, assim chamadas por terem feito desabar parte do morro do Castelo. Sabes que essas �guas ca�ram em 1811 e duraram sete dias deste m�s de fevereiro. Parece que o nosso s�culo, nascido com �gua, n�o quer morrer sem ela. N�o menos parece que o morro do Castelo, cansado de esperar que o arrasem, segundo velhos planos, est� resoluto a prosseguir e acabar a obra de 1811. Naquele ano chegaram a andar canoas pelas ruas; assim se comprou e vendeu, assim se fizeram visitas e salvamentos. Tamb�m � poss�vel, como ainda viviam n�iades, que assim as fossem buscar as fontes. Talvez at� se pescassem amores.

Se remontares ainda uns sessenta anos, ter�s o dil�vio de 1756, que uniu a cidade ao mar e durou tr�s longos dias de vinte e quatro horas. Mais que em 1811, as canoas serviram aos habitantes, e o perigo ensinou a estes a navega��o. Uma das canoas trouxe da rua da Sa�de (antiga Valongo) at� a igreja do Ros�rio n�o menos de sete pessoas. Naturalmente n�o vieram a passeio, mas � reza, como toda a gente, que era ent�o pouca e devota. Ca�ram casas dessa vez; a popula��o refugiou-se ao p� dos altares. Afinal, como a cidade n�o tinha ainda contados os seus dias, fecharam-se as cataratas do c�u; as �guas baixaram e os p�s voltaram a pisar este nosso ch�o amado.

Remontando ainda, poder�amos achar outros dil�vios pela aurora colonial e pela noite dos tamoios; mas, isto de chuva continuada n�o sei se � mais aborrecido v�-la cair que ouvi-la contar. Shakespeare p�e este trocadilho na boca de Laertes, quando sabe que a irm� morreu afogada no rio: �J� tens �gua de mais, pobre Of�lia; saberei reter as minhas l�grimas.� Retenhamos a tinta. A tinta de escrever faz as tristes chuvas do esp�rito, e em tais casos n�o h� canoas que naveguem: � apanhar ou fugir. Por isso n�o falo do dil�vio universal, como era meu prop�sito. Queria lembrar que, por essa ocasi�o, uma fam�lia justa foi achada e poupada ao mal de todos. Verdade � que os seus descendentes sa�ram t�o ruins, em grande parte, como os que morreram, e melhor seria que os pr�prios justos acabassem; mas, enfim, l� vai. Dar-se-�, por�m, se estamos no come�o de outro dil�vio universal, que n�o haja agora exce��o de fam�lia nem se salve a mem�ria dos nossos pecados?

Uma senhora, a quem propus esta quest�o por meias palavras, acudiu que n�o pode ser, que n�o tem medo e citou a folhinha de Ayer. Leu-me que teremos bom tempo e calor grande daqui a dias, e pouco depois novo transbordamento de rios, como agora est� sucedendo, desde o das Caboclas at� o Para�ba do Sul. O primeiro ainda n�o transborda, mas n�o tarda. Confessou-me que n�o cr� nos rem�dios de Ayer, mas nos almanaques. Os almanaques s�o certos. Se eles dessem os n�meros das sortes grandes e os nomes dos bichos vencedores seriam os primeiros almanaques do mundo. Entretanto, n�o duvida que um dia cheguem a tal perfei��o. O mundo caminha para a sa�de e para a riqueza universais, concluiu ela; assim se explicam os debates sobre medicina e economia e a f� crescente nos xaropes e seus derivados.

9 de fevereiro

Pessoa que j� serviu na pol�cia secreta de Londres e de New York tem anunciado nos nossos di�rios que oferece os seus pr�stimos para descobrir coisas furtadas ou perdidas. N�o publica o nome; prova de que � realmente um ex-secreta ingl�s ou americano. A primeira id�ia do ex-secreta local seria imprimir o nome, com indica��o da resid�ncia. N�o h� of�cio que n�o traga louros, e os louros fizeram-se para os olhos dos homens. N�o tenho perdido nada, nem por furto, nem por outra via; deixo de recorrer aos pr�stimos do anunciante, mas aproveito esta coluna para recomend�-los aos meus amigos e leitores.

N�o � oferecer pouco. Toda a gente tem visto a dificuldade em que se anda para descobrir uns autos que desapareceram, n�o se sabe se por a��o de Pedro, se por descuido de Paulo. Para tais casos � que o ex-funcion�rio de New York e de Londres servia perfeitamente. A pr�tica dos homens, o conhecimento direto dos r�us, o estudo detido dos esp�ritos, quando s�o deveras culpados, e torcem-se, e fogem, e mergulham para surdir al�m, supondo que o secreta est� longe, e d�o com ele ao p� de si, s�o elementos seguros e necess�rios para descobrir as coisas furtadas ou perdidas, e, na primeira hip�tese, para fazer o autor da subtra��o � luz p�blica. Os cora��es pios n�o quereriam tanto; amando a coisa furtada, contentar-se-iam em reav�-la, n�o indo ao ponto de exigir que prendessem e castigassem o triste do pecador.

H� tr�s figuras impalp�veis na hist�ria, sem contar o M�scara de Ferro: s�o o homem dos autos, o homem do chap�u de Chile e o homem da capa preta. O do chap�u de Chile, que ainda ningu�m atinou quem fosse, bem podia ser que j� estivesse fotografado e exposto a venda na casa Nat�, se o neg�cio fosse incumbido ao anunciante. N�o juro, mas podia ser. O mesmo digo acerca do homem dos autos, menos o retrato e a Nat�, que s� aceita pessoas pol�ticas. Quanto ao homem da capa preta, perde-se na noite dos tempos, e n�o sei se o ex-secreta chegaria a ponto de descobri-lo. Desde crian�a, ou�o este final de toda narra��o obscura ou desesperada: e v�o agora pegar no homem da capa preta. A princ�pio, ficava com medo. Um dia, pedi a explica��o a algu�m, que acabava justamente de concluir uma hist�ria com tal desfecho. A pessoa interrogada (com verdade ou sem ela) disse-me que era um homem que furtara uma capa escura e andava depressa.

Se assim �, � e supondo que esteja vivo, � � natural que apenas deixe a capa nas m�os do ex-agente de Londres e de New York; o corpo continuar� a fugir, e com ele o problema hist�rico. A pol�cia, se quiser o retrato do homem, ter� de se contentar com a simples reprodu��o astral ou como quer que se chame aquela parte da gente que n�o � corpo nem esp�rito. Um oculista do meu conhecimento disse-me o nome da coisa, que s� pode ser fotografada �s escuras. Eu � que perco os nomes com grande facilidade; mas � astral ou acaba por a�. Ser� o �nico modo de possuir trecho do homem da capa preta; ainda assim, � duvidoso que o alcance, porque ele corre tanto que seguramente corre mais que a ci�ncia.

Pois que a fortuna trouxe �s nossas dagas um perfeito conhecedor do of�cio, erro � n�o aproveit�-lo. N�o se perdem somente objetos; perdem-se tamb�m vidas, nem sempre se sabe quem � que as leva. Ora, conquanto n�o se achem as vidas perdidas, importa conhecer as causas da perda, quando escapam � a��o da lei ou da autoridade. N�o foi assass�nio, mas suic�dio dessa Ambrozina Canan�a, que deixou a vida esta semana. Era uma pobre mulher trabalhadeira, com dois filhos adolescentes e m�e valetudin�ria; morava nos fundos de uma estalagem da rua da Provid�ncia. O filho era empregado, a filha aprendia a fazer flores... N�o sei se te lembras do acontecimento: tais s�o os casos de sangue destes dias que � natural vir o fastio e ir-se a mem�ria. Pois fica lembrado.

A causa do suic�dio n�o foi a pobreza, ainda que a pessoa era pobre. Nem desprezo de homem, nem ci�mes. A carta deixada dizia em come�o: �Vou dar-te a �ltima prova de amizade... � imposs�vel mais tolerar a vida por tua causa; deixando eu de existir, voc� deixa de sofrer.� Voc� � uma mocinha de dezesseis anos, vizinha, dizem que bonita, amiga da morta. Segundo a carta, a mocinha era castigada por motivo daquela afei��o, tudo de mistura com um casamento que lhe queriam impor; mas o casamento n�o vem ao caso, nem quero saber dele. Pode ser at� que nem exista; mas se existe, fique onde est�. N�o faltam casamentos neste mundo, bons nem maus, e at� execr�veis, e at� excelentes.

O que � �nico, � esta amiga que se mata para que a outra n�o pade�a. A outra era diariamente espancada, quase todos o vizinhos o sabiam pelos gritos e pelo pranto da v�tima, � �tudo por causa da nova amizade.� N�o podendo atalhar o mal da amiga, Ambrozina buscou um veneno, meteu no seio as cartas da amiga e acabou com a vida em cinco minutos: �Adeus, Matilde; recebe o meu �ltimo suspiro.�

Os tempos, desde a antiguidade, t�m ouvido suspiros desses, mas n�o s�o �ltimos. Que a morte de uma trouxesse a da outra, volunt�ria e terr�vel, n�o seria comum, mas confirmaria a amizade. As afei��es grandes podem n�o suportar a viuvez. O que � �nico � este caso da rua da Provid�ncia, � com a agravante de que a lembran�a da m�e e dos filhos formam o post-scriptum da carta. Acaso seriam o post-scriptum na vida? Ao m�dico n�o custar� dizer que � um caso patol�gico, ao romancista que � um problema psicol�gico. Quem eu quisera ouvir sobre isto era o ex-secreta de Londres e de New York, onde a pol�cia pode ser que penetre al�m do delito e suas provas, e passeie na alma da gente, como tu por tua casa.

16 de fevereiro

Que excelente dia para deixar aqui na coluna em branco! Ningu�m hoje quer ler cr�nicas. Os antigos pol�ticos esquivam-se; os processos de sensa��o, as facadas, uma ou outra descompostura, n�o conseguem neste domingo gordo entrar pela alma do Rio de Janeiro. S� se ler� o itiner�rio das sociedades carnavalescas, que este ano s�o numeros�ssimas, a julgar pelos t�tulos. O carnaval � o momento hist�rico do ano. Paix�es, interesses, mazelas, tristezas, tudo pega em si e vai viver em outra parte.

A pr�pria morte nestes tr�s dias deve ser jovial e os enterros sem melancolia. A cor do luto podia ser amarela, que de mais a mais � o luto em algumas partes remotas, se bem me lembra. Verdadeiramente n�o me lembra nada ou quase nada. Ou�o j� um ensaio de tambores, que me traz unicamente � mem�ria o carnaval do ano passado.

Uma das sociedades carnavalescas que tinha de sair hoje e n�o sai, � a que se denominou Nossa Senhora da Concei��o. H� de parecer esquisito este t�tulo, mas se a inten��o � que salva, a sociedade vai para o c�u. Os autores da id�ia s�o, com certeza fi�is devotos da Virgem, e n�o t�m o carnaval por obra do diabo. A Virgem � o maior dos nossos oragos; nas casas mais pobres pode n�o haver um Cristo, mas sempre haver� uma imagem de Nossa Senhora. Al�m do lugar excelso que lhe cabe na hagiologia, a Virgem � a natural devo��o dos cora��es maviosos. O chamado marianismo, se existe, � coisa que ignoro, por n�o ser mat�ria de cr�nica, � acharia aqui um asilo forte e grande. Por isso, digo e repito que inten��o foi boa e aceita pelos colaboradores com piedade e entusiasmo.

Entretanto, concordo com a proibi��o e creio que a sociedade ou grupo de que se trata, se tem igual gosto �s id�ias profanas, deve adotar denomina��o adequada. N�o faltam t�tulos, e, pesquisando bem, sempre os h� novos.

Penso haver j� transcrito aqui a m�xima de um senador das Alagoas, no antigo senado imperial. N�o queria ele que as elei��es se fizessem nas igrejas, como era antigamente, por efeito de uma lei destinada a impedir a viol�ncia dos partidos. A lei que, como todas as leis, n�o podia fazer milagres, n�o conseguia livrar uma s� cabe�a ou barriga do cacete ou da navalha, apesar da santidade do lugar. As urnas recebiam c�dulas falsas ou eram quebradas. Ouvia-se o trabuco, o dichote obsceno e o resto. Ora, o senador Dantas (chamava-se Dantas) trabalhava contra a profana��o, e formulou esta m�xima: �As coisas da rua n�o devem ir � igreja, nem da igreja sair � rua.� Referia-se, nesta segunda parte, �s prociss�es. Que diria ele hoje se lesse aquela mistura da Virgem e dos confetti?

Pode ser que, ainda tendo id�ias profanas, falte, ao vedado grupo o tempo de as meter nos carros. Sabe-se que, pelo carnaval, as id�ias andam de carro, e no resto do ano a p�. Talvez por isso � que se cansam mais no resto do ano, e algumas caem e morrem na estrada. De carro, n�o � assim; aos cavalos fica o esfor�o de as conduzir e divulgar. Quando sucede encarnarem-se em damas vestidas com luxo e despidas com arte, nem por isso s�o menos id�ias, particulares ou p�blicas.

Os confetti j� fizeram obra durante a segunda metade da semana. Muita mo�a voltou ontem para casa com a cabe�a coberta deles, e n�o descontente, ao menos que se visse. H� quem creia que o carnaval tende a alargar os seus dias. Realmente, n�o bastam setenta e duas horas para a alegria de uma cidade como esta, ainda mesmo n�o dormindo; tais s�o os sustos as tristezas, as c�leras e afli��es dos outros dias do ano, n�o contando o tumulto dos neg�cios, que uma semana ou duas para rir e saltar n�o seria de mais. O tempo, em geral, � curto, mas o ano � comprido.

N�o temo, como alguns, que a febre amarela saia destes tr�s dias mais vigorosa que at� ontem. A febre amarela, n�o se sabendo que seja, nem com que se cura, tem j� de si a vantagem de n�o precisar de m�scara. Que se divirta se quer, que deixe sossegados e convalescidos os seus enfermos. Concedo que, logo depois das festas, ainda mate a alguns, n�o se podendo impedir que as constipa��es, indigest�es e outros incidentes pr�prios da quadra descambem na epidemia; mas daqui a imaginar que vai recrudescer, acabado o carnaval, � temer�rio.

Parece que se trata de dar municipalmente um pr�mio de cinq�enta contos de r�is a quem descobrir o rem�dio certo para curar os doentes de tal peste. N�o sou intendente, mas tenho amigos na intend�ncia (dois, ao menos) e tomo a liberdade de lhes propor alvitre diverso e mais seguro. Francamente, estou que, oferecido o pr�mio de cinq�enta contos, vai aparecer o espec�fico verdadeiro contra a febre amarela e n�o um, mas ainda tr�s ou quatro. A rigor, n�o se pode dar a um s� o que tamb�m pertence aos outros, e haver-se-� de dividir a verba, o que n�o � leal, ou aument�-la. O aumento, agora que estamos com o empr�stimo fechado deste ontem, � que eu proporia, se adotasse o princ�pio da lei. Poder-se-ia fazer alguma economia, estipulando a cl�usula de n�o ser dado o pr�mio, caso o espec�fico deixasse de curar no segundo ano do emprego. Era sempre um recurso, e n�o dos mais prec�rios. Os rem�dios envelhecem depressa; alguns h� que morrem no ber�o.

Mas, como disse, n�o aceito o princ�pio da lei proposta. Se me quisessem ouvir, eu n�o excitaria a imagina��o farmac�utica, j� de si escaldada; eu ouviria particularmente a engenharia, para que me dissesse se n�o possui artes propriamente suas para deitar fora de uma vez esta nossa h�spede. Cur�-la � bom, mat�-la � melhor. Ouviria tamb�m a medicina. Ouviria a todos, sem excluir as finan�as, pois que tal  obra, se obra houvesse, exigira muito dinheiro; mas antes gastar dinheiro que perder a fama e as vidas. Era caso de outro e maior empr�stimo.

Come�o a falar triste. Fora com despesas, fora com mol�stias, riamos que a hora � de Momo. Evoh�! Bacchus est roi! Sinto n�o lhes poder transcrever aqui a m�sica deste velho estribilho de uma opereta que l� vai. Era um coro cantado e dan�ado no Alcazar L�rico, onde est� hoje se me n�o engano, uma confeitaria. As damas decentemente vestidas de cal�as de seda justinhas que pareciam ser as pr�prias pernas em carne e osso, mandavam o p� aos narizes dos parceiros. Os parceiros, com igual brio e gin�stica, faziam a mesma coisa aos narizes das damas, a orquestra engrossava, o povo aplaudia, a princ�pio louco, depois louco furioso, at� que tudo acabava no del�rio universal dos p�s, das m�os e dos trombones. Leitor amigo, substitu� Baco por Momo, e canta com a m�sica de h� vinte e cinco anos:

Evoh�! Momus est roi!

23 de fevereiro

Posto que eu n�o visse com estes olhos, dizem os jornais e dizem os meus amigos que nunca houve tanta gente na cidade como esta ter�a-feira �ltima. Trezentas mil pessoas? Quatrocentas mil? Divergem os c�lculos, mas todos est�o de acordo que a multid�o foi enorme. Os epis�dios que se contam, os milagres de equil�brio e de paci�ncia que tiveram de operar os concorrentes dos arrabaldes e dos sub�rbios para alcan�ar e conquistar um lugar nos ve�culos s�o realmente dignos de mem�ria. Tudo isso no meio da mais santa paz. Uma pol�cia bem feita e a alegria coroando a festa.

Ora, ainda bem, minha boa e leal cidade, � assim que te quero ver, animada, jovial e ordeira, pronta para rir, quando for necess�rio, e n�o menos para venerar, quando preciso. Al�m do mais, deste prova de que n�o cr�s em boatos. Podes ouvi-los e pass�-los adiante, mas, chegado o momento de crer, n�o cr�s. A verdade � que para tudo correr bem, nem sequer choveu um pingo. Podia ter havido algum apert�o que esmagasse uma pessoa, ao menos; nada, absolutamente nada. O mais que se deu foi a perda de um menino, por nome Zabulon, que � de crer esteja a esta hora restitu�do a seus pais, salvo se o pegou alguma dessas mulheres que se ocupam em apanhar crian�as. H� pouco sucedeu um de tais raptos, n�o conclu�do por ter sido a tempo descoberto.

N�o sei para que tais mulheres querem as crian�as dos outros. Se s�o bruxas n�o s�o da fam�lia da Bruxa do Olavo Bilac e Juli�o Machado; esta rapta, mas t�o somente as nossas melancolias. Querer�o vender as crian�as, faz�-las freiras e frades, ou o contr�rio deles? O costume n�o � novo. H� muitos anos andou aqui em cena um melodrama, a Roubadora de Crian�as, que eu n�o vi representar, mas o assunto era como diz o t�tulo. Dickens, em Oliver Twist, p�e uma escola composta de meninos apanhados aqui e ali, para aprender o of�cio de gatuno. Os diplomados saem depois do almo�o e voltam � tarde, com o produto do of�cio. Os novatos ficam aprendendo com o fundador do estabelecimento. Mas haver� aqui necessidade de escola? As voca��es n�o s�o naturais e vivas e a arte n�o vem com a pr�tica? Quando n�o � a voca��o que traz a profiss�o, e o exemplo, a necessidade ou qualquer causa semelhante.

Isto quanto aos gatunos de len�os e rel�gios. Pelo que respeita aos salteadores em

bando, n�o basta a voca��o: � preciso coragem grande, muita ordem, disciplina e p�lvora. Esta semana foi aqui recebida a not�cia de ter sido morto o chefe dos clavinoteiros da Bahia. L� houve prazer e aqui alguma curiosidade; mas, n�o conhecendo n�s a organiza��o daquele famoso bando, n�o sabemos o modo da substitui��o do chefe. Ser� por simples elei��o ou aclama��o? Neste caso, rei morto, rei posto e eles possuir�o a esta hora um chefe novo. Ao contr�rio da Fran�a, quando Luiz XVIII l� entrou, nada h� mudado na Bahia: h� um clavinoteiro menos.

Enquanto esse bando perdia a cabe�a, outro bando reduzia a povoa��o de Coch� a um mont�o de ru�nas. Eu nunca vi Coch� e, � ao inv�s do poeta, � n�o tenho pena. Deve ter sido uma calamidade, se � certo o que dizem as not�cias; verdade � que estas metem a pol�tica no meio, coisa dif�cil de engolir, salvo se j� todos perderam o ju�zo. Se a pol�tica por esses lugares vai ao roubo, ao estupro e ao inc�ndio, n�o � pol�tica. Bom � desconfiar de paix�es. Seja o que for, dizem que a povoa��o de Queimadinhas est� amea�ada de igual destino.

Comparemos as nossas festas do princ�pio da semana, aqui, em S. Paulo e outras cidades, com as destrui��es do sert�o da Bahia, as cenas de Cuba e de outras partes do mundo. Parece que h� neste fim de s�culo um concerto universal de atrocidades. Cuba h� de verter muito sangue, primeiro que conquiste a independ�ncia ou que espere por outra revolu��o. A ordem de matar agora os revolucion�rios prisioneiros, ato cont�nuo, pode ser que n�o traga a nota da humanidade, mas � precisa para acabar com uma luta que come�a aborrecer, n�o por falta de gra�a mas por muito comprida.

Trata-se n�o menos que de conservar � Espanha algo do que foi. �A Espanha, senhores, (exclamava Castelar um dia no Congresso) a Espanha atou aos p�s o mar como uma esmeralda, e o c�u � fronte como uma safira!� Trata-se de n�o perder o melhor da esmeralda, e tem raz�o a Espanha. Para os cubanos trata-se de ganhar a liberdade, e tem raz�o Cuba. Para dirimir a quest�o � que se inventou a p�lvora, e, antes dela, o ferro e o a�o.

N�o � mister dizer o que est� fazendo a Cor�ia. Agora, h� pouco, matou tanto e de tal maneira, que foi preciso mat�-la tamb�m. Uns pensam que foi o amor da liberdade que estripou tanta gente, outros inculcam que foi o amor da R�ssia; mas, como o sangue derramado e todo vermelho, ponhamos que tem cor mas que lhe falta opini�o. J� n�o falo da Abiss�nia, onde o negus e os seus rases fazem coisas s� pr�prias de gente que da civiliza��o apenas conhece a t�tica e estrat�gia. Tamb�m l� h� sangue, fome e ranger de dentes, mas esperemos que a civiliza��o ven�a algum dia. Sobre os arm�nios n�o h� que dizer sen�o que os turcos os matam e eles aos turcos.

O que importa notar � que todas essas multid�es de mortos, � por uma causa justa ou injusta, � s�o os figurantes an�nimos da trag�dia universal e humana. As primeiras partes sobrevivem, e dessas celebrou-se justamente ontem a melhor e maior de todas, Washington. Singular ra�a esta que produziu os dois var�es mais incompar�veis da hist�ria pol�tica e do engenho humano. O segundo n�o � preciso dizer que � Shakespeare.

1 de mar�o

Lulu Senior disse quinta-feira que Petr�polis est� deitando as manguinhas de fora. N�o serei eu que o negue, mas o fen�meno explica-se facilmente. Eu, h� j� alguns pares de anos, engenhei um pequeno poema, cujo primeiro verso era este:

Baias era a Petr�polis latina.

Entende-se bem que a compara��o vinha da vida elegante e risonha da antiga Baias, t�o buscada daqueles romanos nobres e opulentos, que ali iam descansar de Roma. Vinha tamb�m da situa��o de duas cidades de recreio, conquanto Petr�polis n�o banhe os p�s no mar. Mas a serras aqui valem os golfos do velho mundo; ficam mais perto do sol. No mais os prazeres eram diferentes, como � diferente a vida moderna. Petr�polis, ao domingo, vai � casa de Maria Sant�ssima com o livro de rezas na m�o; Baias, sem dia certo acolhia-se ao tempo de V�nus Genetrix. Sinto deveras haver esquecido os outros versos. A minha mem�ria comp�e-se de muitas alcovas meio-escuras e poucas salas claras; �s vezes, para achar uma coisa, des�o ao por�o com lanterna. Mas, enfim, se esqueci os versos � que n�o mereciam mais.

Antes de 15 de novembro, Petr�polis sofria bem qualquer compara��o daquelas; mas a revolu��o pol�tica deu � nossa cidade internacional de recreio um ar de estupor, que a deixou lesa de ambos os lados. Ao cabo de alguns meses come�ou a sarar. Sobreveio, por�m, a revolta de setembro, agravou-se-lhe a mol�stia, e se n�o levou a breca foi porque as cidades n�o morrem t�o depressa como os homens. A estes basta agora morar em um dos bairros daqui (Laranjeiras, por exemplo) para que a febre amarela os tome e leve em poucas horas, com todas as cerim�nias p�stumas de ambas as autoridades, a eclesi�stica e a m�dica.

Um dia acabou a revolta, � ramal ou prolongamento da revolu��o do Rio Grande do Sul, que tamb�m acabou. Petr�polis, l� de cima, espiou c� para baixo e, vendo tudo em paz segura, sarou de repente. Achou-se, � certo, convertida em capital de um Estado, �nico pr�mio (salvo alguns discursos e artigos) que a triste Praia Grande colheu do combate de 9 de fevereiro. N�o contesto que os Estados devam andar asseados e mudar de capital como n�s de camisa; mas, enfim, a velha Praia Grande pode suspeitar que foi por estar manchada de sangue que a degradaram, quando a verdade � que a troca de capital n�o nasceu sen�o de um sentimento de eleg�ncia muito respeit�vel. O que a pode consolar � que Petr�polis n�o tem voca��o administrativa nem pol�tica. Naturalmente faz que n�o v� o governador do Estado, n�o ouve nem l� os discursos da assembl�ia, e trata de se refazer e continuar o que dantes era.

La R�publique manque de femmes, disse consigo a nova capital, e cuidou de lhe dar esta costela. Talvez o dito do republicano franc�s n�o caiba aqui inteiramente. As institui��es francesas, quaisquer que sejam, precisam de mulheres. A pr�pria revolu��o, salvo a ditadura de Robespierre, n�o as dispensou de todo. A Su��a, Esparta e outros Estados de institui��es mais ou menos parecidas, dispensam mulheres. A raz�o penso ser que a sociedade francesa n�o vai sem conversa��o, e os franceses n�o acreditam que haja conversa��o sem damas.

Ningu�m h� que aprecie mais as mulheres do que n�s; mas aqui e dif�cil v�-las juntas sem faz�-las dan�ar e dan�ar com elas. Uma s� que seja, podemos dizer-lhe coisas bonitas, enquanto n�o ouvimos uma valsa; em ouvindo a valsa, deitamos-lhe o bra�o � roda da cintura e fazemos dois ou tr�s giros. Vou revelar ao p�blico um segredo da imprensa di�ria. Esta frase: �as dan�as prolongaram-se at� a madrugada� est� j� fundida na tipografia, e s� meter o clich� no fim da not�cia. �s vezes, a ocasi�o � l�gubre como um enterro. Um cidad�o recebe o seu retrato, lugubremente pintado por artista que apenas aspirava a gravidade e nobreza do porte. Ao discurso da comiss�o, n�o menos entusiasta que l�gubre, responde o cidad�o com l�grimas na voz. Apertam-se as m�os, admira-se o retrato, serve-se a cl�ssica mesa de doces. S�o nove horas da noite, uma senhora canta uma �ria, palmas, cumprimentos, at� que o compadre da fam�lia (todas as fam�lias t�m este compadre) prop�e que se dance um pouco. � a voz de Israel falando por uma s� boca, e �as dan�as prolongam-se at� � madrugada.�

Portanto, n�o � exatamente de mulheres que a Rep�blica precisa: � de pares para os seus cavalheiros. Nem sempre se dan�ar�, mas brincar, batalhar com flores s�o formas de dan�a, d�o a nota da alegria, que � a flor da sa�de. As institui��es passam, mas a alegria fica. Petr�polis n�o ter� muitas das antigas estrelas, que se foram a outros c�us ou fecharam as suas portas de ouro; mas tem algumas e descobriu novas, com as quais forma o seu firmamento de hoje. A esta renascen�a de Petr�polis � que Lulu Senior chama deitar as manguinhas de fora, como se ele n�o fosse dos que a ajudam nessa opera��o.

Renasce com a vida cara, segundo disse esta semana um dos seus deputados, por esta frase, a um tempo familiar e severa: �Tudo est� pela hora da morte!� Petr�polis podia perguntar ao seu deputado, se o ouvisse ou lesse, onde � que a vida n�o est� pela hora da morte. N�o � na Capital Federal, em que o pr�prio ar que respiramos custa, �s vezes, o pre�o de um enterro. Mas esse mesmo orador dissera antes, no come�o do discurso, que �n�o h� c�u sem nuvens nem mar sem praias�, reconhecendo assim, n�o sem vulgaridade, que o mal n�o � privil�gio de ningu�m, mas que ainda assim tudo tem um limite.

Tanto isto � verdade que, se uma das nossas praias deu o mal da morte ao Dr. Sinfr�nio, outra acaba de recolher o seu cad�ver. Quando come�ou o inqu�rito, o mar ficou mudo como os seus peixes; mas os depoimentos foram t�o obscuros e vagos, que ele, compadecido da fam�lia, p�s termo �s suas esperan�as. N�o farei aqui o paneg�rico daquele bom e distinto cidad�o; n�o � costume desta cr�nica. Uma palavra, dois adjetivos merecidos, e basta. Pobre Sinfr�nio!

N�o quero entrar pela tristeza; por isso n�o direi nada daquele mo�o que tentou matar-se por amar a uma mo�a de Campos que o n�o amava. Tamb�m n�o falo do relat�rio com que fechou o inqu�rito acerca daquela Ambrosina que se matou por causa de outra mo�a, que a amava. Vede como duas causas contr�rias produzem mesmo efeito. A explica��o disto tamb�m n�o � dif�cil, mas j� me falta papel. Em resumo: sou da opini�o de Petr�polis: deitar as manguinhas de fora que chorar. O riso � sa�de.

8 de mar�o

No tempo do Romantismo, quando o nosso �lvares de Azevedo cantava, repleto de Byron e Musset:

A It�lia! sempre a It�lia delirante!

E os ardentes saraus e as noites belas!

a It�lia era um composto de Estados min�sculos, convidando ao amor e � poesia, sem embargo da pris�o em que pudessem cair alguns liberais. H� livros que se n�o escreveriam sem essa divis�o pol�tica, a Chartreuse de Parme, por exemplo; mal se pode conceber aquele Conde Mosca sen�o sendo ministro de Ernesto IV de Parma. O ministro Crispi n�o teria tempo nem gosto de ir namorar no Scala de Mil�o a Duquesa de Sanseverina. Era assim parcelada que n�s, os rapazes anteriores � tr�plice alian�a e apenas contempor�neos de Cavour, imagin�vamos a It�lia e passe�vamos por ela.

Agora a It�lia � um grande reino que j� n�o fala a poetas, apesar do seu Carducci, mas a pol�ticos e economistas, e entra a ferro e fogo pela �frica, como as demais pot�ncias europ�ias. O grande desastre desta semana, se foi sentido por todos os amigos da It�lia, � tamb�m prova certa de que a civiliza��o n�o � um passeio, e para vencer o pr�ximo imperador da Eti�pia � necess�rio haver muita const�ncia e muita for�a. Os italianos mostraram essa mesma opini�o dando com Crispi em terra, � por quantos meses? Eis o que s� nos pode dizer o cabo, em alguma bela manh�, ou bela tarde, se a Not�cia se antecipar �s outras folhas. Quanto � guerra, � certo que continuar� e o mesmo ardor com que o povo derribou Crispi saudar� a vit�ria pr�xima e maiormente a definitiva. Cumpra-se o que dizia o poeta naqueles versos com que Machiavelli fecha o seu livro mais c�lebre:

Che l'antico valore
Nell'italici cuor mon � ancor morto.

N�s c� n�o temos Menelick, mas temos o c�mbio, que, se n�o � abexim como ele, � de ra�a pior. Inimigo sorrateiro e calado, j� est� em oito e tanto e ningu�m sabe onde parar�; � capaz de nem parar em zero e descer abaixo dele uns oito graus ou nove. Nesse dia, em vez de possuirmos trezentos r�is em cada dez tost�es, passaremos a dever os ditos trezentos r�is, desde que a desgra�a nos ponha dez tost�es nas m�os. Donde se conclui que at� a ladroeira acabar�. Roubar para qu�?

O mal do c�mbio parece-se um pouco com o da febre amarela, mas, para a febre amarela, a magn�sia fluida de Murray, que at� agora s� curava dor de cabe�a e indigest�es, � espec�fico provado reste ver�o, segundo leio impresso em grande placa de ferro. Que magn�sia h� contra o cambio? Que Murray j� descobriu o modo certo de acabar com a decad�ncia progressiva do nosso triste dinheiro com as fomes que a� v�m, e os meios luxos, os quartos de luxo, outras conseq��ncias melanc�licas deste mal?

Um economista apareceu esta semana lastimando a sucessiva queda de c�mbio e acusando por ela o Ministro da Fazenda. N�o lhe contesta a intelig�ncia, nem probidade, nem zelo, mas nega-lhe tino e, em prova disto, pergunta-lhe � queima-roupa: Por que n�o vende a estrada Central do Brasil? A pergunta � tal que nem d� tempo ao ministro para responder que tais mat�rias pendem de estudo, em primeiro lugar, e, em segundo lugar, que ao Congresso Nacional cabe resolver por �ltimo.

Felizmente, n�o � esse o �nico rem�dio lembrado pelo dito economista. H� outro, e porventura mais certo: � auxiliar a venda da Leopoldina e suas estradas. Desde que auxilie esta venda, o ministro mostrar� que n�o lhe falta tino administrativo. Infelizmente, por�m, se o segundo rem�dio por consertar as finan�as federais, n�o faz a mesma causa �s do Estado do Rio de Janeiro, tanto que este, em vez de auxiliar a venda das estradas da Leopoldina, trata de as comprar para si. Cumpre advertir que a efic�cia deste outro rem�dio n�o est� na riqueza da Leopoldina, porquanto sobre esse ponto duas opini�es se manifestaram na assembl�ia fluminense. Uns dizem que a companhia deve vinte e dois mil contos ao Banco do Brasil e est� em demanda com o Hipotec�rio, que lhe pede seis mil. Outros n�o dizem nada. Entre essas duas opini�es, a escolha � dif�cil. N�o obstante, vemos estes dois rem�dios contr�rios: no Estado do Rio a compra da Leopoldina � necess�ria para que a administra��o tome conta das estradas, ao passo que a venda da Central � tamb�m necess�ria para que o governo da Uni�o n�o a administre. Verit� au-de��, erreur au-del�.

Neste conflito de rem�dios ao cambio e �s finan�as, invoquei a Deus, pedindo-lhe que, como a Tobias, me abrisse os olhos. Deus ouviu-me, um anjo baixou dos c�us, tocou-me os olhos e vi claro. N�o tinha asas, trazia a forma de outro economista, que publicou anteontem uma exposi��o do neg�cio assaz luminosa. Segundo este outro economista, a compra da Leopoldina deve ser feita pelo Estado do Rio de Janeiro, porque tais t�m sido os seus neg�cios precipitados e ilegais (emprega ainda outros nomes feios, dos quais o menos feio � mix�rdia) que n�o haver� capitalistas que a tomem. N�o havendo capitalistas que comprem a Leopoldina, cabe ao Estado do Rio de Janeiro compr�-la, atender aos credores, e n�o devendo administrar as estradas, �porque o Estado � p�ssimo administrador�, vender� depois a Leopoldina a particulares. Foi ent�o que entendi que a verdade � s� um, au-de�� e au-del�;a diferen�a � transit�ria, � s� o tempo de comprar e vender, ainda com algum sacrif�cio, diz o economista! No intervalo mete-se uma rolha na boca dos credores. Sabe-se onde � que os alfaiates p�em a boca dos credores.

Talvez algum americanista, exaltado ou n�o, ainda se lembre da palavra de Cleveland quando pela segunda vez assumiu o governo dos Estados Unidos. A palavra � paternalismo e foi empregada para definir o sistema dos que querem fazer do governo um pai. Cleveland condena fortemente esse sistema; mas ele nada pode contra a natureza. O Estado n�o � mais que uma grande fam�lia, cujo chefe deve ser pai de todos.

Aliviado como fiquei do conflito, abri novamente o �ltimo livro de Lu�s Murat e pus-me a reler os versos do poeta. Deus meu, aqui n�o h� estradas nem compras, aqui ningu�m deve um real a nenhum banco, a n�o ser o banco de Apolo; mas este banco empresta para receber em rimas, e o poeta pagou-lhe capital e juros. Posto que ainda mo�o, Lu�s Murat tem nome feito, nome e renome merecido. Os versos deste segundo volume das Ondas j� foi notado que desdizem do pref�cio; mas n�o � defeito dos versos, sen�o do pref�cio. Os versos respiram vida �ntima, amor e melancolia; as pr�prias p�ginas da Tristeza do Caos, por mais que queiram, a princ�pio, ficar na nota impessoal, acabam no pessoal puro e na desesperan�a.

O poeta tem largo f�lego. Os versos s�o, �s vezes, menos castigados do que cumpria, mas � essa mesma a �ndole do poeta, que lhe n�o permite sen�o produzir como a natureza; os passantes que colham as belas flores entre as ramagens que n�o t�m a mesma igualdade e corre��o. Lu�s Murat cultiva a ant�tese de Hugo como Guerra Junqueiro; eu pedir-lhe-ia modera��o, posto reconhe�a que a sabe empregar com arte. Por fim, aqui lhe deixo as minhas palavras; � o que pode fazer a cr�nica destes dias.

15 de mar�o

A not�cia, boato ou o que quer que seja de uma comiss�o mista no territ�rio contestado, produziu no Par� e no Amazonas grande como��o. O senado e a c�mara paraenses resolveram unanimemente protestar contra o ato atribu�do ao governo federal e comunicaram isto mesmo por telegrama ao presidente da Rep�blica. O senado deliberou mais suspender as suas sess�es at� que o presidente lhe respondesse. Pela publica��o oficial de anteontem, sexta-feira, j� se sabe quais foram os telegramas trocados, e basta a natureza do fato, que � pol�tico, e at� de pol�tica internacional, para se compreender que n�o entra no c�rculo das minhas cogita��es. Leis internacionais, constitui��es federais ou estaduais n�o s�o comigo. Eu sou, quando muito, homem de regimento interno.

Ora, � o regimento interno do senado paraense que eu quisera ter aqui, n�o para verificar se h� l� a faculdade de suspender as sess�es; ela � de todos os regimentos internos. Mas a hip�tese de telegrafar ao presidente da Rep�blica e suspender as sess�es at� que ele responda � que absolutamente ignoro se est� ou n�o. Pode ser que esteja, e nesse caso cumpriu-se o regimento interno: dura lex, sed lex. N�o examino a quest�o de saber se deve estar, nem se tal a��o pode caber em mat�ria cuja solu��o �ltima a Constitui��o confiou do Congresso Federal. Tamb�m n�o quero indagar se a suspens�o das sess�es do senado, at� que o presidente da Rep�blica responda, constrange o chefe da Uni�o, que n�o querer� com seu sil�ncio interromper a obra legislativa do Estado. � um c�rculo de Popilio, e tais c�rculos andam na hist�ria do mundo. O presidente h� de responder antes de almo�ar, salvo se conspira contra o Estado donde lhe vem a pergunta, pedido ou mo��o; mas, se conspira, melhor � declar�-lo, em vez de refugiar-se num sil�ncio prenhe de tempestades. Quando menos, � de mau gosto. Note-se que aqui nem se trata dos interesses de um Estado, nem de toda a Rep�blica; n�o h� fronteiras amazonenses, mas brasileiras.

Enfim, n�o tenho que ver se esse ato do senado paraense poder� vir a ser imitado, mais tarde ou mais cedo, em qualquer outra regi�o, e a prop�sito de quest�es menos transcendentes, ainda que menos reservadas. A imita��o � humana, � civil e pol�tica. Considerando bem, um ato destes pode at� ser benef�cio; substitui os riscos de uma revolu��o. Por isso, ainda n�o estando no regimento interno, caso haver� em que o melhor recurso seja meter uma pergunta aos peitos da Uni�o e suspender os trabalhos. Donde se conclui que o motivo que me levou a tocar no assunto desaparece; melhor seria n�o ter dito nada.

Assim � o resto das coisas nesta vida de papel impresso. N�o � raro o artigo que conclui pelo contr�rio do que come�ou. Aos in�beis parece que falta ao escritor l�gica ou convic��o, quando o que unicamente n�o h� � tempo de fazer outro artigo. No meio ou no fim, percebe ele que come�ou por um dado errado, mas o tempo exige o trabalho, o editor tamb�m, e n�o h� sen�o concluir que dois e dois s�o cinco. Vou expor melhor a minha id�ia com um recente of�cio da pol�cia das Alagoas.

Quando eu comecei a escrever na imprensa di�ria achei cada id�ia expressa com uma palavra � �s vezes com duas, e o afirmo que n�o chegasse a selo com tr�s. Uma id�ia havia, por�m, que tinha n�o menos de cinco palavras a seu servi�o: era chefia. E digo mal: n�o era propriamente a id�ia no sentido geral que lhe cabe, n�o, a chefia de batalh�o, de partido, de fam�lia, etc. Era unicamente a chefia de pol�cia. Em pol�cia, al�m de chefia, t�nhamos chefado. Onde n�o bastava chefado, havia chefan�a. Se a chefan�a n�o correspondia bem, vinha a chefa��o. Para suprir a chefa��o, acudia a chefatura. Creio que a� est�o todas as desin�ncias poss�veis, salvo chefamento e alguma outra, que n�o eram usadas.

Trabalhei muito por achar a explica��o e tal variedade. N�o eram altera��es populares; nasciam da imprensa culta e pol�tica. N�o eram obra de uma ou outra zona; �s vezes, a mesma cidade, oficial e particularmente, empregava dois e tr�s termos, e n�o todos. Cheguei a imaginar que seria na quest�o de partidos; a falta de id�ias d� elei��o �s palavras. Mas n�o era; todos os partidos usavam das mesmas formas numerosas. Gosto pessoal? Simpatia? Podia ser, mas n�o se usando igual processo em rela��o a outros voc�bulos, n�o chegava a entender por que raz�o a simpatia ficava s� nesta id�ia t�o particular. Cumpre lembrar que chefia era a forma menos empregada. Seria porque a desin�ncia, afinada e doce, diminu�a o valor e a fortaleza da institui��o, mais adaptada a chefado, a chefan�a, a chefa��o, a chefatura? A l�ngua tem segredos inesperados.

Venhamos ao of�cio das Alagoas. � datado da chefatura de pol�cia de Macei�, alude ao atropelo de cidad�os pac�ficos por pra�as policiais, e continua: �e como n�o sejam estas as ordens desta chefia�... A primeira impress�o que tive foi que, na meio de um conflito ling��stico, tivessem sido adotadas por lei as duas formas, e assim usadas no mesmo ato; era um modo de obter a concilia��o que as vontades recusavam. Atentando melhor, pareceu-me que o esp�rito culto do chefe de pol�cia acharam assim uma maneira de conservar a forma correta da l�ngua e a enf�tica da institui��o. Mas tal explica��o n�o me ficou por muito tempo. Em breve, achei que a raz�o do emprego das duas formas est� naturalmente em que chefatura anda impressa no cabe�alho do papel de of�cios, e que a autoridade, mais correta que o fornecedor de objetos de expediente, usa a chefia que aprendeu. Nas Alagoas pode haver, como aqui no Rio de Janeiro, a ortografia da casa. Outra imprensa compor� chefan�a, outra chefa��o, outra chefado. Talvez o melhor seja conservar chefatura, uma vez que custa barato. Nos tempos dif�ceis mais vale a economia que a ortografia.

A conclus�o que a� fica mostra que esse pr�prio caso das Alagoas n�o serve para fundamentar a tese dos artigos que acabam diversamente do que come�am. E agora que me falta n�o � tempo, nem papel, mas espa�o. N�o care�o de �nimo, nem o dia acabou mais cedo; mas v� um homem, naufragado em dois exemplos, catar um terceiro. N�o catemos nada.

22 de mar�o

Se todos quantos empunham uma pena, n�o est�o a esta hora tomando notas e coligindo documentos sobre a hist�ria desta cidade, n�o sabem o que s�o cinq�enta contos de r�is. Uma lei municipal, votada esta semana, destina �ao historiador que escrever a hist�ria completa do Distrito Federal desde os tempos coloniais at� a presente �poca�, aquela valiosa quantia. O prazo para compor a obra � de cinco anos. O julgamento ser� confiado a pessoas competentes, a ju�zo do prefeito.

N�o serei eu que maldiga de um ato que p�e em relevo o amor da cidade e o apre�o das letras. Os historiadores n�o andam t�o fartos, que desdenhem dos proveitos que ora lhes oferecem, nem os legisladores s�o t�o generosos, que lhes d�em todos os dias um pr�mio deste vulto. Se todas as capitais da Rep�blica e algumas cidades ricas concederem igual quantia a quem lhes escrever as mem�rias, e se o Congresso Federal fizer a mesma coisa em rela��o ao Brasil, mas por pre�o naturalmente maior, � digamos quinhentos contos de r�is, � a profiss�o de historiador vai primar sobre muitas outras deste pa�s.

H� s� dois pontos em que a recente lei me parece defeituosa. O primeiro � o prazo de cinco anos, que acho longo, em vista do pre�o. Quando um homem se p�e a escrever uma hist�ria, sem estar com o olho no dinheiro, mas por simples amor da verdade e do estilo, � natural que despenda cinco anos ou mais no trabalho; mas cinq�enta contos de r�is excluem qualquer outro of�cio, mal d�o seis horas de sono por dia, de maneira que, em dois anos, est� a obra, acabada e copiada. Muito antes do fim do s�culo podem ter os cariocas a sua hist�ria pronta, substituindo as mem�rias do Padre Perereca e outras.

O segundo ponto que me parece defeituoso na lei, � que a compet�ncia das pessoas que houverem de julgar a obra, dependa do ju�zo do prefeito. N�s n�o sabemos quem ser� o prefeito daqui a cinco anos; pode ser um droguista, e h� duas esp�cies de droguistas, uns que conhecem da compet�ncia liter�ria dos cr�ticos, outros que n�o. Suponhamos que o eleito � da segunda esp�cie. Que pessoas escolhera ele para dizer dos m�ritos da composi��o? Os seus ajudantes de laborat�rio?

Eu, se fosse intendente, calculando que a hist�ria do Distrito Federal podia esperar ainda dois ou tr�s anos, proporia outro fim a uma parte dos contos de r�is. Tem-se escrito muito ultimamente acerca do Padre Jos� Maur�cio, cujas composi��es, apesar de louvadas desde meio s�culo e mais, est�o sendo devoradas pelas tra�as. Houve id�ia de catalog�-las, repar�-las e restaur�-las, e foi citado o nome do Sr. Alberto Nepomuceno como podendo incumbir-se de tal trabalho. Este maestro, em carta que a Gazeta inseriu quinta-feira, lembrou um alvitre que �torna a propaganda mais pr�tica, sem nada perder da sua sentimentalidade atual, e p�e ao alcance de todos as produ��es do genial compositor�. O Sr. Nepomuceno desengana que haja editor disposto a imprimir tais obras de gra�a, empatando, sem esperan�a de lucro, uma soma n�o inferior a quarenta contos. A concess�o da propriedade � um presente de gregos. O alvitre que prop�e, � reduzir para �rg�o o acompanhamento orquestral das diversas composi��es e public�-las. Custaria isto dez contos de r�is.

Ora, se o Distrito Federal quisesse divulgar as obras de Jos� Maur�cio, empregaria nelas os dez contos do m�todo Nepomuceno, ou os quarenta, se lhes desse na cabe�a imprimir as obras todas, integralmente. Em ambos os casos ficar�amos esperando o historiador do distrito, salvo se houvesse homem capaz de escrever a hist�ria por dez ou ainda por quarenta contos; coisa que me n�o parece imposs�vel.

Um dos que t�m tratado ultimamente das obras e da pessoa do padre, � o Visconde de Taunay. A compet�ncia deste, unida ao seu patriotismo, d� aos escritos que ora publica na Revista Brasileira, muito valor; � uma nova cruzada que se levanta, como a do tempo de Porto Alegre. Se n�o ficar no papel, como a de outrora, dever-se-� a Taunay uma boa parte do resultado.

Outro que tamb�m est� revivendo mat�ria do passado, na Revista Brasileira,� Joaquim Nabuco. Conta a vida de seu ilustre pai, n�o � maneira seca das biografias de almanaque, mas pelo estilo dos ensaios ingleses. Deixe-me dizer-lhe, pois que trato da semana, que o seu ju�zo da Revolu��o Praieira, vindo no �ltimo n�mero, me pareceu excelente. N�o traz aquele cheiro partid�rio, que sufoca os leitores meramente curiosos, como eu. A mais completa prova da isen��o do esp�rito de Nabuco est� na maneira por que funde os dois retratos de Tosta, feitos a pincel partid�rio, um por Urbano, outro por Figueira de Melo. Cheguei a ver Urbano, em 1860; vi Tosta, ainda robusto, ent�o ministro, dizendo em aparte a um senador da oposi��o que lhe anunciava a queda do gabinete: �Havemos de sair, n�o havemos de cair!� Nesta �nica palavra sentia-se o var�o forte de 1848. Quanto a Nunes Machado, trazia-o de cor, desde menino, sem nunca o ter visto: � que o retrato dele andava em toda parte. De Pedro Ivo n�o conhecia as fei��es, mas conhecia os belos versos de �lvares de Azevedo, onde os rapazinhos do meu tempo aprendiam a derrubar (de cabe�a) todas as tiranias.

29 de mar�o

No meio das mo��es, artigos, cartas, telegramas, not�cias de conspira��es e de guerra, atos e palavras, em qualquer sentido, e por mais graves que sejam as situa��es, h� sempre algu�m que pensa na recrea��o dos homens. Vede a Inglaterra. �A Inglaterra � o pa�s do sport por excel�ncia�, disse o Jornal do Com�rcio de ontem, a prop�sito da regata entre os estudantes de Oxford e Cambridge, que ontem mesmo se efetuou. O jornal exp�s uma planta da parte do T�misa onde os universit�rios mediram as for�as e, por meio de um fio telegr�fico, estabelecido no escrit�rio, p�de dar not�cia do progresso da corrida. N�o digo nada a este prop�sito, visto que escrevo antes de come�ar a regata inglesa. Noto s� que nem Dongola, nem Venezuela, nem Transwaal outras partes arrancam os povos de Londres �quela festa de todos os anos.

N�o cubramos a cara. Tamb�m aqui, sem temor dos tempos, dois homens pediram ao Conselho Municipal licen�a, n�o para uma s� esp�cie de sport, mas para uma ressurrei��o de todas as idades. N�o falo dos cavalinhos e divers�es an�logas que s�o a banalidade do g�nero e foram o leite da nossa inf�ncia. Tamb�m n�o falo das touradas, sen�o para dizer que, enquanto a Espanha faz das tripas cora��o para dominar Cuba, e quebra as vidra�as dos consulados norte-americanos com gritos de furor e indigna��o, n�s pegamos dos seus touros e toureiros, e vamos v�-los morrer, saltar e morrer, para alegria nossa. Ponho de lado igualmente as corridas de bicicletas e veloc�pedes, por serem recentes, o que n�o quer dizer que n�o tenham gra�a. Sem circo, dois e mais homens poder�o fazer muito bem essas corridas, em qualquer rua larga, como a do Passeio P�blico, mormente se vier abaixo parte do passeio, como quer um velho projeto. N�o sei se este ainda vive, mas h� projetos que n�o morrem.

Vamos ter... Leitor amigo, prepara-te para lamber os bei�os. Vamos ter jogos ol�mpicos, corridas de bigas e quadrigas, ao modo romano e grego, torneios da idade m�dia, conquista de diademas e cortejo �s damas, corridas atl�ticas, ca�a ao veado. N�o � tudo; vamos ter naumaquias. Encher-se-� de �gua a arena do anfiteatro at� a altura de um metro e vinte cent�metros. A� se far�o desafios de barcos, � maneira antiga, e podemos acrescentar � de Oxford e Cambridge, torneios em g�ndolas de Veneza, e repetir-se-� o cortejo �s damas. Combates navais. Desafio de nadadores. Ca�a aos patos, aos marrecos, etc. Tudo acabar� com um grande fogo de artif�cio sobre �gua. � quase um sonho esta renascen�a dos s�culos, esta mistura de tempos gregos, romanos, medievais e modernos, que formar�o assim uma imagem cabal da civiliza��o sportiva. Se se tratasse de puro e simples divertimento, n�o creio que fosse obra completa: seria, pelo menos, mui pouco interessante.

N�o me pergunteis onde est� o gato; obrigar-me-eis a responder que neste projeto, pendente da vota��o do conselho, n�o h� gato aparente de esp�cie alguma. Ao contr�rio, se gato � o que o vulgo chama poule, h� proibi��o formal de vender esse e outros animais donde possa resultar jogo. Quando muito, estabelece um artigo que �em todos os espet�culos haver� vencedor que receber� da administra��o pr�mio em dinheiro ou objeto de valor. Um vencedor s� para tantas corridas � pouco, mas � econ�mico; em todo o caso mostra que n�o se trata de jogo, mas luta entre valentes, �geis e h�beis, e o brio � o �nico chamariz das festas.

Sabei ainda que os empres�rios n�o pedem isen��o de impostos; ao contr�rio, � expresso que os pagar�o todos e mais quinhentos mil r�is por espet�culo para tr�s institui��es que indica. Uma delas � o teatro municipal. Anualmente haver� um espet�culo em favor do monte pio dos funcion�rios do distrito. Pr�mios, impostos, donativos, constru��o do anfiteatro, mob�lia, cavalos, carros, g�ndolas, encanamento de �gua para encher a arena, pessoal... Tudo isso quer dizer que a empresa ou companhia (o pedido prev� a hip�tese de se formar uma sociedade an�nima) conta com grande concorr�ncia p�blica. Se assim n�o fosse, n�o se obrigava tantas despesas nem perdia a ocasi�o de fazer uma bonita loteria.

Entretanto, a popula��o esta desacostumada desse g�nero de sport, em cada um entra com dinheiro e sai sem ele. O uso corrente � trazerem alguns uma parte do que os outros deixam. Atualmente, n�o contando os v�rios dromos e loterias de decreto, temos a Companhia Piscat�ria, Nas Frutas, Brasil, Jardim Lot�rico e outras institui��es, cujos resultados di�rios s�o dados por indica��es secretas, algumas com as tr�s estrelinhas ma��nicas: BRASIL: Veado. � NAS FRUTAS: goiaba, G. 20. � JARDIM LOT�RICO: Ant... Gallo. Mod... Coelho. Rio...  Porco. Reservado... Cobra. S� a Companhia Piscat�ria usa de express�es adequadas ao nome: �O coupon de juros sorteado ontem foi o de n. 7 com 22$ cada coupon.� E como todos os dias h� coupons sorteados, d� vontade de perguntar quando � que a Companhia Piscat�ria pesca os seus peixes. Talvez todos os dias.

Realmente, n�o sei onde � que a empresa de jogos ol�mpicos ir� buscar meios de se manter, prosperar e guardar dinheiro. Os acionistas querem dividendos. � o �nico desejo destes animais. Se os espectadores, por falta de sorteio piscat�rio, n�o forem aos jogos ol�mpicos e combates navais, onde achar� os seus meios de viver? Veja o caso de Cunha Sales.

Cunha Sales, inventor do Pantheon Ceropl�stico, teve certamente a id�ia de s� gastar cera com bons defuntos; mas acaba de aprender que a podia gastar com piores. N�o falo dos propriamente mortos, mas dos vivos, a quem quis ensinar hist�ria por meio de uma vista de pessoas hist�ricas. N�o podendo faz�-lo de gra�a, estabeleceu uma entrada, creio que m�dica: � o que faz qualquer escola de primeiras letras. As mesmas Faculdades lib�rrimas aceitam o custo da matr�cula. A diferen�a � que alguns dos espectadores do Ceropl�stico recebem um pr�mio. Creio que foi esta circunst�ncia que lembrou ao governo mandar anular a patente que deu ao inventor. Mas quem � que perdeu o direito de distribuir uma parte do seu ganho? Por d�-lo todo, est�o alguns no Flos Sanctorum; o nosso inventor, por ficar com uma boa parte, est� no Index.

5 de abril

Quarta-feira de trevas contradisse este nome pela presen�a de um grande sol claro. Comigo deu-se ainda um incidente, que mais agravou a diverg�ncia entre a significa��o do dia e a alegria exterior. Eram onze horas da manh�, mais ou menos, ia atravessando a Rua da Miseric�rdia, quando ouvi tocar uma valsa a dois tempos. Graciosa valsa; o instrumento � que me n�o parecia piano, e desde crian�a ouvi sempre dizer que em tal dia n�o se canta nem toca. Em pouco atinei que eram os sinos da igreja de S�o Jos�. Pois digo-lhes que dificilmente se lhe acharia falha de uma nota, demora ou precipita��o de outra; todas sa�am muito bem. O rei Davi, se ali estivesse, faria como outrora, dan�aria em plena rua. A arca do Senhor seria a pr�pria igreja de S�o Jos�, descendente daquele santo rei, segundo S�o Mateus.

A valsa acabou, mas o sil�ncio durou poucos minutos. Ouvi algumas notas soltas e espa�adas, esperei: era um trecho de Flotow. Conheceis a �pera Marta?Era a �Ultima Rosa de Ver�o�, � a velha cantiga The Last Rose of Summer, � m�sica sem trevas, mas cheia daquela melancolia doce de quem perdeu as flores da vida. N�o faria lembrar Jesus; antes imaginei que, se ele ali viesse, podia compor mais uma par�bola:

O reino dos c�us � semelhante a uma igreja, em cuja torre se tocam as valsas da terra; enquanto a torre chama a dan�ar, a igreja chama a rezar; bem-aventurados aqueles que, pela ora��o, esquecerem a valsa, e deixarem murchar sem pena todas as rosas deste mundo...

Outra disson�ncia da quarta-feira de trevas, � mas desta vez a culpa � do calend�rio, � foi cair no dia primeiro de abril. N�o consta que algu�m fosse emba�ado. A �nica not�cia de que haveria aqui um terremoto, quinze horas depois de 31 de mar�o, n�o tirou o sono a ningu�m, mormente depois que a gente de Valpara�so viveu de terror p�nico os dias 29 e 30 daquele m�s, por causa de igual fen�meno, igualmente anunciado. O pequeno tremor do dia 1, em Santiago, n�o prova nada em favor da profecia ou da ci�ncia.

Todos os peixes apodrecem, leitor; n�o � de admirar que os carapet�es de abril, chamados peixes pelos franceses, venham a ficar mo�dos. Nesta cidade, em que h� contos-do-vig�rio, ningu�m j� cai nos la�os de abril. A princ�pio ca�am muitos. O Correio Mercantil foi o primeiro, creio eu, que se lembrou de inventar prod�gios, exposi��es, embarques, qualquer coisa extraordin�ria, na pr�pria manh� daquele dia. Naquele tempo, se me n�o engano, havia s� a folhinha de Laemmert. Os jornais n�o as davam, menos ainda as lojas de papel. Pouca gente se lembrava da fatal data. Os curiosos corriam ao ponto indicado para ver o caso espantoso. A princ�pio esperavam; anos depois, j� n�o esperavam, mas passavam e tornavam a passar. Afinal era mais f�cil n�o acudir a ver uma coisa real, que a procurar uma inven��o.

Conquanto a credulidade seja eterna, � preciso fazer com ela o que se faz com a moda: variar de feitio. Valentim Magalh�es variou de feitio, limitando-se a dar este t�tulo de �Primeiro de abril� a um dos seus contos do livro agora publicado. � uma simples id�ia engenhosa. Bricabraque � o nome do livro; comp�e-se de fantasias, historietas, cr�nicas, retratos, uma id�ia, um quadro, uma recorda��o, recolhidos daqui e dali, e postos em tal ou qual desordem. A variedade agrada, o tom leve p�e relevo � observa��o graciosa ou c�ustica, e o todo exprime bem o esp�rito agudo e f�rtil deste mo�o. O t�tulo representa a obra, salvo um defeito, que reconheci, quando quis reler alguma das suas p�ginas, �Velhos Sem Dono�, por exemplo; o livro traz �ndice. Um Bricabraque verdadeiro nem devia trazer �ndice. Quem quisesse reler um conto, que se perdesse a ler uma fantasia.

A vida, que � tamb�m um bricabraque, pela defini��o que lhe d� Valentim Magalh�es, (eu acrescentaria que � algumas vezes um simples e �nico neg�cio) a vida tem o seu �ndice no cemit�rio; mas que pre�o que levam os impressores por esta �ltima p�gina! Agora mesmo d�o os jornais not�cia de um carro f�nebre que chegou � casa do defunto duas horas depois da pactuada. Acrescentam que, ao que parece, o coche foi servir primeiro a outro defunto. Enfim, que � um carro velho, estragado e sujo, n�o contando que a cova estava cheia de lodo, e que o custo total do enterro � pesad�ssimo. Tudo isso forma o �ndice da vida; esta pode ser cara, barata, mediana ou at� gratuita, mas a morte � sempre onerosa. Acusa-se disto a Empresa Funer�ria. N�o pode ser; a culpa da impontualidade � antes dos que morrem em despropor��o com o material da empresa. Fala-se do privil�gio. N�o h� privil�gio, h� educa��o da liberdade; assim como foi preciso preparar a liberdade pol�tica, antes de a decretar, assim tamb�m � mister preparar a liberdade funer�ria.

Cumpre notar que tal queixa em tal semana � descabida. Tudo se deve perdoar por estes dias. Cristo, morrendo, perdoou aos pr�prios algozes, �por n�o saberem o que faziam�. N�o se trata aqui de algozes propriamente ditos, e pode ser tamb�m que a empresa n�o saiba o que est� fazendo. Em todo caso, a queixa devia ter sido adiada para amanh� ou depois.

Fa�o igual reflex�o relativamente ao juiz da comarca do Rio Grande, que, segundo telegramas desta semana, vai ser metido em processo. A causa sabe-se qual �. N�o consentiu o juiz em que os jurados votem a descoberto, como disp�e a reforma judici�ria do Estado; afirma ele que a Constitui��o Federal � contr�ria a semelhante cl�usula. N�o sou jurista, n�o posso dizer que sim nem que n�o. O que vagamente me parece, � que se o estatuto pol�tico do Estado difere em alguma parte do da Uni�o, � impertin�ncia n�o cumprir o que os poderes do Estado mandam. Mas, de um ou de outro modo, creio que n�o foi oportuno mandar falar agora sobre processo nem censurar o magistrado antes de amanh�.

Esta quest�o leva-me a pensar que, se n�o puder conciliar o voto secreto com o voto p�blico, ou ainda mesmo que se conciliem, � ocasi�o de modificar a institui��o, a ser verdade o que dizem dela pessoas consp�cuas. Na assembl�ia legislativa do Rio de Janeiro, o Sr. Alfredo Watheley declarou h� dois meses, entre outras coisas, que �em regra o j�ri � um passa-culpas�. Ao que o Sr. Leoni Ramos aduziu: �� muito raro que no j�ri, perguntando o juiz aos jurados se precisam ouvir as testemunhas, eles respondam que sim; dizem sempre que as dispensam.� Tamb�m eu ouvi igual dispensa, mas relativamente ao interrogat�rio do pr�prio r�u. Foi h� muitos anos. Interrogado sobre o delito, pediu ele para n�o falar de assuntos que lhe eram penosos, e os jurados concordaram em n�o ouvi-lo. Realmente, o acusado merecia piedade, era um caso de honra; mas dispensada a audi�ncia do r�u e das testemunhas, n�o tarda que se fa�a o mesmo ao promotor e ao defensor, e finalmente � leitura do processo, ali�s penos�ssima de ouvir, mormente se o escriv�o apenas sabe escrever.

12 de abril

A Companhia Vila Isabel foi condenada a pagar ao dono de um cavalo, morto por um de seus carros, a soma de sessenta contos de r�is. N�o � demais, tratando-se de animal de fina ra�a. Conhe�o pessoas que n�o valem tanto; algumas podem dar-se de gra�a e n�o raras ainda levariam cem ou duzentos mil r�is de quebra. Tamb�m concordo que nem todos os cavalos possam chegar a este pre�o. Mas, pouco ou muito, propriedade � propriedade. As companhias de via��o n�o podem deixar de aceitar com prazer uma decis�o que confirma o princ�pio dos dividendos e dos ordenados.

At� agora estes desastres seguiam invariavelmente os mesmos tr�mites. A v�tima, bicho ou gente, morta ou ferida, ca�a invariavelmente no meio da rua. A multid�o aglomerava-se em redor dela, olhando calada como � seu pac�fico costume. O cocheiro evadia-se.

A pol�cia abria inqu�rito, naturalmente rigoroso. Toda esta trag�dia podia resumir-se em um verso, mais ou menos assim: �Crime nefando! Rigoroso inqu�rito�. As companhias por amor do cl�ssico entendem que tais trag�dias s�o regidas pelos fados.

Eles � que matam, eles � que castigam.

As v�timas devem imitar Hip�lito: Le ciel m�arrache une innocente vie. A escritura��o social fica sendo a mesma, e tudo no fim d� certo.

N�o entendeu assim o tribunal, que condenou a companhia, de que se trata, a pagar a culpa do cocheiro.

A companhia, saltando de Racine a Shakespeare, bradar�: A horse! a horse! Sixty contos de r�is for a horse!

� duro, mas se a vida s� se compusesse de dividendos, mais valia viv�-la, que ir para o c�u. A vida tem indeniza��es. � o algod�o rude e simples, isto �, as indeniza��es sem dividendos.

A coisa mais natural agora � que pessoas que perderam bra�os ou pernas por culpa dos cocheiros dos bondes, pe�am indeniza��o as companhias, e natural�ssimo � que os tribunais lhes d�em raz�o. Vamos ter grande economia de membros. N�o � cr�vel que uma companhia, depois de desembolsar algumas dezenas de contos de r�is, continue com o mesmo pessoal culpado; � antes certo que fa�a escolha de bons cocheiros e, quando possa, excelentes. Nem todos os cocheiros s�o imprest�veis, grosseiros, desobedientes: nem todos atropelam a gente pedestre; nem todos precipitam o carro antes que uma senhora acabe de descer. Dizem at� que h� alguns, poucos, que quando bradam, avisando: � Olha � esquerda! olha � direita! moderam naturalmente o galope dos animais, para que os avisados tenham tempo de escapar as carro�as ou andaimes que est�o no caminho. J� que estou com a m�o no judici�rio, n�o deixarei de dizer que o j�ri andou esta semana abarbado com processos velhos, t�o velhos que n�o teve outro rem�dio sen�o ir absolvendo os acusados.

Um dos casos deu de si grave conseq��ncia. O roubo foi cometido h� um ano, e os dois r�us deram entrada na Deten��o, onde um deles morreu. Tendo o j�ri absolvido o sobrevivente, segue-se que, se houve crime, os criminosos n�o foram aqueles, e para que h� de um inocente morrer no c�rcere, longe da fam�lia e dos amigos, se � mais f�cil fazer andar os processos depressa?

Outro r�u nem chegou a roubar, apenas fez uma tentativa a form�o; mas o delito deu-se em junho do ano passado, e s� agora, em abril, � que o r�u p�de ser julgado e absolvido.

Nem sempre gosto de citar exemplos alheios. Tamb�m l� fora h� defeitos e graves. Mas se os processos fossem r�pidos como em algumas partes, mormente em pequenos crimes, creio que andar�amos muito melhor. Agora mesmo, lendo a audi�ncia inicial do processo Jameson, vi que, enquanto esperava por este invasor do Transwaal, o tribunal de Bow-Street ia julgando uma por��o de processos mi�dos, entre eles o de um cocheiro que, na v�spera, espancara a mulher e a patrulha; foi condenado a um m�s de hard labour. Note-se que o delinq�ente estava �brio no ato mas ao que parece os ju�zes de Londres, que n�o s�o os de Berlim, entenderam n�o haver na embriaguez circunst�ncia atenuante, mas agravante. E da� talvez os de Berlim pensem a mesma coisa.

Em verdade os magistrados de Bow-Street parecem demasiado severos.

Quando menos, o presidente n�o tem papas na l�ngua para dizer um ou dois desaforos. Os espectadores, que eram muitos compunham-se pela maior parte de lords e ladies, a fina flor da aristocracia inglesa que ia vistoriar o doutor Jameson, por ter invadido a rep�blica africana.

O dr. Jameson chegou, foi aclamado pela multid�o da rua, e logo que apareceu na sala do tribunal, estouraram os gritos de entusiasmo e de aplauso; o presidente declarou a princ�pio que faria evacuar a sala se o tumulto continuasse.

Acabada a audi�ncia, e marcado o dia para novo comparecimento do acusado, o entusiasmo chegou ao del�rio. As mais fidalgas bocas proferiram as mais belas palavras. Foi ent�o que o presidente bradou da cadeira estas outras palavras menos belas:

       � V�s expondes a Inglaterra ao desprezo do mundo!

N�o falo do envenenamento da rua do Ipiranga, porque talvez n�o chegue a processo, e, quando chegue, n�o � agora ocasi�o de tratar dele; n�o h� crime, n�o h� acusadores, n�o h� nada.

Como, por�m, a semana � toda judici�ria, aqui est� o processo Damasceno, mais importante que outros, e que interessa deveras aos competentes. Eu n�o sou competente, n�o trato do caso em si; mas estando a ler o discurso de defesa, dei com uma palavra que me parece carecer de retifica��o.

A conclus�o do discurso � a seguinte:

�Refleti; acima da autoridade dos vossos julgados est� aquela que Pascal chamou a rainha do mundo...� Creio que se refere � opini�o. Ora, Pascal disse justamente o contr�rio: C�est la force qui gouverne le monde; et non pas l�opinion. Palavra que pareceria dura ao leitor, se o fil�sofo n�o acrescentasse: mais l�opinion est celle que use la force.

Pois se � a for�a que governa, ela que � a rainha; e se a opini�o gasta a for�a, o mesmo sucede a todas as rainhas que adoecem e morrem por outras causas.

Pascal fala certamente da opini�o como rainha do mundo, mas � quando cita um livro italiano do qual s� conhecia o t�tulo: Della opinione; regina del mondo.

Declara que aceita o que nele estiver escrito, exceto o mal, se contiver algum; mas como isto vem no fim de uma longa p�gina em que come�a por chamar a opini�o ma�tresse d�erreur, segue-se que tudo quanto ali p�s, � a mais fina ironia.

19 de abril

A semana foi de sangue, com uma ponta de loucura e outra de patifaria. Felizes as que se comp�em s� de flores e b�n��os, e mais ainda as que se n�o comp�em de nada! Digo felizes para os que t�m de tratar delas. Neste caso, o cronista senta-se, pega na pena e deixa-a ir papel abaixo, aben�oado e florido, ou sem motivo e � cata de algum, que finalmente chega, como deve suceder ao compositor nas teclas do piano. Quando menos pensa, est�o as laudas prontas, e acaso sofr�veis. Mas v� um homem, sem flores ou sem nada, ocupar-se unicamente de anedotas tristes; e aborrecer os outros e n�o fazer coisa que preste. As alegrias, ainda mal contadas, s�o alegrias.

Tenho id�ia de haver lido em um velho publicista (mas h� muitos anos e n�o posso agora cotejar a mem�ria com o texto), que os jornais, fechadas as c�maras e calada a pol�tica, atiram-se aos grandes crimes e processos extraordin�rios. N�o ter� esta a express�o, mas o pensamento � esse, a menos que n�o seja outro. Mas sim ou n�o, nem para o nosso caso serve, porquanto s� agora � que os crimes not�veis aparecem e podem ser extensamente comentados, quando as c�maras est�o prestes reunir-se. Demais, tivemos algumas conversa��es pol�ticas, no intervalo, por ocasi�o da mo��o do club militar, e agora mesmo discute quem h� de ser o presidente da c�mara, se Pedro ou Paulo, se o ap�stolo da circuncis�o, se o do prep�cio. Uns querem que s� tenham aceita��o os da lei antiga, outros dizem, como S�o Paulo aos g�latas: �Todos os que fostes batizado em Cristo, revestistes-vos de Cristo; n�o h� judeu nem grego...� Talvez seja melhor, para resolver este neg�cio, esperar que se re�na o concilio de Jerusal�m.

Al�m dessas duas quest�es pol�ticas outras de menor tomo, tivemos neg�cios externos, alguns tamb�m de sangue; mas sangue do sangue vivo e pr�ximo. Tivemos com que entreter o esp�rito. Menelik a expedi��o Dongola, os derviches, Cuba, os raios X, Crispi e, agora, o levantamento dos matabeles.

N�o, n�o quero sangue, nem loucuras, nem equ�vocos de botic�rios. A perda da vida ou da raz�o n�o � coisa pr�pria deste lugar. Menos ainda o lenoc�nio, t�o triste como o resto. Se ao menos se pudesse tirar de tais casos alguma conclus�o, observa��o ou express�o digna de nota, v�; mas nem isso encontro. Tudo � �rido, vulgar e melanc�lico.

A quest�o do engano farmac�utico � a �nica em que se poderia tocar sem asco ou t�dio, ainda que com pavor. Em verdade, a dosagem do ars�nico por parte de uma pessoa que estudou farm�cia em Coimbra, faz duvidar de Coimbra ou da pessoa. Considerando, por�m, que o erro dos homens e que s� a inten��o constitui o mal, n�o se duvida nem da pessoa nem de Coimbra. O verdadeiro mal n�o � esse. O mal verdadeiro � que, se os homens podem descrer de tudo, sem grande perda ou com pouca, uma coisa h� em que � necess�rio crer totalmente e sempre, � na farm�cia. Tudo o que vier da farm�cia, deve ser exato e perfeito; a menor troca de subst�ncias ou excesso de dose faz desesperar da sa�de e at� da vida, como sucedeu na rua do Ipiranga. Aquele grito do s�cio do farmac�utico: �Desgra�ado, est�s perdido!� mostra a gravidade do ato, unicamente em rela��o ao autor dele. Se esta fosse a �nica e triste conseq��ncia, pouco estaria perdido. Era um caso particular, como o que sucedeu, dois dias depois, na farm�cia Portela, em bairro oposto; a� se trocou um laxativo por outro rem�dio, e o paciente, que bebeu de uma vez o que devia ser tomado de duas em duas horas, s� n�o morreu porque o rem�dio n�o era de matar. N�o importa; n�o � preciso que algu�m sucumba, basta a possibilidade da confus�o dos frascos.

Tamb�m n�o importa a confian�a manifestada pelo vi�vo da rua do Ipiranga, em rela��o � farm�cia; � natural que a tenha, pois conhece o pessoal e a compet�ncia da casa. Outrossim em rela��o a farm�cia Portela, donde n�o saiu morte certa. Uma pessoa defunta, outra apenas enganada, valem pouco relativamente � popula��o. Mas suponhamos que esta venha a descrer de todas as farm�cias da cidade. Nem todas ser�o servidas por var�es pr�prios. Alguma haver� (n�o afirmo) em que jovens aprendizes, desejosos de praticar a ci�ncia antes que a vadia��o, aviem as receitas dos m�dicos. Sempre � melhor of�cio que matar gente c� fora, mas se da composi��o sair �bito, tanto faz droga como navalha. Se a descren�a pegar, vir�o o terror e a absten��o. Ningu�m mais correr� as boticas, e a farm�cia ter� de ceder ao espiritismo, que n�o mata, mas desencarna.

H� um recurso �ltimo. Atribui-se a um claro esp�rito deste pa�s a seguinte defini��o da farm�cia moderna, � que � antes confeitaria que farm�cia. Esse homem, ex-deputado, ex-ministro, observou que as vidra�as das boticas est�o cheias de frascos com pastilhas e outros confeitos. Ora, at� hoje n�o consta que tais medicamentos matem. O mais que pode suceder, � n�o curarem sempre, ou s� incompletamente, ou s� temporariamente, ou s� aparentemente; mas n�o levam o desespero �s fam�lias. S�o composi��es estrangeiras, est�o sujeitas a grandes taxas, custam naturalmente caro; mas se a pr�pria vida � um imposto pago � morte, n�o � muito que lhe agravemos o pre�o. N�o lhe acusem de estrangeirismo. N�o trato s� dos inventos importados, mas tamb�m dos nacionais, que n�o matam ningu�m, e curam muitas vezes. Pois tal ser� o recurso �ltimo dos farmac�uticos, quando o medo dos aviamentos imediatos afastar os doentes das suas portas; encomendem preparados de fora e de dentro, n�o fa�am mais nada em casa, e esperem.

Qualquer que seja o mal, por�m, antes beber os rem�dios suspeitos, � um pouco mais de ars�nico, ou uma coisa por outra, � que viver em Porto-Calvo (Alagoas) onde as carabinas trabalham, ora em nome do assassinato, ora da simples pol�tica. As a��es e os homens n�o d�o para uma Il�ada, conquanto na hecatombe da Concei��o a palavra hecatombe seja grega. N�o sucede o mesmo com Barro-Vermelho e Manuel Isidoro, nomes que n�o valem os de Aquiles e Heitor. Li artigos, cartas, not�cias dos sucessos, chegados e publicados ontem. Numa das cartas diz o autor que, para prender Manuel Isidoro, tinha recorrido � ast�cia do coronel Ver�ssimo. Faz lembrar Homero quando canta o artificioso Ulisses; mas, com franqueza, prefiro Homero.

26 de abril

�Terminaram as festas de Shakespeare�, diz um telegrama de Londres, 24, publicado anteontem, na Not�cia. Eu, que supunha o mundo perdido no meio de tantas guerras atuais e iminentes, crises formid�veis, pr�ximas anexa��es e desanexa��es, respirei como algu�m que sentisse tirar-lhe um peso de cima do peito. Que me importa j� saber se o pr�ncipe da Bulg�ria comungou ou n�o, esta semana, tendo-lhe o papa negado licen�a? Provavelmente n�o comungar� mais, tudo por haver consentido que o filho fosse batizado na religi�o ortodoxa. Quantos outros pais ter�o deixado batizar os filhos em religi�es alheias, sem perder por isso o direito de comungar; basta-lhes entrar na igreja pr�xima e falar ao vig�rio. N�o s�o pr�ncipes, n�o governam, n�o correm o perigo das alturas.

Cuba, que me importa agora Cuba? A religi�o come gente, sangue e dinheiro; a independ�ncia far-se-� ou n�o. Segundo um homem desconhecido, estava feita desde quarta-feira, e assim enganou a duas ou tr�s folhas desta cidade, a��o de muito mau gosto, n�o s� pela inven��o dos decretos de Madri, como pela da morte de um h�spede do Hotel de Estrangeiros. O dono deste perdeu mais que ningu�m, pois que Cuba, tarde ou cedo, alcan�ar� a independ�ncia, o c�nsul e o ministro de Espanha explicaram-se, mas a morte do h�spede � mais que a de Maceo ou M�ximo G�mez. Lede bem a carta com que o dono do Hotel de Estrangeiros correu � Cidade do Rio para afirmar que o defunto Villagarcia (se algu�m h� desse nome) nunca ali esteve, que ningu�m morreu nem adoeceu naquela casa, apesar da epidemia recente, que os seus esfor�os foram grandes, e a not�cia da morte ofende os seus interesses. � quase um reclamo, ou � como dizem os mal-intencionados, � um precon�cio.

E t�o grave o fato de morrer algu�m nas hospedarias, que o dono de uma delas, nesta cidade, s� por fina inspira��o, pode h� tempos salvar a honra do estabelecimento. N�o disse a ningu�m que lhe morrera um h�spede, mas que adoecera e queria ir-se embora. Mandou vir um carro, fez meter dentro o cad�ver, com as cautelas devidas a um enfermo, e sentou-se ao p� dele. � �Ent�o, que � isso? dizia ele ao cad�ver, enquanto o cocheiro dava volta ao carro. O senhor, saindo daqui, vai piorar e talvez morra; por que n�o fica? Aqui, antes de quinze dias, est� curado e bom. Ande, fique; se quer, mando o carro embora. N�o? Pois faz muito mal...� Os h�spedes, que ouviam esta exorta��o, lastimavam a teimosia do enfermo, e almo�aram com o apetite do costume.

Guerras africanas, rebeli�es asi�ticas, queda do gabinete franc�s, agita��o pol�tica, a proposta da supress�o do Senado, a caixa do Egito, o socialismo, a anarquia, a crise europ�ia, que faz estremecer o solo, e s� n�o explode porque a natureza, minha amiga, aborrece este verbo, mas h� de estourar, com certeza, antes do fim do s�culo, que me importa tudo isso? Que me importa que, na ilha de Creta, crist�os e mu�ulmanos se matem uns aos outros, segundo dizem telegramas de 25? E o acordo, que anteontem estava feito entre chilenos e argentinos, e j� ontem deixou de estar feito, que tenho eu com esse sangue que correu e com o que h� de correr?

Noutra ocasi�o far-me-ia triste a not�cia dos vinte e tantos autos roubados a uma pretoria desta cidade. Vinte e um votaram ao cart�rio, mas um deles n�o trazia peti��o inicial nem senten�a, por modo que ficou o processo in�til. Uma destas manh�s, estando o pretor ocupado, vieram dizer-lhe que acabavam de furtar mais autos, correu ao cart�rio, viu que era exato. O mesmo pretor despediu h� dias um empregado do cart�rio, que estava ao seu servi�o; a raz�o � porque o homem, mediante dinheiro, tomava a si obter despachos favor�veis. Chegou ao ponto, segundo li, de fazer caminhar bem um neg�cio, a troco de certa quantia; recebida esta, fez desandar o neg�cio em favor da outra parte; a troco de igual remunera��o. Reincid�ncia ou arrependimento? Eis a� um mist�rio.

Outro mist�rio � que s� vejo publicadas as a��es, n�o os nomes dos autores. Nem sempre � necess�rio que estes sejam dados ao prelo. Casos h� em que o sil�ncio � conveniente, n�o para impedir que os autores fujam, mas por motivos que me escapam. Seja como for, ainda bem que os autos se descobrem, os intermedi�rios de despachos desaparecem, e o ar puro entra nas pretorias, na terceira, quero dizer, que � onde se deram os fatos aqui narrados. Entretanto, outra seria a minha impress�o disto, como do resto, se n�o fosse o telegrama de Londres, 24.

�Terminaram as festas de Shakespeare...� O telegrama acrescenta que �o delegado norte-americano teve grande manifesta��o de simpatia�. O doutrina de Monroe, que � boa, como lei americana, � coisa nenhuma contra esse abra�o das almas inglesas sobre a mem�ria do seu extraordin�rio e universal representante. Um dia, quando j� n�o houver imp�rio brit�nico nem rep�blica norte-americana, haver� Shakespeare; quando se n�o falar ingl�s, falar-se-� Shakespeare. Que valer�o ent�o todas as atuais disc�rdias? O mesmo que as dos gregos, que deixaram Homero e os tr�gicos.

Dizem comentadores de Shakespeare que uma de suas pe�as, a Tempest, � um s�mbolo da pr�pria vida do poeta e a sua despedida. Querem achar naquelas �ltimas palavras de Pr�spero, quando volta para Mil�o, �onde de cada tr�s pensamentos um ser� para a sua sepultura�, uma alus�o � retirada que ele fez do palco, logo depois. Realmente, morreu da� a pouco, para nunca mais morrer. Que valem todas as expedi��es de Dongola e do Transvaal contra os combates do Ricardo III? Que vale a caixa eg�pcia ao p� dos tr�s mil ducados de Shylock? O pr�prio Egito, ainda que os ingleses cheguem a possu�-lo, que pode valer ao p� do Egito da ador�vel Cle�patra? Terminaram as festas da alma humana.

3 de maio

Os jornais deram ontem not�cia telegr�fica de haver sido assassinado o x� da P�rsia. T�o longe andamos da P�rsia, e t�o pouco fez aquele vivo faltar de si por estes tempos de agita��o universal, que fiquei assombrado. Supunha a P�rsia extinta. N�o me lembrava sequer (a minha mem�ria est� acabando) n�o me lembrava que ainda anteontem li, creio que no Jornal do Com�rcio, a not�cia de que o x� da P�rsia possu�a o maior tesouro de j�ias, um valor de 300.000:000$000 (trezentos mil contos de r�is). Possu�a e possui, porquanto naquelas partes como nas outras, x� morto, x� posto. Caiu Nass-ed-dine; vai subir Monraffer-ed-dine.

Vede o que s�o almas fan�ticas. N�o foram os trezentos mil contos de r�is das j�ias que armaram o bra�o do homicida, mas um motivo religioso. O x� ia justamente entrando no santu�rio para rezar. Se o motivo fosse outro, � prov�vel que o assassino adiasse o assassinato, repetindo com Hamlet: �Agora n�o; seria mand�-lo para o c�u!� Ao contr�rio, desde que o x�ia rezar pela sua seita, n�o iria para o c�u, segundo o assassino; boa ocasi�o de o mandar ao diabo. Vede o que s�o almas fan�ticas.

H� para mim, al�m da cat�strofe, um ponto mui aborrecido: � o tiro. Persas e gentes semelhantes, se me quiserem interessar, como os antigos, n�o h�o de ter p�lvora. O punhal e a espada � que est�o bem. As trag�dias matam a ferro frio. Carnot e Lincoln ca�ram a golpes de arma branca. Como � que, longe de centros crist�os e prosaicos, em plena vida oriental e po�tica, um fan�tico pega de uma espingarda ou trabuco, para vingar um texto ou um s�mbolo? Vai nisso um tanto de precau��o, que se n�o ajusta bem ao fanatismo, n�o contando a falta de est�tica. Seja como for, pobre x�, tiveste de entregar a vida quando ias buscar a fonte da vida, ou o que supunhas tal.

Os persas, segundo leio no padre Manuel Godinho, que por ali andou em 1663, tem uma paix�o t�o grande, t�o forte e t�o absorvente que devia excluir qualquer outra. N�o sei se chegareis a entend�-lo, ainda que vos copie aqui os pr�prios termos do padre: s�o claros os termos, mas por isso mesmo que claros, obscenos. Eis o texto: �S�o t�o sobremaneira luxuriosos (os persas), n�o se contentando nem com muitas mulheres�. Uma paix�o destas t�o extensa parece n�o dar campo ao fanatismo. Nem com muitas mulheres; ent�o com quantas? Das mulheres, escreve o padre que s�o �lascivas� e se acrescenta que de �ruim bofe�, n�o � para se desmentir a si pr�prio; estas qualidades podem viver juntas.

Isto prova que o sangue h� de sempre jorrar em toda a parte, desde os tronos at� �s mais simples esteiras. Aqui mesmo, esta semana, houve dois outros casos de mortes misteriosas e interessantes. Um deles foi o de um velho que sucumbiu a pau ou a faca, n�o me lembra bem qual o instrumento. J� acima disse que a mem�ria me vai morrendo. Depois de morto foi enterrado. Suspeitou-se do crime, e indo come�ar o processo do indigitado autor, acudiu naturalmente a id�ia de autopsiar o cad�ver, que � o primeiro ato dos inqu�ritos criminais. Infelizmente o cad�ver fora enterrado na vala comum. Surdiu o receio de empestear a cidade, abrindo uma vala onde jaziam dezesseis cad�veres em putrefa��o, alguns de febre amarela. Quando n�o fizesse mal � cidade, podia faz�-lo aos exumadores e aos pr�prios m�dicos encarregados da autopsia. Dali algumas consultas, cuja solu��o final foi a �nica poss�vel, � negar a exuma��o. De resto, uma das ordens trocadas observo que, sem embargo da autopsia, as testemunhas do crime bastavam �s necessidades da justi�a.

Em verdade, � poss�vel que a exuma��o matasse alguns dos oficiais, m�dicos ou n�o, desse l�gubre of�cio. Suponhamos que morriam tr�s. A� t�nhamos tr�s inocentes condenados � morte que a marcha do processo podia e pode chegar ao resultado negativo, isto �, que o suposto r�u n�o praticou o crime, ou se cometeu foi impelido por viol�ncia irresist�vel ou amea�a acompanhada de perigo atual, como ainda esta semana decidiu o j�ri, creio que nos termos do c�digo, e certamente nos da verdade. Ora, tendo-se acabado com pena de morte, � justo estender este benef�cio aos m�dicos e seus colaboradores, ficando a pena limitada � v�tima, cujo sil�ncio eterno pede igualmente eterno repouso.

Nem falo disto sen�o para notar que a vala comum foi agora objeto de grandes l�stimas. Muitos confessaram que a supunham acabada. Outros pediram que se acabasse com ela. Sempre ouvi falar com tristeza da vala comum. Este �ltimo leito, em que se perde at� o nome e n�o se tem o favor de apodrecer sozinho, destinava-se antigamente aos pobres e aos escravos. A lei acabou com os escravos, e deixou os pobres consigo mesmos.

Politicamente, � a vala comum o terror dos homens. Ouvi maldizer dela, muitas

vezes, com indigna��o, e anunci�-la com perversidade: � �N�o hei de cair na vala comum!� � �Na vala comum j� h� muito caiu V. Ex!� � �O Sr. presidente: � Aten��o!� E ouvi ainda coisa pior, como prova de que o desprezo e o abandono em pol�tica s�o insuport�veis. Ouvi um dia, h� muitos anos, um discurso na c�mara dos deputados, cujo autor se lastimava de ser c�o sem dono. Era um modo de dizer que o partido o n�o queria. Realmente, era lastim�vel. Um homem parlamentar que n�o tem quem lhe fa�a festas, quem lhe d� ordens ou lhe mande recados, n�o � soldado de partido, n�o � nada, � uma sombra. N�o me lembra o nome nem a figura do representante. � o que vos disse tr�s vezes, acima: vou perdendo a mem�ria. N�o cuideis que s�o achaques da idade. H� de haver a� alguma complica��o psicol�gica.

Vede se n�o. N�o atino com o lugar em que se deu h� dias, � poucos dias, um interrogat�rio feito a pessoa acusada de um crime... Tamb�m n�o menciono o crime; suponhamos que foi um roubo. H� crimes de roubo. O indigitado n�o queria confessar que o praticara; negava a p�s juntos, com tal tranq�ilidade, por mais que o juiz fizesse, que a esta hora estaria na rua se o escriv�o n�o pegasse das r�deas do interrogat�rio. T�o habilmente foi cercando o r�u, que ele acabou confessando tudo. O escriv�o fazia as perguntas, ouvia as respostas, e ditava-as todas a si mesmo. Uma vez que a verdade saiu do po�o tanto melhor. O �nico ponto duvidoso na mat�ria de ritual; mas, ainda assim, n�o conhecendo eu leis nem praxes, n�o sei se os escriv�es podem ir al�m do escrever. Os h�bitos eclesi�sticos s�o diversos. Conhe�o sacrist�es, verdadeiros modelos de piedade e latim, que se limitam a ajudar na missa; n�o aben�oam os fi�is, como o oficiante; respondem a este, levam-lhe as galhetas, pegam-lhe na capa e se tangem na campainha e para p�r as v�rgulas espirituais no sagrado texto.

10 de maio

Como eu andasse a folhear leis, alvar�s, portarias e outros atos menos alegres, dei com um que me fez vir �gua � boca. � de 1825. A primeira assembl�ia geral legislativa devia reunir-se em 3 de maio de 1826. Muitos deputados podiam vir com anteced�ncia e aguardar aqui longo tempo a abertura das c�maras. Ent�o o governo, considerando que eles deviam at� l� subsistir com dec�ncia, mandou abonar a cada um, desde que chegasse, a quantia mensal de cem mil r�is.

� tempora! � mores! Cem mil r�is! Tempos de cem mil r�is mensais! Comeram, vestiram, receberam, possivelmente casaram, tudo com cem mil r�is por m�s! E tal poupado ter� havido, que ainda deixou ao canto da gaveta umas cinco patacas; n�o juro, mas n�o contesto. Bem sei que, remontando � legisla��o, vamos achar senten�as e ordenados de cem mil r�is, n�o por m�s, mas por ano, cinq�enta mil r�is, vinte e cinco, e menos. Mas tais atos n�o s�o hist�ricos. S�o a mitologia da moeda. Valem o que valem os reis de Tito Livio e pe�o perd�o dessa apar�ncia de trocadilho, que � apenas um cotejo de f�bulas.

Com tal dinheiro (cem mil r�is mensais) poderiam acaso os deputados daquele tempo andar nesta Capital em carruagem de quatro bestas? Podiam; eis aqui o decreto de 2 de outubro de 1825: �N�o se verificando nesta corte (diz ele) os motivos que na de Lisboa fizeram necess�rio que nenhuma pessoa, de qualquer condi��o que fosse, pudesse andar naquela cidade, e na dist�ncia de uma l�gua dela em carruagem de mais de duas bestas, hei por bem ordenar que, sem embargo do dito alvar�, ou de qualquer outra ordem em contr�rio, todas as pessoas que gozam de tratamento de Excel�ncia, possam andar em carruagem de quatro bestas.� Ora, os deputados tinham o tratamento de Excel�ncia. Uma vez que fossem poupados, podiam muito bem dar-se ao gosto da carruagem de quatro bestas, sem que a pol�cia (a pol�cia do Arag�o) os recolhesse ao aljube.

N�o esque�amos que a independ�ncia datava de 1822, e a Constitui��o de 1824. No t�tulo VIII desta achavam-se inscritos os direitos civis e pol�ticos dos cidad�os. N�o estava l� o direito �s quatro bestas. Podia entender-se que este direito era contido nos outros? Teoricamente, sim; praticamente n�o. N�o dou em prova disto o ato do ano anterior, 1824, mandando que �s pessoas de primeira considera��o se n�o concedesse mais que tr�s criados de porta acima, e �s de segunda somente um. Este ato, conquanto posterior a independ�ncia, � anterior � Constitui��o, � de 7 de janeiro. Por isso mesmo � um pouco mais restritivo que o decreto de 1825. Abolindo o alvar� das quatro bestas, o decreto de 1825 limitou o gozo delas �s pessoas que tinham o tratamento de Excel�ncia, ao passo que o ato de 1824 nem �s pr�prias pessoas de primeira considera��o consentia mais de tr�s criados de porta acima.

Outra diferen�a entre os dois atos est� na designa��o das pessoas. O tratamento de Excel�ncia era claro; tinha-se pelo cargo ou por decreto. Mas por onde se distinguiam as pessoas de primeira considera��o das de segunda? Eis a� um ponto obscuro. Eram todas de casa de soprado (criados de porta acima), mas n�o h� outra defini��o. Quero supor que, como o ato de 1824 foi expedido ao intendente da pol�cia, deixou a este, que era o tremendo Arag�o, o cuidado de distinguir os seus policiados. Considerando melhor, acho que a distin��o seria f�cil, gra�as � popula��o pequena, � tradi��o e estabilidade das classes. A vontade das pessoas � que n�o podia servir de regra, como se faz com as declara��es de renda; n�o se consultando mais nada, todas seriam de considera��o mais que primeiras.

Aqui vai agora como eu separo as liberdades te�ricas das liberdades pr�ticas. A liberdade pode ser comparada �s cal�as que usamos. Virtualmente existe em cada corte de casimira um par de cal�as; se o compramos, as cal�as s�o nossas. Mas � mister talh�-las, alinhav�-las, prov�-las, cos�-las e pass�-las a ferro, antes de se vestir. Ainda assim h� tais que podem sair mais estreitas do que a moda e a gra�a requerem. Da� esse paralelismo da liberdade do voto e da limita��o dos criados e das bestas. � a liberdade alinhavada. N�o se viola nenhum direito; trabalha-se na oficina. Prontas as cal�as, � s� vesti-las e ir passear.

Um pouco de psicologia dos tempos. Isto que me faz discorrer e examinar para acabar de entender, ningu�m com certeza achou descurial naqueles anos de inf�ncia. Outro pouco de psicologia pol�tica. Governos novos s�o naturalmente ciosos da exist�ncia. Pedro I decretou e mandou jurar a Constitui��o em 25 de mar�o, e logo em 15 de maio ordenava aos presidentes da prov�ncia, aos tribunais e reparti��es da capital, que em todas as informa��es que houvessem de dar, declarassem se as pessoas a quem elas se referissem, tinham jurado a Constitui��o. Talvez est� cl�usula n�o adiantasse nada aos direitos pessoais do requerente, mas era um impulso de nascen�a. A Constitui��o queria viver. Quanto ao esp�rito nativista, eis aqui um ato bem caracterizado. Um dia, em 1825, constou ao imperador que muitos indiv�duos, n�o s�ditos do imp�rio, usavam do la�o nacional e flor verde, e legenda no bra�o esquerdo, para se inculcarem cidad�os brasileiros. Baixou logo um aviso mandando proceder �contra os que assim se disfar�am, com o fim de conseguir por esse doloso procedimento a prote��o das leis, a que s� t�m direito os verdadeiros s�ditos o imp�rio�.

Basta de legisla��o. � de mais para quem apenas quer algumas notas acerca da semana. O que me pode justificar, � o fato de ser a principal nota da semana a chegada de deputados e senadores. N�o se fez a abertura no dia 3 de maio, marcado na Constitui��o de 1891, como na de 1824. Se considerarmos que a primeira assembl�ia geral legislativa tamb�m se n�o abriu no dia 3 de maio, julgaremos com outra modera��o. Algu�m lembrou agora que abertura se fizesse sempre no dia 3 de maio, qualquer que fosse o n�mero dos presentes. Pois a mesma id�ia apareceu em 1826, e foi a pr�pria C�mara dos Deputados, reunida em 30 de abril, que o mandou propor ao governo, dizendo que nada tinha o ato da abertura com os trabalhos das sess�es. Ao que o governo respondeu, por aviso de 1� de maio, que entendia de modo contr�rio e que continuassem as sess�es preparat�rias.

A mat�ria � discut�vel; mas basta de legisla��o! basta de legisla��o!

17 de maio

Era no bairro Carceler, �s sete horas da noite.

A cidade estivera agitada por motivos de ordem t�cnica e polit�cnica. Outrossim, era a v�spera da elei��o de um senador para preencher a vaga do finado Aristides Lobo. Dois candidatos e dois partidos disputavam a palma com alma. V� de rima; sempre � melhor que disput�-la a cacete, cabe�a ou navalha, como se usava antigamente. A garrucha era empregada no interior. Um dia, apareceu a Lei Saraiva, destinada a fazer elei��es sinceras e sossegadas. Estas passaram a ser de um s� grau. Oh! ainda agora me n�o esqueceram os discursos que ouvi, nem os artigos que li por esses tempos atr�s, pedindo a elei��o direta! A elei��o direta era a salva��o p�blica. Muitos explicavam: direta e censit�ria. Eu, pobre rapaz sem experi�ncia, ficava embasbacado quando ouvia dizer que todo o mal das elei��es estava no m�todo; mas, n�o tendo outra escola, acreditava que sim, e esperava a lei.

A lei chegou. Assisti �s suas estr�ias, e ainda me lembro que na minha se��o ouviam-se voar as moscas. Um dos eleitores veio a mim, e por sinais me fez compreender que estava entusiasmado com a diferen�a entre aquele sossego e os tumultos do outro m�todo. Eu, tamb�m por sinais, achei que tinha raz�o, e contei-lhe algumas elei��es antigas. Nisto o secret�rio come�ou a suspirar felizmente os nomes dos eleitores. Presentes, posto que censit�rios, poucos. Os chamados iam na ponta dos p�s at� � urna, onde depositavam uma c�dula, depois de examinada pelo presidente da mesa; em seguida assinavam silenciosamente os nomes na rela��o dos eleitores, sa�am com as cautelas usadas em quarto de moribundo. A convic��o � que se tinha achado a panac�ia universal.

Mas, como ia dizendo, era no Bairro Carceler �s 7 horas da noite.

O Bairro Carceler estava quase solit�rio. Um ou outro homem passava, mulher nenhuma, rara loja aberta, e mal se ouviam os bondes que chegavam e partiam. Eu ia andando � procura do Hotel do Globo. Recordava coisas passadas, um inc�ndio, uma festa, a ponte das barcas um pouco adiante, a Praia Grande do outro lado, e a assembl�ia provincial, vulgarmente chamada salinha. A salinha acabou, e a Praia Grande ficou decapitada, passando a assembl�ia com outra fei��o a legislar em Petr�polis. Nem por isso perdeu as met�foras de outro tempo. Ainda agora, em Petr�polis, um orador devolveu a outro as inj�rias que lhe ouvira; devolveu-as intactas, tal qual se costumava na antiga Praia Grande. As inj�rias devolvidas intactas n�o ferem. Algumas vezes arredam-se com a ponta da bota, ou deixam-se cair no tapete da sala; mas a melhor f�rmula � devolv�-las intactas. A ponta da bota � um gesto, a queda no tapete � desprezo, mas para inj�rias menores. A �ltima f�rmula de desd�m, a mais en�rgica, � devolv�-las intactas. Quem inventou este modo de correspond�ncia, est� no c�u.

Chego ao Hotel do Globo. Subo ao segundo andar, onde acho j� alguns homens. S�o convivas do primeiro jantar mensal da Revista Brasileira. O principal de todos, Jos� Ver�ssimo, chefe da Revista e do Gin�sio Nacional, recebe-me, como a todos, com aquela afabilidade natural que os seus amigos nunca viram desmentida um s� minuto. Os demais convivas chegam, um a um, a literatura, a pol�tica, a medicina, a jurisprud�ncia, a armada, a administra��o... Sabe-se j� que alguns n�o podem vir, mas vir�o depois, nos outros meses.

Ao fim de poucos instantes, sentados � mesa, lembrou-me Plat�o; vi que o nosso chefe tratava n�o menos que de criar tamb�m uma Rep�blica, mas com fundamentos pr�ticos e reais. O Carceler podia ser comparado, por uma hora, ao Pireu. Em vez das exposi��es, defini��es e demonstra��es do fil�sofo, v�amos que os partidos podiam comer juntos, falar, pensar e rir, sem atributos, com iguais sentimentos de justi�a. Homens vindos de todos os lados, � desde o que mant�m nos seus escritos a confiss�o mon�rquica, at� o que apostolou, em pleno imp�rio, o advento republicano � estavam ali pl�cidos e concordes, como se nada os separasse.

Uma surpresa aguardava os convivas, lembran�a do anfitri�o. O card�pio (como se diz em l�ngua b�rbara) vinha encabe�ado por duas ep�grafes, nunca escritas pelos autores, mas t�o ajustadas ao modo de dizer e sentir, que eles as incluiriam nos seus livros. N�o � dizer pouco, em rela��o � primeira, que atribui a Renan esta palavra: �Celebrando a P�scoa, disse o encantador profeta da Galil�ia: tolerai-vos uns aos outros; � o melhor caminho para chegardes a amar-vos...�

E todos se toleravam uns aos outros. N�o se falou de pol�tica, a n�o ser alguma palavra sobre a funda��o dos Estados, mas curta e leve. Tamb�m se n�o falou de mulheres. O mais do tempo foi dado �s letras, �s artes, � poesia, � filosofia. Comeu-se quase sem aten��o. A comida era um pretexto. Assim voaram as horas, duas horas deleitosas e breves. Uma das obriga��es do jantar era n�o haver brindes: n�o os houve. Ao deixar a mesa tornei a lembrar-me de Plat�o, que acaba o livro proclamando a imortalidade da alma; n�s acab�vamos de proclamar a imortalidade da Revista.

C� fora esperava-nos a noite, felizmente tranq�ila, e fomos todos para casa, sem maus encontros, que andam agora freq�entes. H� muito tiro, muita facada, muito roubo, e n�o chegando as m�os para todos os processos, alguns h�o de ficar esperando. Ontem perguntei a um amigo o que havia acerca da morte de uma triste mulher; ouvi que a morte era certa, mas que, tendo o vi�vo desistido da a��o, ficou tudo em nada. Jurei aos meus deuses n�o beber mais rem�dio de botica. A impunidade � o colch�o dos tempos; dormem-se a� sonos deleitosos. Casos h� em que se podem roubar milhares de contos de r�is... e acordar com eles na m�o.

24 de maio

A gente que andou esta semana pela rua do Ouvidor, mal ter� advertido que, enquanto mirava as mo�as, se eram homens, ou as vitrinas, se eram mo�as, matava-se a ferro e fogo em Manhua�u. Eis o telegrama de Juiz de Fora, 18: �Desde o dia 11, �s 10 horas da manh�, est� tratado em Manhua�u terr�vel combate, dia e noite, � carabina e dinamite, entre os partid�rios de Costa Mattos e Serafim. O conflito nasceu de ter sido Costa Mattos nomeado delegado de pol�cia, e, investido do cargo, haver mandado desarmar um empregado de Serafim. Tem havido mortes e ferimentos.�

H�, pois, al�m de outros partidos deste mundo, um partido Serafim e um partido Costa Mattos. Quem seja este C�sar, nem este Pompeu, n�o � coisa que me tenha chegado aos ouvidos; mas devem ser homens de valor, desabusados, capazes de lutar em campo aberto e matar sem d� nem piedade. A causa do conflito parece pequena, vista aqui da rua do Ouvidor, entre tr�s e cinco horas da tarde; mas ponha-se o leitor em Manhua�u, penetre na alma de Serafim, encha-se da alma de Mattos, e acabar� reconhecendo que as causas valem muito ou pouco, segundo a zona e as pessoas. O que n�o daria aqui mais de uma troca de mofinas, d� carabina e dinamite em outras paragens.

Mas n�o � s� em Manhua�u que se morre a ferro e fogo. A cidade de Len��is passou por igual ou maior desola��o. Soube-se aqui, desde o dia 18, que um bando de clavinoteiros marchava ao assalto da cidade, n�o s� para tom�-la, como para matar o coronel Felisberto Augusto de S�, senador estadual, e o Dr. Francisco Carib�. O governo da Bahia mandou duzentas pra�as em socorro da cidade. Tarde haver� chegado o socorro, se chegou; o assalto deu-se a 17, entrando pela cidade os clavinoteiros capitaneados por Jos� Montalv�o. Escaparam Felisberto e Carib�, no meio de grande carnificina, que parece ter continuado.

N�o se pense que, por ir escrevendo sem ponto de exclama��o, deixo de sentir a dor dos mortos. � duro ler isto; mas � preciso pairar acima dos cad�veres. Tem-se discutido aqui sobre a lei da recapitula��o abreviada. Se tal lei existe, Manhua�u e Len��is est�o na fase do romantismo sangrento, quando a nossa capital j� passou o naturalismo cru e entra no duro misticismo.

Tempo vir� em que Manhua�u e Len��is vejam as suas notas de 100$ e 200$ andarem de Herodes para Pilatos, sem saber por que � que Herodes as condena, nem por que � que Pilatos lava as m�os. Ouvir�o dizer que por serem falsas, � ou (resto de naturalismo) falsas e at� farsas. Ter�o os seus inqu�ritos, os seus bilhetes e camarote de teatro, e a perp�tua escurid�o do neg�cio, que � o pior. Un p� pi� di luce, como queria h� anos um pol�tico italiano, n�o � mau. As com�dias mais embrulhadas acabam entendidas; podem ser feitas sem talento, nem crit�rio, mas os autores sabem que o p�blico deseja ir para casa com as id�ias claras, a fim de dormir tranq�ilo, e fazem casar os b�bados. As notas falsas de Len��is e Manhua�u n�o sair�o do puro mist�rio. � a condi��o do g�nero. Creio que disse mist�rio, em vez de ocultismo, que define melhor este g�nero de recrea��o.

Verdade � que o tempo � sempre tempo, e n�o sei porque n�o suceder� na Am�rica o que acontece na Europa. A morte da Malibran (releiam Musset) em quinze dias era not�cia velha. Sans doute il est trop tard... Releiam os belos versos do poeta. Dentro de quinze dias, ningu�m mais se lembra do camarote de teatro de Len��is, nem do inqu�rito, nem do n�mero 65.609, nem de nada de Manhua��. A vida � t�o aborrecida, que n�o vale a pena atar as asas �s melancolias de arriba��o. Voais melancolias! voais, notas! ide para onde vos chamam os gozos f�ceis e pagos...

Ia-me perdendo em suspiros. Ponhamos p� em terra, e deixemos Costa Mattos contra Serafim, e Montalv�o contra Felisberto. Viver � lutar, e morrer � acabar lutando, que � outro modo de viver. N�o sei se me entendem. Eu n�o me entendo. Digo estas coisas assim, � laia de trocado engenhoso, para tapar o buraco de uma id�ia. � o nosso of�cio de pedreiros liter�rios. A vantagem � que, enquanto trabalhamos de trolha, a id�ia aparece, ou a mem�ria evoca um simples fato, e a pena refaz o a�o, e o escrito continua direito.

Para n�o ir mais longe, vamos ao largo da Carioca. Li que um agente de pol�cia

entrando em um bonde no largo da Lapa, descobriu certo n�mero de gatunos entre os passageiros. Alguns preparavam-se contra um velho, e o agente preparou-se contra eles. No largo da Carioca o velho p�de escapar � tentativa, mas o agente, ajudado de uma pra�a, capturou alguns; a maior parte fugiu. At� aqui tudo � vulgar como um ma�ador de bonde. O resto n�o � raro nem original, mas � grandioso.

Cerca de quinhentas pessoas aglomeraram-se no largo, em volta dos presos e os agentes da for�a. O primeiro grito, o grito largo e enorme foi: N�o pode! N�o pode! Quando este grito sai dos peitos da multid�o, � como a voz da liberdade de todos os s�culos opressos. A primeira id�ia de quinhentas pessoas juntas, ou menos (cinq�enta bastam), � que toda pris�o � in�qua, todo agente da autoridade um verdugo. Imagine-se o que aconteceria no largo da Carioca, se o agente n�o tivesse ocasi�o de contar o que se passara e a qualidade das pessoas presas. A explica��o abrandou os esp�ritos, e salvo alguns que, passando ao extremo oposto, gritaram: Mata! Mata! todos se conformaram com a simples pris�o. Os gatunos � que se n�o conformaram com a delegacia para onde os queriam levar. Iam ser conduzidos � 5.� delegacia e pediram a 6�, por ser aquela onde haviam sido presos. Esta preocupa��o de observ�ncia regulamenta em simples gatunos, faz descrer do v�cio.

Em todo caso, vemos que o vicioso, desde que n�o pode escapar � justi�a, teve a virtude de reclamar pela lei. O virtuoso, antes de saber do v�cio, clama j� contra a repress�o. N�o se defenda esse caso com o da mulher que, por suspeita de alienada morreu de hemorragia no xadrez; porquanto, o da mulher � posterior, e n�o se sabe ainda se houve nele abuso, ou simples uso antigo. Costume faz lei, e quem padece de hemorragias, n�o deve ter tempo de endoidecer.

Esquecia-me dizer que o bonde era e el�trico. Se os gatunos eram gordos, n�o sei. Magros que fossem era dif�cil que viessem comodamente, sendo de cinco pessoas por banco a lota��o dos bondes el�tricos; mas n�o pode haver melhor lota��o para sacar uma carteira. Pela minha parte, tendo sonhado que a lota��o era legal, aceitei-a, com a inten��o de requerer ao Conselho Municipal que alterasse o contrato, embora indenizando a companhia. Mas afirmaram-me que, n�o s� � ilegal, como at� j� foi a companhia interrogada sobre as cinco pessoas por banco, aproveitando-se a ocasi�o para indagar dos motivos por que continuam os comboios. Ou n�o houve resposta ou foi satisfat�ria. Prefiro a primeira hip�tese. H� ainda um lugar para a esperan�a.

31 de maio

A fuga dos doidos do Hosp�cio � mais grave do que pode parecer � primeira vista. N�o me envergonho de confessar que aprendi algo com ela, assim como que perdi uma das escoras da minha alma. Este resto de frase � obscuro, mas eu n�o estou agora para emendar frases nem palavras. O que for saindo saiu, e tanto melhor se entrar na cabe�a do leitor.

Ou confian�a nas leis, ou confian�a nos homens, era convic��o minha de que se podia viver tranq�ilo fora do Hosp�cio dos Alienados. No bonde, na sala, na rua, onde quer que se me deparasse pessoa disposta a dizer hist�rias extravagantes e opini�es extraordin�rias, era meu costume ouvi-la quieto. Uma ou outra vez sucedia-me arregalar os olhos, involuntariamente, e o interlocutor, supondo que era admira��o, arregalava tamb�m os seus, e aumentava o desconcerto do discurso. Nunca me passou pela cabe�a que fosse um demente. Todas as hist�rias s�o poss�veis, todas as opini�es respeit�veis. Quando o interlocutor, para melhor incutir uma id�ia ou um fato, me apertava muito o bra�o ou me puxava com for�a pela gola, longe de atribuir o gesto a simples loucura transit�ria, acreditava que era um modo particular de orar ou expor. O mais que fazia, era persuadir-me depressa dos fatos e das opini�es, n�o s� por ter os bra�os mui sens�veis, como porque n�o � com dois vint�ns que um homem se veste neste tempo.

Assim vivia, e n�o vivia mal. A prova de que andava certo, � que n�o me sucedia o menor desastre, salvo a perda da paci�ncia; mas a paci�ncia elabora-se com facilidade; � perde-se de manh�, j� de noite se pode sair com dose nova. O mais corria naturalmente. Agora, por�m, que fugiram doidos do hosp�cio e que outros tentaram faz�-lo (e sabe Deus se a esta hora j� o ter�o conseguido), perdi aquela antiga confian�a que me fazia ouvir tranq�ilamente discursos e not�cias. � o que acima chamei uma das escoras da minha alma. Caiu por terra o forte apoio. Uma vez que se foge do hosp�cio dos alienados (e n�o acuso por isso a administra��o) onde acharei m�todo para distinguir um louco de um homem de ju�zo? De ora avante, quando algu�m vier dizer-me as coisas mais simples do mundo, ainda que me n�o arranque os bot�es, fico incerto se � pessoa que se governa, ou se apenas est� num daqueles intervalos l�cidos, que permitem ligar as pontas da dem�ncia �s da raz�o. N�o posso deixar de desconfiar de todos.

A pr�pria pessoa, � ou para dar mais claro exemplo, � o pr�prio leitor deve desconfiar de si. Certo que o tenho em boa conta, sei que � ilustrado, ben�volo e paciente, mas depois dos sucessos desta semana, quem lhe afirma que n�o saiu ontem do Hosp�cio? A consci�ncia de l� n�o haver entrado n�o prova nada; menos ainda a de ter vivido desde muitos anos, com sua mulher e seus filhos, como diz Lulu Senior. � sabido que a dem�ncia d� ao enfermo a vis�o de um estado estranho e contr�rio � realidade. Que saiu esta madrugada de um baile? Mas os outros convidados, os pr�prios noivos que saber�o de si? Podem ser seus companheiros da Praia Vermelha. Este � o meu terror. O ju�zo passou a ser uma probabilidade, uma eventualidade, uma hip�tese.

Isto, quanto � segunda parte da minha confiss�o. Quanto � primeira, o que aprendi com a fuga dos infelizes do Hosp�cio, � ainda mais grave que a outra. O c�lculo, o racioc�nio, a arte com que procederam os conspiradores da fuga, foram de tal ordem, que diminuiu em grande parte a vantagem de ter ju�zo. O ajuste foi perfeito. A manha de dar pontap�s nas portas para abafar o rumor que fazia Serr�o arrombando a janela do seu cub�culo, � uma obra-prima; n�o apresenta s� a combina��o de a��es para o fim comum, revela a consci�ncia de que, estando ali por doidos, os guardas os deixariam bater � vontade, e a obra da fuga iria ao cabo, sem a menor suspeita. Francamente, tenho lido, ouvido e suportado coisas muito menos l�cidas.

Outro epis�dio interessante foi a insist�ncia de Serr�o em ser submetido ao tribunal do j�ri, provando assim tal amor da absolvi��o e conseq�ente liberdade, que faz entrar em d�vida se se trata de um doido ou de um simples r�u. N�o repito o mais, que est� no dom�nio p�blico e ter� produzido sensa��es iguais �s minhas. Deixo vacilante a alma do leitor. Homens tais n�o parecem art�fices de primeira qualidade, esp�ritos capazes de levar a cabo as quest�es mais complicadas deste mundo?

N�o quero tocar no caso de Paradeda J�nior, que l� vai mar em fora, por ach�-lo tardio. Meio s�culo antes, era um bom assunto de poema rom�ntico. Quando, alto mar, o infeliz revelasse, por impuls�o repentina, o seu verdadeiro estado mental, a cena seria terr�vel, e a inspira��o germ�nica, mais que qualquer outra, acharia a� uma bela p�gina. O poema devia chamar-se �Der n�rrische Schiff�.Descri��o do mar, do navio e do c�u; a bordo, alegria e confian�a. Uma noite, estando a lua em todo o esplendor, um dos passageiros contava a batalha de Leipzig ou recitava uns versos de Uhland. De repente, um salto, um grito, tumulto, sangue: o resto seria o que Deus inspirasse ao poeta. Mas, repito, o assunto � tardio.

De resto, toda esta semana foi de sangue, � ou por pol�tica, ou por desastre, ou por desfor�o pessoal. O acaso luta com o homem para fazer sangrar a gente pacata e temente a Deus. No caso de Santa Teresa, o cocheiro evadiu-se e come�ou o inqu�rito. Como os feridos n�o pedem indeniza��o � companhia, tudo ir� pelo melhor no melhor dos mundos poss�veis. No caso da Copacabana, deu-se a mesma fuga, com a diferen�a que o autor do crime n�o � cocheiro; mas a fuga n�o � privil�gio de of�cio, e, demais, o criminoso j� est� preso. Em Manhua�u continua a chover sangue, tanto que marchou para l� um batalh�o daqui. O comendador Ferreira Barbosa, (a esta hora assassinado) em carta que escreveu o diretor da Gazeta e foi ontem publicada, conta minuciosamente o estado daquelas paragens. Os combates t�m sido medonhos. Chegou a haver barricadas. Um an�nimo declarou pelo Jornal do Com�rcio que, se a comarca de S�o Francisco tornar � antiga prov�ncia de Pernambuco, segundo prop�s o Sr. Senador Jo�o Barbalho, n�o ir� sem sangue. Sangue n�o tarda a escorrer do jovem Estado (peruano) do Loreto...

Enxuguemos a alma. Ou�amos, em vez de gemidos, notas de m�sica. Um grupo de homens de boa vontade vai dar-nos m�sica velha e nova, em concertos populares, a pre�o c�modo. Venham eles, venham continuar a obra do Clube Beethoven, que foi por tanto tempo o centro das harmonias cl�ssicas e modernas. Tinha de acabar, acabou. Os Concertos populares tamb�m acabar�o um dia, mas ser� tarde, muito tarde, se considerarmos a resolu��o dos fundadores, e mais a necessidade que h� de arrancar a alma ao tumulto vulgar para a regi�o serena e divina... Um abra�o ao Dr. Lu�s de Castro.

Pela minha parte, proponho que, nos dias de concerto, a Companhia do Jardim Bot�nico, excepcionalmente, meta dez pessoas por banco nos bondes el�tricos, em vez das cinco atuais. Creio que n�o haver� representa��o � Prefeitura, pois todos n�s amamos a m�sica; mas dado que haja, o mais que pode suceder, � que a Prefeitura mande reduzir a lota��o � quatro pessoas do contrato; em tal hip�tese, a companhia pedir� como agora, segundo acabo de ler, que a Prefeitura reconsidere o despacho,  � e as dez pessoas continuar�o, como est�o continuando as cinco. H� sempre erro em cumprir e requerer depois; o mais seguro � n�o cumprir e requerer. Quanto ao m�todo, � muito melhor que tudo se passe assim, no sil�ncio do gabinete, que tumultuosamente na rua: N�o pode! n�o pode!

7 de junho

A quest�o da capital, � ou a quest�o capital, como se dizia na Rep�blica Argentina, quando se tratou de dar � prov�ncia de Buenos Aires uma cabe�a nova, pr�pria, luxuosa e in�til, � a nossa quest�o capital teve esta semana um impulso. Discutiu-se na C�mara dos Deputados um projeto de lei, que o Dr. Belis�rio Augusto prop�e substituir por outro. Este outro declara a cidade de S�o Sebasti�o do Rio de Janeiro capital da Rep�blica. N�o � preciso acrescentar que o fundamentou eloq�entemente; este adv�rbio acompanha os seus discursos. Foi combatido naturalmente, sem paix�o, sem acrim�nia, com desejo de acertar, visto que a Constitui��o determina que no planalto de Goi�s seja demarcado o territ�rio da nova capital, e j� l� trabalha uma comiss�o de engenheiros; mas, estipulando a mesma Constitui��o, art. 34, que ao Congresso Federal compete privativamente mudar a capital da Uni�o, entendeu o Dr. Belis�rio Augusto que esta cl�usula, se d� compet�ncia para a mudan�a, tamb�m a d� para a conserva��o; argumento que o Dr. Paulino de Sousa J�nior declarou irrespond�vel.

Todo o esfor�o do deputado fluminense foi para conservar a esta cidade o papel que lhe deram os tempos e a hist�ria. Fez, por assim dizer, o processo da Constituinte. �Os homens t�m ilus�es, disse S.Exa., e as assembl�ias tamb�m as t�m.� Poderia acrescentar que as ilus�es das assembl�ias s�o maiores, por isso mesmo que s�o de homens reunidos e o cont�gio � grande e r�pido; e mais dif�cil se torna dissip�-las. S.Exa. pensa que a revolta de 6 de setembro teria vencido se o governo n�o estivesse justamente aqui. Bem pode ser que tenha raz�o. Creio nas prefeituras, mas para a defesa da Rep�blica acho os c�nsules mais aptos. Podeis redarg�ir que, convertida em Estado, esta cidade teria o seu governador, a sua Constitui��o, as suas c�maras; mas tamb�m se vos pode replicar que se o nosso Rio de Janeiro,

Ce pel�, ce galeux, d'o� vient tout le mal,

tem por perigo o cosmopolitismo, este mesmo cosmopolitismo seria um aliado inerte da rebeli�o, e a autoridade de um pequeno Estado poderia menos, muitos menos, que a do pr�prio governo federal.

N�o estranheis ver-me assim metido em pol�tica, mat�ria alheia � minha esfera de a��o. Tampouco imagineis que falo pela tristeza de ver decapitada a minha boa cidade carioca. Tristeza tenho em verdade; mas tristezas n�o valem raz�es de Estado; e, se o bem comum o exige, devem converter-se em alegrias. N�o senhor; se falo assim � para combater o pr�prio Dr. Belis�rio Augusto, por mais que me sinta disposto a concordar com ele. Parece-vos absurdo? Tende a paci�ncia de ler.

Depois de perguntar qual das outras cidades disputou a posi��o de capital da Rep�blica, o deputado fluminense fez esta interroga��o: �Qual foi o movimento popular que imp�s ao congresso a necessidade da mudan�a da capital?� Realmente, n�o houve movimento algum; mas, eu viro-lhe o argumento, e n�o creio que me refute. Sim, n�o houve movimento. Mas a pr�pria cidade do Rio de Janeiro n�o reclamou nada, quando se discutiu a Constitui��o, n�o levou aos p�s do legislador o seu passado, nem o seu presente, nem o seu prov�vel futuro, n�o examinou se as capitais s�o ou n�o obras da hist�ria, n�o disse coisa nenhuma; comprou deb�ntures, que eram os bichos de ent�o. Agora mesmo que o orador fluminense insta com o congresso para ver se a capital aqui fica, o Rio de Janeiro n�o insta tamb�m, n�o pede, com direito que tem todo cidad�o e toda comunidade de procurar haver o que lhe parece ser de benef�cio p�blico. N�o ou�o discursos reverentes, n�o vejo delibera��es pac�ficas, nem peti��es, j� n�o digo do conselho municipal, a quem incumbe velar pela felicidade dos seus mun�cipes, porque � natural que essa corpora��o aspire �s fun��es constitucionais de parlamento, com promo��o equivalente de seus povos; mas os povos, que fazem eles ou que fizeram?

A conclus�o � que o Rio de Janeiro, desde princ�pio, achou que n�o devia ser capital da Uni�o, e este voto pesa muito. � o decapitado par persuasion. Assim � que temos contra a conserva��o da capital, al�m do mais, o benepl�cito do pr�prio Rio de Janeiro. Ele ser� sempre, como disse um deputado, a nossa New York. N�o � pouco; nem todas as cidades podem ser uma grande metr�pole comercial. N�o levar�o daqui a nossa vasta ba�a, as nossas grandezas naturais e industriais, a nossa Rua do Ouvidor, com o seu aut�mato jogador de damas, nem as pr�prias damas. C� ficar� o gigante de pedra, mem�ria da quadra rom�ntica, a bela Tijuca, descrita por Alencar em uma carta c�lebre, a Lagoa de Rodrigo de Freitas, a Enseada de Botafogo, se at� l� n�o estiver aterrada, mas � poss�vel que n�o; salvo se alguma companhia quiser introduzir (com melhoramentos) os jogos ol�mpicos, agora ressuscitados pela jovem Atenas... Tamb�m n�o nos levar�o as companhias l�ricas, os nossos tr�gicos italianos, sucessores daquele pobre Rossi, que acaba de morrer, e apenas os dividiremos com S�o Paulo, segundo o costume de alguns anos. Quem sabe at� se um dia...

Tudo pode acontecer. Um dia, quem sabe? Lan�aremos uma ponte entre esta cidade e Niter�i, uma ponte pol�tica, entenda-se, nada impedindo que tamb�m se fa�a uma ponte de ferro. A ponte pol�tica ligar� os dois Estados, pois que somos todos fluminenses, e esta cidade passar� de capital de si mesma a capital de um grande Estado �nico, a que se dar� o nome de Guanabara. Os fluminenses do outro lado da �gua restituir�o Petr�polis aos veranistas e seus recreios. Unidos, seremos alguma coisa mais que separados, e, sem desfazer nas outras, a nossa capital ser� forte e soberba. Se, por esse tempo a febre amarela houver sacudido as sand�lias �s nossas portas, perderemos a m� fama que prejudica a todo o Brasil. Poderemos ent�o celebrar o segundo centen�rio do destro�o que aos franceses de Duclerc deu esta cidade com os seus soldados, os seus rapazes e os seus frades... Que esta esperan�a console o nosso Belis�rio Augusto, se cair o seu projeto de lei.

14 de junho

A publica��o da Jarra do Diabo coincidiu com a chegada de Magalh�es de Azeredo. J� tive ocasi�o de abra�ar este jovem e talentoso amigo. � o mesmo mo�o que se foi daqui para Montevid�u come�ar a carreira diplom�tica. A natureza, naquela idade, n�o muda de fei��o; o artista � que se aprimorou no verso e na prosa, como os leitores da Gazeta ter�o visto e sentido. Este filho excelente volta tamb�m marido venturoso, e brevemente embarca para a Europa, onde vai continuar de secret�rio na lega��o junto � Santa S�. Tudo lhe sorri na vida, sem que a Fortuna lhe fa�a nenhum favor gratuito; merece-os todos, por suas qualidades raras e finas. Jamais descambou na vulgaridade. Tem o sentimento do dever, o respeito de si e dos outros, o amor da arte e da fam�lia. Ao demais, modesto, � daquela mod�stia que � a honestidade do esp�rito, que n�o tira a consci�ncia �ntima das for�as pr�prias, mas que faz ver na produ��o liter�ria uma tarefa nobre, pausada e s�ria.

Quando Magalh�es de Azeredo partir agora para continuar as suas fun��es diplom�ticas, deixar� saudades a quantos o conhecem de perto. Os que a idade houver aproximado daquela outra viagem eterna, � prov�vel, � � poss�vel, ao menos, � que o n�o torne a ver, mas guardar�o boa mem�ria de um cora��o digno do esp�rito que o anima. Os mo�os, que a� cantam a vida, entrar�o em flor pelo s�culo adiante, e v�-lo-�o, e ser�o vistos por ele, continuando na obra desta arte brasileira, que � mister preservar de toda federa��o. Que os Estados gozem a sua autonomia pol�tica e administrativa, mas acompanham a mais forte unidade, quando se tratar da nossa musa nacional.

Por meu gosto n�o passava deste cap�tulo, mas a semana teve outros, se se pode chamar semana ao que foi antes uma simples alf�ndega, tanto se falou de direitos pagos e n�o pagos. Eis aqui o vulgar, meu caro poeta da Jarra do Diabo; aqui os objetos n�o se parecem, como a tua jarra, com �uma jovem mulher ateniense�. S�o fardos, s�o barricas e pagam taxas, outros dizem que n�o pagam, outros que nem pagar�o. Uma balb�rdia. Eu, posto creia no bem, n�o sou dos que negam o mal, nem me deixo levar por apar�ncias que podem ser falazes. As apar�ncias enganam; foi a primeira banalidade que aprendi na vida, e nunca me dei mal com ela. Daquela disposi��o nasceu em mim esse tal ou qual esp�rito de contradi��o que alguns me acham, certa repugn�ncia em execrar sem exame v�cios que todos execram, como em adorar sem an�lise virtudes que todos adoram. Interrogo a uns e a outros, dispo-os, palpo-os, e se me engano, n�o � por falta de dilig�ncia em buscar a verdade. O erro deste mundo.

No caso da alf�ndega, n�o posso negar que as apar�ncias s�o criminosas; mas ser�o crimes os atos praticados? Ecco il problema, diria enfaticamente o finado Rossi. N�o se tratar� antes de an�ncios, reclamos, puffs, � censur�veis decerto, � mas enfim an�ncios? Ningu�m ignora que n�o h� nesta cidade, em tal mat�ria, excesso de inven��o. Ao contr�rio, a imita��o � f�cil, pronta, despejada. Quando, h� muitos anos, um negociante americano quis abrir na Rua do Ouvidor um dep�sito de lampi�es e outros objetos de igual g�nero, come�ou por mandar imprimir, no alto dos principais jornais desta cidade, uma s� palavra, em letras que ocupavam toda a largura da folha. A palavra era: abrir-se-�. Grande foi a curiosidade p�blica, logo no primeiro dia, e nos dois que se lhe seguiram, lendo-se a palavra repetida, sem se poder atinar com a explica��o. No quarto dia cresceu o espanto, quando no mesmo lugar saiu esta pergunta, que resumia a ansiedade geral: O que � que se h� de abrir? Mais tr�s dias, e as folhas publicaram no alto, em letras gordas, a resposta seguinte: O grande emp�rio de luz, � Rua do Ouvidor n�...

O efeito da novidade foi enorme. Pois n�o faltou quem imitasse esse processo, que parecia gasto. Casas, exposi��es, liquida��es, n�o me lembra j� que esp�cies de aberturas solenes, recorreram ao an�ncio americano. Onde falta inven��o, � natural que a imita��o sobre.

Mas por que ir t�o longe? Recentemente, presentemente, vimos e vemos que a lembran�a de recomendar um rem�dio por meio de compara��o da pessoa enferma antes, durante e depois da cura, t�o depressa apareceu, como foi logo copiada e repetida. � Eu era assim (uma cara magra); � ia quase ficando assim (uma caveira); at� que passei a ser assim (uma cara cheia de sa�de), depois que tomei tal droga. A f�rmula primitiva serviu para as imita��es, creio que sem altera��o, a n�o ser o desenho das caras, e n�o todas.

Ora bem, os fardos e caixas cujos os direitos dizem ter sido desfalcados, n�o ser�o propriamente rem�dios? As guias de pagamento de taxas na alf�ndega n�o ser�o f�rmulas de reclamo? � �Eu era assim (4:954$723); � ia quase ficando assim (4$723); � mas acabei ficando assim (954$723), depois que tomei tal droga.� A novidade aqui est� na substitui��o do desenho por algarismos; mas n�o haver� nisso t�o somente afeta��o de originalidade, um modo de fazer crer que se inventa, quando apenas se copia, pois a id�ia fundamental � a mesma? A quest�o � saber qual droga faz sarar o enfermo. Pode ser at� que nem se trate de droga, mas de outros produtos, � n�o digo sedas, � mas algod�o e an�logos tecidos, n�o menos dignos de an�ncios grandes por seus n�o menores milagres.

Tal � a minha impress�o. A pol�cia faz muito bem averiguando se h� mais que isto; n�o se perde nada em inquirir os homens. De resto, anda a� tanta coisa falsa, que provavelmente o rem�dio n�o cura com a facilidade que as guias lhe atribuem. Atos de autoridade competente afirmam que h� quem venda por vinho-champanhe �guas que nunca por l� passaram. Custa-me admitir isto; mas, n�o tendo raz�o para desmentir a afirma��o, calo-me; � calo-me e n�o bebo. Tudo isto se prende aos desvios da alf�ndega, ao contrabando, � falsifica��o, a outras formas do mal, que n�o se devem eliminar sem base. Oh! se pud�ssemos viver de maneira que todas as taxas se pagassem, sem alf�ndega, indo os produtores ao pr�prio Tesouro, com o dinheiro, sem precisar mostrar nem esconder nada, seda ou vinho... N�o pode ser. H� talvez um fraudulento em muito homem a quem n�o falta mais que uma guia e o resto...

21 de junho

Querem os almanaques que o inverno comece hoje, 21 de junho. De ordin�rio come�a mais cedo. Este ano, nem eu j� cuidava em inverno, quando caiu a grande chuva de quinta-feira, e a temperatura baixou com ela. Manter-se-� a mudan�a? Esta � a quest�o, e, se n�o fosse a minha f� nos almanaques, eu diria que n�o, tais foram os calores deste m�s; mas eu creio nos almanaques.

Sim, creio nos almanaques. Um velho amigo meu conta que, h� cerca de quarenta anos, a noite de S. Jo�o fez calor de rachar. Pela minha parte, ainda me n�o esqueci que, h� dezessete ou dezoito anos, a noite de S. Silvestre quase fez tiritar de frio. Mas s�o casos excepcionais. Em geral os almanaques s�o exatos. As id�ias mudam, mudam os vestidos, o estilo, os costumes, as afei��es, muita vez as palavras, e a pr�pria moral tem alternativas. Montaigne � de parecer contr�rio; ele cr� que n�o andamos para diante, nem para traz. Nous rodons plustot et tournevirons �� et  l�, diz ele pela sua bela l�ngua e ortografia velha. Mas esse grande moralista, parecendo referir-se � vida humana, talvez aluda aos almanaques. Os almanaques n�o padecem da qualidade ruim de n�o sossegar nunca, de dizer hoje uma coisa e amanh� outra, de desmentir uns anos por outros. S�o constantes; os dias de lua variam, mas as mudan�as s�o as mesmas, e n�o h� lua cheia sem crescente, nem nova sem minguante. H� festas m�veis, mas os almanaques declaram que s�o m�veis; em compensa��o, as fixas s�o fixas. Os santos n�o saem do seu lugar. De longe em longe, h� um dia de quebra.

No que os almanaques podiam mudar, � e n�o seria mudar, mas tornar ao que foram e confirmar assim a m�xima de Montaigne, � � em reviver a astrologia, como no s�culo XVIII. Os daquele tempo traziam predi��es que eram lidas, cridas e certamente cumpridas, visto que os anos se sucediam, as predi��es com eles, e a f� n�o se acabava. Tais eram elas, que o de�o Swift tamb�m fez o seu almanaque astrol�gico, em que anunciou uma por��o de sucessos mais ou menos graves, uns pol�ticos, outros particulares, alguns simplesmente meteorol�gicos, como s�o hoje os de Holloway. Entre essas predi��es figurou a morte de John Tartridge, autor de outro almanaque astrol�gico, para o dia 29 de mar�o, �s onze horas da noite. N�o vi a certid�o de �bito de Tartridge, nem a hist�ria se ocupou com o desaparecimento desse personagem; mas em carta que se publicou por esse tempo, a morte de Tartridge foi contada como tendo ocorrido no pr�prio dia 29 de mar�o, pela mol�stia anunciada, com a �nica diferen�a da hora, que foi �s sete e cinco minutos, isto �, quatro horas antes da do almanaque. O finado tentou contestar a not�cia; mas a r�plica do de�o foi t�o completa e l�cida, que o fez calar para sempre. Concluo que todas as demais predi��es daquele ano de 1708 foram cumpridas com pontualidade.

Se o nosso Laemmert quisesse melhorar nesta parte os seus almanaques, creio que beneficiaria o esp�rito p�blico, al�m de ver crescer o n�mero dos compradores. A astrologia n�o � ci�ncia morta, como alguns sup�em; eu a creio viva, mais viva que nunca, embora a tenham por sociologia ou outra coisa. N�o duvidaria fundar uma faculdade livre, na qual igualmente aprendesse e ensinasse astrologia, e estou que daria prontos meia d�zia de bons astr�logos, no mesmo prazo em que um homem se pode formar em jurisprud�ncia, ou ainda menos, em seis meses.  A astrologia, bem considerada, � aplica��o dos raios X ao tempo. Assim como se transporta ao papel a figura dos ossos escondidos na m�o, assim tamb�m se pode dizer no dia 1� de janeiro os sucessos dos meses seguintes.

Suponhamos que o almanaque do presente ano trouxesse este melhoramento.

As vantagens seriam grandes e evidentes, n�o porque a predi��o pudesse desviar os sucessos ou modific�-los; desde que vinham preditos, tinham de acontecer. Mas, em primeiro lugar, o esp�rito p�blico ficaria avisado, e n�o haveria desses abalos que tanto concorrem para matar o cora��o, e com ele o homem. J� se sabia do caso; era s� esperar. A alf�ndega, por exemplo, tinha marcado o dia das descobertas de desvios, falsifica��es e outros fen�menos. Quando estes se dessem, era s� ler os pormenores. Pode ser at� que, � for�a de esperar pelo crime, mal o julg�ssemos crime, e o fato de ser descoberto em dia marcado traria naturalmente a suspeita de ser a autoria fatal e necess�ria. Nem por isso ficaria impune. Os autores n�o tentariam fugir, j� porque andariam vigiados e seriam pegados em tempo, j� porque a pr�pria fatalidade do crime os deixaria namorados do lucro, n�o contando que a esperan�a � eterna.

Em segundo lugar, preditos os acontecimentos nos almanaques, cada cidad�o podia estudar o papel que lhe deveria caber naquele ano. Uns comporiam com tempo os discursos de indigna��o; outros, indiferentes, achariam na mat�ria do sucesso delituoso um bom motivo para almo�ar bem. Agora mesmo sucedeu que, ou o povo, ou um sub-delegado em S. Gon�alo, Estado do Rio de Janeiro, armou gente, dep�s o Conselho Municipal, e aclamou ou fez aclamar um conselho novo, tudo em menos de duas horas; � o que li nas folhas de ontem. Supondo este fato predito, os cinco meses e tanto decorridos entre a publica��o do almanaque e a realiza��o do fato acostumariam a gente a esperar por ele, encar�-lo, examin�-lo, em tal modo que, quando chegasse a not�cia, era como a analise de uma pe�a teatral representada na v�spera. Tudo dependeria do talento do cr�tico. O �nico defeito da pe�a seria n�o ter mulheres; mas o presente copia �s vezes o passado, e as cidades antigas e modernas raramente as metiam nas suas brigas interiores. Verdade � que S. Gon�alo pode ser uma esp�cie de Floren�a municipal, e come�ar esta divis�o como a outra fez a sua de guelfos e gibelinos. N�o h� not�cia da san-gon�alista que haja produzido o ataque armado � c�mara e a deposi��o do conselho; as not�cias s�o incompletas. Venham as restantes; venha tamb�m um almanaque com os sucessos de 1897.

28 de junho

Fujamos desta Babil�nia. Os desfalques levam o resto da confian�a que resistiu aos desvios. Admito que alguns deles possam n�o ser desvios nem desfalques, mas simples descuidos, desastres ou des�nimos. Em todo caso, n�o me sinto seguro. Temo que um dia destes me caia o sol na cabe�a, que o ch�o me falte debaixo dos p�s, que morram duas mil pessoas, como em Moscou, quando iam � sopa, ou dez mil, como no Jap�o, por um terremoto, ou n�o sei quantos mil, como em S. Luiz, ao sopro do �ltimo ciclone.

Temo tudo. O meu velho criado Jos� Rodrigues... (Lembram-se do Jos� Rodrigues?)... n�o anda bom, padece de tonteiras, dores de peito, �nsias; para mim, est� card�aco. Se n�o temesse que a farm�cia aviasse um veneno por outro, como ainda esta semana sucedeu, h� muito que o teria feito examinar. Mas, se o m�dico receitar alguma droga, terei a fortuna de j� a achar expedida para Ouro-Preto e outras partes? N�o sei... Pobre Jos� Rodrigues! � um grande exemplo das vicissitudes humanas. Mal sabendo assinar o nome, ganhou um milh�o no encilhamento, e quando come�ava a aprender ortografia, achou-se com tr�s mil r�is.

� Ai, patr�o! dizia-me ele uma vez, eu nunca me devia ter metido em ortografias; um B de mais ou de menos n�o � que faz um homem feliz.

Fujamos, repito. Imitemos os que j� foram, por motivo de desvio ou desfalque, e est�o a esta hora respirando os ares do Rio da Prata. Deixaram carros e cavalos, mas tamb�m l� h� carros, e dos cavalos temos aqui boas amostras. Se se desprenderam de amores, n�o s�o amores que lhes h�o de l� faltar, e pela bela l�ngua castelhana, que � a mesma nossa com castanholas. Teatros? tamb�m l� h� teatros. N�o chamar�o ruas �s ruas, e sim calles; mas quem � que se n�o habitua a este voc�bulo, uma vez que more em casa boa, com bons trastes e boa comida? Depois, nem sempre se h� de ficar longe da p�tria. As saudades matam, e, para fugir � morte, vale a pena arriscar a vida, express�o que talvez n�o entendas, se me l�s por distra��o; mas, se buscas aqui a li��o de um sapiente, entender�s que o que eu quero dizer, � que a vida corre o mesmo risco da liberdade, e os que tornam � p�tria, deixam muita vez de perder uma e outra.

A vida perde-se, ali�s, sem sair da terra natal, uns voluntariamente, como aquele bagageiro da Leopoldina, que veio acabar consigo na casa do pr�prio armeiro que lhe vendeu a garrucha. No mesmo dia, e n�o sei se a mesma hora, uma mulher empregada em f�brica de tecidos de um arrabalde tentava p�r termo aos dias. Demiss�o ou tristeza, qualquer causa serve a quem quer deveras ir embora desta aldeia, � como diz a cantiga, � e n�o pode proceder de outro modo. Mas, em verdade, parece que anda um vento de morte no ar.

Os que n�o v�o por sua vontade, v�o � for�a, e quando se preparam para ficar neste mundo por alguns anos mais, como aquele Dr. Ribeiro Vianna Filho, que veio ser operado e recebeu a opera��o �ltima. Li o termo da autopsia; nunca deixo de ler esses documentos, n�o para aprender anatomia, mas para verificar ainda uma vez como a l�ngua cient�fica � diferente da liter�ria. Nesta, a imagina��o vai levando as palavras belas e brilhantes, faz imagens sobre imagens, adjetiva tudo, usa e abusa das retic�ncias, se o autor gosta delas. Naquela, tudo � seco, exato e preciso. O h�bito externo � externo, o interno � interno; cada fen�meno, como cada osso, � designado por um voc�bulo. A cavidade tor�cica, a cavidade abdominal, a hip�stase cadav�rica, a tetania, cada um desses lugares e fen�menos n�o pode receber duas apela��es sob pena de n�o ser ci�ncia. Da� certa monotonia, mas tamb�m que fixidez! As conclus�es � que n�o podem ser t�o rigorosas. No caso a que aludo, a morte foi produzida por �intensa hemorragia pulmonar�. Mas o que � que produziu a hemorragia? Essa � a parte deixada ao incognosc�vel. As crian�as do meu tempo costumavam dizer por pilheria que uma pessoa havia morrido �por falta de respira��o�. Pilheria embora, se a considerarmos bem, � uma conclus�o cient�fica; o mais � querer ir ao incognosc�vel, que � um muro eterno e escuro.

Sim, fujamos, n�o para a povoa��o de Monte-Alegre, onde caiu uma chuva de pedras, que danificou todas as casas. As pedras eram do tamanho de um ovo. Assim o diz o Correio de Amparo. N�o � que receie pedras maiores que um ovo de galinha. Haveis de ter notado, se sois maduros e ainda mancebos, haveis de ter notado que as pedras que caem do c�u em chuva, s�o sempre do tamanho de um ovo de galinha. Isto me levou um dia a indagar o que � que produz as chuvas de pedras e a concluir que o c�u � uma vasta galinha invis�vel. Os ventos s�o o bater das suas asas; os trov�es s�o o seu cacarejo. N�o p�e um ovo por dia como a galinha da terra; deixa-os juntar, e quando sente milhares deles, despeja-os.

A gente foge, porque os ovos, ainda sem casca, doem; mas apanha-os depois, mede-os e acha-os sempre do mesmo tamanho. Nunca li not�cia de que fossem de pata ou de pomba.

Tal galinha nunca ficou choca? Se ficar�, n�o sei; mas, no passado, pode ser que a cria��o se explique por uma grande ninhada de pintos. A galinha celeste punha ent�o ovos com casca. Passados s�culos, chocou os ovos. Passados outros s�culos, os pintos entravam a picar a casca, a sair, a pipilar, a crescer, at� que lhes chegou a vez de p�r. N�o tor�am o nariz � hip�tese; h� outras que valem um pouco mais, e todas h�o de parar naquele incognosc�vel...

Quanto ao tom assustadi�o da Semana, saibam que � natural, e pode lan��-lo � conta da melancolia com que acordei hoje. Disseram-me ontem que um homem distinto e rico entrou a padecer de uma crise mental pela presun��o de estar pobre. Os pobres de verdade n�o enlouquecem, o que d� vontade de fazer como o pescador da Jud�ia, � deixar as redes e acompanhar a Jesus. Mas n�o esque�amos que, se os pobres n�o enlouquecem por ser pobres, enlouquecem muita vez supondo que s�o ricos. Tal � a compensa��o da Natureza, nossa querida m�e.

5 de julho

N�o quero saber de farm�cias, nem de outras institui��es suspeitas. Quero saber de m�sica, s� de m�sica, t�o somente m�sica. O Jornal do Com�rcio deu um brado esta semana contra as casas que vendem drogas para curar a gente, acusando-as de as vender para outros fins menos humanos. Citou os envenenamentos que tem havido na cidade, mas esqueceu dizer ou n�o acentuou bem, que s�o produzidos por engano das pessoas que manipulam os rem�dios. Um pouco mais de cuidado, um pouco menos de distra��o ou de ignor�ncia, evitar�o males futuros.

Um fino esp�rito deste pa�s, pol�tico e fil�sofo, definia-me uma vez as nossas farm�cias como outras tantas confeitarias. Confesso que antes as quero confeitarias, que pal�cio dos B�rgias; n�o tanto porque nestes se possa achar a morte, como porque n�s amamos os confeitos, e os frascos vindos do exterior t�m ar de trazer am�ndoas. � bom encontrar a sa�de onde s� se procura gulodice. Se, entretanto, o aumento dos impostos vai tornando dif�cil a importa��o desses preparados e obrigando a faz�-los c� mesmo, pode suceder que alguns envenenamentos se d�em a princ�pio; mas todo of�cio tem uma aprendizagem, e n�o h� benef�cio humano que n�o custe mais ou menos duras agonias. C�es, coelhos e outros animais s�o vitimas de estudos que lhes n�o aproveitam, e sim aos homens; por que n�o ser�o alguns destes v�timas do que h� de aproveitar aos contempor�neos e vindouros? Que verdade moral, social, cient�fica ou pol�tica n�o tem custado mortes e grandes mortes? As catacumbas de Roma...

Sem ir t�o longe, h� um argumento que desfaz em parte todos esses ataques �s boticas: � que o homem � em si mesmo um laborat�rio. Que fundamento jur�dico haver� para impedir que eu manipule e venda duas drogas perigosas? Se elas matarem, o prejudicado que exija de mim a indeniza��o que entender; se n�o matarem, nem curarem, � um acidente, e um bom acidente, porque a vida fica, e est� nos ad�gios populares que viva a galinha com a sua pevide. Suponhamos, por�m, que uma dessas manipula��es cura algu�m; n�o vale este �nico benef�cio todos os poss�veis males? Se espiritualmente h� mais alegria no C�u pela entrada de um arrependido que pela de cem justos, n�o se pode dizer que na terra h� mais alegria pela conserva��o de uma vida que pela perda de cem? Essa �nica vida n�o pode ser a de um grande homem, a de um var�o justo, a de um simples pai de fam�lia, a de um filho amparo de sua velha m�e? Reflitamos antes de condenar, e deixemos as farm�cias com os seus meninos antes de condenar, e deixemos as farm�cias com os seus meninos, que assim acham ocupa��o honesta, em vez de se perderem na rua. Outrossim, n�o condenemos os que alugam t�tulos. Quem pode alugar uma casa que n�o fez, que comprou feita, por que n�o poder� alugar um t�tulo que lhe custou estudos longos e aprova��es completas, que � verdadeiramente seu? Qual � propriedade maior?

Mas, fora com tudo isso, trataremos s� de m�sica. N�o nos falta m�sica, nem gosto particular em ouvi-la. Queir�s deu-nos uma hist�ria de m�sica, resumida em um grande concerto, em que ainda uma vez apresentou suas qualidades de artista. N�o se contenta Alberto Nepomuceno com os Concertos Populares. Domingo passado fez ouvir o Visconde de Taunay uma redu��o do Requiem, do Padre Jos� Maur�cio. A carta em que Taunay narra as como��es que lhe deu a obra do padre, comove igualmente aos que a l�em, e faz amar o padre, o Alberto, o Requiem e o escritor. N�o bastam ao nosso Taunay as letras; a sua bela Inoc�ncia, vertida h� pouco (ainda uma vez) para l�ngua estranha e espalhada pelos centros europeus, repete l� fora o nome de um homem, cuja fam�lia se naturalizou brasileira. Tendo o amor que tem � m�sica, trabalha h� longos anos pela gl�ria de Jos� Maur�cio, tarefa em que veio agora auxili�-lo o jovem maestro. E para que tudo seja m�sica, at� a morte quis levar esta semana um pianista a quem nunca ouvi, mas que ou�o louvar; pianista amador, m�dico de of�cio, que, �s qualidades intelectuais, reunia dotes morais de muito apre�o, o Dr. Lucindo Filho...

Outra morte que n�o sai da m�sica, ou sai do mais �ntimo dela, � a que se espera cada dia do Norte, a do nosso ilustre Carlos Gomes. Os telegramas de ontem dizem que o m�dico incumbido de o salvar j� aplicou o rem�dio, mas sem esperan�as. D�-lhe os dias contados. Aguardemos a hora �ltima desse homem que levar� o nome brasileiro deste para o s�culo novo, e cujas obras servir�o de est�mulo e exemplar �s voca��es futuras. A vida dele � conhecida; mas nem todos ter�o as sensa��es dos primeiros dias, quando Carlos Gomes chegou de S�o Paulo e aqui se estreou na �pera Nacional, uma institui��o mantida com dinheiros de loteria; leiam loteria, n�o bichos. Tudo � jogo, mas h� esp�cies mais reles que outras, que apenas servem de of�cio e com�rcio � gente vadia. Vivia de loteria a �pera Nacional; antes vivesse de donativos diretos, mas enfim viveu e deu-nos Carlos Gomes, um pouco de Mesquita, outro pouco de Elias Lobo, n�o contando as noites em que se cantava a Casta Diva, por esta letra de um velho e bom amigo meu, depois chefe pol�tico:

Casta deusa, que derramas

Nestas selvas luz serena...

Naquele tempo ainda Bach nem outros mestres influ�am como hoje. N�o t�nhamos essa m�sica, de que anteontem � noite nos deram horas magn�ficas os nossos dois h�spedes, Moreira de S� e Viana da Mota, no Teatro L�rico. Hoje a cr�tica das folhas da manh� dir� deles o que couber e for de justi�a, e estou que n�o ser� frouxo, nem pouco. Eu n�o tenho mais que ouvidos, e ouvidos de curioso, que n�o valem muito; mas, em suma, mais terei desaprendido com os olhos que com eles. Sinto que escutei dois homens de grande talento e grande arte, severos ambos, ambos eleitos pela natureza e confirmados pelo estudo para int�rpretes de obras mestras. N�o � de crer que os n�o ou�amos ainda uma vez ou mais. Li que v�o a S�o Paulo, em breve; � de rigor. S�o Paulo � esta��o obrigada, � metade do Rio de Janeiro, se estas duas cidades n�o formam j�, como Budapeste, artisticamente falando, uma s� capital. H� tempo, entretanto, para que, antes de tornarem ao seu pa�s, Viana da Mota e Moreira de S� d�em ainda ao povo do Rio uma festa igual � de anteontem, em que recebam os mesmos aplausos.

E continua a m�sica. Hoje � o terceiro dos Concertos Populares, institui��o que o p�blico aceitou e vai animado � em benef�cio seu, � verdade, n�o se podendo dizer que fa�a nenhum favor em ouvir a palavra cl�ssica dos mestres. Antes deve ir cheio de gratid�o. H� uma hora na semana em que alguns homens de boa vontade disp�em-se a arranc�-lo � vulgaridade e ao t�dio, para lhe dar a sensa��o do belo e do gozo. S�o favores que lhe fazem. Para si mesmos, bastava-lhes um pouco de m�sica de c�mara, entre quatro paredes, e a boa disposi��o de meia d�zia de artistas.

Assim como a hist�ria pol�tica e social tem antecedentes, � de crer que esta parte da hist�ria art�stica do Rio de Janeiro tenha os seus tamb�m, e quer-me parecer que podemos lig�-la ao quarteto do Clube Beethoven.

Esse clube era uma sociedade restrita, que fazia os seus saraus �ntimos, em uma casa do Catete, nada se sabendo c� fora sen�o o raro que os jornais noticiavam. Pouco a pouco se foi desenvolvendo, at� que um dia mudou de sede, e foi para a Gl�ria. Aquilo que hoje se chama profanamente Pens�o Beethoven, era a casa do clube. O sal�o do fundo, t�o vasto como o da frente, servia aos concertos, e enchia-se de uma por��o de homens de v�ria na��o, v�ria l�ngua, v�rio emprego, para ouvir as pe�as do grande mestre que dava nome ao clube, e as de tantos outros que formam com ele a galeria da arte cl�ssica. O nome do clube cresceu, entrou pelos ouvidos do p�blico; este, naturalmente curioso, quis saber o que se passava l� dentro. Mas, n�o havendo p�blico sem senhoras, e n�o podendo as senhoras penetrar naquele templo, que o n�o permitiam as disciplinas deste, resolveu o clube dar alguns concertos especiais no Cassino.

N�o relembro o que eles foram, nem estou aqui contando a cr�nica desses tempos passados. Pegou tanto o gosto dos concertos Beethoven, que o Clube, para obedecer aos estatutos sem infringi-los, determinou construir no jardim aquele edif�cio ligeiro, onde se deram concertos a todos, sem que a casa propriamente da associa��o fosse violada. Os dias pr�speros n�o fizeram mais que crescer; entrou a ser mau gosto n�o ir �quelas festas mensais. Mas tudo acaba, e o clube Beethoven, como outras institui��es id�nticas, acabou. A decad�ncia e a dissolu��o puseram termo aos longos dias de del�cias.

A primeira vez que vi o fundador daqueles concertos, foi de violino ao peito, junto de um piano, em que a senhora tocava; l� se v�o muitos anos. Ele vinha do Jap�o, magro, p�lido... �N�o tem seis meses de vida�, disse-me em particular um homem que j� morreu h� muito tempo. Outros morreram tamb�m, alguns encaneceram; o resto dispersou-se, a senhora reside na Europa... S� a m�sica pode dar a sensa��o destas ru�nas. O verso tamb�m pode, mas h� de ser pela toada do florentino, que assim como sabe a nota da maior dor, n�o menos conhece a da rejuvenesc�ncia, aquela que me faz crer, nestas sensa��es de arte.

Rifatto s�, come piante novelle

Rinnovellate di novella fronda...

12 de julho

A bomba do El-dorado durou o espa�o de uma manh�, tal qual a rosa de Malherbe. Esta velha rosa � que parece querer durar a eternidade. E aqui fa�o uma pequena cr�tica ao Sr. conselheiro �ngelo do Amaral. S. Exa. escreveu no Jornal do Com�rcio um artigo contra o rem�dio que o Sr. senador Leite e Oiticica publicou na Revista Brasileira para extirpar o mal das nossas finan�as. A revis�o deixou passar esta frase: �a rosa do Sr. senador pelas Alagoas teria a sorte da de Malherbe.� O Sr. �ngelo do Amaral corrigiu-a no dia seguinte, restaurando o que escrevera: �o projeto do Sr. senador pelas Alagoas teria a sorte da rosa de Malherbe.� Ah! por que n�o imitou o pr�prio poeta Malherbe, a quem a revis�o atribuiu o verso que ficou? Francamente, a primeira forma era melhor; completava o seu pensamento dando ao projeto o nome da coisa perec�vel, uma vez que o acha perec�vel. N�o me diga desdenhosamente que seria po�tico; poesia n�o deve entrar s� por cita��o nas mat�rias �ridas; pode muito bem tratar do pr�prio ch�o duro em que se pisa.

A rosa do El-dorado... Veja como eu dou execu��o ao meu conselho, sem que ali�s uma bomba se pare�a com flor. A rosa do El-dorado viveu t�o pouco que nem se chegou a saber se foi dinamite, se p�lvora; mas parece que foi p�lvora. A incredulidade, que n�o morreu com Voltaire, abanou as orelhas � dinamite, o que diminuiu muito o horror � bomba. Mas fosse isto ou aquilo, o que � certo � que houve faca e rev�lver, um morto (Deus lhe fale n�alma!) e alguns feridos; entrando-se em d�vida t�o somente se o ataque veio de fora ou de dentro, ou se de ambos os lados. Fez-se aut�psia; e enterrou-se o cad�ver. Quia pulvis es. Segundo li ontem, vai aparecer um incidente extraordin�rio neste neg�cio que lhe dar� nova face. N�o h� de ser a ressurrei��o do defunto.

Houve den�ncia, dias depois daquele, que iam cair algumas bombas de dinamite, n�o j� no El-Dorado, mas no pr�prio Jardim Zool�gico. A pol�cia mandou for�a; mas, ou porque a den�ncia n�o tivesse fundamento, ou porque as provid�ncias da autoridade fizessem suspender a a��o, n�o caiu nada, nem dinamite nem p�lvora. Em compensa��o apareceu ac�nito, n�o j� no Jardim Zool�gico, mas em uma farm�cia da rua Frei Caneca, donde foi dado a um doente, que ia morrendo � quarta dose, envenenado. J� disse o que penso destes envenenamentos. Uma vez que nenhuma inten��o os produz, mas simples enganos, n�o s�o criminosos; ao contr�rio, podendo auxiliar o conhecimento da verdade, s�o necess�rios. No presente caso, por um soldado que se perdeu salvou-se o ex�rcito. � assim na guerra, � assim na vida. O ato do farmac�utico � que foi outra rosa de Malherbe.

Quanto ao jogo dos bichos, trava-se contra ele uma rude campanha. Come�ada na imprensa, vai sendo continuada pela pol�cia. As ordens expedidas por esta s�o positivas, e a execu��o por parte dos seus agentes vai sendo pontual. O quinh�o da luta na imprensa � copioso. Medidas h� (for�a � diz�-lo) que se n�o expedem logo pelo receio de que a imprensa as condene ou critique, o servi�o fique mal visto, e a a��o afrouxe. Mas uma vez que os jornais, como os parlamentos, votem uma mo��o de confian�a nestes termos: �A opini�o, certa de que o jogo ser� morto, passa � ordem do dia�, a autoridade assim apoiada e refor�ada emprega todos os seus recursos.

A minha d�vida �nica � se o bicho morto n�o ressuscitar� com diversa forma. Agora mesmo nem tudo s�o bichos; h� pr�mios de bebidas, distribui��o de gravuras e outras conven��es de azar. Conv�m ter em vista que os jogos s�o muitos. A loteria, um dos mais velhos, que tem desmoralizado a sociedade, serve com os seus n�meros �s v�rias especula��es; mas n�o � a culpada �nica desta pervers�o de costumes. �nica n�o pode ser; ela corrompe, ela deve ser extirpada, como outras institui��es de dar fortuna; mas n�o esque�amos que ela � tamb�m efeito. Contaram-me que, por ocasi�o do encilhamento, � essa enorme bicharia, em que todos os carneiros perderam, � ocorria um fato assaz caracter�stico. Sabe-se que na rua da Alf�ndega o ajuntamento era grande e o tumulto freq�ente. Alguma vez foi preciso empregar for�a para aquietar os �nimos e dar passagem a outra gente. Sucedia ent�o que, saindo a correr duas pra�as de cavalaria atrav�s da multid�o, eram os pr�prios animais objeto de apostas, dizendo uns que o primeiro cavalo que chegava � esquina era o de c�, e outros que era o de l�, e os que acertavam recebiam um ou dois contos de r�is.

Meditai bem. Uma paix�o do azar t�o grande, que o pr�prio cavalo (era j� o bicho!) do agente da ordem servia de dado aos jogadores, n�o sai assim com duas raz�es. N�o tenho rem�dio sen�o citar as estrebarias de �ugias para poder invocar H�rcules. � preciso ser H�rcules. Quem sabe se este n�mero e esta nota que acabo de ler nos jornais: �19.915 foi o n�mero de vidros de xarope de alcatr�o e jata� vendidos no m�s passado�, n�o � j� uma forma nova para substituir os bichos? Tudo pode ser bicho; os pr�prios jornais, os mesmos artigos que combatem o mal, exp�em-se a servir de pasto ao jogo, se os empres�rios deste se lembrarem de vender sobre a primeira letra do artigo de amanh�. Uns compram nas letras A at� M., outros nas letras N at� Z; e, ao contr�rio da lan�a de T�lefo, que curava as feridas que fazia, aqui os rem�dios levam em si o veneno, como nas farm�cias.

A paix�o do azar � tal que, quando acabou a guerra franco-prussiana, Paris, n�o obstante os desastres de t�o dura campanha e a dor patri�tica da na��o, chegou a jogar em plena rua. Rompeu, entretanto, a Comuna. Um dos comunistas, o famoso Raul Rigault, encarregado da pol�cia da cidade, expediu um decreto, que podeis ler nas Mem�rias de Rochefort, tomo II, pag. 366. Esse decreto, depois de dois considerandos, tinha este �nico artigo: �O jogo de azar � formalmente proibido�. Pois assim t�o pequeno, sem taxa��o de pena nem indica��o de processo, foi cumprido sem hesita��o. A raz�o creio estar no poder da Comuna, que n�o se contentava com prender as pessoas, ia-as logo mandando para um mundo melhor. Da� a minha d�vida, por mais pura vontade que tenha a intend�ncia municipal rejeitando a nova concess�o ao jogo da pelota, e a pol�cia ca�ando os bichos. Creio que o mal est� muito fundo.

N�o digo que, por estar ferido, seja imposs�vel cur�-lo; digo que � preciso mais tempo que amanh� da rosa de Malherbe ou o dia inteiro da Batrachomyomachia. Neste poema, em que os ratos lutam com as r�s, J�piter, rindo de gosto, diz a Minerva: �Filha minha, vai ajudar os ratos, que sempre andam no teu templo, � cata da gordura e dos restos dos sacrif�cios�. J� ent�o os bichos davam de comer aos ratos! Minerva recusa; acha que � melhor rever as batalhas de cima, ou, como se diz moderna e vulgarmente, ver os touros de palanque... N�o, n�o basta aquele dia todo, nem os vinte dias da Il�ada; � preciso mais tempo e muita sa�de org�nica.

19 de julho

Este que aqui vedes jantou duas vezes fora de casa esta semana. A primeira foi com a Revista Brasileira, o jantar mensal e modesto, no qual, se n�o faltam iguarias para o est�mago, menos ainda as faltam para o esp�rito. Aquilo de Pascal, que o homem n�o � anjo nem besta, e que quando quer ser anjo � que fica besta, n�o cabe na comunh�o da Revista. Podemos dizer sem desdouro nem orgulho que o homem ali � ambas as coisas, ainda que se entenda o anjo como diabo e bom diabo. Sabe-se que este era um anjo antes da rebeli�o no c�u. Nos que j� estamos muito para c� da rebeli�o, n�o temos a perversidade de L�cifer. Enquanto a besta come, o anjo conversa e diz coisas cheias de galanteria. Basta notar que, apesar de l� estar um financeiro, n�o se tratou de finan�as. Quando muito, falou-se de insetos e um tudo-nada de div�rcio.

Uma das novidades de cada jantar da Revista � a lista dos pratos. Cada m�s tem a sua forma �an�loga ao ato�, como diziam os antigos an�ncios de festas, referindo-se ao discurso ou poesia que se havia de recitar. Desta vez foram p�ginas soltas do n�mero que ia sair, impressas de um lado, com a lista do outro. Quem quis pode assim saborear um trecho truncado do n�mero do dia 15, o primeiro de julho, n�mero bem composto e variado. Uma revista que dure n�o � coisa vulgar entre n�s, antes rara. Esta mesma Revista tem sucumbido e renascido, achando sempre esfor�o e disposi��o para continu�-la a perpetu�-la, como parece que suceder� agora.

O segundo jantar foi o do Dr. Assis Brasil. Quatro ou cinco dezenas de homens de boa vontade, com o chefe da Gazeta � frente, entenderam prestar uma homenagem ao nosso ilustre patr�cio, e escolheram a melhor prova de colabora��o, um banquete a que convidaram outras dezenas de homens da pol�tica, das letras, da ci�ncia, da ind�stria e do com�rcio. O sal�o do Cassino tinha um magn�fico aspecto, embaixo pelo arranjo da mesa, em cima pela agremia��o das senhoras que a comiss�o graciosamente convidou para ouvir os brindes. De outras vezes est� audi�ncia � o �nico doce que as pobres damas comem, e, sem desfazer nos oradores, creio ser �rg�o de todas elas dizendo que um pouco de doce real e peru de verdade n�o afiaria menos os seus ouvidos. Foi o que a comiss�o adivinhou agora. Mas, ainda sem isso, a concorr�ncia seria a mesma, e ainda maior se n�o fora o receio da chuva, tanta havia ca�do durante o dia.

O que elas viram e ouviram deve t�-las satisfeito. O aspecto dos convivas n�o seria desagrad�vel. Ao lado desse espet�culo, os bons e fortes sentimentos expressos pelos oradores, as palavras quentes, a cordialidade, o patriotismo de par com as afirma��es de afeto para com a antiga metr�pole, � nota que figurou em todos os discursos, � tudo fez da homenagem a Assis Brasil uma festa de fam�lia. O nosso eminente representante foi objeto de merecidos louvores. Ouviu relembrar e honrar os seus servi�os, os seus dotes morais e intelectuais; e as palavras de elogio, sobre serem cordiais, eram auto-risadas, vinham do governo, do jornalismo, da diplomacia. As letras e o senado n�o falaram propriamente dele, mas sendo ele o centro e a ocasi�o da festa, todas as coroas iam coro�-lo.

N�o quisera falar de mim; mas um pouco de egotismo n�o fica mal a um esp�rito geralmente desinteressado. As pessoas que me s�o �ntimas sabem que estou padecendo de um ouvido, e sabem tamb�m que na noite do banquete fiquei pior. Atribui � umidade o que tinha a sua causa em uma igreja de Porto-Alegre. Com efeito, no dia seguinte, abrindo os jornais, dei com telegrama daquela cidade noticiando que o Rev. padre J�lio Maria continuou na v�spera as suas confer�ncias, e que os aplausos tinham sido calorosos. Estava explicada a agrava��o da mol�stia. Digo isto, porque a mol�stia apareceu justamente no dia 13, em que o mesmo padre fez a primeira confer�ncia da segunda s�rie, conforme anterior telegrama, o qual acrescentava: �Audit�rio enorme; a igreja sem um lugar vazio. No final retumbantes palmas; verdadeira ova��o ao orador�.

Essas palmas dentro da igreja foram t�o fortes que repercutiram no meu gabinete e me entraram pelo ouvido, a ponto de o fazer adoecer. Quando ia melhor, em via de cura, continua o padre as confer�ncias, e repetiram-se as palmas. Eis-me aqui numa situa��o penosa. Desejo que as confer�ncias prossigam, uma vez que espalham verdades e rendem ova��es ao orador; mas n�o desejo menos ficar curado, e para isso era preciso que n�o fosse com palmas que dessem ao padre Maria noticiado efeito da sua grande eloq��ncia. O sil�ncio, um triste sil�ncio de contri��o, de piedade, de arrependimento, n�o viria pelo tel�grafo, nem me faria adoecer; mas seria preciso pedi-lo, e eu n�o pediria jamais uma coisa que me aproveitasse em detrimento de um princ�pio. Melhor � sofrer com paci�ncia, at� que acabe est� segunda s�rie.

N�o esque�ais, ou ficai sabendo que a mat�ria da primeira confer�ncia foi este tema: �Como muitos cat�licos s�o ateus pr�ticos�. Posto que esse tema pare�a prenhe de alus�es pessoais, e fora de d�vida que foi bem escolhido, e as palmas mostraram ao orador que havia falado a pessoas conversas. Dessa triste categoria de cat�licos ateus poucos conhe�o pessoalmente, e esses mesmos t�m o ate�smo t�o diminuto que, se ouvissem o orador, teriam rasgado as luvas com fren�ticos aplausos.

Adeus, leitor. Mas tenho tempo de dizer que, pela segunda vez, acabo de ler em Cleveland a palavra paternalismo. N�o sei se � de inven��o dele, se de outro americano, se dos ingleses. Sei que temos a coisa, mas n�o temos o nome, e seria bom tom�-lo, que � bonito e justo. A coisa � aquele v�cio de fazer depender tudo do governo, seja uma ponte, uma estrada, um aterro, uma carro�a, umas botas. Tudo se quer pago por ele com favores do Estado, e, se n�o paga, que o fa�a � sua custa. O presidente dos Estados Unidos execra esse v�cio, e assim o declarou em mensagem ao congresso, negando san��o a uma lei que; abre 417 cr�ditos no valor de oitenta milh�es de d�lares. O presidente falou sem rebu�o; aludiu a interesses locais e particulares, condenou o desamor ao bem p�blico, chamou extravagante a lei, somou as contas enormes que o governo j� tem de pagar este ano, e escreveu esta m�xima que, por �bvia, n�o serve menos de li��o aos povos: �A economia privada e a despesa medida s�o virtudes s�lidas que; conduzem � poupan�a e ao conforto�... O congresso leu as raz�es do veto, e, por dois ter�os, adotou definitivamente a lei, dando ao tesouro mais esta carga. A ci�ncia pol�tica h� de descobrir um processo de conciliar, nestas mat�rias, todos os Capit�lios e todas as Casa-Brancas. O que n�o impede que incluamos paternalismo no dicion�rios. Adeus, leitor.

26 de julho

Apaguemos a lanterna de Di�genes; achei um homem. N�o � pr�ncipe, nem eclesi�stico, nem fil�sofo, n�o pintou uma grande tela, n�o escreveu um belo livro, n�o descobriu nenhuma lei cient�fica. Tamb�m n�o fundou a ef�mera rep�blica do Loreto, e conseguintemente n�o fugiu com a caixa, como disse o tel�grafo acerca de um dos rebeldes, logo que a prov�ncia se submeteu �s autoridades legais do Peru. O ato da rebeldia n�o foi sequer her�ico, e a levada da caixa n�o tem merecimento, � a simples necessidade de um vi�tico. O p�o do ex�lio � amargo e duro; for�a � barr�-lo com manteiga.

N�o, o homem que achei, n�o � nada disso. � um barbeiro, mas tal barbeiro que, sendo barbeiro n�o � exatamente barbeiro. Perdoai esta logomaquia; o estilo ressente-se da exalta��o da minha alma. Achei um homem. Se aquele c�nico Di�genes pode ouvir, do lugar onde est�, as vozes c� de cima, deve cobrir-se de vergonha e tristeza; achei um homem. E importa notar que n�o andei atr�s dele. Estava em casa muito sossegado, com os olhos nos jornais e o pensamento nas estrelas, quando um pequenino an�ncio me deu rebate ao pensamento, e este desceu mais r�pido que o raio at� o papel. Ent�o li isto: �Vende-se uma casa de barbeiro fora da cidade, o ponto � bom e o capital diminuto; o dono vende por n�o entender...�

Eis a� o homem. N�o lhe ponho o nome, por n�o vir no an�ncio, mas a pr�pria falta dele faz crescer a pessoa. O ato sobra. Essa nobre confiss�o de ignor�ncia � um modelo �nico de lealdade, de veracidade, de humanidade. N�o penseis que vendo a loja (parece dizer naquelas poucas palavras do an�ncio) por estar rico, para ir passear � Europa, ou por qualquer outro motivo que � vista se dir�, como � uso escrever em convites destes. N�o, senhor; vendo a minha loja de barbeiro por n�o entender do of�cio. Parecia-me f�cil, a princ�pio: sab�o, uma navalha, uma cara, cuidei que n�o era preciso mais escola que o uso, e foi a minha ilus�o, a minha grande ilus�o. Vivi nela barbeando os homens. Pela sua parte, os homens vieram vindo, ajudando o meu erro; entravam mansos e sa�am pac�ficos. Agora, por�m, reconhe�o que n�o sou absolutamente barbeiro, e a vista do sangue que derramei, faz-me enfim recuar. Basta, Carvalho (este nome � necess�rio � prosopop�ia), basta, Carvalho! � tempo de abandonar o que n�o sabes. Que outros mais capazes tomem a tua freguesia...

A grandeza deste homem (escusado � diz�-lo) est� em ser �nico. Se outros barbeiros vendessem as lojas por falta de voca��o, o merecimento seria pouco ou nenhum. Assim os dentistas. Assim os farmac�uticos. Assim toda a casta de oficiais deste mundo, que preferem ir cavando as caras, as bocas e as covas, a vir dizer ch�mente que n�o entendem do of�cio. Esse ato seria a retifica��o da sociedade. Um mau barbeiro pode dar um bom guarda-livros, um excelente piloto, um banqueiro, um magistrado, um qu�mico, um te�logo. Cada homem seria assim devolvido ao lugar pr�prio e determinado. Nem por sombras ligo esta retifica��o dos empregos ao fato do envenenamento das duas crian�as pelo rem�dio dado na Santa Casa de Miseric�rdia. Um engano n�o prova nada; e se alguns farmac�uticos, autores de iguais trocas, t�m continuando a lutuosa faina, n�o h� raz�o para que a Santa Casa entregue a outras pessoas a distribui��o dos seus medicamentos, tanto mais que pessoas atuais os n�o preparam, e, no caso ocorrente, o preparado estava certo: a culpa foi das duas m�es. A queixa dada pela m�e da defunta ter� o destino desta, menos as pobres flores que Ol�via houver arranjado para a sepultura da v�tima. Tamb�m h� C�u para as queixas e para os inqu�ritos. O esquecimento p�blico � o responso cont�nuo que pede o eterno descanso para todas as folhas de papel despendidas com tais atos.

Sobre isto de inqu�ritos, perdi uma ilus�o. N�o era grande; mas as ilus�es, ainda pequenas, d�o outra cor a este mundo. Cuidava eu que os inqu�ritos eram sempre feitos, como est� escrito, pelo pr�prio magistrado; mas ouvi que alguns escriv�es (poucos) � que os fazem e redigem, supondo presente a pessoa que falta, como no whist se joga com um morto. Creio que � por economia de tempo, e tempo � dinheiro, dizem os americanos. O maior mal desse ato � n�o ser ver�dico, n�o o ser ilegal ou irregular. Se as dores humanas se esquecem, como se n�o h�o de esquecer as leis? E dado seja simples praxe, as praxes alteram-se. O maior mal, digo eu, � n�o ser ver�dico, posto que a� mesmo se possa dizer que a verdade aparece muita vez envolta na fic��o, e deve ser mais bela. As D�cadas n�o competem com os Lus�adas.

O ideal da praxe � a cabeleira do speaker. Os ingleses mudar�o a face da terra, antes que a cabe�a do presidente da C�mara. Este h� de estar ali com a eterna cabeleira branca e longa, at� meia-noite, e agora at� mais tarde, se � exato o telegrama desta semana, noticiando haver a C�mara dos Comuns resolvido levar as sess�es al�m daquele limite. N�o � que o n�o tenha feito muitas vezes; basta um exemplo c�lebre. Quando Gladstone deitou abaixo Disraeli, em 1852, acabou o seu discurso ao amanhecer, � um triste e frio amanhecer de inverno, que arrancou ao ministro ca�do esta palavra igualmente fria: �Ruim dia para ir a Osborne!� Agora vai ser sempre assim, tenham ou n�o os ministros de ir a Osborne pedir demiss�o. E o presidente firme, com a eterna cabeleira metida pela cabe�a abaixo. Sim, eu gosto da tradi��o; mas h� tradi��es que aborrecem, por in�teis e cansativas. De resto, cada povo tem as suas qualidades pr�prias e a diferen�a delas � que faz a harmonia do mundo. Desculpai o tru�smo e o neologismo.

Mas eu que falo humilde, baixo e rudo, devia lembrar-me, a prop�sito de inqu�ritos, que a clareza do estilo � uma das formas da veracidade do escritor. Parece-me ter falado um tanto obscuramente na semana passada acerca das pr�dicas do Padre J�lio Maria em Porto Alegre. Alguns amigos supuseram ver uma cr�tica ao padre naquilo que era apenas uma alus�o �s palmas na igreja, e ainda assim por causa de meu ouvido, que j� est� bom, dou-lhes esta not�cia. Que culpa tem o padre de ser eloq�ente? Ainda agora acabo de ler o discurso que ele proferiu na Santa Casa, em Juiz de Fora, a 5 de janeiro deste ano. O assunto era velho: a caridade. Mas o talento est� em fazer de assuntos velhos assuntos novos, � ou pelas id�ias ou pela forma, e o Padre J�lio Maria alcan�ou este fim por ambos os processos. Tamb�m ali foi aplaudido. Em verdade, se ele prefere os discursos como os escreve, � natural que os pr�prios ouvintes de Porto Alegre se sentissem arrebatados e esquecessem o templo pela palavra que o enchia. Um ouvido curado faz justi�a a todos.

E j� que falo em palmas, convido-os a envi�-las ao Congresso de S�o Paulo, que votou ou est� votando a est�tua do Padre Anchieta. � Padre Anchieta, � santo e grande homem, o novo mundo n�o esqueceu o teu apostolado. A� vais ser esculpido em forma que relembre a cultos e incultos o que foste e o que fizeste nesta parte da terra. Os paulistas bem merecem da hist�ria. N�o � s� a piedade que lhes agradecer�; tamb�m a justi�a reconhecer� esse ato justo. T�o alta e doce figura, como a do Padre Anchieta, n�o podia ficar nas velhas cr�nicas, nem unicamente nos belos versos de Varela. Mais palmas a S�o Paulo, que acaba de votar o subs�dio e a pens�o a Carlos Gomes e seus filhos. Salvador de Mendon�a, um dos que saudaram a aurora do nosso maestro (h� quantos anos!), mandou no serum dos cancerosos de New York uma esperan�a de cura para o autor do Guarani. Oxal� o encaminhe � vida, como o encaminhou � gl�ria. E pois que trato de m�sica, palmas ainda uma vez ao nosso austero h�spede Moreira de S�, que teve a sua festa h� quatro dias. A cr�tica disse o que devia do artista, a imprensa tem dito o que vale o homem. Eu subscrevo tudo, t�o viva trago comigo a sensa��o que me deu o seu violino mestre e m�gico.

Enfim, e porque tudo acaba na morte, uma l�grima por aquele que se chamou Dr. Rocha Lima. N�o sei se l�grima; quando se padece tanto e t�o longamente, a morte � liberdade, e a liberdade, qualquer que seja a sua esp�cie, � o sonho de todos os cativos. Rocha Lima deve ter sonhado, durante a agonia de tantos meses, com este desencadeamento que lhe tirou um triste supl�cio in�til.

2 de agosto

Avizinham-se os tempos. Este s�culo principiado com Paulo e Virg�nia, termina com Alfredo e Laura. N�o � j� o amor ing�nuo de Port-Louis, mas um id�lio tr�gico, como lhe chamou a Gazeta de anteontem, sem d�vida para empregar o t�tulo do �ltimo romance de Bourget. Em verdade, esse adolescente de quatorze anos, que procurou a morte por n�o poder vencer os desd�ns da vizinha de treze anos, faz temer a gera��o que a� vem inaugurar o s�culo XX. Que os dois se amassem, v�.

Tem-se visto dessas aprendizagens tempor�s, ensaios para v�os mais altos. Que ela n�o gostasse dele, tamb�m � poss�vel. Nem todas elas gostam logo dos primeiros olhos que as procuram; em tais casos, eles devem ir bater � porta de outro cora��o, que se abre ou n�o abre, e tudo � passar o tempo � espera do amor definitivo. Mas aquela aurora de sangue, aquela tentativa de fazer estourar a vida, na idade em que tudo manda guard�-la e faz�-la crescer, eis a� um problema obscuro � ou demasiado claro, pois tudo se reduz a um madrugar de paix�es violentas. E o amor de Alfredo era ainda mais tempor�o do que parece; vinha desde meses, muito antes dos quatorze anos, quando ela teria pouco mais de doze.

Repito, os tempos se avizinham. Agora o amor precoce; vai chegar o amor livre, se � verdade o que me anunciou, h� dias, um esp�rita. O amor livre n�o � precisamente o que sup�es, � um amor a carnet e l�pis, como nos bailes se marcam as valsas e quadrilhas, at� acabar no cotilh�o. Esse ser� o amor lib�rrimo: durar� tr�s compassos. O amor livre acompanha os estados da alma; pode durar cinco anos, pode n�o passar de seis meses, tr�s semanas ou duas. Aos valsistas plena liberdade. O div�rcio, que o senado fez cair agora, ser� rem�dio desnecess�rio. Nem div�rcio nem cons�rcio.

Mas a maior prova de que os tempos se avizinham � a que me deu o esp�rita de que trato. Estamos na v�spera da felicidade humana. Vai acabar o dinheiro. A primeira vista, parece absurdo que a aus�ncia do dinheiro traga a prosperidade da terra; mas, ouvida a explica��o (que eu nunca li os livros desta escola) compreende-se logo; o dinheiro acaba por ser in�til. Tudo se far� troca por troca; os alfaiates dar�o as cal�as de gra�a e receber�o de gra�a os sapatos e os chap�us. O resto da vida e do mundo ir� pelo mesmo processo. O dinheiro fica abolido. A pr�pria id�ia do dinheiro perecer� em duas gera��es.

Assim que, o mal financeiro e seu rem�dio, tema de tantas cogita��es e palestras, acabar� por si mesmo, n�o ficando rem�dio nem mal. N�o haver� finan�as, naturalmente, n�o haver� tesouro, nem impostos, nem alf�ndegas secas ou molhadas. Extinguem-se os desfalques. Este �ltimo efeito diminui os inqu�ritos, � falo dos inqu�ritos rigorosos, nem conhe�o outros. A virtude, ainda obrigada, � sublime. Os desfalques, andam t�o a rodo que a gente de �nimo frouxo j� inquire de si mesma se isto de levar dinheiro das gavetas do Estado ou do patr�o � verdadeiramente delito ou reivindica��o necess�ria. Tudo vai do modo de considerar o dinheiro p�blico ou alheio. Se se entender que � deveras p�blico e n�o alheio, mete-se no bolso a moral, a lei e o dinheiro, e brilha-se por algumas semanas. � sabido que dinheiro de desfalque nunca chega a comprar um p�o para a velhice. Vai-se em folgares, e a pessoa que se d� por muito feliz, se n�o perde o emprego.

Acabado o dinheiro, os anglo-americanos n�o assistir�o a luta do ouro e da prata, como esta que se trava agora, para eleger o candidato � presid�ncia da Rep�blica. Nunca amei o esp�rito pr�tico daquela na��o. Partidos que se podiam distinguir sonoramente, por meio de teorias bonitas, e em falta delas, por algumas daquelas palavras grandes e doces, que entram pela alma do eleitor e a embebedam, preferem escrever umas plataformas de negociantes. Dou de barato que n�o haja teorias nem palavras, mas simples pedidos de rua, distribui��o de cart�es pelo correio, um ou outro recrutamento para n�o fazer da Constitui��o uma pe�a r�gida, mas flex�vel, alguma amea�a e o resto; tudo isso � melhor que discutir ouro e prata em casar�es, diante de centenas de delegados, e votar por um ou outro desses metais. E qual vencer� em dezembro pr�ximo? Parece-me que o ouro, se � certo o que dizem os ouristas; mas afirmando os pratistas que � a prata, melhor � esperar as elei��es. Ouro ou prata h� de ser dif�cil que o rei D�lar abdique, como quer o espiritismo. Uma folha, em que vem gravada a apoteose de Mac-Kinley, candidato do partido republicano, anuncia um casamento que se deve ter efetuado a 7 do m�s passado. A noiva conta vinte anos e possui quatro milh�es de d�lares. N�o � muito em terra onde os milh�es chovem; mas esta qualidade parece ser t�o principal que duas vezes o noticiarista fala nela. �Miss Uobarts, a despeito dos seus quatro milh�es de d�lares...� E mais abaixo: �os bens da noiva s�o calculados em quatro milh�es de d�lares.� Como � que numa regi�o destas se h� de abolir o dinheiro e restringir o casamento a uma troca de cal�as e vestidos?

Pelo lado psicol�gico e po�tico, perderemos muito com a aboli��o do dinheiro. Ningu�m entender�, daqui a meio s�culo, o bom conselho de Iago a Roderigo, quando lhe diz e torna a dizer, tr�s e quatro vezes, que meta dinheiro na bolsa. Desde ent�o, j� antes, e at� agora � com ele que se alcan�am grandes e pequenas coisas, p�blicas e secretas. Mete dinheiro na bolsa, � ou no bolso, diremos hoje, e anda, para diante, firme, confian�a na alma, ainda que tenhas feito algum neg�cio escuro. N�o h� escurid�o quando ainda h� f�sforos. Mete dinheiro no bolso. Vende-te bem, n�o compres mal os outros, corrompe e s� corrompido, mas n�o te esque�as do dinheiro, que � com que se compram os mel�es. Mete dinheiro no bolso.

Os conselhos de Iago, note-se bem, serviriam antes ao adolescente Alfredo, que tentou morrer por Laura. Tamb�m Roderigo queria matar-se por Desd�mona, que o n�o ama e desposou Otelo; n�o era com rev�lver, que ainda n�o havia, mas por um mergulho na �gua. O honesto Iago � que lhe tira a id�ia da cabe�a e promete ajud�-lo a vencer, uma vez que meta dinheiro na bolsa. Assim podemos falar ao jovem Alfredo. N�o te mates, namorado; mete dinheiro no bolso, e caminha. A vida � larga e h� muitas flores na estrada. Pode ser at� que essa mesma flor em bot�o, agora esquiva, quando vier a desabrochar, pe�a um lugar na tua botoeira, lado do cora��o. Make money. E depressa, depressa, antes que o dinheiro acabe, como quer o espiritismo, a n�o ser que o esp�rita Torteroli acabe primeiro que ele, o que � quase certo.

9 de agosto

Quando se julgarem os tempos, a semana que passou apresentar� ao Senhor uma bela f� de of�cio e ver� o seu nome inscrito entre as melhores deste ano.

� E tu que fizeste?

� Senhor, eu creio haver ganho um bom lugar. Os meus acontecimentos n�o foram todos da mesma esp�cie, nem podiam s�-lo, mas foram todos importantes e graves. Antes de tudo, embora n�o v� por ordem cronol�gica, a Inglaterra devolveu a Ilha da Trindade ao Brasil. Esta ilha foi um dia tomada por ingleses, ao que dizem para esta��o de um cabo telegr�fico. Os brasileiros tiveram a not�cia pelos jornais, quando a ocupa��o durava j� meses e o chefe do gabinete ingl�s que havia presidido � captura j� estava descansando dos trabalhos e outro chefe havia subido ao poder. Nestas coisas de ilhas capturadas, os gabinetes s�o solid�rios, e Salisbury acompanhou Rosebery, como se n�o fossem advers�rios pol�ticos. Os brasileiros, por�m, sentiram a dor do ato, e assim o clamaram pela boca legislativa e pela boca executiva, pela boca da imprensa e pela boca popular, com tal unanimidade que produzia um belo coro patri�tico. Ent�o Portugal, que conhecia os antecedentes da ilha interveio na contenda, deu � Gr�-Bretanha as raz�es pelas quais a ilha era brasileira, s� brasileira. � preciso confessar que a velha Inglaterra conhece muito bem hist�ria e geografia, que s�o professadas nas suas universidades com grande apuro; mas h� casos em que o melhor � meter estas duas disciplinas no bolso e ir estud�-las nas universidades estrangeiras. Foi o que sucedeu; Coimbra ensinou a Cambridge, e Cambridge achou que era assim, que a ilha era realmente brasileira, e mandou corrigir as cartas da edi��o Rosebery, onde a ilha da Trindade era uma esta��o telegr�fica de Sir John Pender.

� Ent�o tudo acabou em paz?

� Plena paz.

� Conquanto se trate de hereges, quero louv�-los pelo ato de restituir o seu a seu dono. Que mais houve, semana?

� Senhor, houve uns presentes de ouro e prata, tinteiros, canetas, penas, ofertados pelos jurados da 7� sess�o ordin�ria de 1896 do Rio de Janeiro ao juiz e aos promotores em sinal de estima, alta considera��o e gratid�o pelas maneiras delicadas com que foram tratados durante toda a sess�o. O escriv�o recebeu por igual motivo uma piteira de �mbar. Este ato em si mesmo, � quase vulgar; mas o que ele significa � muito. Significa um imenso progresso nos costumes daquele pa�s. O j�ri � institui��o antiga no Brasil. � servi�o gratuito e obrigat�rio; todos t�m que deixar os neg�cios para ir julgar os seus pares, sob pena de multa de vinte mil-r�is por dia. Se fosse s� isso, era dever que todo cidad�o cumpriria de boa vontade; mas havia mais. As maneiras descorteses, duras e brutais com que eram tratados pelos magistrados e advogados n�o t�m descri��o poss�vel.

Nos primeiros anos os jurados eram recebidos a pau, � porta do antigo aljube, por um meirinho: as senten�as produziam sempre contra eles alguma coisa, porque, se absolviam o r�u ou minoravam a pena, os magistrados quebravam-lhes a cara; se, ao contr�rio, condenavam o r�u, os advogados davam-lhos pontap�s e murros. Entre muitos casos que se podiam escrever e s�o ali conhecidos de toda a gente, figura o que sucedeu em mar�o ou abril de 1877. Havia um jurado que, pelo tamanho, era quase menino. Al�m de pequeno, magro; al�m de magro, doente. Pois os promotores, o juiz, o escriv�o e os advogados, antes de come�ar a audi�ncia, divertiram-se em fazer dele peteca. O pobrezinho ia das m�os de uns para as dos outros, no meio de grandes risadas. Os outros jurados, em vez de acudir em defesa do colega, riram tamb�m por medo e por adula��o. O infeliz saiu deitando sangue pela boca. Pequenas coisas, cacholetas, respostas de desprezo, piparotes eram comuns. Alguns magistrados mais dados � chala�a puxavam-lhe o nariz ou faziam-lhe caretas. Um velho promotor tinha de costume, quando adivinhava o voto de algum deles, apont�-lo com o dedo, no meio do discurso, interrogando: �Ser� isto entendido por aquela besta de �culos que olha para mim?� Muitas vezes o juiz lia primeiramente para si as respostas do conselho de jurados e, se elas eram favor�veis ao r�u, dizia antes de come�ar a l�-las em voz alta: �Vou ler agora a lista das patadas que deram os Srs. Ju�zes de fato.� No meio da polidez geral do povo, esta exce��o do juiz enchia a muita gente de piedade e de indigna��o; mas ningu�m ousava propor uma reforma nos costumes...

� Fraqueza de �nimo; os maus costumes reformam-se.

� Uma era nova come�ou em 1883; j� ent�o os jurados recebiam poucos cascudos e eram chamados apenas camel�rios. Anos depois, em 1887, houve certo esc�ndalo por uma tentativa de rea��o dos costumes antigos. A um dos jurados mandou p�r o juiz uma cabe�a de burro. Era muito bem feita a cabe�a; dois buracos serviam aos olhos e por um mecanismo engenhoso o homem abanava as orelhas de quando em quando, como se enxotasse moscas. Apesar do esc�ndalo, a cabe�a ainda foi empregada nos quatro anos posteriores. No fim de 1892 sentiu-se not�vel mudan�a nas maneiras dos ju�zes e promotores. J� alguns destes tiravam o chap�u aos jurados. Em setembro de 1893 apenas se ouviu a um daqueles dizer a um jurado que lhe perguntava pela sa�de: �Passa fora!� Mas, pouco a pouco, as palavras grosseiras e gestos atrevidos foram acabando. Em 1895, havia apenas indiferen�a; em 1896, os jurados da 7� sess�o reconheceram que a polidez reinava enfim no tribunal popular. O entusiasmo desta vit�ria, alcan�ada por uma longa paci�ncia, explica os presentes de ouro e prata. Eles marcam na civiliza��o judici�ria daquele pa�s uma data memor�vel. Por isso � que me encho de orgulho.

� E h� grandes mortos?

� N�o tive nenhum. Um s� morto, n�o grande, mas digno de apre�o, de afeto e de pesar, um pobre jornalista que acabou com a pena na m�o. Quem o conheceu na mocidade n�o podia antever a triste vida nem a triste morte. O pai, diretor do Jornal do Com�rcio, do Rio de Janeiro, foi uma grande for�a no seu tempo. Conta-se que podia quanto queria; mas a morte acabou com a for�a, e o filho teve de buscar em si mesmo, n�o no nome, o trabalho necess�rio. N�o fez outra coisa durante a vida inteira; trabalhou no jornal e no teatro, fez rir, e de quantas risadas provocou, muitas acabaram antes pela careta da morte, outras esqueceram talvez o autor delas; pobre Augusto de Castro! Era em seu tempo um dandy. Se pudesse adivinhar o que sucederia depois! Senhor, o que eu achei e deixei na terra foi a saudade do passado e o gozo do presente; muitos gemem o que foi, todos saboreiam o que �, raros cuidam do que ser�. Um cl�ssico portugu�s (e aquele finado apreciava os cl�ssicos da sua l�ngua) escreveu que era prov�rbio ou dito alheio � n�o me lembra bem � que os italianos se governam pelo passado, os franceses pelo presente e os espanh�is pelo que h� de vir. E acrescenta o cl�ssico: �Aqui quisera eu dar uma repreens�o de pena � nossa Espanha...� Repreens�o por qu�, Senhor? Eu creio que o mal � n�o cuidar no dia seguinte.

� Est�s enganada, oh! muito enganada! Cuidar no dia seguinte � uma coisa; mas governar-se pelo que h� de vir! Eu deixei aos homens o presente, que � necess�rio � vida, e o passado, que � preciso ao cora��o. O futuro � meu. Que sabe um tempo de outro tempo? Que semana pode adivinhar a semana seguinte?

16 de agosto

Esta semana � toda de poesia. J� a primeira linha � um verso, boa maneira de entrar em mat�ria. Assim que, podeis fugir daqui, filisteus de uma figa, e ir dizer entre v�s, como aquele outro de Heine: �Temos hoje uma bela temperatura.� O que sucedeu em prosa nestes sete dias merecia decerto algum lugar, se a poesia n�o fosse o primeiro dos neg�cios humanos ou se o espa�o desse para tanto; mas n�o d�. Por exemplo, n�o pode conter tudo o que sugere a reuni�o dos presidentes de bancos de nossa pra�a. Chega, quando muito, para dizer que o rem�dio t�o procurado para o mal financeiro, � e naturalmente econ�mico, � foi achado depois de tantas cogita��es. Os diretores, acabada a reuni�o, voltaram aos seus respectivos bancos e a taxa de c�mbio subiu logo 1/8. A Bruxa espantou-se com isto e declarou n�o entender o c�mbio. A poetisa Elvira Gama parecia hav�-lo entendido, no soneto que ontem publicou aqui.

Doce c�mbio...

Mas trata de amores, como se v� da segunda parte do verso:

...de seres atra�dos,

Ligados pela a��o de igual desejo.

Eu � que o entendi de vez. A primeira reuni�o fez subir um degrau, a segunda far� subir outro, e vir�o muitas outras at� que o c�mbio chegue ao patamar da escada. A� convid�-lo-�o a descansar um pouco, e, uma vez entrado na sala, fechar-lhe-�o as portas e deix�-lo-�o bradar � vontade. � Est�s a 27, responder�o os diretores do banco, podes quebrar os trastes e a cabe�a, est�s a 27, n�o desce de 27.

Quanto � desaven�a entre a bancada mineira e a bancada paulista, outro assunto de prosa da semana, menos ainda pode caber aqui, ele e tudo o que sugere relativamente ao futuro. Digo s� que aos homens pol�ticos da nossa terra ouvi sempre este axioma: que os partidos s�o necess�rios ao governo de uma na��o. Partidos, isto �, duas ou mais correntes de opini�o organizadas, que v�o a todas as partes do pa�s. Na nossa federa��o esta necessidade � uma condi��o de unidade. A C�mara de tantas bancadas quantos Estados; o pr�prio Rio de Janeiro, que por estar mais perto da capital cheira ainda a prov�ncia, e o Distrito Federal, que constitucionalmente n�o � Estado, tem cada um a sua bancada particular. Ora, todas essas bancadas n�o s� impedir�o a forma��o dos partidos, mas podem chegar a destruir o �nico partido existente e fazer da C�mara uma constela��o de sentimentos locais, uma arena de rivalidades estaduais. Quando muito, os Estados pequenos mergulhar�o nos grandes, e ficaremos com seis ou sete reinos, ducados e principados, dos quais mais de um querer� ser a Pr�ssia.

Entro a devanear. Tudo porque n�o me deixei ir pela poesia adiante. Pois vamos a ela, e comecemos pelo quarto jantar da Revista Brasileira, a que n�o faltou poesia nem alegria. A alegria, quando tanta gente anda a tremer pelas fal�ncias no fim do m�s, � prova de que a Revista n�o tem entranhas ou s� as tem para os seus banquetes. Ela pode responder, entretanto, que a �nica fal�ncia que teme deveras � a do esp�rito. No dia em que meia d�zia de homens n�o puderem trocar duas d�zias de id�ias, tudo est� acabado, os filisteus tomar�o conta da cidade e do mundo e repetir�o uns aos outros a mesma exclama��o daquele de Heine: Es ist heute eine sch�ne Witterung! Mas enquanto o esp�rito n�o falir, a Revista comer� os seus jantares mensais at� que venha o cent�simo, que ser� de estrondo. Se eu me n�o achar entre os convivas, � que estarei morto; pe�o desde j� aos sobreviventes que bebam � minha sa�de.

A demais poesia da semana consistiu em tr�s anivers�rios natal�cios de poetas: o de Gon�alves Dias a 10, o de Magalh�es e Carlos a 13. O �nico popular destes poetas � ainda o autor da �Can��o do Ex�lio�. Magalh�es teve principalmente uma p�gina popular, que todos os rapazes do meu tempo (e j� n�o era a mesma gera��o) traziam de cor. O Carlos n�o chegou ao p�blico. Mas s�o tr�s nomes nacionais, e o maior deles tem a est�tua que lhe deu a sua terra. N�o indaguemos da imortalidade. Bocage, louvado por Filinto, improvisou uma ode entusi�stica, fechada por esta c�lebre entona��o: Posteridade, �s minha! E ningu�m j� lia Filinto, quando Bocage ainda era devorado. O pr�prio Bocage, a despeito dos belos versos que deixou, est� pedindo uma escolha dos sete volumes, � ou dos seis, para falar honestamente.

Justamente anteontem convers�vamos alguns acerca da sobreviv�ncia de livros e de autores franceses deste s�culo. Entr�vamos, em bom sentido, naquela falange de Musset:

Electeurs brevet�s des morts et des vivants.

e n�o foi pequeno o nosso trabalho abatendo cabe�as altivas. Nem Renan escapou, nem Taine; e, se n�o escapou Taine, que valor pode ter a profecia dele sobre as novelas e contos de Merim�e? Il est probable qu�en l�an 2000 on relira la PARTIE DE TRIC-TRAC, pour savoir ce qu�il en co�te manquer une fois � l�honneur. Taine n�o fez como os profetas hebreus, que afirmam sem demonstrar; ele analisa as causas da vitalidade das novelas de M�rim�e, os elementos que serviram � composi��o, o m�todo e a arte da composi��o. O tempo dir� se acertou; e pode suceder que o profeta acabe antes da profecia e que no ano 2000 ningu�m leia a Hist�ria da Literatura Inglesa, por mais admir�vel que seja esse livro.

Mas no ano 2000 os contos de M�rim�e ter�o s�culo e meio. Que � s�culo e meio! No m�s findo, o poeta laureado de Inglaterra falou no centen�rio da morte de Burns, cuja est�tua era inaugurada; parodiou um dito antigo, dizendo enfaticamente que n�o se pode julgar seguro o renome de um homem antes de 100 anos depois dele morto. Conclui que Burns chegara ao ponto donde n�o seria mais derribado. N�o discuto opini�es de poetas nem de cr�ticos, mas bem pode ser que seja verdadeira. Em tal caso, o autor de Carmem estar� igualmente seguro, se o seu profeta acertou. Resta lembrar que a vida dos livros � v�ria como a dos homens. Uns morrem de vinte, outros de cinq�enta, outros de cem anos, ou de noventa e nove, para n�o desmentir o poeta laureado. Muitos h� que, passado o s�culo, caem nas bibliotecas, onde a curiosidade os vai ver, e donde podem sair em parte para a hist�ria, em parte para os floril�gios. Ora, esse prolongamento da vida, curto ou longo, � um pequeno retalho de gl�ria. A imortalidade � que � de poucos.

N�o h� muito, comemoramos o centen�rio de Jos� Bas�lio, e ainda ontem encontrei o jovem talento e gosto que iniciou essa homenagem. H�o de lembrar-se que n�o foi ruidosa; n�o teve o esplendor da de Burns, cuja sombra viu chegar de todas as partes do mundo em que se fala a l�ngua inglesa presentes votivos e deputa��es especiais. O chefe do partido liberal presidia �s festas, onde proferiu dois discursos. C� tamb�m eram passados cem anos; mas, ou h� menor expans�o aqui em mat�ria de poesia, ou o autor do Uruguai caminha para as bibliotecas e para a devo��o de poucos. N�o sei se ao cabo de outro s�culo haver� outro Magalh�es que inicie uma celebra��o. Talvez j� o poeta esteja unicamente nos floril�gios com alguns dos mais belos versos que se t�m escrito na nossa l�ngua. � ainda uma sombra de gl�ria. A moeda que achamos entre ru�nas tem o pre�o da antig�idade; a do nosso poeta ter� a da pr�pria m�o que lhe deu cunho. Se afinal se perder, haver� vivido.

23 de agosto

Contrastes da vida, que s�o as obras de imagina��o ao p� de v�s!

Vinha eu de um banco, aonde fora saber not�cias do c�mbio. N�o tenho rela��es diretas com o c�mbio; n�o saco sobre Londres, nem sobre qualquer outro ponto da terra, que � assaz vasta, e eu demasiado pequeno. Mas tudo o que compro caro, dizem-me que � culpa do c�mbio. �Que quer o senhor que eu fa�a com este c�mbio a 9?� perguntam-me. Em v�o leio os jornais; o c�mbio n�o sobe de 9. O que faz � variar; ora � 9 1/8, ora 9 1/4, ora 9 3/8. Dorme-se com ele a 9 15/16, acorda-se a 9 3/4. Ao meio-dia est� a 9 1/2. Um eterno vaiv�m na mesma eterna casa. Sucedeu o que se d� com tudo; habituei-me a essa triste especula��o de 9, e dei de m�o a todas as esperan�as de ver o c�mbio a 10.

De repente, ou�o dizer na rua que o c�mbio baixara � casa dos 8. A princ�pio n�o acreditei; era uma inven��o de mau gosto para assustar a gente, ou algum inimigo achara aquele meio de me fazer mal. Mas tanto me repetiram a not�cia, que resolvi ir �s casas argent�rias saber se realmente o c�mbio descera a 8. Em caminho quis calcular o pre�o das cal�as e do p�o, mas n�o achei nada, vi s� que seria mais caro. Entrei no primeiro banco, � m�o, e at� agora n�o sei qual foi. Gente bastante: todos os olhos fitavam as tabelas. Vi um 8, acompanhado de pequenos algarismos, que a cegueira da como��o n�o me permitiu discernir. Que me importavam estes? Um quarto, um oitavo, tr�s oitavos, tudo me era indiferente, uma vez que o fatal n�mero 8 l� estava. Esse algarismo, que eu presumia nunca ver nas tabelas cambiais, ali me apareceu com os seus dois c�rculos, um por cima do outro. Pareceu-me um par de olhos tortos e ir�nicos.

Perguntei a um desconhecido se era verdade. Respondeu-me que era verdade. Quanto � causa, quando lhe perguntei por ela, respondeu-me com aquele gesto de ignor�ncia, que consiste em fazer cair os cantos da boca. Se bem me lembro, acrescentou o gesto de abrir os bra�os com as m�os espalmadas, que � a mesma ignor�ncia em it�lico. Compreendi que n�o sabia a causa; mas o efeito ali estava, e todos os olhos em cima dele, sem a consterna��o nem o terror que deviam ter os meus. Sa�; na Rua da Alf�ndega, esquina da da Candel�ria, havia alguma agita��o, certo burburinho, mas n�o pude colher mais do que j� sabia, isto �, que o c�mbio baixara a 8. Um perverso, vendo-me apavorado, assegurava a outro que a queda a 7 n�o era imposs�vel. Quis ir ao meu alfaiate para que me reduzisse a nova tabela ao pre�o que teria de pagar pelas cal�as, mas � certo que ningu�m se apressa em receber uma not�cia m�. Que pode suceder? disse comigo; chegarmos � aroz�ia; ser� a restaura��o da nossa idade pr�-hist�rica, e um caminho para o �den, avant la lettre.

Enquanto seguia na dire��o da Rua Primeiro de mar�o, ouvia falar do c�mbio. Quase a dobrar a esquina, um homem lia a outro as cota��es dos fundos. Tinham-se vendido a��es do Banco Emissor de Pernambuco a mil e quinhentos; as deb�ntures da Leopoldina chegaram a obter seis mil setecentos e cinq�enta; das a��es da Melhoramentos do Maranh�o havia ofertas a quatro mil e quinhentos, mas ningu�m lhes pegava. Dobrei a esquina, entrei na Rua Primeiro de mar�o, em dire��o ao Carceler. Ia costeando as vitrinas de cambistas, cheias de ouro, muita libra, muito franco, muito d�lar, tudo empilhado, esperando os fregueses. Vinha de dentro um fedor judaico de entontecer, mas a vista das libras restitu�a o equil�brio ao c�rebro, e fazia-me parar, mirar, cobi�ar...

� Vamos! exclamei, olhando para o c�u.

Que vi, ent�o, leitor amigo? Na igreja da Cruz dos Militares, dentro do nicho de S�o Jo�o, estavam tr�s pombas. Uma pousava na cabe�a do ap�stolo, outra na cabe�a da � guia, outra no livro aberto. Esta parecia ler, mas n�o lia, porque abriu logo as asas e trepou � cabe�a do ap�stolo, e a que estava na cabe�a do ap�stolo, desceu � cabe�a da � guia, e a que estava na cabe�a da � guia, passou ao livro. Uma quarta pomba veio ter com elas. Ent�o come�aram todas a subir e a descer, ora parando por alguns segundos, e o santo quieto, deixando que elas lhe contornassem o pesco�o e os emblemas, como se n�o tivesse outro of�cio que esse de dar pouso �s pombas.

Parei e disse comigo: Contrastes da vida, que s�o as obras da imagina��o ao p� de v�s? Nenhuma daquelas pombas pensa no c�mbio, nem na baixa, nem no que h� de vestir, nem no que h� de comer. Eis ali a verdadeira gente crist�, eis o serm�o da montanha, a dois passos dos bancos, �s pr�prias barbas destas casas de cambistas que me enchem de inveja. Talvez na alma de algum destes homens viva ainda a pr�pria alma de um antigo que ouviu discurso de Jesus, e n�o trocou por este o Deus de Abra�o, de Isaac e de Jac�. Cuida das libras, como eu, que visto e me sustento pelo valor delas, mas eis aqui o que dizem as pombas, repetindo o serm�o da montanha: �N�o andeis cuidadosos da vossa vida, que comereis, nem para o vosso corpo, que vestireis... Olhai para as aves do c�u, que n�o semeiam, nem segam, nem fazem provimentos nos celeiros; e contudo, vosso pai celestial as sustenta... E por que andais v�s sol�citos pelo vestido? Considerai como crescem os l�rios do campo; eles n�o trabalham nem fiam... N�o andeis inquietos pelo dia de amanh�. Porque o dia de amanh� a si mesmo trar� o seu cuidado; ao de hoje basta a sua pr�pria afli��o.� (S�o Mateus.)

Realmente, n�o cuidavam de nada aquelas pombas. Onde � o ninho delas? Perto ou longe, gostam de vir aqui � �guia de Patmos. Alguma vez ir�o ao ap�stolo do outro nicho, S�o Pedro, creio; mas S�o Jo�o � que as namora, neste dia de c�mbio baixo, como para fazer contraste com a besta do Apocalipse, a famosa besta de sete cabe�as e dez cornos, � n�mero fat�dico � talvez a taxa do c�mbio de amanh� (7/10).

Afinal deixei a contempla��o das pombas e fui-me � farm�cia, a uma das farm�cias que h� naquela rua. Ia comprar um rem�dio; pediram-me por ele quantia grossa. Como eu estranhasse o pre�o, replicou-me o farmac�utico: �Mas, que quer o senhor que eu fa�a com este c�mbio a 8?� Como ao grande Gama, arrepiaram-se-me as carnes e o cabelo, mas s� de ouvi-lo. A vista era boa, serena, quase risonha. Quis raciocinar, mas racioc�nio � uma coisa e medicamento � outra; sa� de l� com o rem�dio e um acr�scimo de quinhentos r�is no pre�o. Contaram-se que j� n�o h� tost�es nas farm�cias, nem tost�es, menos ainda vint�ns. Tudo custa mil-r�is ou mil e quinhentos, dois mil r�is ou dois mil e quinhentos, e assim por diante. Para a contabilidade �, realmente, mais f�cil; e pode ser que o pr�prio enfermo ganhe com isso � a confian�a, metade da cura.

Na rua tornei a erguer os olhos �s pombas. S� vi uma, pousada no livro. Que tens tu? perguntei-lhe c� de baixo, por um modo sugestivo. Se � a besta de sete cabe�as, n�o te importes que venha, contanto que n�o lhe cortes nenhuma. J� temos a de oito: menos de sete cabe�as � nada. Pagarei nove mil-r�is pelo rem�dio, mas antes nove que quatorze, no dia em que a besta ficar descabe�ada, porque ent�o o mais barato � o melhor de todos os rem�dios. E a pomba, pelo mesmo processo sugestivo:

� Que tenho eu com rem�dios, homem de pouca f�? O ar e o mato s�o as minhas boticas.

Quis pedir socorro ao ap�stolo; mas o m�rmore, � ou a vista me engana, ou o ap�stolo gosta das suas pombas amigas, � o m�rmore sorriu e n�o voltou a cara para n�o desmentir o estatu�rio. Sorriu, e a pomba saltou-lhe � cabe�a, para lhe tirar comida, pagar, ou para lhe dar um beijo.

30 de agosto

Eis aqui o que diz o evangelista S. Marcos, X, 13, 14: �Ent�o lhe apresentavam uns meninos para que os tocasse; mas os disc�pulos amea�avam aos que lho apresentavam. O que vendo Jesus, levou-o muito a mal, e disse-lhes: �Deixai vir a mim os pequeninos, e n�o os embaraceis, porque dos tais � o reino de Deus.� Farei como Jesus, em rela��o aos casos mi�dos da semana, que os grandes querem abafar e p�r de lado. Nesta semana fez-se hist�ria e larga hist�ria, uma p�blica, outra particular ou secreta, que n�o sei se s�o sin�nimos, nem estou para ir agora aos dicion�rios; mas fez-se muita hist�ria, e ainda se far� hist�ria, of�cio que n�o � meu.

N�o � meu of�cio faz�-la nem cont�-la. Se pudesse adivinh�-la, sim, senhor. J� que estamos com a It�lia em frente, deixem-me lembrar um grave historiador italiano do s�culo XVI, que nada tem com os c�nsules deste s�culo em S. Paulo, e que escreveu de Savonarola o que sabemos daquele homem, mas � melhor dizer pela l�ngua de ambos: �Savonarola... faceva professione di anteveder le cose future.� Ah! se eu pudesse exercer o mesmo of�cio! Teria contado domingo passado a semana que acabou ontem, e contaria hoje a que come�a amanh�. N�o iria por boatos, que geralmente n�o se realizam, nem por indu��es, que falham muita vez. Ou�o desde pequeno (e ainda agora ouvi) que os nossos neg�cios se resolvem pelo imprevisto. Pois � o imprevisto que eu quisera ver como se estivesse acontecendo, e cont�-lo sete dias antes. Assim os leitores aprenderiam comigo, n�o a hist�ria que se aprende nos gin�sios e faculdades, n�o a que se vende nas livrarias, mas a que anda encoberta, como o c�u desta semana. Desde segunda-feira, dia de S. Bartolomeu, que estamos quase sem azul do c�u, pouca luz, essa mesma de vermelh�o, e raras estrelas. � o futuro. A lua pol�tica tamb�m andou vermelha. Ventou de quando em quando. O c�u cobriu-se. Eu quisera ter o of�cio de Savonarola, apesar de italiano.

Mas n�o me cabendo contar os grandes fatos, deixai vir a mim os pequeninos, como pedia Jesus. Um dos mais escassos e obscuros foi a conspira��o descoberta quarta-feira no Hosp�cio dos Alienados. Alguns doidos tinham preparado um movimento para matar os guardas, abrir as portas e vir gozar c� fora o ar livre, ainda que nublado. Essa curiosa conspira��o � sintoma de algum ju�zo. Tramar a fuga no mais ardente dos sucessos exteriores, quando a pol�cia era pouca para guardar a cidade, mostra que os conspiradores, ou s�o menos alienados do que parecem, ou andam em comunica��o com outros doidos c� de fora. Mas quem ser�o estes? Nem sempre � f�cil distinguir, neste fim de s�culo, um alienado de um ajuizado; ao contr�rio, h� destes que parecem aqueles, e vice-versa. Tu que me l�s, podes ser um mentecapto, e talvez rias desta minha lembran�a, tanta � a consci�ncia que tens do teu ju�zo. Tamb�m pode ser que o mentecapto seja eu.

Em verdade, n�o h� certeza nesta mat�ria; � vista da sagacidade de uns e do estonteamento de outros. O melhor seria uma lei que abolisse a aliena��o mental, revogando as disposi��es em contr�rio, e ordenando que os supostos doidos fossem restitu�dos � sociedade, com indeniza��o. Sei que, em geral, preferimos violar a lei a p�r outra nova; mas, para seguran�a dos h�spedes da Praia Vermelha, aconselho este segundo processo. E n�o s� daqueles, se n�o tamb�m para a tua e minha seguran�a; podemos ir um dia para l�, sem outro recurso mais que a conspira��o, que pode ser descoberta; o melhor � n�o ir ningu�m.

Outro pequenino que h� de vir a mim, � a exuma��o do cad�ver de uma atriz. Correu que a atriz sucumbira em conseq��ncia de pancadas que lhe dera um ator; mas foi h� tantos dias, e meteram-se tais sucessos de permeio, que eu pensei ser neg�cio igualmente morto e enterrado. Geralmente, a justi�a, pol�cia ou como quer que se lhe chame, n�o teima tanto em perturbar o sono dos defuntos. Os pr�prios crimes em que n�o h� defunto, tem-se visto seguirem o destino da Malibran, que ao cabo de quinze dias de finada j� o poeta achava tarde para falar dela. Lendo, por�m, a not�cia com a aten��o que merece, entende-se tudo; o acusado de espancamento n�o queria ficar com a suspeita em cima de si, e, posto o n�o conhe�a, acho que fez bem. A sua peti��o foi a enxada,       o instrumento cir�rgico, o auto do escriv�o, o relat�rio m�dico-legal. Sem ela, � prov�vel que a morta tivesse esperado a trombeta do ju�zo final, para dizer ao Senhor que ele n�o tinha culpa.

O que tamb�m se compreende, � que a exuma��o e a aut�psia se hajam feito, conforme li nos jornais, diante de grande n�mero de curiosos. Essa esp�cie de curiosidade n�o � menos leg�tima sem menos nobre que outras muitas. Nada mais comum que ver um cad�ver em caix�o aberto ou na rua. Agora mesmo viram-se alguns em telegramas de S. Paulo. Tamb�m se podem ver cad�veres no necrot�rio e rara � a pessoa que ali passa, a p�, de carro ou de bonde, que n�o deite os olhos para o m�rmore, a ver se h� algum corpo em cima. Exuma��es e autopsias � que n�o s�o comuns, mormente de pessoas conhecidas; e se estas s�o atrizes, cresce naturalmente o gosto do espet�culo. � ainda um espet�culo, sombra do Rio Nu, sem as cal�as de meia que a verdadeira pe�a ainda usa, dizem. As fei��es � que n�o conservam a frescura dos �ltimos instantes; a morte � uma velha careta. Mirar assim a pessoa desenterrada pode causar a princ�pio certa impress�o de aborrecimento, mas passa logo.

Venha agora a mim outro pequenino, � ou pequen�ssimo, para falar superlativamente. Venderam-se trezentas e tantas a��es da Companhia Saneamento, a vint�m cada uma. Vint�m ou vinte r�is, se preferis a f�rmula oficial. �A raz�o de tal pre�o explica-se bem, considerando que as a��es da companhia podem ser antes bentinhos de saneamento que livram da febre amarela, trazidos ao pesco�o. O dividendo n�o � em dinheiro, mas em sa�de; e, se � verdade que destes dois bens o primeiro est� em segundo lugar, e o segundo em primeiro, como querem o meu belo Schopenhauer e todos os velhos e mo�os de ju�zo, vale mais o bentinho que a ap�lice. Os estudos higi�nicos feitos este ano parece que nunca concordaram na quest�o do len�ol de �gua. Ora, n�o se sabendo ao certo onde est� o mal nem o rem�dio, � justo pedir este ao c�u, e distribuir a��es a vinte r�is, para chegar aos pobres.

6 de setembro

Qualquer de n�s teria organizado este mundo melhor do que saiu. A morte, por exemplo, bem podia ser t�o-somente a aposentadoria da vida, com prazo certo. Ningu�m iria por mol�stia ou desastre, mas por natural invalidez; a velhice, tornando a pessoa incapaz, n�o a poria a cargo dos seus ou dos outros. Como isto andaria assim desde o princ�pio das coisas, ningu�m sentiria dor nem temor, nem os que se fossem, nem os que ficassem. Podia ser uma cerim�nia dom�stica ou p�blica; entraria nos costumes uma refei��o de despedida, frugal, n�o triste, em que os que iam morrer, dissessem as saudades que levavam, fizessem recomenda��es, dessem conselhos, e, se fossem alegres, contassem anedotas alegres. Muitas flores, n�o perp�tuas, nem dessas outras de cores carregadas, mas claras e vivas, como de n�pcias. E melhor seria n�o haver nada, al�m da despedidas verbais e amigas...

Bem sei o que se pode dizer contra isto; mas por agora importa-me somente sonhar alguma coisa que n�o seja a morte bruta, crua e terr�vel, que n�o quer saber se um homem � ainda precioso aos seus, nem se merece as torturas com que o aflige primeiro, antes de estrangul�-lo. Tal acaba de suceder ao nosso Alfredo Gon�alves, que foi anteontem levado � sepultura, ap�s algum tempo de enfermidade dura e fatal. Para falar a linguagem da raz�o, se a morte havia de lev�-lo anteontem, melhor faria se o levasse mais cedo. A linguagem do sentimento � outra: por mais que doa ver padecer, e por certo que seja o triste desenlace, o cora��o teima em n�o querer romper os �ltimos v�nculos, e a esperan�a tenaz vai confortando os �ltimos desesperos. N�o se compreende a necessidade da morte do pobre Alfredo, um rapaz afetuoso e bom, jovial e forte, que n�o fazia mal a ningu�m, antes fazia bem a alguns e a muitos, porque � j� benef�cio praticar um esp�rito agudo e um cora��o amigo.

Quando anteontem calcava a terra do cemit�rio, debaixo da chuva que ca�a, batido do vento que torcia as alvores, lembrou-me outra ocasi�o, j� remota, em que ali fomos levar um irm�o do Alfredo. Nunca me h� de esquecer essa triste noite. A morte do Artur foi s�bita e inesperada. Prestes a ser transportado para o coche f�nebre, pareceu a um amigo e m�dico que o �bito era aparente, um caso poss�vel de catalepsia. N�o se podia publicar essa esperan�a d�bil, em tal ocasi�o, quando todos estavam ali para conduzir um cad�ver; calou-se a suspeita, e o f�retro, mal fechado, foi levado ao cemit�rio... N�o podeis imaginar a sensa��o que dava aos poucos que sabiam da ocorr�ncia, aquele acompanhar o saimento de uma pessoa que podia estar viva. No cemit�rio, feita reservadamente a comunica��o, foi o caix�o deixado aberto em dep�sito, velado por cinco ou seis amigos. O estado do corpo era ainda o mesmo; os olhos, quando se lhes levantassem as p�lpebras, pareciam ver. Os sinais definitivos da morte vieram muito mais tarde.

Sa� antes deles, eram cerca de oito horas; n�o havia chuva, como anteontem, nem lua, mas a noite era clara, e as casas brancas da necr�pole deixavam-se ver muito bem, com os seus ciprestes ao lado. Descendo por aqueles renques de sepulturas, cuidava na entrada da esperan�a em lugar onde as suas asas nunca tocaram o p� �nfimo e �ltimo. Cuidei tamb�m naqueles que porventura houvessem sido, em m� hora, transferidos ao derradeiro leito sem ter pegado no sono e sem aquela final vig�lia.

Carlos Gomes n�o deixar� esperan�as dessas. �Talvez ao chegarem estas linhas ao Rio ele Janeiro, j� n�o exista o inspirado compositor, que entrou em agonia�, diz uma carta do Par�, publicada ontem no Jornal do Com�rcio. Pois existe, est� ainda na mesma agonia em que entrou, quando elas de l� sa�ram. H�o de lembrar-se que h� muitos dias um telegrama do Par� disse a mesma coisa; foi antes dos protocolos italianos. Os protocolos vieram, agitaram, passaram, e o cabo n�o nos contou mais nada. O padecimento, assim longo, deve ser forte; a carta confirma esta dedu��o. Carlos Gomes continua a morrer. At� quando ir� morrendo? A ci�ncia dir� o que souber; mas ela tamb�m sabe que n�o pode crer em si mesma.

N�o me acuseis de teimar neste ch�o melanc�lico. O livro da semana foi um obitu�rio, e n�o ter�s lido outra coisa, fora daqui, sen�o mortes e mais mortes. N�o falemos do chanceler da R�ssia, nem de outro qualquer personagem, que a dist�ncia e a natureza do cargo podem despir de interesse para n�s. Mas vede as matan�as de crist�os e mu�ulmanos na Sal�nica, esta semana, e finalmente em Constantinopla. O cabo tem contado coisas de arrepiar. Na capital turca empregaram-se centenas de coveiros em abrir centenas de covas para ench�-las com centenas de cad�veres. N�o nos dizem, � verdade, se na morte ao menos foram irmanados crist�os e maometanos, mas � prov�vel que n�o. �dio que acaba com a vida, n�o � �dio, � sombra de �dio, � simples e reles antipatia. O verdadeiro � o que passa �s outras gera��es, o que vai buscar a segunda no pr�prio ventre da primeira, violando as m�es a ferro e fogo. Isto � que � �dio. O prov�vel � que os coveiros tenham separado os corpos, e ser� piedade, pois n�o sabemos se, ainda no caminho do outro mundo, o Cor�o n�o ir� enticar com o Evangelho. Um telegrama de Londres diz que Istambul est� sossegada; ainda bem, mas at� quando?

Tamb�m come�aram a matar nas Filipinas, a matar e a morrer pela independ�ncia, como em Cuba. A Espanha comove-se e disp�e-se a matar tamb�m, antes de morrer. � um imp�rio que continua a esboroar-se, pela lei das coisas, e que resiste. Assim vai o mundo esta semana; n�o � prov�vel que v� diversamente na semana pr�xima.

E ainda n�o conto aquele g�nero de morte que n�o est� nas m�os dos homens, nem dentro deles, o que a natureza reserva no seio da terra para distribu�-la por atacado. L� se foi mais uma cidade do Jap�o, comida por um terremoto, com a gente que tinha. Os terremotos japoneses, alguns meses antes, levaram cerca de dez mil pessoas. O cabo fala tamb�m dos tremores na Europa, mas por ora n�o houve ali nenhuma Lisboa que algum Pombal restaure, nem outra Pomp�ia, que possa dormir muitos s�culos. Mortes, pode ser; a semana � de mortes.

13 de setembro

Dizem da Bahia que Jesus Cristo enviou um emiss�rio � terra, � pr�pria terra da Bahia, lugar denominado Gameleira, termo de Orob� Grande. Chama-se esse emiss�rio Manuel da Benta Hora, e tem j� um s�q�ito superior a cem pessoas.

N�o serei eu que chame a isto verdade ou mentira. Podem ser as duas coisas, uma vez que a verdade confine na ilus�o, e a mentira na boa f�. N�o tendo lido nem ouvido o Evangelho de Benta Hora, acho prudente conservar-me � espera dos acontecimentos. Certamente, n�o me parece que Jesus Cristo haja pensado em mandar emiss�rios novos para espalhar algum preceito nov�ssimo. N�o; eu creio que tudo est� dito e explicado. Entretanto, pode ser que Benta Hora, estando de boa f�, ouvisse alguma voz em sonho ou acordado, e at� visse com os pr�prios olhos a figura de Jesus. Os fen�menos cerebrais complicam-se. As descobertas �ltimas s�o estupendas; tiram-se retratos de ossos e de fetos. H� muito que os esp�ritas afirmam que os mortos escrevem pelos dedos dos vivos. Tudo � poss�vel neste mundo e neste final de um grande s�culo.

Da� a minha admira��o ao ler que a imprensa da Bahia aconselha ao governo fa�a recolher Benta Hora � cadeia. Note-se de passagem: a not�cia, posto que telegr�fica, exprime-se deste modo: �a imprensa pede ao governo mandar quanto antes que fa�a Benta Hora apresentar as divinas credenciais na cadeia...� Este gosto de fazer estilo, embora pelo fio telegr�fico, � talvez mais extraordin�rio que a pr�pria miss�o do regente ap�stolo. O tel�grafo � uma inven��o econ�mica, deve ser conciso e at� obscuro. O estilo faz-se por extenso em livros e pap�is p�blicos, e �s vezes nem a�. Mas n�s amamos os ricos vestu�rios do pensamento, e o telegrama vulgar � como a tanga, mais parece despir que vestir. Assim explico aquele modo faceto de noticiar que querem meter o homem na cadeia.

Isto dito, tornemos � minha admira��o. N�o conhecendo Benta Hora, n�o crendo muito na miss�o que o traz (salvo as restri��es acima postas), n�o � preciso lembrar que n�o defendo um amigo, como se pode alegar dos que est�o aqui acusando o padre Dantas, vice-governador de Sergipe, por perseguir os padres da oposi��o. Em Sergipe, onde o governo � quase eclesi�stico, n�o h� necessidade de novos emiss�rios do C�u; as leis divinas est�o perpetuamente estabelecidas, e o que houver de ser, n�o inventado, mas definido, vir� de Roma. Assim o devem crer todos os padres do Estado, sejam da oposi��o, ou do governo, Ol�mpios, Dantas ou J�natas. Portanto, se alguns forem ali presos, n�o � porque se inculquem portadores de novas regras de Cristo, mas porque, unidos no espiritual, n�o o est�o no temporal. A cadeia fez-se para os corpos. Todos eles t�m amigos seus, que os acompanham no infort�nio, como na prosperidade; mas tais amigos n�o v�o atr�s de uma nova doutrina de Jesus, v�o atr�s dos seus padres.

� o contr�rio dos cento e tantos amigos de Benta Hora; esses, com certeza, v�o atr�s de algum Evangelho. Ora, pergunto eu: a liberdade de profetar n�o � igual � de escrever, imprimir, orar, gravar? Ningu�m contesta � imprensa o direito de pregar uma nova doutrina pol�tica ou econ�mica. Quando os homens p�blicos falam em nome da opini�o, n�o h� quem os mande apresentar as credenciais na cadeia. E desses, por tr�s que digam a verdade, haver� outros tr�s que digam outra coisa, n�o sendo natural que todos d�em o mesmo recado com id�ias e palavras opostas. Donde vem ent�o que o triste do Benta Hora deva ir confiar �s t�buas de um soalho as doutrinas que traz para um povo inteiro, dado que a cadeia de Obrob�-Grande seja assoalhada?

L� porque o profeta � pequeno e obscuro, n�o � raz�o para recolh�-lo � enxovia. Os pequenos crescem, e a obscuridade � inferior � fama unicamente em contar menor n�mero de pessoas que saibam da profecia e do profeta. Talvez esta explica��o esteja em La Palisse, mas esse nobre autor tem j� direito a ser citado sem se lhe p�r o nome adiante. Os obscuros surgir�o � luz, e algum dia aquele pobre homem da Gameleira poder� ser ilustre. Se, por�m, o motivo da pris�o � andar na rua, pregando, onde fica o direito de locomo��o e de comunica��o? E se esse homem pode andar calado, por que n�o andar� falando? Que fale em voz baixa ou m�dia, para n�o atordoar os outros, sim, senhor, mas isso � neg�cio de admoesta��o, n�o de captura.

Agora se a alega��o para a captura � a falsidade do mandato, cumpre advertir que, antes de tudo, � mister prov�-lo. Em segundo lugar, nem todos os mandatos s�o verdadeiros, ou, por outra, muitos deles s�o arg�idos de falsos, e nem por isso deixam de ser cumpridos; porquanto a falsidade de um mandato deduz-se da opini�o dos homens, e estes tanto s�o ve�culos da verdade como da mentira. Tudo est� em esperar. Quantos falsos profetas por um verdadeiro! Mas a escolha cabe ao tempo, n�o � pol�cia. A regra � que as doutrinas e as cadeias se n�o conhe�am; se muitas delas se conhecem, e a algumas sucede apodrecerem juntas, o preceito legal � que nada saibam umas das outras.

Quanto � doutrina em si mesma, n�o diz o telegrama qual seja; limita-se a lembrar outro profeta por nome Ant�nio Conselheiro. Sim, creio recordar-me que andou por ali um or�culo de tal nome; mas n�o me ocorre mais nada. Ocupado em aprender a minha vida, n�o tenho tempo de estudar a dos outros; mas, ainda que esse Ant�nio Conselheiro fosse um salteador, por que se h� de atribuir igual voca��o a Benta Hora? E, dado que seja a mesma, quem nos diz que, praticado com um fim moral e metaf�sico, saltear e roubar n�o � uma simples doutrina? Se a propriedade � um roubo, como queria um publicista c�lebre, por que � que o roubo n�o h� de ser uma propriedade? E que melhor m�todo de propagar uma id�ia que p�-la em execu��o? H�, em n�o me lembra j� que livro de Dickens, um mestre-escola que ensina a ler praticamente; faz com que os pequenos soletrem uma ora��o, e, em vez da seca an�lise gramatical, manda praticar a id�ia contida na ora��o; por exemplo, eu lavo as vidra�as, o aluno soletra, pega da bacia com �gua e vai lavar as vidra�as da escola; eu varro o ch�o, diz o outro, e pega da vassoura, etc., etc. Esse m�todo de pedagogia pode ser aplicado � divulga��o das id�ias.

Fantasia, dir�s tu. Pois fiquemos na realidade, que � o aparecimento do profeta de Obrob�-Grande, e o clamor contra ele. Defendamos a liberdade e o direito. Enquanto esse homem n�o constituir partido pol�tico com seus disc�pulos, e n�o vier pleitear uma elei��o, devemos deix�-lo na rua e no campo, livre de andar, falar, alistar crentes ou cr�dulos, n�o devemos encarcer�-lo nem dep�-lo. O caboclo da Praia Grande viu respeitar em si a liberdade. Se Benta Hora, por�m, trocando um mandato por outro, quiser passar do espiritual ao temporal e...

20 de setembro

Toda esta semana foi feita pelo tel�grafo. Sem essa inven��o, que p�e o nosso s�culo t�o longe daqueles em que as not�cias tinham de correr os riscos das tormentas e vir devagar como o tempo anda para os curiosos, sem essa inven��o esta semana viveria do que lhe desse a cidade. Certamente, uma boa cidade como a nossa n�o deixa os filhos sem p�o; fato ou boato, eles teriam algo que debicar. Mas, enfim, o tel�grafo incumbiu-se do banquete.

A maior das not�cias para n�s, a �nica nacional, n�o preciso dizer que � a morte de Carlos Gomes. O tel�grafo no-la deu, t�o pronto se fecharam os olhos do artista e deu mais a not�cia do efeito produzido em todo aquele povo do Par�, desde o chefe do Estado at� o mais singelo cidad�o. A triste nova era esperada � e n�o sei se piedosamente desejada. Correu aos outros Estados, ao de S�o Paulo, � velha cidade de Campinas. A terra de Carlos Gomes deseja possuir os restos queridos de seu filho, e os pede; S�o Paulo transmite o desejo ao Par�, que promete devolv�-los. N�o atenteis somente para a linguagem dos dois Estados, um dos quais reconhece implicitamente ao outro o direito de guardar Carlos Gomes, pois que ele a� morreu, e o outro acha justo restitu�-lo �quele onde ele viu a luz. Atentai, mais que tudo, para esse sentimento de unidade nacional, que a pol�tica pode alterar ou afrouxar, mas que a arte afirma e confirma, sem restri��o de esp�cie alguma, sem desacordos, sem contrastes de opini�o. A dor aqui � brasileira. Quando se fez a elei��o do presidente da Rep�blica, o Par� deu o voto a um filho seu, certo embora de que lhe n�o caberia o governo da Uni�o; divergiu de S�o Paulo. A rep�blica da arte � anterior �s nossas constitui��es e superior �s nossas compet�ncias. O que o Par� fez pelo ilustre paulista mostra a todos n�s que h� um s� paraense e um s� paulista, que � este Brasil.

Agora que ele � morto, em plena gl�ria, acode-me aquela noite da primeira representa��o da Joana de Flandres, e a ova��o que lhe fizeram os rapazes do tempo, acompanhados de alguns homens maduros, certamente, mas os principais eram rapazes, que s�o sempre os clarins do entusiasmo. Ia � frente de todos Salvador de Mendon�a, que era o profeta daquele caipira de g�nio. V�nhamos da �pera Nacional, uma institui��o que durou pouco e foi muito criticada, mas que, se mereceu acaso o que se disse dela, tudo haver� resgatado por haver aberto as portas ao jovem maestro de Campinas. Tinha uma subven��o � �pera Nacional; dava-nos partituras italianas e zarzuelas, vertidas em portugu�s, e compunha-se de senhoras que n�o duvidavam passar da sociedade ao palco, para auxiliar aquela obra. Cantava o fundador, D. Jos� Amat, cantava o Ribas, cantavam outros. Nem foi s� Carlos Gomes que ali ensaiou os primeiros v�os; outros o fizeram tamb�m, ainda que s� ele p�de dar o surto grande e arrojado...

A� estou eu a repetir coisas que sabeis � uns por as haverdes lido, outros por vos lembrardes delas; mas � que h� certas mem�rias que s�o como peda�os da gente, em que n�o podemos tocar sem algum gozo e dor, mistura de que se fazem saudades. Aquela noite acabou por uma aurora, que foi dar em outro dia, claro como o da v�spera, ou mais claro talvez; e porque esse dia se fechou em noite, novamente se abriu em madrugada e sol, tudo com uma uniformidade de pasmar. Afinal tudo passa, e s� a terra � firme: � um velho estribilho do Eclesiastes, de que os rapazes mofam, com muita raz�o, pois ningu�m � rapaz sen�o para ler e viver o C�ntico dos C�nticos, em que tudo � eterno. Tamb�m n�s r�amos muito dos que ent�o recordavam o tempo em que foram cavalos da Candiani, e riam ent�o dos que falavam de outras festas do tempo de Pedro I. � assim que se v�o soldando os an�is de um s�culo.

Ao contr�rio, a hist�ria parece querer dessoldar alguns dos seus an�is e deit�-los ao mar � ao Mar Negro, se � certo o que nos anuncia o mesmo tel�grafo, portador de boas e m�s novas. N�o trato da deposi��o do sult�o, conquanto o espet�culo deva ser interessante; eu, se dependesse de uma subscri��o universal, daria meu �bolo para v�-lo realizado com todas as cerim�nias, tal qual o Doente imagin�rio. A diferen�a entre a pe�a francesa e a pe�a turca � que o homem doente parece doente deveras, � semilouco, dizem os telegramas.

As deposi��es da nossa terra n�o digo que sejam chochas, mas s�o l�gubres de simplicidade. O teatro de Sergipe est� agora alugado para esta esp�cie de m�gicas; n�o h� quinze dias deu espet�culo, e j� anuncia (ao dizer do Pa�s) nova representa��o. As m�gicas desse teatro pequeno, mas elegante, comp�em-se em geral de duas partes � uma que � propriamente a deposi��o, outra que � a reposi��o. Poucos personagens: o deposto, o substituto, coros de amigos. Ao fundo, a cidade em festa. Este ceticismo de Aracaju, rasgando as luvas com aplausos a ambos os tenores, n�o revela da parte daquela capital a firmeza necess�ria de opini�o. Tudo, por�m, acharia compensa��o na majestade do espet�culo; infelizmente este � pobre e simples; meia d�zia de homens saem de uma porta, entram por outra, e est� acabado. � uma empresa de poucos meios.

Que abismo entre Aracaju e Istambul! Que diferen�a entre as duas portas sergipenses e a Sublime Porta! L� s�o as pot�ncias que dep�em, presididas pelo pont�fice do islamismo, tudo aben�oado por Al� e por Maom�, que � o profeta de Al�. Nas ruas sangue, muito sangue derramado, sangue de �dio e de fanatismo. Ouvem-se rugidos da Ilha de Creta e da Maced�nia. Na plat�ia o mundo inteiro. Mas o principal n�o � isso. O principal espet�culo, o espet�culo �nico � o desmembramento da Turquia, tamb�m notificado pelo tel�grafo. Esse � que, se se fizer, dar� a este s�culo um ocaso muito parecido com a aurora. Os alfaiates levaram muito tempo a medir e cortar a bela fazenda turca para compor o terno que a civiliza��o ocidental tem de vestir: e, porque as medidas pol�ticas diferem das comuns, v�-lo-emos talvez brigar por dois cent�metros. As tesouras brandidas; e, primeiro que se acomodem, haver� muito olho furado. O desfecho � previsto; algu�m ficar� com um pano de menos, mas a Turquia estar� acabada, e a hist�ria ter� dessoldado alguns elos que j� andavam frouxos, se � que isto n�o � continuar a mesma cadeia.

Pode suceder que nada haja, assim como n�o voar� o castelo do Balmoral, com a rainha Vit�ria e o czar Nicolau dentro. Esta outra comunica��o telegr�fica desde logo me pareceu fant�stica; cheira a imagina��o de rep�rter ou de chancelaria. Nem � cr�vel que tal trag�dia se represente �s barbas da sombra Shakespeare, sem que este seja consultado quando menos para lhe p�r a poesia e os relat�rios policiais n�o t�m.

Enfim, melhor que atentados, deposi��es e desmembramentos, � a not�cia que nos trouxe o tel�grafo, ainda o tel�grafo, sempre o tel�grafo. Porf�rio D�az abriu o congresso mexicano, apresentando-lhe a mensagem em que anuncia a redu��o dos impostos. Estas duas palavras raramente andam juntas; saudemos t�o doce cons�rcio. S� um amor verdadeiro as poderia unir. Que tenham muitos filhos � o meu mais ardente desejo.

27 de setembro

N�o � preciso dizer que estamos na primavera; come�ou esta semana... Oh! bons tempos em que os da minha turma repet�amos aquilo do poeta: Primavera, giuvent� dell�anno: giuvent�, primavera della vita! Alguns iam ao ponto de repetir aquilo outro do lusitano: Ah! n�o me fujas! Assim nunca o breve tempo fuja da tua formosura! Vai tudo em linha de prosa, que � de prosa o meu tempo, n�o o teu, leitor de bu�o e vinte anos; donde resulta a mais trivial das verdades deste mundo, e provavelmente do outro, que o tempo � para cada um de n�s o que cada um de n�s � para ele. Nem todos ter�o aquele verdor nonagen�rio do visconde de Barbacena, que n�o sei se veio ao mundo no mesmo dia que Victor Hugo, dois anos depois de come�ado o s�culo, mas em todo caso j� ent�o Rome rempla�ait Sparte. Quem o v� andar, falar, recordar tudo, examinar, discernir, entrar e sair de um tramway, como os rapazes seus netos, p�e de lado esta��es e idades, e cr� que, em suma, tudo isto se reduz a nascer ou n�o com grande for�a e conserv�-la.

Dizem as gentes europ�ias que a primavera nas suas terras delas entra com muito maior efeito, quase de s�bito, fazendo fugir o inverno diante de si. Entre n�s, povo lido, a primavera entra pelos almanaques. N�o lia almanaque, n�o lia folhinha, ainda as que servem s� de mimo aos assinantes de jornais, que n�o traga a entrada da primavera no seu dia pr�prio, fixo e �nico. J� � alguma coisa; e quando a civiliza��o chegar ao ponto de s� dominar neste mundo o esp�rito do homem, mais valer� ter a primavera encadernada na estante que l� fora na campina, se � que ainda haver� campina. O natural � que os homens se v�o estendendo, e as casas com eles, e as ruas e os teatros e as institui��es, e todo o mais aparelho da vida social. A terra ser� pequena, a gente prol�fica, a vida um sal�o, o mundo um gabinete de leitura.

N�o te aflijas se a esta��o das flores n�o entra aqui como por outras partes; aqui � eterna. A terra vale o que ainda agora nos disse de Pernambuco o Sr. Studebaker, um dos membros da comiss�o americana, que h� pouco nos deixou. A carta desse cavalheiro � um documento que devia estar diante dos olhos de cada um de n�s; n�o dir� nada novo, mas � um testemunho pessoal e americano. Diz ela que n�s podemos produzir tudo quanto nasce da terra... mas temos entre n�s homens perniciosos, tornando-se necess�rio que os �ntegros se dediquem � causa do bem. Creio em ambas as coisas; mas toda a nossa dificuldade vem de n�o sabermos

exatamente quais s�o os perniciosos nem quais s�o os �ntegros. Vimos ainda agora em Sergipe que os perniciosos s�o dois, o padre Campos e o padre Dantas, e que os �ntegros n�o s�o outros. De onde resulta uma anistia em favor do padre Campos.

Tamb�m recomenda bra�os o nosso h�spede, bra�os e temor a Deus. O segundo � preocupa��o anglo-sax�nia, que n�o entra fundo em almas latinas ou alatinadas. Quanto aos bra�os, era eu pequeno, e, apesar da vasta escravatura que havia, j� se chorava por eles. Muitos tinham sido j� chamados e fixados. Vieram depois mais e mais, at� que vieram muitos e muitos. Os alem�es enchiam o sul; os italianos est�o chegando aos magotes, e se a �ltima quest�o afrouxou um pouco a importa��o, n�o tarda que esta continue e a quest�o acabe. � o que se espera do ministro novo, Sr. De Martino. Que h� j� muito italiano, � verdade; mas esta ra�a � f�cil de ser assimilada, e trabalha e prospera. Tive amigos que vinham dela, e tu tamb�m, e a� os h� que n�o v�m de outra origem.

Agora mesmo ou�o cantar um p�ssaro, e, se me n�o engano, canta italiano. Tamb�m os h� que cantam alem�o; Lulu Junior acha que a m�sica desta segunda casta � melhor que a daquela. Eu creio que todos os p�ssaros s�o p�ssaros e todos os cantos s�o bonitos, contanto que n�o sejam feios. O que n�o quero � que se negue ao alem�o o direito de ser cantado. A l�ngua que ora ou�o ao p�ssaro �, como digo, a italiana, e por pouco parece-me Carlos Gomes. Eis a� um que ligou bem os dois pa�ses, as duas hist�rias e j� agora as duas saudades. Partiu ontem um vapor armado em guerra para conduzi-lo at� c�. Viva o Par�, que rejeitou a id�ia de o mandar em navio mercante, e p�s por condi��o que ou viria com todas as honras da Arte e da Morte, ou ficaria l� com ele. N�o ficaria mal � beira do Amazonas o cantor do nosso Brasil, nem o Par� merece menos que qualquer outra parte; ao contr�rio, a terra que serviu de ber�o a Carlos Gomes n�o teve para ele mais carinhos que essa que lhe serviu de leito mortu�rio, e, em todo caso, teve-os na prosperidade. D�-los � dor � maior.

Est�vamos... Creio que est�vamos nos bra�os italianos, n�o os que amam e fazem amar, mas os que lavram a terra; foram eles que me trouxeram aqui, a prop�sito do industrial americano, que l� vai. Tem-se dito que h� muita aglomera��o italiana em S. Paulo, o mesmo que se havia dito em rela��o aos alem�es nas col�nias do Sul. H� destas onde a l�ngua do pa�s n�o � falada nem ensinada, nem sabida, ou mal sabida por alguns rudimentos escassos que os pr�prios mestres alem�es d�o aos seus meninos, a fim de que de todo em todo n�o ignorem o meio de pedir fogo a algu�m ou bradar por socorro. A culpa n�o � deles, mas nossa; e, se tal sucede em S Paulo, a culpa � de S. Paulo.

H� tempos falou-se no mal das grandes aglomera��es de uma s� ra�a. Seja-me l�cito citar um nome que os acontecimentos levaram, como levam outras coisas mais que nomes, o de Rodrigo Silva, que foi aqui ministro da agricultura. Este ministro tinha por muito recomendado aos encarregados da coloniza��o que intercalassem as ra�as, n�o s� umas com as outras, mas todas com a do pa�s, a fim de impedir o predom�nio exclusivo de nenhuma. Circulares que o vento leva; a pol�tica era boa e f�cil e dava ganho a todos, aos de fora como aos de dentro. Mas as circulares s�o como as ilus�es; verdejam algum tempo, amarelecem e caem logo; depois v�m outras...

Deixemos, por�m, essa mat�ria mais de artigo de fundo que de cr�nica, e tornemos ao c�u azul, ao sol claro, � temperatura fresca. N�o h� desfalque pequeno nem grande que resista ao efeito da bela catadura da natureza. Que vale um desfalque ao p� da sa�de, que � a vida integral, a perfeita contabilidade humana? Depois, a sa�de sente-se igualmente, n�o h� duas opini�es sobre ela; o desfalque, sem negar que � alguma coisa que falta (geralmente  dinheiro), n�o h� d�vida que � id�ia filha da civiliza��o, e a civiliza��o, como dizia um fil�sofo amador do meu tempo, � sin�nimo de corrup��o. E h� sempre duas opini�es sobre o desfalque, � a do desfalcado e a outra.

Que haja falta de dinheiro em alguma parte, � natural. Esta coisa que uns americanos querem deva ter por padr�o t�o somente o ouro, outros a prata igualmente, ainda se n�o acostumou tanto aos homens que n�o se esconda deles algumas vezes, e n�o desapare�a como as simples bolas nas m�os de um prestidigitador. Dinheiro por ser dinheiro n�o deixa de ter vergonha; o pudor comunica-se das m�os � moeda, e o gesto mais certo do pudor � fugir aos olhos estranhos, � ou, pelo menos �s m�os, como na ilha dos Amores. Da� os desfalques; fica s� o algarismo escrito, a moeda esvai-se; tais as ninfas da ilha correm nuas:

................. aos olhos dando

 O que �s m�os cobi�osas v�o negando.

N�o importa; os que teimarem h�o de acabar como o cavaleiro do poeta, que afinal p�de deitar os bra�os a uma das ninfas esquivas. E depois, ainda que n�o se alcance nenhuma, a terra � f�rtil, a popula��o grande, e a gente nova a� vem com os seus bra�os para trabalhar e colher, n�o menos que para amar e engendrar. Tudo aqui � calor de primavera; a Am�rica, bem considerada, � a primavera da hist�ria. H� uma diferen�a entre esta e a do norte, � que por ora n�o brigamos por ouro ou prata, Bryan ou Mac-Kinley; o papel nos basta e sobra.

4 de outubro

Enquanto eu cuido da semana, S�o Paulo cuida dos s�culos, que � mais alguma coisa. Comemora-se ali a figura de Jos� de Anchieta, tendo j� havido tr�s discursos, dos quais dois foram impressos, e em boa hora impressos; honram os nomes da Eduardo Prado e de Bras�lio Machado, que honraram por sua palavra elevada e forte ao pobre e grande mission�rio jesu�ta. A comemora��o parece que continua. O frade merece-a de sobra. A cr�nica dera-lhe as suas p�ginas. Um poeta de viva imagina��o e grande estro, o autor do �C�ntico do Calv�rio�, pegou um dia da figura dele e meteu-a num poema. Agora � a apoteose da palavra e da cr�tica. Uma fei��o caracteriza estas homenagens, � a neutralidade. Ao p� de monarquistas h� republicanos, e � frente destes vimos agora o presidente do Estado. Dizem que este soltara algumas palavras de entusiasmo paulista por ocasi�o da �ltima confer�ncia. De fato, uma terra em que as opini�es do dia podem apertar as m�os por cima de uma grande mem�ria � digna e capaz de olhar para o futuro, como o � de olhar para o passado. A faculdade de ver alto e longe n�o � comum.

� doce contemplar de novo uma grande figura. Aquele jesu�ta, companheiro de N�brega e Leonardo Nunes, est� preso indissoluvelmente � hist�ria destas partes. A imagina��o gosta de v�-lo, a tr�s s�culos de dist�ncia, escrevendo na areia da praia os versos do poema da Virgem Maria, por um voto em defesa da castidade, e confiando-os um a um � impress�o da mem�ria. A piedade ama os seus atos de piedade. � preciso remontar �s cabeceiras da nossa hist�ria para ver bem que nenhum pr�mio imediato e terreno se oferecia �quele homem e seus companheiros. Cuidavam s� de espalhar a palavra crist� e civilizar b�rbaros; para isso era tudo Anchieta, al�m de mission�rio. A habita��o dele e dos outros era o que ele mesmo escrevia a Loiola, em agosto de 1554: �E aqui estamos, �s vezes mais de vinte dos nossos, numa barraquinha de cani�o e barro, coberta de palha, catorze p�s de comprimento, dez de largura. � isto a escola, � a enfermaria, o dormit�rio, refeit�rio, cozinha, despensa�.

Justo seria que alguma coisa lembrasse aqui, entre n�s, a nome de Anchieta, � uma rua, se n�o h� mais. A nossa Intend�ncia Municipal acaba de decretar que n�o se d�em nomes de gente viva �s ruas, salvo �quando as pessoas se recomendarem ao reconhecimento e admira��o p�blica por servi�os relevantes prestados � p�tria ou ao munic�pio, na paz ou na guerra�. Anchieta est� morto e bem morto; � caso de lhe dar a homenagem que t�o facilmente se distribui a homens que nem sequer est�o doentes, e mal se podem dizer maduros; tanto mais quando o presidente do Conselho Municipal n�o � s� brasileiro, � tamb�m paulista e bom paulista. Certo, n�s amamos as celebridades de um dia, que se v�o com o sol, e as reputa��es de uma rua que acabou ao dobrar da esquina. V� que brilhem; os vaga-lumes n�o s�o menos po�ticos por serem menos duradouros; com pouco fazem de estrelas. Tudo serve para nos cortejarmos uns aos outros.

A pr�pria lei municipal tem uma porta aberta aos obs�quios particulares. Nem sempre a vontade do legislador estar� presente, e as leis corrompem-se com os anos. Quando o atual conselho desaparecer, l� vir� algu�m que, por haver inventado um chap�u el�stico, uma barbatana espiritual ou, finalmente, outro jata� que ajude a limpar os br�nquios e as algibeiras, � tenha ocasi�o de ver pintado o seu nome na esquina da rua em que mora, e, se morar longe, em outra qualquer. � o an�ncio gratuito, o troco mi�do da gl�ria. E n�o h� de ser escasso prazer, antes largo e demorado, ler na esquina de uma rua o pr�prio nome. N�o haver� conversa��o de bonde ou a p� que fa�a esquecer a placa; por mais aten��o que mere�a o interlocutor, seja um homem ou uma senhora, � os olhos do beneficiado cumprimentar�o de esguelha as letras do benef�cio. Alguma vez passear�o pelas caras dos outros, a ver se tamb�m olham. Os crimes que se derem na rua, os inc�ndios, os desastres ser�o outras tantas ocasi�es de reler o nome impresso e reimpresso; assim tamb�m as casas de neg�cio, os an�ncios de criados, o obitu�rio e o resto. Enfim, o uso positivista de datar os escritos da rua em que o autor mora, uma vez generalizado, ajudar� a derramar a boa not�cia da nossa fama.

Nem por isso deixar�o de falir os que tiverem de falir, se forem negociantes; n�o h� nome de esquina que pague um cr�dito. Este momento, se � certo o que corre, amea�a de ponto final a muita gente. Dizem que h� numerosas peti��es de fal�ncia. Se ser�o atendidas � o que n�o se sabe, porque o deferimento pode trazer a dissolu��o geral de todos os v�nculos pecuni�rios. E quando os que vendem quebram, imaginai os que compram. Estes deviam rigorosamente matar-se, imitando a gente do Jap�o, onde os suic�dios s�o em maior n�mero quando o arroz est� caro, e em menor quando est� barato. Arroz ou morte! � o grito daquela na��o. N�s, para quem tudo � caro, desde a sopa at� a sobremesa, vivemos a ver em que param os pre�os, � os pre�os ou os bichos.

Entretanto, ao passo que os negociantes do Rio de Janeiro pedem cr�dito, n�o o acham e querem fechar as portas, o presidente do Esp�rito Santo deseja que lhe diminuam a faculdade de abrir cr�ditos.

Em conseq��ncia das raz�es que acabo de apresentar-vos (diz o Dr. Graciano das Neves em sua recente mensagem) dou prova da maior lealdade, Srs. Deputados, pedindo-vos que voteis na presente sess�o alguma disposi��o de lei que restrinja com prud�ncia a faculdade que tem o presidente de abrir cr�ditos suplementares �s verbas or�adas pelo congresso. Eu, que aprendi o que era bill de indenidade no cap�tulo da abertura de cr�ditos, mal posso crer no que leio. Um presidente de Estado que, tendo a faculdade de abrir cr�ditos, e podendo n�o os abrir, pede que lhe atem as m�os, d� mostra que � ainda mais psic�logo que presidente. � como se dissesse que as boas inten��es do dia        15 podem n�o ser as mesmas do dia 16 e 17, e o melhor � n�o fiar na vontade. N�o sei se o caso � �nico; falta-me tempo de compulsar as mensagens de ambos os mundos, mas com certeza n�o � comum nem velho.

N�o � velho, mas tende a ser comum o uso delicado de conclu�rem os jurados as sess�es, ordin�rias ou extraordin�rias, deixando nas m�os do presidente e do promotor uma lembran�a. A pen�ltima trazia como raz�o a polidez dos magistrados. A �ltima, que foi anteontem, n�o alegou tal motivo, para tirar ao ato qualquer aspecto de gratid�o. O presidente teve duas estatuetas de bronze, e o promotor uma rica bengala. N�o � pouco ir julgar os pares, obrigatoriamente, com perda ou sem perda dos pr�prios interesses; a lembran�a, por�m, real�a o servi�o p�blico. A prova de que a institui��o do j�ri est� arraigada na nossa alma e costumes � essa necessidade moral que t�m os ju�zes de fato de se fazerem lembrados dos magistrados, a quem a sociedade confia a puni��o dos delinq�entes. Resta que os magistrados, por sua vez, d�em alguma lembran�a aos cidad�os, e que estes saiam com bot�es de punho novos ou carteiras de couro da R�ssia. S�o prendas baratas e significativas.

11 de outubro

Czarina, se estas linhas chegarem �s tuas m�os, n�o fa�as como Victor Hugo, que, recebendo um folheto de Lisboa, respondeu ao autor: �N�o sei portugu�s, mas com o aux�lio do latim e do espanhol, vou lendo o vosso livro...� N�o, nem pe�o que me respondas. Manda traduzi-las na l�ngua de Gogol, que dizem ser t�o rica e t�o sonora, e em seguida l�. Ver�s que o beijo que te depositou na m�o, em Cherburgo, o presidente da Rep�blica Francesa, foi aqui objeto de algum debate.

Uns acharam que, para republicano, o ato foi vilania; outros que, para franc�s, foi galantaria. Uma princesa! Uma senhora! E da� uma conversa��o longa em que se disseram coisas agressivas e defensivas. Eu, pouco dado a rusgas, limitei-me a pensar comigo que a galantaria n�o deve ficar sendo um costume somente das cortes. A democracia pode muito bem acomodar-se com a gra�a; nem consta que Lafayette, marqu�s do antigo reg�men, tivesse deitado a cortesia ao mar quando foi colaborar com Washington.

Olha, czarina, houve tempo em que nessa mesma Fran�a, cujo chefe te beijou agora a m�o, se fazia grande cabedal de tratar por tu aos outros, para continuar Robespierre e os seus terr�veis companheiros. Ent�o um poeta falou em verso, como � uso deles, e concluiu por este, que faz casar a pol�tica e as maneiras: Appellons-nous MONSIEUR et soyons CITOYEN. N�s, para n�o ir mais longe, fizemos a Rep�blica, sem deportar a excel�ncia das C�maras. Era costume antigo, n�o do reg�men deposto, mas da sociedade. A excel�ncia veio da m�e-p�tria, onde parece que se generalizou ainda mais, n�o se tratando l� ningu�m por outra maneira. Aqui, quando ainda n�o h� familiaridade bastante para o tu e o voc�, e j� a excel�ncia � demasiado cerimoniosa, ficamos no senhor, � um modo indireto; em Portugal, nos casos, apertados, empregam o amigo, que � ainda mais indireto. Tudo para fugir aos v�s dos nossos maiores, e que entre n�s � a f�rmula oficial da correspond�ncia escrita. Em verdade, se o regimento das nossas c�maras tivesse obrigado o tratamento de v�s na tribuna, como na correspond�ncia oficial, antes de infringirmos o regimento, ter�amos infringido a gram�tica. � duro de meter na ora��o a flex�o vos do pronome. Tenho visto casos em que a pessoa para desfazer-se logo dela, come�a por ela: Vos declaro, Vos comunico, Vos pe�o. Nem � por outra raz�o, czarina, que eu te trato por tu, como se faz em poesia.

Voltando ao beijo, admito que h� coisas que s� podem ser bem entendidas no pr�prio lugar. Julgadas de longe levam muita vez ao erro. Tu, por exemplo, se lesses a mo��o da C�mara Municipal do Rio Claro, S�o Paulo, protestando contra o presidente do Estado, que n�o a recebeu quando ele ali foi ver a m�e enferma, pode ser que a entendesses mal. A mo��o aceitou o ato como uma inj�ria ofensiva e direta ao munic�pio, ao povo, a todo o partido republicano, e mandou publicar o protesto e comunic�-lo por c�pia a todas as C�maras Municipais do Estado, ao presidente da Rep�blica, aos presidentes dos congressos federal e estadual e ao diret�rio central do partido.

Aparentemente � uma tempestade num copo d��gua; mas a mo��o alega que h� da parte do presidente contra o munic�pio sentimento de hostilidade j� muitas vezes manifestado. Assim sendo, explica-se a recusa do presidente em receb�-la, mas n�o se explica o ato da C�mara em visit�-lo. N�o se devem fazer visitas a desafetos; o menos que acontece � n�o ach�-los em casa. Quando, por�m, a C�mara, esquecendo ressentimentos leg�timos, quisesse levar o ramo de oliveira ao chefe do Estado, em benef�cio comum, se esse n�o aceitasse as pazes, o melhor seria calar e sair. A divulga��o do caso � cidade e ao mundo e a amea�a de pronta repulsa faz recear um estado de guerra, quando todos os munic�pios desejam conc�rdia a sossego. H� j� tantas quest�es graves, sem contar econ�mica e a financeira, que a quest�o do Rio Claro bem podia n�o ter nascido, ou ficar no �tapete da discuss�o� como se usa no parlamento.

Disse que entenderias mal a mo��o; emendo-me, n�o entenderias absolutamente, pois nunca jamais uma C�mara Municipal russa falaria daquele modo. A C�mara do Rio Claro, se fosse moscovita, ou voltaria a visitar o czar, quando ele estivesse em casa, ou far-se-ia niilista. Donde podes concluir a vantagem das mo��es, e a raz�o do uso imoderado que fazemos delas: � uma v�lvula. Enquanto a gente prop�e mo��es n�o trama conspira��es, e estas duas palavras que rimam no papel n�o rimam na pol�tica.

O que � curioso � que n�s, que n�o fazemos pol�tica, estejamos ocupados, eu em falar dela, tu em ouvi-la. O melhor � acabar e dizer-te adeus. Adeus, czarina; se c� vieres um dia de visita, pode ser que n�o aches as ruas limpas, mas os cora��es estar�o limp�ssimos. O presidente da Rep�blica, se n�o for algum dos que censuraram agora o Sr. Faure, beijar-te-� a m�o, sem perder o aprumo da liberdade. A Companhia Ferro Carril do Jardim Bot�nico oferecer-te-� um bonde especial para percorreres as suas linhas, com as tuas damas e escudeiros. Esta companhia completou anteontem vinte e oito anos de exist�ncia. Ainda me recordo da experi�ncia dos carros na v�spera da inaugura��o. Ningu�m vira nunca semelhantes ve�culos. Toda gente correu a eles, e a linha, aberta at� o Largo do Machado, continuou apressadamente aos seus limites. Nos primeiros dias os carros eram fechados; apareceram abertos para os fumantes, mas dentro de pouco estavam estes s�s em campo; as senhoras preferiram ir entre dois charutos, a ir cara a cara com pessoas que n�o fumassem. Outras companhias vieram a servir outros bairros. �nibus e dilig�ncias foram aposentados nas cocheiras e vendidos para o fogo. Que mudan�a em vinte e oito anos!

Uma coisa n�o entender�s, ainda que a transfiram � l�ngua de Gogol, s�o os dois avisos postos pela Companhia do Jardim Bot�nico em um ou mais dos seus carros. Tamb�m eu n�o as entendi logo; mas, por obtuso que um homem seja, desde que teime, decifra as mais escuras charadas deste mundo. Por que n�o suceder� o mesmo a uma senhora? Manda traduzir j� e v�.

O primeiro aviso � este: A assinatura evita o engano nos trocos. Compreende-se logo que a assinatura � a dos bilhetes de passagem. Quer dizer que, comprando-se uma cole��o de bilhetes, em vez de pagar com dinheiro cada vez que se entra no carro, n�o se perde nada nos trocos que d�o os condutores; logo, os condutores enganam-se; logo, h� um melhor meio que reprimir os condutores ou despedi-los, como se faz nas casas comerciais e nos bancos, � vender cole��es de bilhetes impressos. Nem se tira o p�o a distra�dos, nem se alivia o triste passageiro de uma parte do bilhete de dez ou mais tost�es.

O segundo aviso � uma pequena altera��o do primeiro, e diz assim: A assinatura evita o esquecimento nos trocos. Se aqui vem esquecimento em vez de engano, � que o passageiro em muitos casos perde o dinheiro, n�o j� em parte, mas totalmente, por aquela outra causa mais grave. N�o s� o esquecimento � prov�vel, mas at� pode ser certo e constante, se o condutor padecer de mol�stia que oblitere a mem�ria, e n�o h� meio de evitar que este fique com o resto do dinheiro sen�o oferecendo a companhia os seus bilhetes de assinatura. Outrossim, o passageiro passa a ser o melhor fiscal da companhia, e o seu ordenado � que deixa de ficar, por engano ou esquecimento, na algibeira do condutor. Tais me parecem ser os dois avisos; mas, se me disserem que eles cont�m uma profecia relativa aos destinos da Turquia, n�o recuso a explica��o. Tudo � poss�vel em mat�ria de epigrafia. Adeus, czarina!

18 de outubro

N�o se diga que a febre amarela tem medo ao saneamento; mais depressa o saneamento ter� medo � febre amarela. Em vez de o temer, p�s a ponta da orelha de fora esta semana, e se a tinha posto antes, n�o sei; eu n�o sou leitor ass�duo de estat�sticas. N�o nego o que valem as li��es que d�o, e a necessidade que h� delas para conhecer a vida e a economia dos Estados; mas entre negar e adorar h� um meio termo, que � a religi�o de muita gente.

A ponta da orelha que eu vi, foi um caso �nico do dia 15, publicado ontem, 17. N�o tem valor, comparado naturalmente a outras doen�as; mal tal � a m� fama daquela perversa, que um s� �bito basta para assustar mais que um obitu�rio inteiro de v�rias enfermidades, ou at� de uma s�. O vulgo n�o reflete que, bem observadas as coisas, ela nunca saiu daqui; uns anos cochila e cabeceia, outros dorme a sono solto, e, se acorda, � para esfregar os olhos e tornar a dormir; h�, por�m, os anos de vig�lia pura, em que n�o faz mais que entrar pelas casas alheias e obrigar a gente a dan�ar uma valsa triste, muitas vezes a �ltima.

Desta vez pode ser, e � bom esperar que seja uma esp�cie de memento, para que as v�timas poss�veis se acautelem do mal, indo v�-lo de longe. Tamb�m pode n�o passar disto, um caso em outubro, dois em novembro, tr�s e quatro em outros meses, at� acabar o ver�o. Querem, por�m, alguns que, pouca ou muita, enquanto a tivermos em casa, n�o h� relat�rios que a matem. As mais h�beis comiss�es n�o lhe tiram a alma. H� quem lhe tenha ouvido dizer: � Podem citar para a� os autores que quiserem, combater ou apoiar as opini�es todas deste mundo e do outro, enquanto n�o passarem da biblioteca � rua e da palavra � a��o, � o mesmo que se dormissem. Ora, a a��o de entestar com o mal, atac�-lo e venc�-lo, por meio de um trabalho longo, constante, forte e sistem�tico, � t�o comprida que faz doer o esp�rito antes de cansar o bra�o, e � preciso t�-los ambos de ferro. Se a agregada nossa confia nisso, � mister que perca a f�.

Nada do que fica a� � novo; a febre � velha, velhas as l�stimas, velh�ssimos os esfor�os para destruir o mal, e t�m a mesma idade os adiamentos de tais esfor�os. Quando aqui apareceu o c�lera, h� muitos anos, � n�o por ocasi�o do ministro Mamor�, que o mandou embora, � falo da primeira vez, o destro�o foi terr�vel, e a doen�a teria feito a lei da aboli��o por um o processo radical, se n�o fosse o judeu errante que � que n�o para nunca, e t�o depressa entra como sai. A amarela � caseira, gosta de c�modos pr�prios e n�o exige que sejam limpos nem largos; a quest�o � que a deixem ficar. Uma vez que a deixem ficar, podem discuti-la, examin�-la, revir�-la, redigir relat�rios sobre relat�rios, oficiar, inquirir, citar; words, words, words, diz ela para tamb�m citar alguma coisa. E n�o saindo de Hamlet: �Se o sol pode fazer nascer bichos em cachorro morto�... N�o ser�o c�es mortos que lhe faltem. Quanto ao len�ol de �gua, v�-lo-emos feito um formid�vel len�ol de papel. Papers, papers, papers.

Os italianos n�o cr�em no mal. Assim o dizem as estat�sticas, em que eu, como acima confessei, piamente, acredito sem as freq�entar muito. Portugueses e alem�es vem depois deles, muito abaixo, e ainda mais abaixo franceses, russos, belgas, ingleses e outros. Quem cr� deveras na febre � o chim; no ano passado n�o entrou nenhum, dizem as estat�sticas; mas por que notam elas esta aus�ncia do chim, e n�o citam a do abexim? Eis a� um mist�rio, que n�o ser� o primeiro nem o �ltimo das estat�sticas. Conquanto um artigo de folha genovesa diga que a col�nia italiana acabar� por absorver a nacionalidade brasileira, eu n�o dou f� a tais progn�sticos; mas quando italianos nos absorvessem, seriam outros, n�o seriam j� os mesmos. H� a� na pra�a um napolitano grave, influente, girando com capitais grossos, velho como os italianos velhos, que or�am todos pela dura velhice de Crispi e de Farani. Pois esse homem vi-o eu muita vez tocar realejo na rua, simples napolitano, recebendo no chap�u o que ent�o se pagava, que era um reles vint�m ou dois. Tinha eu sete para oito anos; fa�am a conta. V�o perguntar-lhe agora se quer ser outra coisa mais que brasileiro, se n�o da gema, ao menos da clara.

A prop�sito de realejo napolitano, li que em uma das levas de Genova para c� veio como agricultor um bar�tono. Ele, e um mestre de m�sica; perguntando-se-lhes o que vinham fazer ao Brasil, parece que responderam ser este pa�s grande e c� enriquecerem todos: �Por que n�o enriqueceremos n�s?� conclu�ram. N�o h� que censurar. A voz pode levar t�o longe como a manivela. Demais, a terra � de m�sica e a m�sica � de todas as artes aquela que mais nos fala � alma nacional. Um bar�tono, com boa voz e arte castigada, pode muito bem enriquecer, � ou, pelo menos, viver � larga. Tanto ou mais ainda um tenor e um soprano. Nem s� de caf� vive o homem, mas tamb�m da palavra de Verdi e de Carlos Gomes.

Dado, por�m, que vivamos s� de caf�, e n�o devamos cuidar de mais nada que de cultivar esta preciosa rubi�cea, ainda assim o bar�tono pode muito bem ser aceito e colocado. A f�bula reza de Orfeu, que levava os animais com a simples lira que os gregos lhe deram. Por que n�o h� de fazer a voz humana a mesma coisa �s plantas? A semente lan�ada � terra escutar� as melodias e por� o grelo de fora; com elas crescer� o talo, bracejar�o as flores e abotoar�o os gr�os, que mais tarde havemos de exportar e de beber tamb�m.

Seja milagre, mas � natural que a terra de Carlos Gomes neste particular faz milagres. O Rio de Janeiro recebeu os restos do nosso maestro com as honras merecidas. S. Paulo vai guard�-lo como um dos mais c�lebres de seus filhos. O Par�, que o viu morrer, aqui o mandou, depois das mais vivas provas de que a unidade nacional existe.

Anteontem, fui ao arsenal de guerra ver sair o f�retro do autor do Guarani e da Fosca, para ser conduzido � igreja de S. Francisco de Paula e ouvi a marcha f�nebre de Chopin que a banda militar tocava; n�o pude deixar de recordar os longos anos passados, quando o pr�stito era outro, e sa�a de outro lugar, � o teatro Provis�rio que l� vai � e descia pela rua da Constitui��o. Era de noite; o maestro tinha estreado, sem It�lia nem Guarani  mas eram tais as esperan�as dadas, e t�o jovens e ardentes �ramos todos os que por ali �amos aclamando a estrela nascente. A m�sica era a dos nossos peitos, podeis adivinhar se f�nebre ou festiva. Perguntai aos ecos da pra�a Tiradentes, � naquele tempo Constitui��o e vulgarmente Rocio Grande, � perguntai o que eles ouviram, e se s�o ecos fi�is dir�o coisas belas e fortes. O meu querido Salvador que ia � testa da legi�o record�-las-� com saudade, quando ler a not�cia das honras �ltimas aqui dadas ao maestro de Campinas.

Realmente, a diferen�a foi grande; uma vida inteira enchia o espa�o decorrido entre as duas datas, e as melodias de Gomes estavam agora na mem�ria de todos. Muitos que as repetiam consigo n�o eram ainda nascidos por aquele tempo; os que eram mo�os, como esses s�o agora, viram branquear os cabelos e entraram no pr�stito com a alma igualmente encanecida; a evoca��o do pret�rito os ter� remo�ado. Outros, enfim, nem mo�os nem velhos, ali n�o compareceram, por terem sido eliminados antes. N�o falo dos que est�o ainda em g�rmen, e repetir�o mais tarde as composi��es de Gomes. A mat�ria � �tima para uma disserta��o longa; o lugar � que o n�o �, nem o dia.

Fiquemos aqui; ou antes, voltemos � It�lia e aos seus cantores. Que venham, eles, bar�tonos e tenores, e nos trar�o, al�m da m�sica que este povo ama sobre todas as coisas, as pr�prias melodias do nosso maestro, e assim incluiremos um artigo no acordo que ela est� celebrando com o governo brasileiro, porventura mais vivo e n�o disputado. Tamb�m ela amou a Carlos Gomes, n�o por patriotismo, que n�o era caso disso, mas por arte pura.

25 de outubro

Li que o pescado que comemos � morto a dinamite, e que h� uma lei municipal que veda este processo. Se o processo � bom ou mau, justo � examin�-lo, mas n�o me argumentem com leis. J� � tempo de acabar com este respeito fedorento das leis, supersti��o sem poesia, costume sem gra�a, velho sapato que deforma o p� sem melhorar a andadura. A tro�a, que tem conseguido tanta coisa, n�o chegou a matar este v�cio. O assobio, t�o eficaz contra os homens, n�o tem igual for�a contra as leis que eles fazem. Ora, que s�o as leis mais que os homens para que nos afrontem com elas?

N�o contesto a vantagem de as fazer e guardar. � um of�cio, antes de tudo; melhor dito, s�o dois of�cios. A utilidade das leis escritas est� em regular os atos humanos e as rela��es sociais, uma vez que v�o de acordo com eles. Em chegando o desacordo, h� dois modos de as revogar ou emendar, a saber, por atos individuais ou por ado��o de leis novas. No cap�tulo do div�rcio, por exemplo, n�o existindo pretoria que case um homem j� casado, o rem�dio para obt�-lo e decret�-lo. � claro que se algum pretor, contra o disposto na lei, casasse a todos os casados, ningu�m se cansaria em reclamar a reforma. Resta aos partidos convencidos da necessidade dela continuar a propaganda at� p�-la na lei.

Tal n�o se d� no mar. A pesca � livre; regulada embora, n�o s�o tais as disposi��es da lei que exijam a presen�a de um agente p�blico. O pescador est� s�; o fiscal, se o h�, est� em casa; a dinamite lan�ada ao mar n�o acha obst�culo, nem no mar nem na terra. Que impedir� o pescador? A lembran�a de um decreto municipal, � ou postura, como se dizia pela l�ngua do antigo vereador? Francamente, � exigir uma for�a de abstra��o excessiva da parte de um homem que tem os cinco sentidos no lucro. Os incorporadores do encilhamento, � pescadores de homens, � tamb�m tinham os sentidos todos no lucro, e da� algumas infra��es das leis escritas, que n�o foram nem deviam ser castigadas. Cabe notar que a� nem se podia alegar o que dizem do peixe, que despovoa as �guas; nunca faltou peixe �s �guas da rua da Alf�ndega.

Os contratos, que formam lei entre duas partes, s�o alterados por ambas desde que uma n�o reclame a execu��o por parte da outra; tais esquecimentos n�o valem nem podem valer como se foram delitos. N�o me acode exemplo pertinente ao caso; v� o da escola que a Companhia ferro-carril da Carioca tinha que dar e n�o deu, segundo tamb�m li na imprensa. A� n�o se pode dizer que h� infra��o porque a outra parte contratante n�o exigiu a execu��o da cl�usula; � o mesmo que se consentisse em risc�-la do papel, n�o faltando mais que o gesto da pena. Mas um gesto, simples ato da m�o, d� mais for�a � vontade, ato do esp�rito? N�o nos estejamos a perder com burocracias. N�o exijamos maior ardor de uma parte em dar que da outra em receber. Nem esque�amos que o desuso de uma cl�usula acaba matando a cl�usula.

Outrossim, se a lei pode valer pelo uso que se lhe der, � tamb�m certo que o simples uso faz lei. Come�a-se por um abuso, esp�cie de erva que alastra depressa, correndo ch�o e arvoredo; depois, ou porque a for�a do homem corte algumas excresc�ncias, ou porque a vista se haja acostumado,

On s�habitue au mal que l�on voit sans rem�de,

o abuso passa a uso natural e leg�timo, at� que fica lei de ferro. Quando algu�m quer arrancar a m� erva do terreno � como se amea�asse levar o dinheiro dos outros. Tal �, se entendo o que leio, o caso da lota��o dos carros el�tricos da Companhia do Jardim Bot�nico.

A prefeitura intimou a Companhia a n�o admitir cinco pessoas nos carros el�tricos, mas s� quatro, visto n�o haver ato aprovando a lota��o de cinco. Creio que � isto. A Companhia, no conflito entre o uso e a ordem, come�ou por dizer que aquele era lei, e n�o cumpria outra. Em verdade, posto que entrasse aqui o interesse direto do povo, for�a � confessar que n�o h� interesse que valha um princ�pio, e o princ�pio e dar ao uso o car�ter legal que lhe cabe. A lei escrita pode ser obra de uma ilus�o, de um capricho, de um momento de pressa, ou qualquer outra causa menos ponder�vel; o uso, por isso mesmo que tem o consenso diuturno de todos, exprime a alma universal dos homens e das coisas. A sabedoria dos tempos tem cristalizado esta verdade de v�rios modos. � �Quem cala, consente�. � �O uso do cachimbo faz a boca torta�. Esta segunda f�rmula � mais en�rgica e expressiva, porquanto as bocas nascem direitas, e se o uso do cachimbo tem tal for�a que as faz tortas, e que vale por si muito mais que a a��o da natureza.

N�o atendeu a isto a prefeitura, e recorreu � autoridade judici�ria; mas a Companhia, seguindo o exemplo da pesca a dinamite, recusou cumprir a nova ordem, no que fez muito bem. J� estou cansado de tanto juiz em Berlim. Algemas, ainda que as doure o nome de ordens legais, sempre s�o v�nculos de escravid�o, a primeira liberdade e da alma. A Gazeta de Not�cias foi que deu esta not�cia, acompanhada de reflex�es com que absolutamente n�o concordo.

Uma s� coisa podia levar a Companhia � obedi�ncia, era o procedimento do passageiros. Caso eles dessem apoio �s ordens judici�rias e prefeiturais, recusando ir cinco por banco, faltava � Companhia o argumento do uso e do consenso, e eu tal hip�tese melhor seria ceder que resistir. Foi justamente o que aconteceu. Raro passageiro consentiu em fazer de quinto nos bancos. A generalidade deles recusou, ia nos estribos e na plataforma, ou esperava outro carro. Ora, desde que o povo, em favor de quem a Companhia decretara a lota��o de cinco, abre m�o deste benef�cio, a Companhia n�o s� perde o fundamento da aquiesc�ncia p�blica, mas ainda qualquer lucro pecuni�rio. N�o tinha mais que cumprir a ordem e foi o que fez ontem

N�o fez s� isto: li que vai pedir alguma compensa��o � prefeitura. A compensa��o � justa. N�o ser� o aumento do pre�o da passagem; por mais barata que esta seja, a ocasi�o do aumento seria impr�pria, j� porque o ato inicial da autoridade ficaria reduzido a uma porta aberta � altera��o do contrato em sentido oposto �s algibeiras dos contribuintes, j� porque h� pouco dinheiro em circula��o. Uma espera de tr�s ou quatro anos pode fazer dessa altera��o do contrato uma realidade �til e ben�fica. Nem faltam compensa��es imediatas desde o simples t�tulo honor�fico, � federal, por exemplo, � Companhia Federal Ferro Carril, etc. at� qualquer privil�gio que me n�o ocorre agora, mas que h� de haver.

N�o concluam que � o esp�rito de anarquia que me move a pena. F�cil coisa � taxar de anarquia tudo o que destoa de velhas manhas. Eu o que quero � que a lei sirva o necess�rio para conjugar os interesses humanos, que s�o a base da harmonia social. Mas isto mesmo exclui a supersti��o.

1� de novembro

O p�o londrino est� t�o caro como a nossa carne, e na Inglaterra n�o falta ouro, ao que parece. Em compensa��o, se o p�o dobrou de pre�o, os nossos t�tulos baixaram mais, como se houv�ssemos de pagar a diferen�a do valor do trigo. Tudo afinal cai nas costas do pobre: digo pobre, n�o porque n�o sejamos ricos de sobejo, mas � que a riqueza parada � como a id�ia que o alfaiate de Heine achava numa sobrecasaca: o principal � avent�-la e p�-la em a��o. Entretanto, n�o sendo verdade que o mal de muitos seja consolo, como quer o ad�gio, importa-nos pouco ou nada que o p�o custe caro em Londres, se nos falta, al�m da carne, o ouro com que merc�-la.

Se o mal dos outros n�o nos consola, � certo que a lembran�a do bem d� certa alma nova. Nestes dias de escasso dinheiro � doce reler aquele discurso que o dr. Ubaldino do Amaral proferiu no senado, no m�s de agosto de 1892. S. Exa. analisou o projeto de um banco emissor, no qual havia este artigo: �Fica o banco autorizado antecipadamente a fazer uma emiss�o de trezentos mil contos de r�is�. Escrevi por extenso a quantia, para que n�o escape algum erro; mas, como a fileira dos algarismos d� mais na vista, aqui vai ela: 300.000:000$000. � um regimento; o 3, bem observado, parece o coronel; o cifr�o � o porta-bandeira. Valha-me Deus! creio at� que ou�o a marcha dos algarismos; leiam com ritmo: trezentos mil contos, trezentos mil contos, trezentos mil contos...

� verdade que o senado, ouvindo a revela��o do senador, exclamou espantado: Santo Deus! O que n�o est� claro � qual haja sido o sentimento da exclama��o. Assombro, de certo; mas vinha ela da imensidade da quantia, n�o obstante andarmos, o senado e eu, afogados em milh�es, ou era antes uma express�o de esc�rnio por achar escassa a emiss�o antecipada. Trezentos mil contos! Mas quem � que por aqueles tempos n�o tinha trezentos mil contos? Se os n�o tinha, devia-os a algu�m, que era a mesma coisa. Nem sei se era ainda melhor dev�-los que possu�-los.

N�o me lembro bem agora do pre�o da carne e do p�o; mas, qualquer que fosse, como o dinheiro era infinitamente maior, n�o havia que gemer nem suspirar, era s� comer e digerir. Essas notas de bancos emissores, que por a� andam surradas, rasgadas, emendadas, concertadas com pedacinhos de papel branco, estavam na flor dos anos, novinhas em folha, com as letras ainda �midas do prelo. Vi-as chegar, catitas e alegres, como donzelas que v�o ao baile para dan�ar, e dan�aram que foi um del�rio. Eram valsas, polcas, quadrilhas de toda casta, francesas, americanas, de salteadores, toda a coreografia moderna e antiga. Segundo aquela chapa que as gazetas trazem j� composta para concluir as not�cias de festas, �as dan�as prolongaram-se at� o amanhecer�. As belas emiss�es foram dormir cansadas, sonhando com ouro, muito ouro.

Recordar tudo isso com este c�mbio a 8 e menos de 8, que uns acham natural, outros posti�o, n�o se pode dizer que n�o seja agrad�vel. A mem�ria revive o espet�culo. Nem foi h� tanto tempo que n�o ou�amos ainda os ecos da orquestra e o rumor dos passos... Os espet�culos remotos d�o o mesmo efeito, mas a tristeza cede ainda mais a do�ura, e a alma transporta-se quase integralmente aos tempos acabados. Quero referir-me a narra��o que a Not�cia est� fazendo de coisas antigas, n�o sei se por um, se por muitos colaboradores, mas muitos que sejam, � certo que s�o todos homens maduros, se j� n�o ca�ram do p�.

Conta aquela folha as �guas passadas desta cidade, com tal minud�ncia, que parece estar vendo-as. Quando eu era pequeno, conheci homens de certa idade que, por tradi��o falavam das �guas do monte, dil�vio que aqui houve no tempo de Jo�o VI; afinal ningu�m mais falou nelas, e foi um al�vio para aqueles outros mais velhos, que seriam pequenos quando elas ca�ram. A cantiga popular ainda se conservou por anos; mas a cantiga seguiu o exemplo das �guas, e foi atr�s delas. As que a Not�cia revive nos �ltimos dias s�o as da primeira imprensa peri�dica e as do finado Alcazar.

Aquelas n�o s�o comigo, n�o conheci essa multid�o de gazetas e gazetinhas, cujos t�tulos h�o de interessar os Taines do pr�ximo s�culo. D�o eles a nota dos costumes e da pol�mica. Quanto ao n�mero, quase que era uma folha para cada rua. Toda a gente sentia necessidade de dizer coisas aborrec�veis ou agudas, divulgar alcunhas e mazelas, ou, para usar a express�o vulgar e en�rgica, �p�r os podres na rua a algu�m.� Partidos, influ�ncias locais, simples desocupados, simpl�ssimos maldizentes, vinham de mistura com almas boas e ch�s, que n�o inventaram folhas sen�o para ensaiar os v�os po�ticos ou dizer em prosa palavrinhas doces �s mo�as; doces n�o, adocicadas.

As recorda��es do Alcazar est�o mais perto, e s�o coisas sabidas; mas n�o se trata s� de coisas sabidas, trata-se tamb�m de coisas sentidas, que � diferente; nestas � que as mem�rias velhas trajam roupas novas, e as �rvores secas e nuas reverdecem de repente, como sucede em outros climas. Talvez aquela gente e aquelas coisas n�o valessem nada, como quer a Not�cia, mas lembrai-vos da pergunta de Dante... N�o, n�o; deixemos os versos divinos do poeta. O que eu queria dizer, era por alus�o ao tempo da adolesc�ncia e da mocidade, n�o s� o dos dolci sospiri, como o da sua rima dubbiosi desiri. N�o caberia aqui contar como Francesca:

Questi, che mai da me non fia diviso,

visto que o tempo e o cansa�o, que s�o a melhor pol�cia das ruas desta vida, dispersaram o ajuntado e desfizeram a multid�o com pouco mais do que � preciso para cont�-lo aqui. Segredos da natureza.

Os dos homens s�o menos escuros, mas tamb�m duram menos. Ningu�m ignora que nesta cidade os segredos fazem a sua hora de rua do Ouvidor, todos os dias, entre quatro e cinco. � uso antigo; raros se deixam estar em casa. Ainda agora andaram por a� dois, acerca da opera��o do presidente da Rep�blica; um dizia que esta se faria depois do dia 7, outro que depois do dia 15 de novembro. Embora os dois virtualmente se desmentissem, n�o zangavam nem se descompunham; quando muito, piscavam o olho ao p�blico, dando de cabe�a para o lado do contr�rio, sorrindo. Era esse modo de avisar: �N�o acreditem no que ele diz; � um boato disfar�ado�. No mais, risonhos, palreiros, falando uma ou outra vez ao ouvido, mas sem cochicho, no tom geral da conversa��o.

Enquanto eles andavam na rua, �s escancaras, havia um terceiro segredo, que n�o aparecia a ningu�m, nem dizia palavra. Os outros dons chegaram a ir �s imedia��es do morro do Ingl�s; vi-os ambos, no pr�prio dia da opera��o, � noite, em casa que fica pouco abaixo do morro, insistindo convencidamente nas datas de 7 e de 15; mas j� ent�o a opera��o estava acabada, com o resultado que sabemos. O gr�o de areia de Cromwell, por n�o vir a lume, produziu os efeitos que Pascal resumiu em dez linhas do seu grande estilo; este outro, maior que aquele, acertou de ser contempor�neo da cirurgia moderna, e n�o complicou doen�a com pol�tica.

8 de novembro

Mac-Kinley est� eleito presidente dos Estados Unidos da Am�rica. Se Bryan tivesse raz�o, o povo estaria crucificado numa cruz de ouro; mas, como a crucifica��o se segue a ressurrei��o, era de esperar que o mesmo sucedesse ao povo, e a p�scoa seria o que s�o todas as p�scoas, uma festa de fam�lias. Foi justamente o que sucedeu, com a diferen�a que nem chegou a haver cruz, nem supl�cio. Bryan, felicitando o rival triunfante, acaba de mostrar que as figuras de ret�rica s�o necess�rias �s lutas do voto e que os oradores n�o pensam absolutamente o que dizem. Por outro lado, o vencedor proclama a na��o que a vit�ria � dela e n�o de um partido. Essa outra luta de generosidades � brilhante e digna de um grande povo.

Eu, se l� estivesse, faria uma estat�stica eleitoral, para figurar ao lado das maiores daquele pa�s, que as tem superiores ao resto do mundo. Os Estados Unidos s�o a terra das coisas altas, r�pidas e infinitas, vastas constru��es e desastres vastos, cidades feitas em tr�s meses e desfeitas em tr�s horas, para se refazerem em tr�s dias, vendavais que arrancam florestas, como o vento do outono as simples folhas de arbustos, e uma guerra civil, que se n�o pareceu com outra qualquer moderna nem antiga. Podemos imaginar o que � uma luta eleitoral. A minha estat�stica n�o contaria s� os discursos proferidos nos meetings, dos quais j� telegramas nos deram um pequeno c�mputo, que excede talvez as ora��es de uma legislatura ordin�ria; mas, enfim, os discursos ocupariam o primeiro lugar, sem esmiu�ar os per�odos e as palavras. Contaria os auditores de todos eles, discriminados por partidos; com os auditores, as aclama��es, as bandeiras, as gravuras, os artigos biogr�ficos e apolog�ticos, as edi��es dos programas, das folhas pol�ticas ou simplesmente noticiosas. Ao p� disto, as milhas andadas durante a campanha eleitoral, as rixas, os murros, os ferimentos e as mortes, pois que houve algumas; as apostas, valor e n�mero delas; e, para dar a tudo um gr�ozinho de fantasia, os sonhos, divididos pelo tamanho, pela cor, pela dura��o, pela significa��o, pelas cabe�as, pelas zonas, tantos ao sul, tantos ao norte, tudo bem disposto em quadros, que ficassem como um documento desta campanha de 1896.

� claro que nessas t�buas figurariam as minas de prata e seus produtos, os ganhos que daria a vit�ria de Bryan, e as perdas que trouxe para os derrotados a de Mac-Kinley. Viriam tamb�m os efeitos no resto do mundo. As felicita��es dos v�rios governos e da imprensa de outros pa�ses mostram que � alguma coisa eleger um presidente dos Estados Unidos, e basta inclinar a balan�a a um ou outro lado para encher de alegria ou de pavor as v�rias pra�as da Europa e da Am�rica. Tudo porque os dois candidatos preferiram uma coisa tang�vel nos programas a uma simples exposi��o de doutrinas, ou at� de palavras, � e estas teriam as suas vantagens; n�o abalariam o mundo, as pra�as n�o transtornariam as suas id�ias de padr�o monet�rio, e as taxas seguiriam tranq�ilas o caminho do costume.

O pa�s do d�lar divergiu no d�lar N�s temos aqui uma diverg�ncia esta semana, mas � nas deb�ntures da Sorocabana, das quais umas continuam a ser verdadeiras e outras falsas. J� as vi de outras empresas que, ainda verdadeiras todas n�o valiam mais que as falsas, e tinham vantagem de n�o levar ningu�m � cadeia t�o certo � que nisto de deb�ntures, e an�loga papelada, tudo depende do cr�dito da pessoa. N�o basta a cor da tinta nem perfei��o da gravura. As verdadeiras, que ora se falsificam, tem valor, de certo; ningu�m imita o que n�o presta, salvo os poetas e pintores de mau gosto, e assim os m�sicos. Os arquitetos tamb�m, e os escultores. Toda quest�o � saber quem � aqui o mau artista; dizem que � algu�m que depois de vir dos Estados Unidos, para l� tornou. Haver� c�mplices? A dificuldade � ach�-los, porque os pap�is falsos com p�em-se �s escondidas e distribuem-se com grand�ssimas cautelas. Os autores, quando ainda n�o est�o a bordo, jantam conosco � mesa, e dan�am em fam�lia. Mas, tornemos ao d�lar.

Um dos cap�tulos da minha estat�stica seria a soma de dinheiro gasto, ouro, prata e papel, por Estados e por cidades. Outro seria o n�mero dos cartazes, com as recomenda��es do estilo: Votai em Mac-Kinley! Votai em Bryan! N�s temos uns meetings ligeiros e n�o dispendiosos, pra�a estreita, um patamar de escada ou um pedestal de est�tua por tribuna. Tamb�m os h� destes noutras partes, ainda que mais vastos, como um que se efetuou agora em Hyde-Park, Londres, do qual s� se pode saber que foi o mais chocho de todos (vers�o Times), e o mais entusiasta que jamais houve (vers�o Daily Chronicle). V� a gente crer nos jornais que l�!

Em todo caso, um meeting n�o � uma campanha eleitoral e presidencial, que pede arte mais variada e perfeita, e n�o se faz s� com palavras e um convite manuscrito nas esquinas. Lestes que a grande prociss�o de New York levou a passar na rua doze horas, desde dez da manh� at� dez da noite. N�o se refresca todo esse pessoal com promessas; h� de haver algo mais que esperan�as. N�o todo, mas um basto n�mero de cabos e sub-cabos, de agentes, de servi�ais, precisa de entreter a natureza. � imposs�vel que os nossos amigos yankees n�o tenham algum prov�rbio equivalente ao nosso � �saco vazio n�o se p�e em p�. Al�m do mais, h� nessa prociss�o que passa na rua, durante doze horas, aclamando um candidato, tal soma de f�lego e resist�ncia, n�o menos que n�s espectadores que a v�em passar, a p� firme, que seria bom fosse imitado por outros povos. N�o s�o deb�ntures, s�o d�lares de metal.

Quando a gente arrepia o peito � hist�ria, e v� como se elegiam os c�nsules romanos, fica pasmado da diferen�a. Seguramente os americanos invocam a divindade nos seus atos e cerim�nias civis, como filhos de ingleses, que s�o; mas n�o fazem aquela consulta do c�u e dos deuses, particular a cada candidato, que os exclu�a ou admitia previamente. Candidato que o presidente da assembl�ia eleitoral dissesse ter sido exclu�do pela divindade, quando a consultou na v�spera, n�o recebia votos para c�nsul. Falam a� no poder dos nossos presidentes de mesa eleitoral; mas, seriamente, qual deles tem esta faculdade legal de consultar os astros? O que eles fazem � por abuso, mero abuso, detest�vel abuso; n�o possuem aquele poder moral e religioso, tanto quanto pol�tico, que dispensa a fraude, o bico de pena, troca de c�dulas, o aumento destas, os votos de defuntos, e tantos outros recursos que um pouco de religi�o e astrologia tornaria in�teis.

A verdadeira luta seria para ocupar a chefia da mesa. A� pode ser que houvesse alguma viol�ncia ou falsifica��o; em lugar desses seria a pr�pria boca divina falando aos homens. Um cidad�o que, depois de uma noite em claro, pudesse dizer: �Consultei o Cruzeiro e V�nus; s�o contr�rios ao Motta; o Cruzeiro prefere o Neves, e V�nus o Martins; mas, depois de alguma controv�rsia, combinaram no Silva e no Alves; eu votaria no Alves�; um cidad�o destes seria a pr�pria elei��o do Alves. Tudo sem discursos, nem prociss�es, nem manifestos, nem nada.

15 de novembro

�Uma gera��o passa, outra gera��o lhe sucede, mas a Terra permanece firme.� Este vers�culo do Eclesiastes � uma grande li��o da vida, e n�o digo a maior, porque h� mais tr�s ou quatro igualmente grandes. Mas n�o haver� poesia nem l�ngua que n�o tenha dito por modo particular esse pensamento final do mundo. Shelley exprimiu apenas metade dele naqueles dois versos:

Man�s yesterday may ne'er be like his morrow;

Nought may endure but Mutability.

Quem nos d� a mais viva imagem do contraste entre a mocidade dos homens no meio da imutabilidade da natureza � Chateaubriand. Lembrai-vos do Itiner�rio; recordai aquelas cegonhas que ele viu irem do Ilisso �s ribas africanas. Tamb�m eu vi as cegonhas da H�lade, e pe�o me desculpeis esta erup��o po�tica; nem tudo h� de ser prosa na vida, alguma vez � bom mirar as coisas que ficam e perduram entre as que passam r�pidas e leves... Creio que at� me escapou a� um verso: �entre as que passam r�pidas e leves...� A boa regra da prosa manda tirar a essa frase a forma m�trica, mas seria perder tempo e encurtar o escrito; v� como saiu, e passemos adiante.

Era no arrabalde em que residia. Bastava a presen�a do Corcovado para cotejar a firmeza da Terra com a mobilidade dos homens, e a circunst�ncia de estar na vizinhan�a daquele pico a habita��o do Sr. presidente da Rep�blica, operado e enfermo, passando as r�deas do Governo ao Sr. vice-presidente, que pouco mais distante mora, trazia uma compara��o f�cil, mas n�o menos triste que f�cil. Duro � pensar nos padecimentos de um homem. J� falei no gr�o de areia de Cromwell, a prop�sito do c�lculo que alterou, n�o a situa��o pol�tica, mas a parte principal do Governo. N�o repetirei aqui a id�ia; melhor � deixar ao Sr. Bar�o de Pedro Afonso explicar � Cidade do Rio as raz�es que o levaram a dizer que a cura estaria acabada em quinze dias, n�o o tendo cumprido por for�a de causas ali�s preexistentes. O pior de tudo, para quem est� c� embaixo, � este n�o poder sofrer calado e oculto, adoecer em particular, lutar com o mal e venc�-lo fora do circo e longe da plat�ia. A plat�ia romana fazia sinal com o dedo quando queria a morte da v�tima. Aqui ningu�m quer a morte do presidente, fique um tanto logrado, com a suspens�o dos boletins. A Rua do Ouvidor, se n�o tem not�cias, cai nos boatos.

Mas vamos ao meu ponto. Era no arrabalde em que moro. Pensava eu naquela limonada purgativa que uma pessoa bebeu, h� dias, e ia morrendo se a bebe toda, por n�o ser mais que puro iodo. O r�tulo da garrafa dava uma droga por outra. Do engano do botic�rio ia resultando mais um h�spede no cemit�rio, se a doente n�o recusa o medicamento, logo que lhe sentiu o gosto; ainda assim bebeu alguma por��o que a fez padecer um tanto. A lembran�a do caso entrou a passear-me no c�rebro, �nico c�rebro talvez em que j� existisse, t�o r�pido passa tudo nesta vida, e tanto me custa a deixar uma id�ia por outra. Ent�o refleti, e adverti que o descuido do botic�rio n�o teve mais processo, e posto que dos descuidos comam os escriv�es, nenhum escriv�o comeu deste. Tudo passou, a limonada, o iodo e a mem�ria.

E vieram outras lembran�as an�logas, vagas sombras, que para logo se iam desfazendo. Uma delas foi aquele outro descuido que levou para a cova um pobre-diabo, n�o sei se adulto, se infante. A troca dos rem�dios n�o foi obra de prop�sito, mas de erro, talvez de ignor�ncia. N�o foi a��o de alfaiate, ourives ou mar�timo, mas de botic�rio tamb�m, com a diferen�a que uns dizem ser o pr�prio dono da casa, outros um seu representante. A v�tima expirou. Deus recebeu a sua alma. O acidente deu o que falar e escrever, e os adjetivos vadios apareceram contra o pobre autor do involunt�rio descuido; mas adjetivos n�o s�o agentes de pol�cia, e enquanto um homem ouve a palavrada do prelo n�o escuta as chaves no ferrolho da deten��o. O descuidado acabaria solto, se tivesse de acabar; os escriv�es n�o comeram desse primeiro descuido. Poucos dias depois creio que continuou a vender as suas drogas, e a prova de que n�o houve prop�sito, e quando muito desazo, � que ningu�m mais morreu, pelo menos at� ontem.

Essa lembran�a desapareceu como as primeiras. Gera��es delas iam assim vindo como as do texto b�blico, umas atr�s de outras, esquecidas, apagadas, mortas. Nem eram s� as dos rem�dios trocados; as dos desfalques tinham igual destino. Quatro, cinco, seis mil contos desapareceram, como ilus�es da mocidade, como opini�es de ano velho. Quem sabe j� deles? H� quem cite algum, raro, ou para compara��o, ou por qualquer necessidade de fundamento, n�o com id�ias de processo. Os desfalques s�o como os amores enganados; doem muito, mas os tempos acabam de os enganar e enterrar, e, quando menos se espera, o desfalcado reza por alma do outro, se o outro morre. Se n�o morre, n�o o mata, nem lhe tira a liberdade, que � a primeira dos bens da Terra e a melhor base das sociedades pol�ticas. Se, al�m de vivo, o outro gosta de dan�ar, dan�a; � ou joga, se lhe sabe o jogo, que tanto pode ser de cartas como de prendas.

Todas essas sombras, desfalques grandes e pequenos, p�blicos ou particulares, e trocas de rem�dios, e doen�as e mortes filhas dessas trocas, todas essas sombras impunes iam e vinham, e eu n�o podia com os olhos (quanto mais com as m�os!) agarr�-las, fix�-las, sent�-las diante de mim. Como Goethe, dedicando o Fausto, perguntava-lhes se me rodeavam ainda uma vez, e elas iam mais vagas que as do poeta, iam-se para n�o voltar mais; todas esquecidas.

Eram as gera��es que passavam. Gera��es novas suceder�o a essas, para se irem tamb�m, e dar lugar a mais e mais, que ceder�o todas � mesma lei do esquecimento, desfalques e rem�dios. Onde est� a terra firme?

Quando eu fazia esta pergunta e quase respondia Lao-Ts�, contempor�neo de Conf�cio, de quem o Jornal do Com�rcio p�blicou h� dias algumas verdades verdadeiras, eis que ou�o o grito na rua, um preg�o, uma voz esgani�ada; era a terra firme, eram as cegonhas de Chateaubriand: �Um de resto! anda hoje! duzentos contos!� Homens e leis t�m vida limitada, � eles por necessidade f�sica, � elas por necessidades morais e pol�ticas; mas a loteria � eterna. A loteria � a pr�pria Fortuna e a Fortuna � a deusa que n�o conhece incr�dulos nem renegados. A cidade fala de umas coisas que esquece, crimes p�blicos, crimes particulares; mas loteria n�o � crime particular nem p�blico! Um de resto! anda hoje! duzentos contos!

22 de novembro

A natureza tem segredos grandes e inopin�veis. N�o me refiro especialmente ao de anteontem, no Cassino Fluminense, onde algumas senhoras e homens de sociedade nos deram �pera, com�dia e pantomima, com tal propriedade, gra�a e talento, que encantaram o sal�o repleto. N�o � a primeira vez que a comiss�o do Cora��o de Jesus ajunta ali a flor da cidade. Aos esfor�os das senhoras que a comp�em correspondem os convidados, � e desta vez apesar do tempo, que era execr�vel, � e aos convidados, em cujo n�mero se contava agora o Sr. vice-presidente da Rep�blica, corresponderam os que se incumbiram de dizer, cantar ou gesticular alguma coisa. Outros contar�o por menor e por nomes o que fizeram os improvisados artistas. A mim nem me cabe esta nota de passagem, em verdade menos viva que a do meu esp�rito; mas, pois que saiu, a� fica.

N�o, o inopin�vel e grande da natureza a que quero me referir, � outro. Um dos maiores sabe-se que � o suic�dio, que nos parece absurdo, quando a vida � a necessidade comum; mas, considerando que � a mesma vida que leva o homem a elimin�-la, � propter vitam, � tudo afinal se explica na pessoa que pega em si, e d� um talho, bebe uma droga ou se deita de alto a baixo na rua ou no mar. As crian�as pareciam isentas dessa vertigem; mas h� ainda poucas semanas deram os jornais not�cia de uma criaturinha de doze anos que acabou com a exist�ncia, � uns dizem que por pancadas recebidas, outros que por nada.

Tivemos agora um caso mais particular: um fazendeiro rio-grandense deu um tiro na cabe�a e desapareceu do n�mero dos vivos. O telegrama nota que era homem de idade, � o que exclui qualquer paix�o amorosa, conquanto as c�s n�o sejam inimigas das mo�as; podem ser invejosas, mas inveja n�o � inimizade. E h� v�rios modos de amar as mo�as, � o modo conjuntivo e o modo ext�tico; ora, o segundo � de todas as fases deste mundo. Al�m de idoso, o suicida era rico, isto �, aquele bem que a sabedoria filos�fica reputa o segundo da terra, ele o possu�a em grau bastante para n�o padecer nos �ltimos da vida, ou antes para viv�-los � farta, entre os confortos do corpo e da boca. N�o tinha mol�stia alguma; nenhuma paix�o pol�tica o atormentava. Qual a causa ent�o do suic�dio?

A causa foi a convic��o que esse homem tinha de ser pobre. O telegrama chama-lhe mania, eu digo convic��o. Qualquer, por�m, que seja o nome, a verdade � que o fazendeiro rio-grandense, largamente propriet�rio, acreditava ser pobre, e da� o terror natural que traz a pobreza a uma pessoa que trabalhou por ser rica, viu chegar o dinheiro, crescer, multiplicar-se, e por fim come�ou a v�-lo desaparecer aos poucos, a mais e mais depressa, e totalmente. Note-se bem que n�o foi a ambi��o de possuir mais dinheiro que o levou � morte, � raz�o de si misteriosa, mas menos que a outra; foi a convic��o de n�o ter nada.

N�o abaneis a cabe�a. A vossa incredulidade vem de que a fazenda do homem, os seus cavalos, as suas bolivianas, as suas letras e ap�lices valiam realmente o que querem que valham; mas n�o fostes v�s que vos matasse, foi ele e nada disso era vosso, mas do suicida. As coisas t�m o valor do aspecto, e o aspecto depende da retina. Ora, a retina daquele homem achou que os bens t�o invejados de outros eram coisa nenhuma, e prevendo o p�o alheio, a cama da rua, o travesseiro de pedra ou de lodo, preferiu ir buscar a outros climas melhor vida ou nenhuma, segundo a f� que tivesse.

O avesso deste caso � bem conhecido naquele cidad�o de Atenas que n�o tinha nem possu�a uma dragma, um pobre-diabo convencido de que todos os navios que entravam no Pireu eram dele; n�o precisou mais para ser feliz. Ia ao porto, mirava os navios e n�o podia conter o j�bilo que traz uma riqueza t�o extraordin�ria. Todos os navios! Todos os navios eram seus! N�o se lhe escureciam os olhas e todavia mal podia suportar a vista de tantas propriedades. Nenhum navio estranho; nenhum que se pudesse dizer de algum rico negociante ateniense. Esse opulento de barcos e ilus�es comia de empr�stimo ou de favor; mas n�o tinha tempo para distinguir entre o que lhe dava uma esmola e o seu criado. Da� veio que chegou ao fim da vida e morreu naturalmente e orgulhosamente.

Os dois casos, por avessos que pare�am um ao outro, s�o o mesmo e �nico. A ilus�o matou um, a ilus�o conservou o outro; no fundo, h� s� a convic��o que ordena os atos. Assim � que um pobret�o, crendo ser rico, n�o padece mis�ria alguma, e um opulento, crendo ser pobre, d� cabo da vida para fugir � mendicidade. Tudo � reflexo da consci�ncia.

N�o mofeis de mim, se achais a� um ar de serm�o ou filosofia. O meu fim n�o � s� contar os atos ou coment�-los; onde houver uma li��o �til � meu gosto e dever tir�-la a divulg�-la como um presente aos leitores; � o que fa�o aqui. A li��o que eu tirar pode ter a exist�ncia do cavalo do pampa ou a do navio do Pireu; toda a quest�o � que valha por uma realidade, aos olhos do fazendeiro do Sul e do cidad�o de Atenas.

A li��o � que n�o pe�ais nunca dinheiro grosso aos deuses, sen�o com a cl�usula expressa de saber que � dinheiro grosso. Sem ela, os bens s�o menos que as flores de um dia. Tudo vale pela consci�ncia. N�s n�o temos outra prova do mundo que nos cerca sen�o a que resulta do reflexo dele em n�s: � a filosofia verdadeira. Todo Rothschild and Sons, nossos credores, valeriam menos que os nossos criados, se n�o possu�ssem a certeza luminosa de que s�o muito ricos. Wanderbilt seria nada; Jay Gould um triste cocheiro de t�lburi sem possuir sequer o carro nem o cavalo, a n�o ser a convic��o dos seus bens.

Passai das riquezas materiais �s intelectuais: � a mesma coisa. Se o mestre-escola da tua rua imaginar que n�o sabe vern�culo nem latim, em v�o lhe provar�s que ele escreve como Vieira ou C�cero, ele perder� as noites e os sonos em cima dos livros, comer� as unhas em vez de p�o, encanecer� ou encalvecer�, e morrer� sem crer que mal distingue o verbo do adv�rbio. Ao contr�rio, se o teu copeiro acreditar que escreveu os Lus�adas, ler� com orgulho (se souber ler) as est�ncias do poeta; repeti-las-� de cor, interrogar� a teu rosto, os teus gestos, as tuas meias palavras, ficar� por horas diante dos mostradores mirando os exemplares do poema exposto. S� meter� em processo os editores se n�o supuser que ele � o pr�prio Cam�es: tendo essa persuas�o, n�o far� mais que ler aquele nome t�o bem visto de todos, aben�o�-lo em si mesmo; ouvi-lo aos outros, acordado e dormindo.

Que diferen�a achais entre o mestre-escola e seu copeiro? Consci�ncia pura. Os fr�volos, crentes de que a verdade � o que todos aceitam, dir�o que � mania de ambos, como o telegrama mandou dizer do fazendeiro do Sul, como os antigos diriam do cidad�o de Atenas. A verdade, por�m, � o que deveis saber, uma impress�o interior. O povo, que diz as coisas por modo simples e expressivo, inventou aquele ad�gio: Quem o feio ama, bonito lhe parece. Logo, qual � a verdade est�tica? � a que ele v�, n�o a que lhe demonstrais.

A conclus�o � que o que parece desmentir a natureza da parte de um homem que se elimina por supor que empobreceu, n�o � mais que a sua pr�pria confirma��o. J� n�o possu�a nada o suicida. A contabilidade interior usa regras �s vezes diversas da exterior, diversas e contr�rias. 20 com 20 podem somar 40, mas tamb�m podem somar 5 ou 3, e at� 1, por mais absurdo que este total pare�a; a alma � que � tudo, amigo meu, e n�o � Bezout que faz a verdade das verdades. Assim, e pela �ltima vez, repito que vos n�o limiteis a pedir bens simples, mas tamb�m a consci�ncia deles. Se eles n�o puderem vir, venha ao menos a consci�ncia. Antes um navio no Pireu que cem cavalos no pampa.

29 de novembro

Gastibelza, l�homme � la carabine, chantait ainsi.

V. HUGO

Abdul-Hamid, padix� da Turquia

              Servo de Al�,

Ao relembrar com outrora gemia

              Gastibelz�

Soltou a voz solit�ria e plangente

              Cantando assim: �

�Verei morrer esse eterno doente?

              Penso que sim.

� meu har�m! � sagradas mesquitas

              Meu c�u azul!

Terra de tantas mulheres bonitas,

              Minha Istambul!

� Dardanelos! � B�sforo! � gente

              S�ria, alepim! �

Verei morrer este eterno doente?

              Penso que sim.

Ou�o de um lado bradar o Evangelho,

              De outro o Cor�o,

Ambos � for�a daquele �dio velho,

              Velha paix�o,

E sinto em risco o meu trono luzente,

              Todo cetim. �

Verei morrer este eterno doente?

              Penso que sim.

Gladstone, certo feroz paladino,

              Crist�o e ingl�s,

Em discurso chamou-me assassino,

              H� mais de um m�s;

Ningu�m puniu esse dito insolente

              De tal mastim. �

Verei morrer este eterno doente?

              Penso que sim.

Chamou-me ainda n�o sei se maluco,

              Ele que j�

Vai pela idade de mole e caduco,

              Velho pax�,

Ele que quis rebelar toda a gente

              Da verde Erim. �

Verei morrer este eterno doente?

              Penso que sim.

�Ah! se eu, em vez de gostar da sultana

              E outra hanuns,

Trocar quisesse esta Porta Otomana

              Pelos Comuns,

Dar-me-iam, dizem, o trato excelente

              Que d�o ao chim. �

Verei morrer este eterno doente?

              Penso que sim.

Querem que fa�a reformas no Imp�rio,

              Voto, elei��o,

Que inda mais alto que o nosso mist�rio

              Ponha o crist�o,

Que de � cruz o papel do crescente,

              Como em Dublim. �

Verei morrer esse eterno doente?

              Penso que sim.

Que tempo aquele em que bons aliados

              Bret�o, franc�s,

Defender vinham dos golpes danados

              O nosso fez!

Ent�o a velha quest�o do Oriente

              Tinha outro fim. �

Verei morrer este eterno doente?

              Penso que sim.

Ent�o a gente da ruiva Mosc�via,

              Imperiais

Da Bessar�bia, Sib�ria, Vars�via,

              Odessa e o mais,

N�o conseguiam meter o seu dente

              No meu capim. �

Verei morrer este eterno doente?

              Penso que sim.

Hoje meditam levar-me aos peda�os

              Tudo o que sou,

Cabe�a, pernas, costelas e bra�os,

              Paris, Moscou,

A rica Londres, Viena a potente,

              Roma a Berlim. �

Verei morrer este eterno doente?

              Penso que sim.

Oh! Desculpai-me se nesta lam�ria,

              Se neste andar,

Preciso �s vezes entrar na Lig�ria

              Para rimar.

Para rimar um mand�o do Ocidente

              Com mandarim. �

Verei morrer este eterno doente?

              Penso que sim.

Constantinopla rima com manopla,

              Bem, sim, senhor;

Por�m que a dura exig�ncia da copla

              Torne uma flor

Igual � erva mofina e cadente

              De um mau jardim... �

Verei morrer este eterno doente?

              Penso que sim.

Pois eu rimei Maom� com verdade,

              Mas hoje, ao ver

Que nem me fica esta velha cidade,

              Sinto perder

A f� que tinha de pr�ncipe e crente

              At� o fim. �

Verei morrer este eterno doente?

              Penso que sim.

�Donzelas frescas, matronas gorduchas,

              Com feredjehs,

Mo�as cal�adas de lindas babuchas

              Nos finos p�s,

Mastigam doces com gesto indolente

              No meu festim. �

Verei morrer este eterno doente?

              Penso que sim.

Onde ir�o elas comer os confeitos

              Que hora aqui t�m?

Quem lhes dar� esses sonos perfeitos

              Do meu har�m?

Onde achar�o o sabor excelente

              De um alfenim? �

Verei morrer este eterno doente?

              Penso que sim.

E eu, onde irei, se me deitam abaixo?

              Onde irei eu,

Servo de Al�, sem bast�o nem penacho?

              Tal o judeu

Errante, irei, sem parar, tristemente,

              De Ohio a Pequim. �

Verei morrer este eterno doente?

              Penso que sim.

Ver-me-�o � noite, com a lua ou sem lua.

              Seguir atr�s

Da costureira que passa na rua,

              Honesta, em paz,

Pedir-lhe um beijo um beijo de amor por um pente

              De ouro ou marfim. �

Verei morrer este eterno doente?

              Penso que sim.

�Comerei s�, sem eunucos escuros,

              Em restaurant,

Talvez bebendo dos vinhos impuros

              Que veda Isl�;

Esposo de uma senhora somente

              Assim, assim. �

Verei morrer este eterno doente?

              Penso que sim.

Penso que sim. Vir�o logo rasg�-lo

              Como urubus

Sobre o cad�ver de um pobre cavalo,

              Na��es de truz.

Far�o de cada peda�o jacente

              Uma Tonquim. �

Verei morrer este eterno doente?

              Penso que sim.

Penso que sim; mas, pensando mais fundo,

              Bem pode ser

Que ele ainda fique algum tempo no mundo;

              Tudo � fazer

Com que elas briguem na festa esplendente

              Antes do fim. �

Verei viver este eterno doente?

              Talvez que sim.�

6 de Dezembro

Ant�nio Conselheiro � o homem do dia; faz-me lembrar o beri-beri. Eu acom­panhei o beri-beri durante muitos anos, pelas folhas do Norte, principalmente do Maranh�o e do Cear�. Via citadas as pes­soas que adoeciam do mal, que eu n�o co­nhecia e cujo nome lia errado, carregando no i: lia ber�-ber�. Confesso este pecado de pros�dia, esperando que os meus contempo­r�neos fa�am a mesma coisa, ainda que, co­mo eu, n�o tenham outros merecimentos. Quem tem outros merecimentos pode clau­dicar uma vez ou duas. Ao duque de Ca­xias ouvi eu dizer � m�ster; mas o duque tinha uma grande vida militar atr�s de si. Que feitos militares ou civis tem um se­nhor, que eu conhe�o, para dizer elei��os?

Mas, tornando ao meu prop�sito, eu li os casos de beri-beri por muitos e dilata­dos anos. Acompanhei a mol�stia; vi que se espalhava pouco a pouco, mas segu­ra. Foi assim que chegou � Ba�a, e anos depois estava no Rio de Janeiro, de onde passou ao Sul. Hoje � doen�a nacional. Quando deram por ela, tinha abrangido tudo. Ningu�m advertiu na conveni�ncia de sufoc�-la nos primeiros focos.

O mesmo sucedeu com Ant�nio Con­selheiro. Este chefe de bando h� muito tempo que anda pelo sert�o da Ba�a es­palhando uma boa nova, sua, e arrebanhan­do gente que a aceita e o segue. Eram vin­te, foram cinq�enta, cem, quinhentos, mil, dois mil; as �ltimas not�cias d�o j� tr�s mil. Antes de tudo, tiremos o chap�u. Um homem que, s� com uma palavra de f�, e a quieta��o das autoridades, congrega em tor­no de si tr�s mil homens armados, � algu�m. Certamente, n�o � digno de imita��o; che­go a ach�-lo detest�vel; mas que � algu�m, n�o h� d�vida. N�o me repliquem com al­garismos eleitorais; nas elei��es pode-se muito bem reunir duas e tr�s mil pessoas, mas s�o pessoas que votam e se retiram, e n�o se re�nem todas no mesmo lugar, mas em se��es. Casos h� em que nem v�o �s urnas; � o que elegantemente se chama bico de pena. Uns dizem que este pro­cesso � imoral; outros que imoral � ficar de fora. Eu digo, como Bossuet: �S� Deus � grande, meus irm�os!�

Como e de que vivem os sect�rios de Ant�nio Conselheiro? N�o acho not�cia exata deste ponto, ou n�o me lembro. Se n�o t�m rendas, vivem naturalmente das do mato, ca�a e fruta, ou das dos outros, como os salteadores. A verdade � que vivem. A cren�a no chefe � grande; Ant�nio Conselheiro tem tal poder sobre os seus amigos, que far� deles o que quiser. Ago­ra mesmo, no primeiro ataque da for�a p�­blica, sabe-se que eles, baleados, vinham �s fileiras dos soldados para cort�-los a fa­c�o, e morrer. Entretanto, eles t�m ami­gos estabelecidos � sombra das leis. Um telegrama diz que da cidade de Alagoi­nhas mandaram p�lvora e chumbo ao che­fe. Apreenderam-se caix�es com armas que iam para ele. Os sect�rios batem-se com armas Comblaim e Chuchu. Dizem as not�cias que n�o se pode destruir tal gente com menos de seis mil homens de tropa. Talvez mais; um fan�tico, certo de ressuscitar da� a quinze dias, como ele assegu­ra, vale por tr�s homens.

H� um ponto novo nesta aventura baiana; est� nos telegramas publicados anteontem. Dizem estes que Ant�nio Conselheiro bate-se para destruir as insti­tui��es Republicanas. Neste caso, estamos diante de um general Boulanger, adaptado ao meio, isto �, operando no sert�o, em vez de o fazer na capital da Rep�blica e na c�­mara dos deputados, com elei��es sucessi­vas e simult�neas. � muita coisa para tal homem; profeta de Deus, enviado de Je­sus e cabo pol�tico, s�o muitos pap�is jun­tos, conquanto n�o seja imposs�vel reu­ni-los e desempenh�-los. Cromwel derri­bou Carlos I com a B�blia no bolso, e n�o ganhou batalha que n�o atribu�sse a vit�ria a Deus. �Senhor, � escrevia ele ao presidente da c�mara dos comuns, � senhor, isto � nada menos que Deus; a ele cabe toda a gl�ria�. Mas, ou eu me engano, ou vai muita dist�ncia de Cromwel a Ant�nio Conselheiro.

Entretanto, como a alma passa por es­tados diferentes, n�o � absurdo que o atual estado da do nosso patr�cio seja a ambi��o pol�tica. Pode ser que ele, desde que se viu com tr�s mil homens armados e subordinados, tenha sentido brotar do es­p�rito prof�tico o esp�rito pol�tico, e pen­se em substituir-se a todas as Constitui��es. Imaginar� que, possuindo a Ba�a, possui Sergipe, logo depois Alagoas, mais tarde Pernambuco e o resto para o norte e para o sul. Dizem que ele declarou que h� de vir ao Rio de Janeiro. N�o � f�cil, mas to­dos os projetos s�o veross�meis, e, dada a ambi��o pol�tica, o resto � l�gico. Ele pode pensar que chega, v� e vence. Supo­nhamos n�s que � assim mesmo; que as calamidades do tempo e o esp�rito da re­beli�o se d�o as m�os para entregar a vit�ria ao chefe da seita dos Canudos. Canudos �, como sabeis, o lugar onde ele e o seu ex�rcito est�o agora entrincheirados. Isto suposto, que ser� o dia de amanh�?

Lealmente, n�o sei. Eu n�o sou pro­feta. Se fosse, talvez estivesse agora no sert�o, com outros tr�s mil sequazes, e uma seita fundada. E faria o contr�rio da­quele fundador. N�o viria aos centros po­voados, onde a corrup��o dos homens tor­na dif�cil qualquer organiza��o s�lida, e o esp�rito de rebeli�o vive latente, � espera de oportunidade. N�o, meus amigos, era l� mesmo no sert�o, onde os bichos ainda n�o jogam nem s�o jogados; era no mais fechado, �spero e deserto que eu levanta­ria a minha cidade e a minha igreja.

Ant�nio Conselheiro n�o compreen­de essa vantagem de fazer obra nova em s�tio devoluto. Quer vir aqui, quer gover­nar perto da rua do Ouvidor. Naturalmen­te, n�o nos dar� uma Constitui��o liberal, no sentido an�rquico deste termo. Talvez nem nos d� c�pia ou imita��o de nenhuma outra, mas alguma coisa in�dita e inespe­rada. O governo ser� decerto pessoal; ningu�m gasta paci�ncia e anos no mato pa­ra conquistar um poder e entreg�-lo aos que ficaram em suas casas. O exemplo de Or�lie-Antoine I (e �nico), rei dos Arau­c�nios, n�o o seduzir� a p�r uma coroa na cabe�a. C�nsul e Protetor s�o t�tulos usa­dos. Palpita-me que ele se far� intitular simplesmente Conselheiro, e, sem alterar o nome, dividi-lo-� por uma v�rgula: �Ant�nio, Conselheiro, por ordem de Deus e obedi�ncia do povo�... Ter� um conselho, c�mara �nica e pequena, n�o incumbida de votar as leis, mas de as examinar somente, pelo lado ortogr�fico e sint�tico, pelo n�mero de letras consoantes em rela��o �s vogais, idade das palavras, energia dos verbos, harmonia dos per�odos, etc., tudo exposto em relat�rios longos, minuciosos, ileg�veis e in�ditos.

Venerado como profeta, obedecido como chefe de Estado, investido de ambos os gl�dios, com as chaves do c�u e da terra na gaveta, Ant�nio Conselheiro ver� o seu poder definitivamente posto? Como tudo isto � sonho, sonhemos que sim; mas Oli­veiro ter� um Ricardo por sucessor, e a obra do primeiro perecer� nas m�os do se­gundo, sem outro resultado mais que haver o profeta governado perto da rua do Ou­vidor. Ora, esta rua � o al�ap�o dos go­vernos. Pela sua estreiteza, � a murmura­��o condensada, � o viveiro dos boatos, e mais faz um boato que dez artigos de fun­do. Os artigos n�o se l�em, principalmente se o contribuinte percebe que tratam de or�amento e de imposto, mat�rias j� de si aborrec�veis. O boato � leve, r�pido, trans­parente, pouco menos que invis�vel. Eu, se tivesse voz no Conselho Municipal, antes de cuidar do saneamento da cidade, propu­nha o alargamento da rua do Ouvidor. Quando este beco for uma avenida larga em que as pessoas mal se conhe�am de um lado para outro, ter�o cessado mil dificul­dades pol�ticas. Talvez ent�o se populari­zem os artigos sobre finan�as, impostos e outras rudes necessidades do s�culo.

13 de dezembro

O Senado deixou suspensa a quest�o do veto do prefeito acerca do imposto sobre companhias de teatro. N�o falaria nisto se n�o se tratasse de arte em que a pol�tica n�o penetra, � ao menos que se veja. Se penetra, � pelos bastidores; ora, eu sou p�blico, s� me regulo pela sala.

Houve debate � �ltima hora, esta semana, e debate, n�o direi encarni�ado, para n�o gastar uma palavra que lhe pode servir em caso mais agudo... N�o, eu n�o sou desses perdul�rios que, porque um homem diverge no corte do colete, chama-lhe logo bandido; eu poupo as palavras. Digamos que o debate foi vigoroso.

N�o sei se conheceis o neg�cio. O que eu pude alcan�ar � que havia uma lei taxando fortemente as companhias estrangeiras; esta lei foi revogada por outra que manda igualar as taxas das estrangeiras e das nacionais; mas logo depois resolveu o conselho municipal que fosse cumprida uma lei anterior � primeira... Aqui � que eu n�o sei bem que a lei restaurada apenas levanta as taxas sem desigual�-las, ou se a tornam outra vez desiguais. Al�m de n�o estar claro no debate, sucede que na publica��o do discurso h� o uso de imprimir entre par�ntesis a palavra l� quando o orador l� alguma coisa. Para as pessoas que est�o na galeria, (ao contr�rio!) a conseq��ncia � que a maior parte fica sem saber o que � que leu, e portanto sem perceber a for�a da argumenta��o, isto com preju�zo dos pr�prios oradores. Por exemplo, um orador, X..., refuta a outro, Y...:

�X... E pergunto eu, Vossa Excel�ncia pode admitir que o documento de que se trata afirme o que o governo do Estado alega? Ou�a Vossa Excel�ncia. Aqui est� o primeiro trecho, o trecho c�lebre. (L�) N�o h� aqui o menor vest�gio de afirma��o...

Y... Perd�o, leia o trecho seguinte.

X... O seguinte? Ainda menos. (L�) N�o h� nada mais vago. O governador expedira o decreto, cujo art. 4� n�o oferece a menor d�vida; basta l�-lo. (L�) Depois disto, que concluir, sen�o que o governador tinha o plano feito? Querem argumentar, Sr. presidente, com o � 7� do art. 6�; mas essa disposi��o � um absurdo jur�dico. Ou�a a C�mara. (L�)

Vozes: Oh! Oh!�

N�o h� d�vida que esse uso economiza papel de impress�o e tempo de copiar; mas eu, contribuinte e eleitor, n�o gosto de economias na publica��o dos debates. Uma vez que estes se imprimem � indispens�vel que saiam completos para que eu os entenda. Posso ser para pregui�oso, morar fora, e tenho direito de saber o que � que se l� nas C�maras. Se algum membro ou ex-membro do congresso me l�, espero que providenciar� de modo que, para o ano, eu possa ler o que se ler, sem ir passar os meus dia na galeria do congresso.

Como ia dizendo, n�o tenho certeza do que � a lei municipal restaurada; mas para o que eu vou dizer � indiferente. O que deduzi do debate � que h� duas opini�es: uma que entende deverem ser as companhias estrangeiras fortemente taxadas, ao contr�rio das nacionais, outra que quer a igualdade dos impostos. A primeira funda-se na conveni�ncia de desenvolver a arte brasileira, animando os artistas nacionais que aqui labutam todo ano, seja de inverno, seja de ver�o. A segunda, entendendo que a arte n�o tem p�tria, alega que as companhias estrangeiras, al�m de nos dar o que as outras n�o d�o, t�m de fazer grandes despesas de transporte, pagar ordenados altos e n�o conv�m carregar mais as respectivas taxas. Tal � o conflito que ficou suspenso.

Eu de mim creio que ambas as opini�es erram. N�o erram nos fundamentos te�ricos; tanto se pode defender a universalidade da arte como sua nacionalidade; erram no que toca aos fatos. Com efeito, � dif�cil, por mais que a alma se sinta levada pelo princ�pio da universalidade da arte, n�o hesitar quando nos falam da necessidade de defender a arte nacional; mas � justamente este o ponto em que a vis�o do Conselho Municipal, do prefeito e do Senado me parece algo perturbada.

Posto n�o freq�ente teatros h� muito tempo, sei que h� a� uma arte especial, que eu j� deixei em bot�o. Essa arte (salvo alguns esfor�os louv�veis) n�o � propriamente brasileira, nem estritamente francesa; � o que podemos chamar, por um voc�bulo composto, a arte franco-brasileira. A l�ngua de que usa dizem-me que n�o se pode atribuir exclusivamente a Voltaria, nem inteiramente a Alencar; � uma l�ngua feita com partes de ambas, formando um terceiro organismo, em que a polidez de uma e o mimo de outra produzem nova e n�o menos doce pros�dia.

Este fen�meno n�o � �nico. O teuto-brasileiro � um produto do Sul, onde o alem�o nascido no territ�rio nacional n�o fica bem alem�o nem bem brasileiro, mas um misto, a que l� d�o aquele nome. Ignoro se a l�ngua daquele nosso meio patr�cio e inteiro colaborador � um organismo igual ao franco-brasileiro; mas se as escolas das antigas col�nias continuam a s� ensinar alem�o, � prov�vel que domine esta l�ngua. Nisto estou com La Palisse.

N�o � pelo nascimento dos artistas que a arte franco-brasileira existe, mas por uma combina��o do Rio com Paris ou Bord�us. Essa arte, que as finadas Mmes. Doche e D. Estela n�o reconheceriam por n�o trazer a fisionomia particular de um ou de outro dos respectivos idiomas, tem a legitimidade do acordo e da fus�o nos elementos de ambas as origens. Quando nasceu? � dif�cil dizer quando uma arte nasce; mas basta que haja nascido, tenha crescido e viva. Vive, n�o lhe pe�o outra certid�o.

Acode-me, entretanto, uma id�ia que pode combinar muito bem as duas correntes de opini�o e satisfazer os intuitos de ambas as partes. Essa id�ia � lan�ar uma taxa moderada �s companhias estrangeiras e libertar de todo imposto as nacionais. Deste modo, aquelas vir�o trazer-nos todos os invernos algum regalo novo, e as nacionais poder�o viver desabafadas de uma imposi��o onerosa, por mais leve que seja. Creio que assim se cumprir� o dever de animar as artes, sem distin��o de origens, ao mesmo tempo proteger� a arte nacional. Que importa que, ao lado dela, seja protegida a arte franco-brasileira? Esta � um fruto local; se merece menos que a outra, n�o deixa de fazer algum jus � eq�idade. A� fica a id�ia; � exeq��vel. N�o a dou por dinheiro, mas de gra�a e a s�rio.

N�o me arguam de prestar tanta aten��o � l�ngua de uma arte e � meia l�ngua de outra. Grande coisa � a l�ngua. Aquele diplomata venezuelano que acaba de atordoar os esp�ritos dos seus compatriotas pela revela��o de que o tratado celebrado com a Inglaterra, gra�as aos bons of�cios dos Estados Unidos, serve ao interesse destes dois pa�ses com perda para Venezuela, pode n�o ter raz�o (e creio que n�o tenha), mas d� prova certa do que vale a l�ngua. Os outros dois s�o ingleses, falam ingl�s; foi o pai que ensinou esta l�ngua ao filho. Venezuela � uma das muitas filhas e netas de Espanha que se deixaram ficar por este mundo. A l�ngua castelhana � rica; mas � menos falada. Se o diplomata tivesse raz�o, em Caracas, que � o Rio de Janeiro de Venezuela, as companhias nacionais � que ag�entariam os maiores impostos, enquanto que as de Londres e New York representariam sem pagar nada. Mas � um desvario, decerto; esperemos outros telegramas.

Relevem o estilo e as id�ias; a minha dor de cabe�a n�o d� para mais.

20 de dezembro

� minha opini�o que n�o se deve dizer mal de ningu�m, e ainda menos da pol�cia. A pol�cia � uma institui��o necess�ria � ordem e � vida de uma cidade.

Nos melhores tempos da nossa bela Guanabara, como lhe chamam poetas, t�nhamos o Vidigal e o Arag�o. Esse Arag�o, que eu n�o conheci, vinha ainda falar aos de minha gera��o pela boca do sino de S�o Francisco de Paula, �s 10 horas da noite, � hora de recolher, fazendo lembrar aquilo da �pera: � Abitanti di Parigi, � ora di riposar.

� tempos! tempos! Os escravos corriam para casa dos senhores, e todo o cidad�o, por mais livre que fosse, tinha obriga��o de se deixar apalpar, a ver se trazia navalha na algibeira. Era primitivo, mas tiradas as navalhas aos malfeitores, poupava-se a vida � gente pac�fica.

N�o se deve dizer mal da pol�cia. Ela pode n�o ser boa, pode n�o ter sagacidade, nem habilidade, nem m�todo, nem pessoal; mas, com tudo isso, ou sem tudo isso, � institui��o necess�ria. Os tempos v�o suprindo as lacunas, emendando os defeitos. Para falar de n�s, j� come�amos a perder a id�ia de uma pol�cia eleitoral ou de um canap� destinado a algu�m que passa de um cargo a outro e descansa um m�s para tomar f�lego. O pessoal secreto � dif�cil de escolher; outrora, nem sequer era secreto. Quem se n�o lembra daquele famoso assassinato da Rua Uruguaiana, h� anos, cujo autor fugia perseguido por pessoas do povo que bradavam: �Pega! � secreta!� Duas li��es houve nesse acontecimento: 1, o crime praticado pela virtude; 2�, o secreto conhecido de toda gente. N�o obstante, repito, a institui��o � necess�ria, e antes med�ocre que nenhuma.

Agora mesmo, se nada se tem encontrado acerca da dinamite tirada de um dep�sito, � porque os ladr�es de dinamite n�o s�o como os de simples len�os pendurados �s portas das lojas. Estes s�o obrigados a furtar de dia, � vista do dono e dos passantes, correm, s�o perseguidos pelo clamor p�blico, e afinal pegados. Eu, apesar do gosto que tenho a psicologia, ainda n�o pude descobrir o m�vel secreto das pessoas que perseguem neste caso a um gatuno. � o simples impulso da virtude? � o desejo de perseguir um homem h�bil que quer escapar � lei? Mist�rio insond�vel. A virtude �, decerto, um grande e nobre motivo, e se pudesse haver delibera��o no ato, n�o h� d�vida que ela seria o motivo �nico; mas, n�o se pode deliberar quando algu�m furta um len�o e foge; o ato da corrida � imediato. Se os perseguidores fossem outros lojistas, n�o h� d�vida que, por aquele seguro m�tuo natural entre pessoas interessadas, cada um trataria de capturar e fazer punir o que defraudou o vizinho, e pode amanh� vir defraud�-lo a ele. Mas, em geral, os perseguidores s�o pessoas que nada t�m com aquilo. Nenhum deles levaria nunca o len�o de ningu�m; n�o contesto que um ou outro, posto em corredor escuro e solit�rio, diante de um rel�gio de ouro, regulando bem, longe dos homens, dificilmente sair� sem o rel�gio no bolso. �, por outra maneira, o problema de Diderot. N�o vades crer que eu condeno a persegui��o dos delinq�entes; ao contr�rio, aplaudo o esp�rito de solidariedade que deve prender o cidad�o � autoridade e � lei; mas n�o falo em tese, falo em hip�tese.

Portanto, n�o admira que a dinamite continue encoberta. H� mais coisas entre o c�u e a terra do que sonha a nossa v� filosofia. � velho este pensamento de Hamlet; mas nem por velho perde. Eu n�o pe�o �s verdades que usem sempre cabelos brancos, todas servem, ainda que os tragam brancos ou grisalhos. Ora, se h� muita coisa entre o c�u e a terra, dinamite pode l� estar; � muita, convenho, mas o espa�o � vasto de sobra. Como iremos busc�-la t�o alto? A pol�cia, � a pr�pria pol�cia inglesa, que dizem ser a melhor aparelhada, ainda n�o possui agentes a�reos. Ou�o que h� agora dois homens em Paris que tencionam ir em bal�o descobrir... o que? descobrir o p�lo; mas p�lo n�o � dinamite, que faz voar casas e t�neis de estradas de ferro. P�lo n�o vive escondido; deixa-se estar � espera. Notemos que os interrogados at� agora n�o disseram nada que esclare�a sobre o paradeiro da mat�ria roubada; ou s�o inocentes, ou est�o ligados por juramentos terr�veis, a n�o ser que o pr�prio interesse lhes tape a boca; explica��o esta muito natural. N�o havendo meios de tortura, � o l�tego ao menos, � como fazer falar as pessoas mudas?

Mas, tudo isso me tem desviado do ponto a que queria ir. Vamos a ele. N�o se deixem levar por apar�ncias; n�o cuidem que fa�o aqui um notici�rio criminal. A boa regra para quem empunha uma pena tratar do que pode dar de si algum suco, � uma id�ia uma descoberta, uma conclus�o. N�o dando nada, n�o vale a pena gastar papel e tinta; melhor � abrir as janelas e ouvir o passaredo que canta no arvoredo, para rimarem juntos, e os insetos que zumbem, o trem da linha do Corcovado que sobe e ver o sol que desce por estas montanhas abaixo, garrido e c�lido, como um rapaz de vinte anos. Grande sol, quando esfriar�s tu? em que s�culo apagar�s o facho com que andas pela escurid�o do infinito? Talvez a Terra j� n�o exista, com todas as suas cidades, policiadas ou n�o.

Um amigo meu teve um roubo em casa, um cofre de j�ias. Quando, ignoro; pode ter sido agora, pode ter sido antes de 13 de maio, antes da guerra do Paraguai, antes da guerra dos Farrapos, antes da guerra de Tr�ia. Afinal, que valem datas! Suponhamos que � da �pera:

C�est � la cour du roi Henri,

Messieurs, que se passait ceci.


Furtadas as j�ias, o meu amigo conseguiu dar com elas, dentro do cofre, e o cofre escondido em uma ch�cara � espera talvez da noite seguinte, para poder ser levado, com o grande peso que tinha. J� estava aberto, com dois rel�gios de menos. No trabalho a que ele se deu foi acompanhado por uma pra�a de pol�cia, a fim de capturar o ladr�o, se fosse achado; mas o ladr�o n�o apareceu.

Este meu amigo � advogado. Qualquer profano, descoberto o cofre, lev�-lo-ia para casa, dando gra�as a Deus por s� haver perdido os rel�gios. O meu amigo, antes de tudo cuidou no corpo de delito. Fez-me lembrar aquele coronel ingl�s, Melvil, que ao saber dos ferimentos do irm�o da bela Colomba, admira-se de n�o terem ainda apresentado queixa e um magistrado. �Falara do inqu�rito pelo coroner e de muitas outras coisas desconhecidas na C�rsega�, narra finalmente M�rim�e. O meu amigo queria por for�a que se fizesse corpo de delito, e foi � pol�cia uma vez, duas, tr�s, penso que quatro, mas n�o afirmo. O intervalo foi sempre, mais ou menos, de duas horas; mas n�o achou nunca autoridade dispon�vel. N�o era preciso ouvir que voltasse depois; ele voltaria, ele voltou e (vede o pr�mio da tenacidade!) tanto voltou que achou uma. Ent�o contou-lhe o caso, e acabou pedindo corpo de delito.

� Bem, responderam-lhe; vai-se fazer, mas onde est� o ferido?

A alma do meu amigo n�o lhe caiu ao ch�o, porque ele, depois de tantas idas e vindas, j� n�o tinha alma. Perdeu a fala, isso sim; n�o soube que responder. Essa no��o t�o particular do corpo de delito fez voltar ao cora��o todas as belas coisas que preparara. Para ser exato, n�o afirmo que sa�sse calado; pode ser que afinal apresentasse algumas explica��es, vagas, tortas, vexadas, apenas suspiradas, ao canto da boca. E tornou para casa, dando mentalmente os dois rel�gios ao ladr�o, para que ele n�o fosse para o inferno com esse pecado �s costas; ir� com outros. Enfim, o meu amigo quis gratificar a pra�a que o acompanhou nas pesquisas; a pra�a recusou, dizendo haver estado ali cumprindo a sua obriga��o. Eis a� uma boa nota policial, e n�o faltar�o outras, como a do assalto �s tavolagens, em que nunca as m�os lhe doam.

E a conclus�o? A conclus�o � que nem todas as palavras t�m o mesmo eco em todas as cabe�as, e h� muitas no��es diversas para um s� e triste voc�bulo. Ergo bigamus.

27 de dezembro

Leitor, aproveitemos esta rara ocasi�o que os deuses nos deparam. S� dois f�legos vivos n�o s�o candidatos ao governo da cidade, tu e eu. E ainda assim n�o respondo por ti; neste s�culo de maravilhas pode dar-se que um candidato tenha alma bastante para ler, ao caf�, uma coluna de sensaborias, e ir depois pleitear a palma de combate. Tudo � poss�vel. J� se v�em ossos atrav�s da carne; dizem que �dison medita dar vista aos cegos. � o que faz na Bahia, sem outro instrumento mais que a sugest�o, o nosso grande taumaturgo Ant�nio Conselheiro.

Mas em que � que aproveitaremos esta ocasi�o rara? Em dizer das letras e da poesia. Aqui temos Valentim Magalh�es com o romance Flor de Sangue; aqui temos L�cio de Mendon�a, com as Can��es do Outono. Iremos votar, decerto, tu e eu, mas h� de ser depois de me haveres lido e bebido a ch�vena de caf�. O meu t�tulo de eleitor n�o � dos que ficara devolutos para um cidad�o an�nimo pegasse deles e os oferecesse a outros. Francamente, como � que esse cavalheiro n�o viu que n�o se fazem distribui��es tais sen�o a pessoas seguras, j� apalavradas, de olho fino? Em que estava pensando quando entregou os t�tulos a desconhecidos que o foram denunciar? N�o � que eu condene o ato. Um dos eleitores defraudados confessou que n�o vota h� muitos anos. Pois se n�o vota, como � que admira de que lhe tirem o t�tulo? A verdadeira teoria pol�tica � que n�o h� eleitores, h� t�tulos. Um eleitor que �? Um simples homem, n�o diverso de outro homem que n�o seja eleitor; a mesma figura, os mesmos �rg�os, as mesmas necessidades, a mesma origem, o mesmo destino; �s vezes, o mesmo alfaiate; outras, a mesma dama. Que � que os faz diferentes? Esse peda�o de papel que leva em si um peda�o de soberania. O homem pode ser banqueiro, agricultor, oper�rio, comerciante, advogado, m�dico, pode ser tudo; eleitoralmente � como se n�o existisse: sem t�tulo de eleitor, n�o � eleitor.

Ora bem, dada a absten��o, descuido, esquecimento ou ignor�ncia da parte dos donos dos t�tulos, devem ou podem estes pap�is, estes direitos incorporados ficar como terrenos baldios, sem a cultura do voto? � claro que n�o. Uma lei de desapropria��o com processo sum�rio que tirasse o t�tulo de eleitor remisso, tr�s dias antes da vota��o, e o desse a quem mais desse, seria a forma legal de restituir �quele papel os seus efeitos. Mas, porque n�o temos uma lei dessas, devemos tratar direitos pol�ticos, direitos constitucionais, como se fossem o lixo das praias, o capim das cal�adas ou o palmo de p� que enche todas essas ruas, e que o vento, a carro�a, o p� da besta levantam, que entra pelos nossos pulm�es, cega-nos, suja-nos, irrita-nos, faz-nos mandar ao diabo o munic�pio e o seu governo? N�o; seria quase um crime.

Portanto, o erro da pessoa que andou a oferecer t�tulos alheios foi a inabilidade. Alguns querem que o cidad�o induzido a votar por outro, esteja a meio caminho de furtar um par de botas. � um erro; se o fato de votar por outro levasse algu�m ao latroc�nio, esta arte estaria em outro p�; ora, � sabido que n�o a pode haver mais rudiment�ria ou mais decadente. J� n�o h� testamentos falsos. Salvo algum peculato, desfalque ou coisa assim, a maior parte dos roubos s�o verdadeiras mis�rias. Pouca aud�cia, nenhuma originalidade. Talvez por isso, mal os jornais d�o not�cia de um delito desses, o esquecimento absorve o criminoso. N�o imprimam absolve; quem absolve � o j�ri, no caso de haver processo; eu digo que o esquecimento absorve o criminoso, no sentido de se n�o falar mais nisso.

Mas deixemos criminologias e venhamos aos dois livros da quinzena. A Flor de Sangue pode dizer-se que � o sucesso do dia. Ningu�m ignora que Valentim Magalh�es � dos mais ativos esp�ritos da sua gera��o. Tem sido jornalista, cronista, contista, cr�tico, poeta, e, quando preciso, orador. H� vinte anos que escreve, dispersando-se por v�rios g�neros, com igual ardor e curiosidade. Quem sabe? Pode ser que a pol�tica o atraia tamb�m, e iremos v�-lo na tribuna, como no jornalismo, em atitude de combate, que � um dos caracter�sticos do seu estilo. Naturalmente nem tudo o que escreveu ter� o mesmo valor. Quem comp�e muito e sempre, deixa p�ginas somenos; mas � j� grande vantagem dispor da facilidade de produ��o e do gosto de produzir.

Pelo que confessa no pref�cio, Valentim Magalh�es escreveu este romance para fazer uma obra de f�lego e satisfazer assim a cr�tica. No fim do pref�cio, referindo-se ao romance e ao poema, como as duas principais formas liter�rias, conclui: �Tudo o mais, contos, odes, sonetos, pe�as teatrais s�o matizes, varia��es, grada��es; motivos musicais, apenas porque as �peras s�o s� eles�. Este ju�zo � por demais sum�rio e n�o � de todo verdadeiro. Parece-me erro p�r assim t�o embaixo Otelo e Tartufo. Os sonetos de Petrarca formam uma bonita �pera. E Musset? Quantas obras de f�lego se escreveram no seu tempo que n�o valem as Noites e toda a juventude de seus versos, entre eles este, que vem ao nosso caso:

Mon verre n�est pas grand, mais je bois dans mon verre.

Ta�a pequena, mas de ouro fino, cheia de vinho puro, vinho de todas as uvas, gaulesa, espanhola, italiana e grega, com que ele se embriagou a si e ao seu s�culo, e a� vai embriagar o s�culo que desponta. Quanto �s fic��es em prosa, conto, novela, romance, n�o parece justo desterrar as de menores dimens�es. Clarisse Harlowe tem um f�lego de oito volumes. Taine cr� que poucos suportam hoje esse romance. Poucos � muito: eu acho que raros. Mas o mesmo Taine prev� que no ano 2000 ainda se ler� Partida de Gam�o, uma novelinha de trinta p�ginas; e, falando das outras narrativas do autor de Carmem, todas de escasso tomo, faz esta observa��o verdadeira: �� que s�o constru�das com pedras escolhidas, n�o com estuque e outros materiais da moda�.

Este � o ponto. Tudo � que as obras sejam feitas com o f�lego pr�prio de cada um, e com materiais que resistam. Que Valentim Magalh�es pode compor obras de maior f�lego, � certo. Na Flor de Sangue o que o prejudicou foi querer fazer longo e depressa. A a��o, ali�s vulgar, n�o dava para tanto; mal chegaria a metade. H� muita coisa parasita, muita repetida, e muita que n�o valia a pena trazer da vida ao livro. Quanto � pressa, a que o autor nobremente atribui os defeitos de estilo e linguagem, � causa ainda de outras imperfei��es. A maior destas � a psicologia do Dr. Paulino. O autor espiritualiza � vontade um homem que, a n�o ser a sua palavra, d� apenas a impress�o do l�brico; e n�o h� admitir que, depois da temporada de adult�rio, ele se mate por motivos de tanta eleva��o nem ainda por supor n�o ser amado. N�o tenho espa�o para outros lances inadmiss�veis, como a ida de Corina � casa da Rua de Santo Ant�nio (p�g. 141). Os costumes n�o est�o conservados. J� L�cio Mendon�a contestou que tal vida fosse a da nossa sociedade. O erotismo domina mais do que se devera esperar, ainda dado o plano do livro.

N�o insisto; a� fica o bastante para mostrar o apre�o em que tenho o talento de Valentim Magalh�es, dizendo-lhe alguma coisa do que me parece bom e menos bom na Flor de Sangue. Que h� no livro certo movimento, � fora de d�vida; e esta qualidade em romancista vale muito. Verdadeiramente os defeitos principais deste romance s�o dos que a vontade do autor pode corrigir nas outras obras que nos der, e que lhe pe�o sejam feitas sem nenhuma id�ia de grande f�lego. Cada concep��o traz virtualmente as propor��es devidas; n�o se por� M. Bovary nas cem p�ginas de Adolfo, nem um conto de Voltaire nos volumes compactos de George Eliot.

Para que Valentim Magalh�es veja bem a nota assaz aguda que deu a algumas partes da Flor de Sangue, leia o pref�cio de Araripe J�nior nas Can��es do Outono, comparado com o livro de L�cio de Mendon�a. O valente cr�tico fala longamente do amor, e sem biocos, pela doutrina que vai al�m de Mantegazza, segundo ele mesmo exp�e; e definido o poeta das Can��es do Outono, fala de um ou outro toque de sensualidade que se possa achar nos seus versos. Entretanto, � bem dif�cil ver no livro de L�cio de Mendon�a coisa que se possa dizer sensual. O Ideal � o t�tulo da primeira composi��o; ele amar� em outras p�ginas com o ardor pr�prio da juventude; mas as sensa��es s�o apenas indicadas. Basta lembrar que o livro (magnificamente impresso em Coimbra) � dedicado por ele � esposa, ent�o noiva.

V�rios s�o os versos deste volume, de v�ria data e v�ria inspira��o. N�o saem da pasta do poeta, para a luz do dia, como segredos guardados, at� agora; s�o recolhidos de jornais e revistas, por onde L�cio de Mendon�a os foi deixando. O m�rito n�o � igual em todos; a Flor do Ip�, a Tapera, a Ave-Maria, para s� citar tr�s p�ginas, s�o melhor inspiradas e bem compostas que outras, � versos de ocasi�o. H� tamb�m tradu��es feitas com apuro. Por que fatalidade acho aqui vertido em nossa l�ngua o soneto Analyse, de Richepin? Nunca pude ir com esta p�gina do autor de Fleurs du Mal. Essa an�lise da l�grima, que s� deixa no crisol �gua, sal, soda, muco e fosfato de cal, em que � que diminui a intensidade ou altera a espiritualidade dos sentimentos que a produzem? � o pr�prio poeta que, na Charogne, anunciando � amante que ser� cad�ver um dia, canta as suas emo��es passadas:

Alors, � ma beaut�! dites � la vermine

Qui vous mangera de baisers,

Que j'ai gard� la forme et l�essence divine

De mes amours d�compos�s!

Pois a l�grima � isso, � a ess�ncia divina, seja da dor, seja do prazer, seja ainda da c�lera das pobres criaturas humanas. Felizmente, no mesmo volume o poeta nos d� a tradu��o do famoso soneto de Arvers e de outras composi��es de m�rito. Eu ainda n�o disse que tive o gosto de prefaciar o primeiro volume de L�cio de Mendon�a, e n�o o disse, n�o s� para falar de mim, � que � mau costume, � mas para n�o dar raz�o aos que me arg�em de entrar pelo inverno da vida. Em verdade, esse rapaz, que eu vi balbuciar os primeiros cantos, � hoje magistrado e alto magistrado, e o tempo n�o ter� andado s� para ele. Mas isso mesmo me faz relembrar aquela circunst�ncia. Ei-nos aqui os dois, ap�s tantos anos, sem haver descrido das letras, e achando nelas um pouco de descanso e um pouco de consolo. Muita coisa passou depois das N�voas Matutinas; n�o passou a f� nas musas, e basta.

1897

3 de janeiro

A import�ncia da carta que se vai ler devia excluir qualquer outro cuidado esta semana; mas n�o se perde nada em retificar um lapso. Pequeno lapso: domingo passado escrevi �autor de Fleurs du Mal� onde devera escrever �autor de Blasph�mes�, tudo porque uma estrofe de Baudelaire me cantava na mem�ria para corrigir com ela o seu patr�cio Richepin. Vamos agora � carta. Recebi-a anteontem de um cidad�o americano, o Rev. M. Going, que aqui chegou em agosto do ano findo e partiu a 1 ou 2 de setembro para a ilha da Trindade. � �Suspeito uma coisa�, disse-me ele. � �Que coisa?� � �N�o posso dizer; se acertar, terei feito uma grande descoberta, a maior descoberta mar�tima do s�culo; se n�o acertar, fica o segredo comigo.� Podes imaginar agora, leitor, o assombro com que recebi a ep�stola que vais ler:

�Ilha da Trindade, 26 de dezembro de 1896.

Caro senhor. � Esta carta vos ser� entregue pelo Rev. James Maxwell, de Nebrasca. Veio ele comigo a esta ilha, sem saber o fim que me trouxe a ela. Pensava que o meu desejo era conhecer o valor do penhasco que os ingleses queriam tomar ao Brasil, segundo lhe disse em Royal Hotel, 3, Rua Clapp, uma sexta-feira. O Rev. Maxwell vos contar� o assombro em que ficou e a minha desvairada alegria quando vimos o que ele n�o esperava ver, o que absolutamente ningu�m pensou nem suspeitou nunca.

Senhor, esta ilha n�o � deserta, como se afirma; esta ilha tem, do lado oriental, uma pequena cidade, com algumas vilas e aldeias pr�ximas. Eu desconfiava disto, n�o por alguma raz�o cient�fica ou confid�ncia de navegante, mas por uma intui��o fundada em tradi��o de fam�lia. Com efeito, � constante na minha fam�lia que um dos meus av�s, aventureiro e atrevido, deixou um dia as costas da Inglaterra, entre 1648 e 1650, em um velho barco, com meia d�zia de tripulantes. Voltou dez anos depois, dizendo ter descoberto um povo civilizado, bom e pac�fico, em certa ilha que descreveu. N�o temos outro vest�gio; mas, n�o sei por que raz�o, � creio que por inspira��o de Deus, � desconfiei que a ilha era a da Trindade. E acertei; eis a ilha, eis o povo, eis a grande descoberta que vai fechar com chave de ouro o nosso s�culo de maravilhas.

As not�cias atropelam-se-me debaixo da pena, de modo que n�o sei por onde continue. A primeira coisa que lhe digo j� � que achei a prova da estada aqui de um Going, no s�culo XVII. Dei com um retrato de Carlos I, meio apagado e conservado no museu da cidade. Disseram-me que fora deixado por um homem que residiu aqui h� tempos infinitos. Ora, o meu av� citado era grande realista e por algum tempo bateu-se contra as tropas de Cromwell. Outra prova de que um ingl�s esteve aqui � a l�ngua do povo, que � uma mistura de latim, ingl�s e um idioma que o Rev. Maxwell afirma ser p�nico. Efetivamente, este povo inculca descender de uma leva de cartagineses que saiu de Cartago antes da vit�ria completa dos romanos. Uma vez entrados aqui, juraram que nenhuma rela��o teriam mais com povo algum da Terra, e assim se conservaram. Quando a popula��o chegou a vinte e cinco mil almas, fizeram uma lei reguladora dos nascimentos, para que nunca esse n�mero seja excedido; �nico modo, dizem, de se conservarem segregados da cobi�a e da inveja do Universo. N�o � essa a menor esquisitice desta pequena na��o; outras muitas tem, e todas ser�o contadas na obra que empreendi. Porquanto, meu caro senhor, � meu intuito n�o ir daqui sem haver descrito os costumes e as institui��es do pequenino pa�s que descobri, dizendo de suas origens, ra�a, l�ngua o mais que puder coligir e apurar. Talvez lhe traga dano. N�o � fora de prop�sito crer que a Inglaterra, sabendo que aqui esteve um ingl�s, h� dois s�culos, reclame a posse da ilha; mas, em tal caso, sendo Going meu parente, reivindicarei eu a posse e vencerei por um direito anterior. De fato, todo ente gerado, antes de vir � luz, antes de ser cidad�o, � filho de sua m�e, e at� certo ponto � av� da gera��o futura que virtualmente traz em si. Vou escrever neste sentido a um legista de Washington.

Falei de esquisitices. Aqui est� uma, que prova ao mesmo tempo a capacidade pol�tica deste povo e a grande observa��o dos seus legisladores. Refiro-me ao processo eleitoral. Assisti a uma elei��o que aqui se fez em fins de novembro. Como em toda a parte, este povo andou em busca da verdade eleitoral. Reformou muito e sempre; esbarrava-se, por�m, diante de v�cios e paix�es, que as leis n�o podem eliminar. V�rios processos foram experimentados, todos deixados ao cabo de alguns anos. � curioso que alguns deles coincidissem com os nossos de um e de outro mundo. Os males n�o eram gerais, mas eram grandes. Havia elei��es boas e pac�ficas, mas a viol�ncia, a corrup��o e a fraude inutilizavam em algumas partes as leis e os esfor�os leais dos governos. Votos vendidos, votos inventados, votos destru�dos, era dif�cil alcan�ar que todas as elei��es fossem puras e seguras. Para a viol�ncia havia aqui uma classe de homens, felizmente extinta, a que chamam pela l�ngua do pa�s, kapangas ou kapengas. Eram esbirros particulares, assalariados para amedrontar os eleitores e, quando fosse preciso, quebrar as urnas e as cabe�as. �s vezes quebravam s� as cabe�as e metiam nas urnas ma�os de c�dulas. Estas c�dulas eram depois apuradas com as outras, pela raz�o especiosa de que mais valia atribuir a um candidato algum pequeno saldo de votos que tirar-lhe os que deveras lhe foram dados pela vontade soberana do pa�s. A corrup��o era menor que a fraude; mas a fraude tinha todas as formas. Enfim, muitos eleitores, tomados de susto ou de descren�a, n�o acudiam �s urnas.

Vai ent�o, h� cinq�enta anos (os nossos aqui s�o lunares) apareceu um homem de Estado, autor da lei que ainda vigora no pa�s. N�o podeis caro senhor, conceber nada mais estranho nem tamb�m mais adequado que essa lei: � uma obra-prima de legisla��o experimental. Esse homem de Estado, por nome Trumpbal, achou dificuldades em come�o, porque a reforma proposta por ele mudava justamente o princ�pio do governo. N�o o fez, por�m, pelo v�o gosto de trocar as coisas. Trumpbal observara que este povo confia menos em si que nos seus deuses; assim, em vez de colocar o direito de escolha na vontade popular, prop�s atribu�-lo � Fortuna. Fez da elei��o uma consulta aos deuses. Ao cabo de dois anos de luta, conseguiu Trumpbal a primeira vit�ria. � Pois bem, disseram-lhe; decretemos uma lei provis�ria, segundo o vosso plano; far-se-�o por ela duas elei��es, e se n�o alcan�ar o efeito que esperais, buscaremos outra coisa. Assim se fez; a lei dura h� quarenta e oito anos.

Eis os lineamentos gerais do processo: cada candidato � obrigado a fazer-se inscrever vinte dias antes da elei��o, pelo menos, sem limita��o alguma de n�mero. Nos dez dias anteriores a elei��o, os candidatos exp�em na pra�a p�blica os seus m�ritos e examinam os dos seus advers�rios, a quem podem acusar tamb�m, mas em termos comedidos. Ouvi um desses debates. Conquanto a l�ngua ainda me fosse dif�cil de entender, pude alcan�ar pelas palavras inglesas e latinas, pela compostura dos oradores e pela fria aten��o dos ouvintes, que os oradores cumpriam escrupulosamente a lei. Notei at� que, acabados os discursos, os advers�rios apertavam as m�os uns dos outros, n�o somente com polidez, mas com afabilidade. N�o obstante, para evitar quaisquer personalidades, o candidato n�o � designado pelo pr�prio nome, mas pelo de um bicho, que ele mesmo escolhe no ato da inscri��o. Um � �guia, outro touro, outro pav�o, outro cavalo, outro borboleta, etc. N�o escolhem nomes de animais imundos, trai�oeiros, grotescos e outros, como sapo, macaco, cobra, burro; mas a lei nada imp�e a tal respeito. Nas refer�ncias que fazem uns aos outros adotaram o costume de anexar ao nome um qualificativo honrado: o brioso Cavalo, o magn�fico Pav�o, o indom�vel Touro, a galante Borboleta, etc., fazendo dessas controv�rsias, t�o f�ceis de azedar, uma verdadeira escola de educa��o.

A elei��o � feita engenhosamente por uma m�quina, um tanto parecida com a que tive ocasi�o de ver no Rio de Janeiro, para sortear bilhetes de loterias. Um magistrado preside a opera��o. Escrito o t�tulo do cargo em uma pedra negra, d�-se corda � m�quina, esta gira e faz aparecer o nome do eleito, composto de grandes letras de bronze. Os nomes de todos, isto �, os nomes dos animais correspondentes t�m sido postos na caixa interior da m�quina, n�o pelo magistrado, mas pelos pr�prios candidatos. Logo que o nome de um aparecer, o dever do magistrado � proclam�-lo, mas n�o chega a ser ouvido, t�o estrondosa � a aclama��o do povo: � �Ganhou o Pav�o! ganhou o Cavalo!� Este grito, repetido de rua em rua, chega aos �ltimos limites da cidade, como um inc�ndio, em poucos minutos. O alvoro�o � enorme, � um del�rio. Homens, mulheres, crian�as, encontram-se e bradam: � �Ganhou o Cavalo! ganhou o Pav�o!�

Mas ent�o os vencidos n�o gemem, n�o blasfemam, n�o rangem os dentes? N�o, caro senhor, e a� est� a prova da intui��o pol�tica do reformador. Os cidad�os, levados pelo impulso que os faz n�o descrer jamais da Fortuna, lan�am apostas, grandes e pequenas, sobre os nomes dos candidatos. Tais apostas parece que deviam agravar a dor dos vencidos, uma vez que perdiam candidato e dinheiro; mas, em verdade, n�o perdem as duas coisas. Os cidad�os fizeram disto uma esp�cie de perde-ganha; cada partid�rio aposta no advers�rio, de modo que quem perde o candidato ganha o dinheiro, e quem perde o dinheiro ganha o candidato. Assim, em vez de deixar �dios e vingan�as, cada elei��o estreita mais os v�nculos pol�ticos do povo. N�o sei se uma grande cidade poderia adotar tal sistema; � duvidoso. Mas para cidades pequenas n�o creio que haja nada melhor. Tem a do�ura, sem a monotonia do v�spora. E, deixai-me que vo-lo diga francamente, apelando para os seus deuses, este povo, que conserva as cren�as err�neas da ra�a origin�ria, pensa que s�o eles que o ajudam; mas, em verdade, � a Provid�ncia Divina. Ela � que governa a Terra toda e d� luz � escurid�o dos esp�ritos. Est� em Isa�as: �Ouvi, ilhas, e atendei, povos de longe.� Est� nos Salmos: �Do Senhor � a redondeza da Terra e todos os seus habitadores, porque ele a fundou sobre os mares e sobre os rios.�

Haveria muito que dizer se pudesse contar outros costumes deste povo, fundamentalmente bom e ing�nuo; mas paro aqui. Conto estar de volta no Rio de Janeiro em fins de maio ou princ�pios de junho. Pe�o-vos que auxilieis o meu amigo Rev. Maxwell; ele vai buscar-me alguns livros e um aparelho fotogr�fico. Indagai dele as suas impress�es, e ouvireis a confirma��o do que vos digo. Adeus, meu caro senhor; crede-me vosso muito obediente servo � GOING.�

O Rev. Maxwell confirma realmente tudo o que me diz a carta do Rev. Going. S�o dois sacerdotes; e, embora protestantes, n�o creio que se liguem para rir de um homem de boa-f�. � tudo, por�m, t�o extraordin�rio que, para o caso de ser um simples humbug, resolvi publicar a carta. Os entendidos dir�o se � poss�vel a descoberta.

10 de janeiro

Falemos de doen�as, de mortes, de epidemias. N�o � alegre, mas nem todas as coisas o s�o, e algumas h� mais melan­c�licas que outras. Estamos em pleno estio, esta��o dos grandes obitu�rios, que por ora n�o sobem da usual craveira; morre-se como em maio e setembro. A velha h�spede  importuna (n�o � preciso dizer) ainda se n�o levantou da cama; pode ser at� que l� fique. Tamb�m h� anos em que, por se levantar tarde, n�o come menos, ainda que mais depressa; mas esperemos o melhor.

Apesar de tudo, o conselho municipal votou, creio eu, a lei do empr�stimo de sa­neamento. N�o afirmo que sim nem que n�o, porque � mui dif�cil para mim extrair de um longo debate o que � que realmente se votou ou n�o votou. Quando os vereadores falavam uns para os outros, e s� eram co­nhecidos c� fora os votos coletivos, po­der-se-iam ter presentes as leis, ent�o chamadas posturas, e mal chamadas assim. As galinhas n�o p�em silenciosamente os ovos; cacarejam sempre. Ora, os vereado­res punham calados as suas leis. Tamb�m n�o se lhes sabia a opini�o, e podiam pen­sar diversamente no princ�pio e no fim de agosto, conquanto fossem firmes todo o ano; mas podiam. Agora que, por uma raz�o justa, os discursos s�o apanhados, impressos, postos em volume, tudo se sabe do debate, o que � dele e o que n�o �. Mas v� um homem tomar p� no meio de tantas ora��es!

Demais, o contribuinte, bem examina­do, n�o quer saber de or�amentos nem de empr�stimos. O contribuinte sou eu, �s tu; tu �s um homem que gostas de dizer mal, de ler veementes discursos, mormente se trazem muitos apartes e n�o tratam da mat�ria em discuss�o, esp�rito fluido, avesso �s asperezas de imposto e �s realidades da soma. D�em-nos bons debates, algum es­c�ndalo, meia d�zia de anedotas, e o resto vir�. Ningu�m se h� de negar a pagar os impostos. Quando forem muitos e grossos, que tornem a vida cara, far�o o of�cio do calor e da trovoada, que � dar princ�pio �s conversa��es de pessoas que n�o tenham outra coisa que dizer. Iniciada a palestra, desaparecem.

Creio, por�m, que est� votado o em­pr�stimo. Dado que sim, convir� proceder j� �s obras, ou ser� melhor esperar que o mal comece? Tudo est� em saber o que � o mal. Aparentemente � s� aquela vi­sita de 1850, que ainda n�o saiu c� de casa, por mais que recorramos �s supersti��es da terra contra os cacetes; mas bem pode ser que haja outro: a arteriosclerose. J� se morre muito desta doen�a. H� coisa de dez ou quinze anos ningu�m conhecia aqui semelhante flagelo, nem de figura, nem se­quer de nome. N�o conseguira transpor a barra: n�o pensava sequer nisso. Um dia, caiu n�o se sabe donde e pegou um des­cuidado, que n�o resistiu e foi para o obi­tu�rio entre uma v�tima de tuberculose e outra de tifo; estava em casa. Da� para c�, a arteriosclerose tem feito as suas v�timas certas. Outras doen�as podem matar ou aleijar, e tamb�m podem n�o fa­zer nada, n�o aparecer sequer; aquela � segura. � sorrateira. Uma pessoa adoe­ce, n�o mostra de qu�, por mais que se in­vestigue, apalpe, analise; d�-se-lhe tudo, contra v�rios males, e a vida diminui, di­minui, at� que se vai inteiramente. S� en­t�o o terr�vel mal p�e a orelha de fora, e passa um defunto para o cemit�rio com esta pecha de haver dissimulado a causa da morte, �ltima e mais hedionda das hipocrisias.

O que h� pior nessa mol�stia, n�o � decerto o nome. O nome � bonito, � cient�­fico, n�o � de pron�ncia f�cil, e dito de cer­to modo pode matar por si mesmo. Ora, � sabido que os nomes valem muito. Casos h� em que valem tudo. Na pol�tica � que se v� o valor que podem ter as palavras, independente do sentido. Agora mesmo veio um telegrama n�o sei de que Estado, tratando das �ltimas elei��es. Conta fatos conden�veis, atos de viol�ncia e de fraude, e, referindo-se ao governo do Estado, chama-lhe nefasto. Ningu�m ignora o que � um telegrama, tudo se paga. Todos sa­bem que h� adjetivos tr�gicos, pr�prios da grande correspond�ncia, das proclama­��es, dos artigos de fundo, impr�prios da via telegr�fica. Nefasto parece estar nesse caso. � palavra grossa, en�rgica, expressiva, � um tanto gasta, � poss�vel, como bandido e perverso; mas sempre ser­ve. Por mais gasto que esteja, nefasto tem ainda certo vigor; maior uso tem perver­so, e h� muito quem o empregue com bom �xito. Bandido, que � o mais surrado dos tr�s, tem na harmonia das s�labas alguma coisa que lhe compensa o uso; e n�o � a qualquer que se lan�a este nome de ban­dido. Tu n�o �s bandido; eu n�o sou ban­dido.

Pois, meu amigo, o correspondente n�o hesitou em mandar nefasto pelo tel�grafo. Tal � o efeito de um adjetivo de certa gravidade. A suposi��o de que o tel�gra­fo s� conta e resume os fatos, v�-se que � gratuita. Tamb�m as paix�es andam por ele, e as paix�es n�o se exprimem com algarismos e s�labas soltas e pecas. Pai­x�es s�o paix�es. Chamam nefasto ao ne­fasto, sublime ao sublime, e n�o olham a dinheiro para transmitir o termo pr�prio. Se se h� de falar de um governo adverso sem se lhe chamar nefasto, tamb�m n�o se poder� dizer de um governo amigo que � benem�rito; n�o se poder� dizer nada. O tel�grafo fica sendo um servi�o sem explica��o, sem necessidade, mero luxo, e, em mat�ria de administra��o, luxo e crime s�o sin�nimos. Tanto n�o � assim, que esta mesma semana tivemos outra amostra de telegramas. Li alguns que, depois de qualificarem certo ato com palavras du­ras e cortantes, conclu�am por cham�-lo in­qualific�vel. Dois ou tr�s, ao contr�rio, come�am por declar�-lo inqualific�vel, e acabam dando-lhe as devidas qualifica��es � tudo por eletricidade, que � instant�­neo. A contradi��o � s� aparente; in­qualific�vel aqui � um termo superlativo, c�mulo dos c�mulos, uma coisa que en­cerra todas as outras. Sem esta faculdade de fazer estilo, o tel�grafo n�o passaria de um edital de pra�a, quando o que lhe cumpre � ser cat�logo de leil�o.

Tudo isto veio a prop�sito de qu�? Ah! da arteriosclerose. Dizia eu que o pior desta mol�stia n�o � o nome. Em ver­dade, o pior � que ningu�m lhe escapa. N�o conhe�o pessoa que diga de si haver estado muito mal de uma arteriosclerose; o en­fermo sabe da enfermidade quando a not�cia da morte est� no obitu�rio, e os obi­tu�rios publicam-se com alguma demora. � mal definitivo. Talvez conviesse fazer escapar alguns atacados, ainda que por poucos meses, um ou dois anos. N�o � muito, mas a maior parte da gente, tendo de escolher entre morrer agora ou em 1899, prefere a segunda data, quando menos com o pretexto de ver acabar o s�culo. � uma id�ia; um espec�fico contra a arterioscle­rose, n�o salvando a todos, mas uns cinco por cento, podia muito bem ser aplicado, sem deixar de enriquecer o inventor, que afinal tamb�m h� de morrer.

Realmente estou demasiado l�gubre. On ne parle ici que de ma mort, diz um personagem de n�o sei que com�dia. Sa­cudamos as asas; fora com a poeira do cemit�rio. Venhamos � vida, ao saneamen­to. Uma folha estrangeira perguntava h� pouco quais eram as duas condi��es essenciais da salubridade de uma cidade, e res­pondia a si mesma que eram a �gua cor­rente em abund�ncia e a elimina��o r�pida dos res�duos da vida. Depois, com um riso escarninho, conclu�a que tudo estava acha­do h� vinte s�culos pelos romanos. E l� vi­nham os famosos aquedutos... Mas, en­tre n�s, os aquedutos, com o trem el�tri­co por cima, d�o a imagem de um pro­gresso que os romanos nem podiam sonhar. E quanto aos banhos, n�o h� de que se orgulhem os antigos. O atual chafariz da Carioca tem lavado muito par de pernas, muito peito, muita cabe�a, muito ventre; na menor das hip�teses, muito par de narizes. N�o tem nome de banho p�blico, mas what's in a name? como diz a divina Julieta.

17 de janeiro

Semana de maravilhas, que pincel di­vino e diab�lico a um tempo n�o seria ne­cess�rio para reduzir-te a um s�mbolo? Triste coisa � a rebeli�o. A loucura � coisa trist�ssima. Imaginemos agora a rebeli�o de loucos que deve ter sido a de anteontem, no hosp�cio de Santiago. Horr�vel, tr�s vezes horr�vel. Afirma a ag�n­cia Havas que os loucos praticaram desatinos. Este pleonasmo � a mais dura das iro­nias que uma ag�ncia, seja ou n�o Havas, pode cometer contra pobres criaturas sem ju�zo; mas se a inten��o do telegrama foi zombar dos ajuizados que se metem a rebeldes, n�o digo que a ocasi�o fosse pr�pria, mas, enfim, a not�cia � menos crua. Leram naturalmente que a for�a p�blica teve de acudir para abafar o movimento, n�o havendo outro recurso em tais casos, ainda que os revoltosos n�o tratassem de derribar as institui��es pol�ticas. Troca­ram-se balas e cabe�adas. Vejo daqui os olhos dos rebeldes, vagos e tontos, e ou�o as risadas de mistura com os urros. Um, mais doido que outro, d� em si com as per­nas dele, e lan�a-se acima de um soldado, que o apara na ponta da baioneta; as tri­pas disparam pela barriga fora, tamb�m loucas, tamb�m rebeldes...

Em si mesma, a loucura � j� uma re­beli�o. O ju�zo � a ordem, � a constitui­��o, a justi�a e as leis. Se h� nele algum tumulto que perturbe a ordem, alguma imoralidade que desafie a justi�a, e se as leis nem sempre recebem aquela obe­di�ncia exata que h� nos sonhos de Pla­t�o e de Campanela, tudo isso � passagei­ro, e, se dura, n�o dura sempre. A vida n�o � perfeita, meus irm�os. As mais belas sociedades coxeiam, �s vezes, de um p�, e n�o raro de ambos. Mas coxear � uma coisa e quebrar as pernas � outra. A dem�ncia � a fratura das pernas; ou, continuando a primeira met�fora, malucar � rebelar­-se. Que n�o ser� uma revolta de alie­nados?

Ao p� dessa maravilha, tivemos outra de esp�cie contr�ria: o tratado de arbitramento entre a Inglaterra e os Estados Uni­dos. V�rios grandes homens, inclusive Ro­chefort, disseram dele coisas magn�ficas, e a opini�o geral � que a guerra acabou, e que este ato � o maior do s�culo. Para um s�culo que madrugou com sangue e aprendeu a andar entre batalhas, este acabar decretando a paz universal e eter­na �, na, verdade, uma grande maravilha. Eu, que fui educado na desconfian�a dos tratados, confesso que hesitei um pouco. Certo, dois grandes pa�ses podem enten­der-se sobre o modo de dividir os bens do evento, acrescendo que, no presente caso, a vit�ria de um ou de outro � sempre a vit�ria da l�ngua inglesa, com mais arca�smos de um lado ou mais americanis­mos de outro, Macaulay ou Bancroft, � numa s� palavra Shakespeare. Nem se trata de aspira��o nova; a nossa Consti­tui��o a inclui entre os seus artigos, mas aparelha a na��o para a guerra. A mi­nha hesita��o veio de...

N�o digo donde veio a minha hesita­��o, uma vez que acabou. Sim, a guerra h� de extinguir-se; natural � que comece a faz�-lo, e o caminho mais pronto � achar um processo que a substitua. Mas, por que n�o direi a causa da minha hesita��o? Vi­nha da rapidez do ato. Se fosse milagre, bem; eu aprendi com La Palisse que o car�ter do milagre � ser s�bito. Mas este autor, por seus paradoxos, est� t�o des­acreditado que n�o vale mais crer nele. E estou que a vit�ria final da ind�stria ser� como as da pr�pria guerra, que tendia a acabar com meia d�zia de batalhas. Oh! a paz do mundo! Bem-aventurados os que a alcan�arem, e � natural que sejam duas na��es essencialmente industriais. Sim, venha a paz; a guerra ser� no campo da venda e da compra; eu quererei comprar barato, tu querer�s vender caro, eis a� um vasto campo de luta, de emboscadas, de fortalezas mascaradas, de feridos e mortos.

Os ex�rcitos ser�o principalmente os do imposto, e daqui passaria eu a outra ma­ravilha da semana, que � o imposto muni­cipal, se este n�o tivesse o inconveniente de ser municipal. Hoje estou fora da cidade. Concordo que os novos impostos s�o gros­sos e minuciosos, embora com fins decla­rados e certos, mas o meu esp�rito hoje � um vagabundo, que n�o quer parar em na­da, menos ainda no Rio de Janeiro. Estou pronto a aceitar os ex�rcitos do fisco, mas como princ�pio, como regra universal. As maravilhas h�o de ser estranhas, como a daquele professor de Berlim, que est� fabricando diamantes, e que o imperador visitou esta semana, para ver se o produto artificial vale o natural. Eu n�o descreio que a natureza venha a ser deposta e que as maravilhas da arte e da ind�stria subs­tituam os seus produtos seculares. Um fil�sofo quer que a aventurina seja a �nica pedra que � pior natural que artifi­cial; mas, al�m de n�o ser mineralogista, podia dizer verdades no seu tempo. N�s caminhamos e ainda havemos de fazer dia­mantes como fazemos a sesta. Um amigo meu, h� quatro anos, mostrando-me um ma�o de a��es de sua companhia, creio que de S. L�zaro, bradava-me: �Isto � ouro!� Na ocasi�o pareceu-me que era papel, papel excelente, a impress�o boa, as c�dulas iguais, t�o iguais, que davam a impress�o de um simples peda�o de ma­deira. Mas quem impede que ainda venha a ser ouro?

A cativa B�rbara � outra maravilha da semana, se � exato o que nos contou Te�filo Braga, no Jornal do Com�rcio, acerca da nova edi��o feita das Endechas a B�rbara, por Xavier da Cunha, a expen­sas do Dr. Carvalho Monteiro. H� tudo nessa reimpress�o, h� para poetas, h� para bibli�grafos, h� para rapazes. Os poetas ler�o o grande poeta, os bibli�grafos notar�o as tradu��es infinitas que se fize­ram dos versos de Cam�es, desde o latim de todos at� o guarani dos brasileiros, os rapazes folgar�o com as raparigas da �ndia. Estas (salvante o respeito devido � poesia e � bibliografia) n�o s�o das me­nores maravilhas, nem das menos f�ceis, muitas l�nguidas, todas cheirosas. Quanto �s endechas � cativa,

Aquela cativa,

Que me tem cativo,

como dizia o poeta, essas trazem a mesma galantaria das que ele comp�s para tantas mulheres, umas pelo nome, Fu� Gon�alves, Fu� dos Anjos, etc., outras por simples in­dica��es particulares, notando-se aquelas duas �que lhe chamaram diabo�, e aquelas tr�s que diziam gostar dele, ao mesmo tempo,

N�o sei se me engana Helena,

Se Maria, se Joana;

ele conclu�a que uma delas o enganava, mas eu tenho para mim que era por causa da rima. A Pretid�o de Amor (por alcu­nha) � que certamente lhe era fiel:

Olhos sossegados,

Pretos e cansados.

Quanto ao trabalho de Xavier da Cunha e o servi�o de Carvalho Monteiro, n�o h� mais que louvar e agradecer, em no­me das musas, conquanto n�o v�ssemos ain­da nem um nem outro; mas a not�cia basta.

24 de janeiro

Anteontem, quando os sinos come�aram a tocar a finados, um amigo disse-me: �Um dos dois morreu, o arcebispo ou a papa.� N�o foi o papa. Aquele velhinho transparente, com perto de noventa anos �s costas, al�m do governo do mundo cat�lico, continua a enterrar os seus cardeais. Agora mesmo, por telegrama impresso ontem, sabe-se que morreu mais um cardeal, com o qual sobem a cento e dezoito os que se t�m ido da vida, enquanto Le�o XIII fica � espera da hora que ainda lhe n�o bateu. Outro amigo meu, que j� vira duas vezes o velho pont�fice, acaba de escrever-me que o viu ainda uma vez, em dezembro, na cerim�nia da imposi��o do chap�u a alguns novos cardeais. Descreve a forma da cerim�nia, cheio de admira��o e de f�, � uma f� sincera e singela, flor dos seus jovens anos. Ouvira uma missa ao papa, e, posto enfraquecido pela idade, este lhe pareceu resistir � a��o do tempo.

N�o sucedeu o mesmo ao digno arcebispo do Rio de Janeiro. Posto que muito mais mo�o, foi mais depressa tocado pela hora da morte. D. Jo�o era um lutador; as folhas do dia lembram ou nomeiam os livros e op�sculos que escreveu, n�o contando o trabalho de jornalista, obra que desaparece todos os dias com o sol, para recome�ar com o mesmo sol, e n�o deixar nada na mem�ria dos homens, a n�o ser o vago sulco de um nome, que se apaga (para os melhores) com a segunda gera��o. Este homem, nado em Barcelona, filho de um belga e de uma senhora espanhola, � creio que era espanhola, � estava longe de crer que acabaria na sede arquiepiscopal de uma grande capital da Am�rica. Tais s�o os destinos, tais os ventos que levam a vela de cada um, � ou para a navega��o costeira e obscura, ou para a descoberta remota e gloriosa.

Era um lutador. Eu confesso que a primeira e mais viva impress�o episcopal que tenho n�o � de homem de combate, talvez porque a hora n�o era de combate. A impress�o que me ficou mais funda foi a daquele D. Manuel do Monte Rodrigues, Conde de Iraj�. A boca cheia de riso, como Frei Lu�s de Sousa refere de S�o Bartolomeu dos M�rtires, os olhos pequenos, com a pouca luz restante, coados pelos vidros grossos dos �culos de ouro, a ben��o pronta, a m�o j� tr�mula, o corpo j� curvado, descia da sege episcopal, todo vestido de paz e sossego. Uma figura daquelas, na imagina��o da crian�a, facilmente se liga � id�ia da imortalidade. Um dia, por�m, D. Manuel morreu. A terra, credor que n�o perdoa, e apenas reformar� algumas letras, veio pedir-lhe a restitui��o do empr�stimo. D. Manuel entregou-lho, aumentado dos juros de uma vida de virtudes e trabalhos.

Veio o mo�o D. Pedro, e com pouco soou a hora de combate, que foi longa e ruidosa. A parte dele n�o foi grande na luta; pelo menos, n�o teve igual eco aos outros. Nem por isso a imagem do primeiro bispo me ficou apagada pela do segundo, apesar do aux�lio do tempo em favor de D. Pedro.

N�o era a mansid�o que conservava o relevo daquele. Nenhum lutador mais impetuoso, mais tenaz e mais capaz que D. Vital, bispo de Olinda, e a impress�o que este me deixou foi extraordin�ria. Vi-o uma s� vez, � porta do tribunal, no dia em que ele e o bispo do Par� tiveram de responder no processo de desobedi�ncia.

A figura do frade, com aquela barba cerrada e negra, os olhos vastos e pl�cidos, cara cheia, mo�a e bela, desceu da sege, n�o como o velho D. Manuel, mas com um grande ar de desd�m e superioridade, alguma coisa que o faria contar como nada tudo o que se ia passar perante os homens. Sabe-se que morreu na Europa, creio que na It�lia. H� quem acredite que voluntariamente n�o tornaria a cadeira de Pernambuco. Ao seu companheiro de ent�o, o bispo do Par�, tive ocasi�o de v�-lo ainda, numa sala, familiar e grave, atraente e circunspeto, mas j� sem aquele clangor das trombetas de guerra; a campanha acabara, a toler�ncia recuperara os seus direitos.

Tamb�m a luta para o arcebispo D. Jo�o n�o era a mesma; n�o havia a crise dos primeiros tempos em que se distinguiu. Era a luta de todos os dias, que a imprensa cat�lica naturalmente mant�m contra princ�pios e institutos que lhe s�o adversos, sem por isso concitar os fi�is � desobedi�ncia e � destrui��o. Le�o XIII � o modelo dessa defesa do dogma sem a agita��o da guerra, tolerando o que uns chamam calamidade dos tempos, outros conquistas do esp�rito civil, mas que, sendo fatos estabelecidos, n�o h� modo vis�vel de os desterrar deste mundo. Quem esperar� que a Igreja reconhe�a nenhum outro matrim�nio, al�m do cat�lico? Mas quem querer� que recuse a ben��o aos que se casam civilmente? N�o � s� o imposto que se d� a C�sar, ou n�o � s� o imposto em dinheiro; � tamb�m a obedi�ncia �s suas leis. A Igreja protestar�, mas viver�.

Este ponto prende com outro bispo, o do Rio Grande, que pregou agora em uma igreja de Santa Maria da Boca do Monte contra o casamento civil e contra os que se n�o confessam. Diz uma carta aqui publicada que foi t�o violento em sua linguagem que o povo que enchia a igreja veio esper�-lo a porta e fez-lhe uma demonstra��o de desagrado. O correspondente chama-lhe � �charivari medonho�. Eu posso n�o entender bem nem mal a viol�ncia do bispo; mas o que ainda menos entendo � a dos fi�is. Que foram ent�o os fi�is fazer ao templo onde pregava o bispo? Foram l�, porque s�o fi�is, porque est�o na mesma comunh�o de sentimentos religiosos. Se a toler�ncia lhes parecia conveniente, e a brandura necess�ria, era caso de discordar do bispo e at� lastim�-lo, mas pate�-lo? Que fariam ent�o os mais terr�veis inimigos do Credo? Por que a pateada, �o charivari medonho� � a ultima ratio do desagrado. Alguns, considerando o bast�o, pensar�o que aquela � s� pen�ltima. Mas nem uma nem outra raz�o � pr�pria de cat�licos. Salvo se os fi�is que ouviam o bispo eram meros passeantes que entraram na igreja como em um parque aberto, para descansar a vista e os p�s. Pode deduzir-se isto em desespero de causa; mas, francamente, n�o sei que pense. Folguemos em crer que o arcebispo agora morto n�o daria azo a tal explos�o, n�o s� por si, mas ainda pelo respeito em que o tinham.

31 de janeiro

Os direitos da imagina��o e da poesia h�o de sempre achar inimiga uma socieda­de industrial e burguesa. Em nome deles protesto contra a persegui��o que se est� fazendo � gente de Ant�nio Conselheiro. Este homem fundou uma seita a que se n�o sabe o nome nem a doutrina. J� este mis­t�rio � poesia. Contam-se muitas anedo­tas, diz-se que o chefe manda matar gente, e ainda agora fez assassinar fam�lias nu­merosas porque o n�o queriam acompa­nhar. � uma repeti��o do cr� ou morre; mas a voca��o de Maom� era conhecida. De Ant�nio Conselheiro ignoramos se teve alguma entrevista com o anjo Gabriel, se escreveu algum livro, nem sequer se sabe escrever. N�o se lhe conhecem discursos. Diz-se que tem consigo milhares de fan�ticos. Tamb�m eu o disse aqui, h� dois ou tr�s anos, quando eles n�o passavam de mil ou mil e tantos. Se na �ltima ba­talha � certo haverem morrido novecentos deles e o resto n�o se despega de tal ap�s­tolo, � que algum v�nculo moral e fort�ssi­mo os prende at� a morte. Que v�nculo � esse?

No tempo em que falei aqui destes fa­n�ticos, existia no mesmo sert�o da Bahia o bando dos clavinoteiros. O nome de cla­vinoteiros d� antes id�ia de salteadores que de religiosos; mas se no Cor�o est� escri­to que �o alfanje � a chave do c�u e do inferno�, bem pode ser que o clavinote seja a gazua, e para entrar no c�u tanto impor­tar� uma como outra; a quest�o � entrar. N�o obstante, tenho para mim que esse bando desapareceu de todo; parte estar� dando origem a desfalques em cofres p�­blicos ou particulares, parte � volta das urnas eleitorais. O certo � que ningu�m mais falou dele. De Ant�nio Conselheiro e seus fan�ticos nunca se fez sil�ncio absoluto. Poucos acreditavam, muitos riam, quase todos passavam adiante, porque os jornais s�o numerosos e a viagem dos bondes � curta; casos h�, como os de Santa Te­resa, em que � curt�ssima. Mas, em suma, falava-se deles. Eram mat�ria de cr�ni­cas sem motivo.

Entre as anedotas que se contam de Ant�nio Conselheiro, figura a de se dar ele por uma encarna��o de Cristo, acudir ao nome de Bom Jesus e haver eleito doze confidentes principais, n�mero igual ao dos ap�stolos. O correspondente da Gazeta de Not�cias mandou ontem not�cias telegr�ficas, cheias de interesse, que toda gente leu, e por isso n�o as ponho aqui; mas, em primeiro lugar, escreve da capital da Bahia, e, depois, n�o se funda em teste­munhas de vista, mas de oitiva; deu-se honesta pressa em mandar as novas para c�, t�o minuciosas e graves, que chamaram naturalmente a aten��o p�blica. Outras folhas tamb�m as deram; mas ser�o todas verdadeiras? Eis a quest�o. O n�mero dos sequazes do Conselheiro sobe j� a dez mil, n�o contando os lavradores e comercian­tes que o ajudam com g�neros e dinheiros.

Dado que tudo seja exato, n�o basta para conhecer uma doutrina. Diz-se que � um m�stico, mas � t�o f�cil sup�-lo que n�o adianta nada diz�-lo. Nenhum jornal mandou ningu�m aos Canudos. Um rep�rter paciente e sagaz, meio fot�grafo ou desenhista, para trazer as fei��es do Con­selheiro e dos principais sub-chefes, podia ia ao centro da seita nova e colher a ver­dade inteira sobre ela. Seria uma proeza americana. Seria uma empresa quase igual � remo��o do Bendeg�, que devemos ao es­for�o e dire��o de um patr�cio tenaz. Uma comiss�o n�o poderia ir; as comiss�es geralmente divergem logo na data da pri­meira confer�ncia, e � duvidoso que esta desembarcasse na Bahia sem tr�s opini�es (pelo menos) acerca do Joazeiro.

N�o se sabendo a verdadeira doutrina da seita, resta-nos a imagina��o para des­cobri-la e a poesia para flore�-la. Estas t�m direitos anteriores a toda organiza��o civil e pol�tica. A imagina��o de Eva f�-la escutar sem nojo um animal t�o imundo como a cobra, e a poesia de Ad�o � que o levou a amar aquela tonta que lhe fez per­der o para�so terrestre.

Que v�nculo � esse, repito, que prende t�o fortemente os fan�ticos ao Conselhei­ro? Imagina��o, cavalo de asas, sacode as crinas e dispara por a� fora; o espa�o � infinito. Tu, poesia, trepa-lhe aos flancos, que o espa�o, al�m de infinito, � azul. Ide, voai, em busca da estrela de ouro que se esconde al�m, e mostrai-nos em que � que consiste a doutrina deste homem. N�o vos fieis no telegrama da Gazeta, que diz es­tarem com ele quatro classes de fan�ticos, e s� uma delas sincera. Primeiro que tu­do, quase n�o h� grupo a que se n�o agre­gue certo n�mero de homens interessados e empulhadores; e, se vos contentais com uma velha chapa, a perfei��o n�o � deste mundo. Depois, se h� crentes verdadeiros, � que acreditam em alguma coisa. Essa coisa � que � o mist�rio. T�o atrativa � ela que um homem, n�o suspeito de conselheirista, foi com a senhora visitar o ap�s­tolo, deixando-lhe de esmola quinhentos mil r�is, e ela quatrocentos mil. Esta not�cia � sintom�tica. Se um pai de fam�lia, ca­pitalista ou fazendeiro, pega em si e na es­posa e vai dar pelas pr�prias m�os algum aux�lio pecuni�rio ao Conselheiro, que j� possui uns cem contos de r�is, � que a pa­lavra deste passa al�m das fileiras de com­bate.

N�o trato, por�m, de conselheiristas ou n�o conselheiristas; trato do conselheiris­mo, e por causa dele � que protesto e torno a protestar contra a persegui��o que se est� fazendo � seita. Vamos perder um assunto vago, remoto, fecundo e pavoro­so. Aquele homem, que refor�a as trin­cheiras envenenando os rios, � um Maom� forrado de um B�rgia. Vede que acaba de despir o burel e o bast�o pelas armas; a imagem do bast�o e do burel d�-lhe um ca­r�ter hier�tico. Enfim, deve exercer uma fascina��o grande para incutir a sua dou­trina em uns e a esperan�a da riqueza em outros. Chego a imaginar que o elegem para a c�mara dos deputados, e que ele a� chega, como aquele franc�s mu�ulmano, que ora figura na c�mara de Paris, com turbante e burnu. Estou a ver entrar o Conselheiro, deixando o bast�o onde outros deixam o guarda-chuva e sentando o burel onde outros pousam as cal�as. Estou a v�-lo erguer-se e propor indeniza��o para os seus dez mil homens dos Canudos...

A persegui��o faz-nos perder isto; acabar� por derribar o ap�stolo, destruir a seita e matar os fan�ticos. A paz tornar� ao sert�o, e com ela a monotonia. A mo­notonia vir� tamb�m � nossa alma. Que nos ficar� depois da vit�ria da lei? A nossa mem�ria, flor de quarenta e oito ho­ras, n�o ter� para regalo a �gua fresca da poesia e da imagina��o, pois seria profa­n�-las com desastres el�tricos de Santa Teresa, roubos, contrabandos e outras anedotas sucedidas nas quintas-feiras pa­ra se esquecerem nos s�bados.

7 de fevereiro

A semana � de mulheres. N�o falo daquelas finas damas elegantes que dan�aram em Petr�polis por amor de uma obra de caridade. Para falar delas n�o faltar�o nunca penas excelentes. Quisera dizer penas de alguma ave graciosa, a fim de emparelhar com a de �guia que vai servir para assinar o tratado de arbitramento entre os Estados Unidos e a Inglaterra. Mas se o nome de pena ficou ao pedacinho de metal que ora usamos, direi �s damas de Petr�polis que tamb�m haver� um cora��o para adornar as que escreverem delas, como houve um para enfeitar a pena de �guia diplom�tica. Diferem os dois cora��es em ser este de ouro, cravejado de brilhantes. E s�o ingleses! e s�o anglo-americanos! E dizem-se homens pr�ticos e duros! Em meio de tanta dureza e tanta pr�tica, l� acharam uma nesga azul de poesia, um raio de simbolismo e uma express�o de sentimento que se confunde com a dos namorados.

N�s, que n�o somos pr�ticos e temos uma nota de meiguice no cora��o, t�o alegres que enchemos as ruas de confetes cinco ou seis semanas antes do carnaval, n�s n�o propor�amos aquele cora��o de ouro com brilhantes para assinar o tratado. N�o � porque as nossas finan�as est�o antes para o simples a�o de Birmingham, mas por n�o cair em ternura p�blica, neste fim de s�culo, e um pouco por medo da troca. N�s temos da seriedade uma id�ia que se confunde com a de sequid�o. Ministro que em tal pensasse cuidaria ouvir, alta noite, por baixo das janelas, ao som do viol�o, aqueles c�lebres versos de Laurindo:

Cora��o, por que palpitas?
Cora��o, por que te agitas?

Os ingleses e os anglo-americanos, esses s�o capazes de achar uma nota de poesia nas mulheres de soldados que se foram despedir de seus amigos do 7� batalh�o, quando este embarcou para a Bahia, quarta-feira. Foram despedir-se � praia, como as esposas dos Lus�adas e at� as fizeram lembrar aos que n�o esqueceram este e os demais versos: �Qual em cabelo: � doce e amado esposo!� As diferen�as s�o grandes; umas eram consortes dos bar�es assinalados que sa�ram a romper o mar �que gera��o alguma n�o abriu�, estas c� s�o tristes s�cias dos soldados, e n�o podiam ir com eles, como de costume. Queriam acompanh�-los at� a Bahia, at� o sert�o, at� os Canudos, onde o Major Febr�nio n�o entrou, por motivos constantes de um documento p�blico. Dizem que choravam muitas; dizem que outras declaravam que iriam em breve juntar-se a eles, tendo vivido com eles e querendo morrer com eles. Delas n�o poucas os vieram acompanhando de Santa Catarina e nada conheciam da cidade, mas bradavam com a mesma alma que buscariam meios de chegar at� onde chegasse a expedi��o.

Talvez tudo isso vos pare�a reles e chato. Deus meu, n�o s�o as l�stimas de Dido, nem a meia d�zia de linhas da not�cia podem pedir me�as aos versos do poeta. Os soldados do 7� batalh�o n�o s�o En�ias; v�o � cata de um iluminado e seus fan�ticos, empresa menos para gl�ria que para trabalhos duros. Assim �; mas � tamb�m certo, pelo que dizem as gazetas, que as tais mulheres padeciam deveras. Ora, a dor, por mais rasteira que doa, n�o perde o seu of�cio de doer. Essas amigas de quartel n�o elevam o esp�rito, mas pode ser que contriste ouvi-las, como entristece ver as feridas dos mendigos que andam na rua ou residem nas cal�adas, corredores e portas.

Entre par�ntesis, n�o excluo do n�mero dos mendigos aqueles mesmos que t�m carro, porquanto as suas despesas s�o relativamente grandes. H� dias, algu�m que l� os jornais de fio a pavio deu com um an�ncio de um homem que se oferecia para puxar carro de mendigo; donde conclu�a esta senhora (� uma senhora) que h� homens mais mendigos que os pr�prios mendigos. Chegou ao ponto de crer que a carreira do mendigo � pr�spera, uma vez que a dos seus criados � atrativa. N�o vou t�o longe; eu creio que antes ser diretor de banco, � ainda de banco que n�o pague dividendos. Tem outro asseio, outra compostura, outra respeitabilidade, e durante o exerc�cio governa o mercado, ou faz que governa, que � a mesma coisa.

Pobres amigas de quartel! N�o direi, para fazer poesia, que fostes misturar as vossas l�grimas amargas com o mar, que � tamb�m amargo; faria apenas um trocadilho, sem grande sentido, pois n�o � o sal que d�i. Tamb�m n�o quero notar que a afli��o � a rasoura da gala e do molambo. N�o; eu sou mais humano; eu pe�o para v�s uma esperan�a, � a esperan�a m�xima, que � o esquecimento. Se n�o houverdes dinheiro para embarcar, pedi ao menos o esquecimento, e este caluniado amigo dos homens pode ser que venha sentar-se � beira das velhas t�buas que vos servem de leito. Se ele vier, n�o o mandeis embora; h� casos em que ele n�o � preciso, e entretanto fica e faz prosperar um sentimento novo. No nosso pode ser necess�rio. Enquanto o s�cio perde uma perna cumprindo o seu dever, a s�cia deslembrada perde a saudade, que d�i mais que ferro no corpo, e tudo se acomoda.

L�grimas parecem-se com f�retros. Quando algum destes passa, rico ou pobre, acompanhado ou sozinho, todos tiram o chap�u sem interromper a conversa��o, que tanto pode ser da expedi��o dos Canudos como do naufr�gio da Laje. Por isso, descobre-te ao ver passar aquelas outras l�grimas humildes e desesperadas que verteram as esposas e filhos dos oper�rios que naufragaram na fortaleza. Tamb�m estas correram � praia, umas pelos pais, outras pelos maridos, todas por defuntos, dos quais s� alguns apareceram; a maior parte, se n�o ficou ali no seio das �guas, foi levada por estas, barra fora, � descoberta de um mundo mais que velho.

Era uso dos oper�rios irem �s manh�s e tornarem �s tardes; mas o mar tem surpresas, e as suas �guas n�o amam s� as v�timas ilustres. Tamb�m lhes servem as obscuras, sem que ali�s precisem de umas nem de outras; mas � por amor dos homens que elas os matam. Assim ficam eles avisados a se n�o arriscarem mais sem grandes cautelas.

Em caso de desespero, n�o trabalhem. O trabalho � honesto, mas h� outras ocupa��es pouco menos honestas e muito mais lucrativas.

14 de fevereiro

Conheci ontem o que � celebridade. Estava comprando gazetas a um homem que as vende na cal�ada da Rua de S�o Jos�, esquina do Largo da Carioca, quando vi chegar uma mulher simples e dizer ao vendedor com voz descansada:

� Me d� uma folha que traz o retrato desse homem que briga l� fora.

� Quem?

� Me esqueceu o nome dele.

Leitor obtuso, se n�o percebeste que �esse homem que briga l� fora� � nada menos que o nosso Ant�nio Conselheiro, cr�-me que �s ainda mais obtuso do que pareces. A mulher provavelmente n�o sabe ler, ouviu falar da seita dos Canudos, com muito pormenor misterioso, muita aur�ola, muita lenda, disseram-lhe que algum jornal dera o retrato do Messias do sert�o, e foi compr�-lo, ignorando que nas ruas s� se vendem as folhas do dia. N�o sabe o nome do Messias; � �esse homem que briga l� fora�. A celebridade, caro e tapado leitor, � isto mesmo. O nome de Ant�nio Conselheiro acabar� por entrar na mem�ria desta mulher an�nima, e n�o sair� mais. Ela levava uma pequena, naturalmente filha; um dia contar� a hist�ria � filha, depois � neta,� porta da estalagem, ou no quarto em que residirem.

Esta � a celebridade. Outra prova � o eco de Nova Iorque e de Londres onde o nome de Ant�nio Conselheiro fez baixar os nossos fundos. O efeito � triste, mas v� se tu, leitor sem fanatismo, v� se �s capaz de fazer baixar o menor dos nossos t�tulos. Habitante da cidade, podes ser conhecido de toda a Rua do Ouvidor e seus arrabaldes, cansar os chap�us, as m�os, as bocas dos outros em sauda��es e elogios; com tudo isso, com o teu nome nas folhas ou nas esquinas de uma rua, n�o chegar�s ao poder daquele homenzinho, que passeia pelo sert�o uma vila, uma pequena cidade, a que s� falta uma folha, um teatro, um clube, uma pol�cia e sete ou oito roletas, para entrar nos almanaques.

Um dia, anos depois de extinta a seita e a gente dos Canudos, Coelho Neto, contador de coisas do sert�o, talvez nos de algum quadro daquela vida, fazendo-se cronista imaginoso e magn�fico deste epis�dio que n�o tem nada fim-de-s�culo. Se leste o Sert�o, primeiro livro da �Cole��o Alva�, que ele nos deu agora, concordar�s comigo. Coelho Neto ama o sert�o, como j� amou o Oriente, e tem na palheta as cores pr�prias � de cada paisagem. Possui o senso da vida exterior. D�-nos a floresta, com os seus rumores e sil�ncios, com os seus bichos e rios, e pinta-nos um caboclo que, por menos que os olhos estejam acostumados a ele, reconhecer�o que � um caboclo.

Este livro do Sert�o tem as exuber�ncias do estilo do autor, a minuciosidade das formas, das coisas e dos momentos, o numeroso rol das caracter�sticas de uma cena ou de um quadro. N�o se contenta com duas pinceladas breves e fortes; o colorido � longo, vigoroso e paciente, recamado de frases como aquela do c�u quente �donde ca�a uma paz cansada�, e de imagens como esta: �A vida banzeira, apenas alegrada pelo som da voz de Felicinha, de um timbre fresco e sonoro de mocidade, derivava como um rio lodoso e pesado de �guas grossas, � beira do qual cantava uma ave jucunda.� A natureza est� presente a tudo nestas p�ginas. Quando Cabi�na morre (�Cega�, 280) e est�o a fazer-lhe o caix�o, � noite, s�o as �guas, � o farfalhar das ramas fora que vem consolar os tristes de casa pela perda daquele �esposo fecundante das veigas virgens, patrono humano da flora��o dos campos, reparador dos flagelos do sol e das borrascas�. �Cega� � uma das mais aprimoradas novelas do livro. �Praga� ter� algures demasiado arrojo, mas compensa o que houver nela excessivo pela vibra��o extraordin�ria dos quadros.

Estes n�o s�o alegres nem graciosos, mas a gente or�a ali pela natureza da praga, que � o c�lera. Agora, se quereis a morte jovial, tendes Firmo, o vaqueiro, um octogen�rio que �n�o deixa cair um verso no ch�o�, e morre cantando e ouvindo cantar ao som da viola. �Os Velhos� foram dados aqui. �Tapera� saiu na Revista Brasileira.

Os costumes s�o rudes e simples, agora amorosos, agora tr�gicos, as falas adequadas �s pessoas, e as id�ias n�o sobem da cerebra��o natural do matuto. Hist�rias sertanejas d�o acaso n�o sei que gosto de ir descansar, alguns dias, da polidez encantadora e alguma vez enganadora das cidades. Varela sabia o ritmo particular desse sentimento; Gon�alves Dias, com andar por essas Europas fora, tamb�m o conhecia; e, para s� falar de um prosador e de um vivo, Taunay d� vontade de acompanhar o Dr. Cirino e Pereira por aquela longa estrada que vai de Sant�Ana de Parana�ba a Camapuama, at� o leito da graciosa Noc�ncia. Se achardes no Sert�o muito sert�o, lembrai-vos que ele � infinito, e a vida ali n�o tem esta variedade que n�o nos faz ver que as casas s�o as mesmas, e os homens n�o s�o outros. Os que parecem outros um dia � que estavam escondidos em si mesmos.

Ora bem, quando acabar esta seita dos Canudos, talvez haja nela um livro sobre o fanatismo sertanejo e a figura do Messias. Outro Coelho Neto, se tiver igual talento, pode dar-nos daqui a um s�culo um cap�tulo interessante, estudando o fervor dos b�rbaros e a pregui�a dos civilizados, que os deixaram crescer tanto, quando era mais f�cil t�-los dissolvido com uma patrulha, desde que o simples frade n�o fez nada. Quem sabe? Talvez ent�o algum devoto, rel�quia dos Canudos, celebre o centen�rio desta finada seita.

Para isso, basta celebrar o centen�rio da cabeleira do ap�stolo, como agora, pelo que diz o Jornal do Com�rcio, comemoraram em Londres o centen�rio da inven��o do chap�u alto. Chap�us e cabelos s�o amigos velhos. Foi a 15 de janeiro �ltimo. N�o conhecendo a hist�ria deste complemento masculino, nada posso dizer das circunst�ncias em que ele apareceu no dia 15 de janeiro de 1797. Ou foi exposto � venda naquela data, ou apontou na rua, ou algum membro do parlamento entrou com ele no recinto dos debates, � maneira brit�nica. Fosse como fosse, os ingleses celebraram esse dia hist�rico da chapelaria humana. Sabeis o que Macaulay disse da morte de um rei e da morte de um rato. Aplicando o conceito ao presente caso, direi que a concep��o de um chapeleiro no ventre de sua m�e �, em absoluto, mais interessante que a fabrica��o de um chap�u; mas, hip�tese haver� em que a fabrica��o de um chap�u seja mais interessante que a concep��o do chapeleiro. Este n�o passar� do chap�u comum e trabalhar� para uma gera��o apenas; aquele ser� novo e ficar� para muitas gera��es.

Com efeito, l� vai um s�culo, e ainda n�o acabou o chap�u alto. O chap�u baixo e o chap�u mole fazem-lhe concorr�ncia por todos os feitios, e, �s vezes parecem venc�-lo. Um fazendeiro, vindo h� muitos anos a esta capital, na semana em que certa chapelaria da Rua de S�o Jos� abriu ao p�blico as suas seis ou sete portas, ficou pasmado de v�-las todas, de alto a baixo, cobertas de chap�us compridos. Tempo depois, voltando e indo ver a casa, achou-lhe as mesmas seis ou sete portas cobertas de chap�us curtos. Cuidou que a vit�ria destes era decidida, mas sabeis que se enganou. O chap�u alto durar� ainda e durar� por muitas d�zias de anos. Quando ningu�m j� o trouxer de passeio ou de visita, servir� nas cerim�nias p�blicas. Eu ainda alcancei o porteiro do Senado, nos dias de abertura e de encerramento da assembl�ia geral, vestindo cal��o, meia e capa de seda preta, sapato raso com fivela, e espadim � cinta. Por fim acabou o vestu�rio do porteiro. O mesmo suceder� ao chap�u alto; mas por enquanto h� quem celebre o seu primeiro s�culo de exist�ncia. Tem-se dito muito mal deste chap�u. Chamam-lhe cartola, chamin�, e n�o tarda canudo, para rebaix�-lo at� a cabeleira hirsuta de Ant�nio Conselheiro. No Carnaval, muita gente o n�o tolera, e os mais audazes saem � rua de chap�u baixo, n�o tanto para poupar o alto, como para resguardar a cabe�a, sem a qual n�o h� chap�u alto nem baixo.

21 de fevereiro

Estou com inveja aos argentinos. Agora que os gregos surgem de toda parte para correr a Atenas, receber armamento e passar � Ilha de Creta, Buenos Aires d� 200 desses patriotas que a� v�o lutar contra os otomanos. N�s, que dev�amos dar 500, n�o damos nenhum. Certamente n�o os temos, ou t�o raros s�o eles que melhor � irem pela calada. Conheci outrora um grego. Petrococchino, homem da pra�a, e conheci tamb�m a Aim�e, uma francesa, que em nossa l�ngua se traduzia por amada, tanto nos dicion�rios como nos cora��es. Era uma criaturinha do finado Alcazar, que nenhuma Turquia defendeu da H�lade. Ao contr�rio, os turcos fugiram e a bandeira hel�nica se desfraldou na Creta da Rua Uruguaiana... E da� � poss�vel que nem mesmo este Petrococchino fosse grego.

Not�rio, como ele era, n�o os temos agora. Na lista da pol�cia, aparecem �s vezes nomes de gregos, como de turcos, mas a gente que cultiva a planta noturna pode adorar a cruz e o crescente, n�o se bate por ele nem por ela. Eu quisera, entretanto, ver partir daqui, Rua do Ouvidor abaixo, uma falange bradando para ser entendida da terra os versos de Hugo: En Gr�ce! En Gr�ce!  Lembras-te, n�o? Se �s do meu tempo n�o esqueceste que tu e eu, quando expeitor�vamos os primeiros versos que os rapazes trazem consigo, as Orientais contavam j� trinta anos e mais. Mas era por elas que ainda aprend�amos poesia. Traz�amos de cor as p�ginas contempor�neas da revolu��o hel�nica, e do bravo Canaris, queimador de navios, e da batalha de Navarino, e da marcha turca, e de toda aquela ressurrei��o de um pa�s meio antigo, meio crist�o. En Gr�ce! cantava o poeta, pedindo que lhe selassem o cavalo e lhe dessem a espada, que queria partir j�, j�, contra os turcos; mas a lira mudava subitamente de tom, e o poeta perguntava a si mesmo quem era ele. Confessava ent�o n�o ser mais que uma folha que o vento leva, nem amar outra coisa mais que as estrelas e a lua. T�o pouca coisa n�o era nos demais versos em que cantava os her�is gregos, mas Hugo lembrava-se de Byron...

Com efeito, Byron, armando-se para ir ao encontro do mu�ulmano, se teve o melanc�lico desfecho de 1824, nem por isso perdeu o brilhante arranco de 1823; era preciso fazer coisa id�ntica ou an�loga. N�o se podia convidar a bater os turcos sem ir pelo mesmo caminho. Um poeta l�rico tinha de ser efetivamente �pico. E vede bem este grande homem, que ainda ontem Olavo Bilac evocava aqui, naquela prosa sugestiva que lhe conheces, vede bem que n�o estava aborrecido nem cansado: acabava de escrever os �ltimos cantos de Don Juan, e n�o sorvera ainda os �ltimos beijos da Guiccioli. Para levar alguma parte desta para a Gr�cia, levou-lhe o irm�o, cunhado in partibus infidelium, e meteu-se em navio que fretou, com um m�dico e rem�dios para mil homens durante um ano. Na Gr�cia organizou e equipou umas centenas de soldados e p�s-se a testa deles. Nem todos poderiam fazer as coisas por este estilo grandioso. Era, ao mesmo tempo que um ato her�ico, uma aventura po�tica, um ap�ndice do Child Harold. A febre n�o quis que ele perecesse na ponta de uma adaga otomana. Missolonghi avisou assim aos demais poetas que n�o sa�ssem a campo, em defesa da velha Gr�cia remo�ada, n�o por medo de morrer ali ou alhures, mas porque o exemplo de Byron devia ficar com Byron. O epit�fio do poeta tinha de ser �nico.

Ao concerto universal daquele tempo n�o faltaram liras nem poetas. Cada l�ngua teve o seu P�ndaro. Lembra-te de Lamartine; lembra-te de Jos� Bonif�cio, cuja c�lebre ode clamava aos gregos, com entusiasmo: Sois helenos! sois homens! Compara ontem com hoje. Talvez o ardor do Romantismo ajudou a incendiar as almas. Os olhos estavam ainda mal acordados daquele vasto pesadelo imperial, que fora tamb�m um grande sonho, campanhas de conquista e de opress�o, campanhas de liberdade, tudo feito, desfeito e refeito; a reconstitui��o da Gr�cia pedia uma cruzada particular. Cim�doce pergunta a Eudoro: �H� tamb�m uma V�nus crist�?� Esta V�nus era agora a pr�pria Gr�cia convertida, como a hero�na de Chateaubriand, e conquistada ao turco depois de muito sangue.

Que os helenos s�o homens � o que est�s vendo agora, quando toda a faculdade de medicina internacional cuida de alongar os dias do �enfermo�, com os seus xaropes de notas e p�lulas de esquadras sem fogo. Os �nfimos gregos n�o se arreceiam e, cansados de ouvir gemer Creta, l� se foram a arranc�-la dos bra�os otomanos. A diplomacia � uma bela arte, uma nobre e grande arte; o �nico defeito que h� nas suas admir�veis teias de aranha � que uma bala fura tudo, e a vontade de um povo, se algum santo entusiasmo lhe aquece as veias, pode esfrangalhar as mais finas obras da ast�cia humana. Se a Gr�cia acabar vencendo, as grandes pot�ncias n�o ter�o sido mais que jogadores de voltarete a tentos.

Que outra coisa t�m sido elas, a prop�sito das reformas turcas? As reformas v�m, n�o v�m, redigem-se, emendam-se, copiam-se, prop�em-se, aceitam-se, v�o cumprir-se e n�o se cumprem. Vereis que ainda caem como as reformas cubanas, que, depois de tanto sangue derramado, vieram p�lidas e mofinas. Ningu�m as quer, e o ferro e o fogo continuam a velha obra. Assim se vai fazendo a hist�ria, com apar�ncia igual ou v�ria, mediante a a��o de leis, que n�s pensamos emendar, quando temos a fortuna de v�-las. Muita vez n�o as vemos, e ent�o imitamos Pen�lope e o seu tecido, desfazendo de noite o que fazemos de dia, enquanto outro tecel�o maior, mais alto ou mais fundo e totalmente invis�vel comp�e os fios de outra maneira, e com tal for�a que n�o podemos desfazer nada. Sucede que, passados tempos, o tecido esfarrapa-se e n�s, que trabalh�vamos em romp�-lo, cuidamos que a obra � nossa. Na verdade, a obra � nossa, mas � porque somos os dedos do tecel�o; o desenho e o pensamento s�o dele, e presumindo empurrar a carro�a, o animal � que a tira do atoleiro, um animal que somos n�s mesmos... Mas a� me embrulho eu, e estou quase a perder-me em filosofias grossas e banais. Oh! banal�ssimas!

Domingo pr�ximo � poss�vel que te explique esta confus�o da minha alma. Estou certo que me entender�s e aplaudir�s. Al�m da confus�o da alma, imagina que me d�i a testa em um s� ponto escasso, no sobrolho direito; a dor, que n�o precisa de extens�o grande para fazer padecer muito, contenta-se �s vezes com o espa�o necess�rio � cabe�a de um alfinete. Tamb�m esta reflex�o � banal, mas tem a vantagem de acabar a cr�nica.

28 de fevereiro

�Domingo pr�ximo � poss�vel que te explique esta confus�o da minha alma. Estou certo que me entender�s e aplaudir�s.� Assim conclu� eu a Semana passada. Venho cumprir aquela meia promessa.

� certo que a festa suntuosa de quarta-feira afrouxou em parte a sensa��o exposta naquelas palavras. A recep��o do pal�cio do governo respondeu ao que se esperava do ato, e deixou impress�o forte e profunda. Aquele edif�cio que eu vi, h� trinta anos, logo depois de acabado, passou por v�rias m�os, viveu na obscuridade e na hipoteca, passou finalmente ao poder do governo, e o ilustre Sr. Vice-presidente da Rep�blica acaba de inaugur�-lo com raro esplendor. Foi o sucesso principal da semana; mas a semana j� n�o � minha, como ides ver.

Leitor, Deus gastou seis dias em fazer este mundo, e repousou no s�timo. Ora, Deus podia muito bem n�o repousar, mas quis deixar um exemplo aos homens. Da� o nosso velho descanso de um dia, que os crist�os chamaram do Senhor. Eu n�o sou Deus, leitor; n�o criei este mundo, tanto que lhe acho algumas imperfei��es, como a de nascerem as uvas verdes, para engano das raposas. Eu as faria nascer maduras e talvez j� engarrafadas. Mas criticar obra feita n�o custa; Deus n�o podia prever que os homens n�o se limitassem a falsificar elei��es e fizessem o mesmo ao vinho.

Vamos ao que importa. Se Deus descansou um dia, depois de seis dias de trabalho, for�a � que eu descanse algum tempo depois de uma obra de anos. H� cerca de cinco anos que vos digo aqui ao domingo o que me passa pela cabe�a, a prop�sito da semana finda, e at� sem nenhum prop�sito. Parece tempo de repousar o meu tanto. Que o repouso seja breve ou longo, � o que n�o sei dizer; vou estirar estes membros cansados e cochilar a minha sesta.

Antes de cochilar, podia fazer um exame de consci�ncia e uma confiss�o p�blica, � maneira de Sarah Bernhardt ou de Santo Agostinho. Oh! perdoa-me, santo da minha devo��o, perdoa esta uni�o do teu nome com o da ilustre tr�gica; mas este s�culo acabou por deitar todos os nomes no mesmo cesto, mistur�-los, tir�-los sem ordem e cos�-los sem escolha. � um s�culo fatigado. As for�as que despendeu, desde princ�pio, em aplaudir e odiar, foram enormes. Junta a isso as revolu��es, as anexa��es, as dissolu��es e as inven��es de toda casta, pol�ticas e filos�ficas, art�sticas e liter�rias, at� as acrob�ticas e farmac�uticas, e compreender�s que � um s�culo esfalfado. Vive unicamente para n�o desmentir os almanaques. Todos os s�culos t�m cem anos; este n�o quer sair da velha regra, nem ser menos constante que o nosso robusto Barbacena, seu grande rival. Em lhe batendo a hora, ir� com facilidade para onde foram os s�culos de P�ricles e de Augusto.

O meu exame de consci�ncia, se houvesse de faz�-lo, n�o imitaria Agostinho nem Sarah. Nem tanta humildade, nem tanta gl�ria. O grande santo dividiu, � verdade, as confiss�es humanas em duas ordens, uma que � um louvor, outra que � um gemido, definindo assim as suas e as da representante de Dona Sol. Faz crer que n�o h� terceira classe, em que a gente possa louvar-se com modera��o e gemer baixinho; mas eu cuido que h� de haver. A imitar uma das duas, acho que a mais dif�cil seria a de Sarah. N�o li ainda as confiss�es desta senhora, mas pela nota que nos deu dela E�a de Queir�s, com aquela gra�a viva e cintilante dos seus tr�s �ltimos �Bilhetes Postais�, n�o sei como � que uma criatura possa dizer tanta coisa de si mesma. Em particular, v�. H� pessoas que, n�o receando indiscretos, escancaram os cora��es, e os amigos reconhecem que, por mais que se pense bem de outro, pensa-se menos bem que ele pr�prio. Mas, em p�blico, em letra de forma, no F�garo, que � o Di�rio Oficial do universo, custa crer, mas � verdade.

Antes gemer, com esta cl�usula de gemer baixinho, e confessar os pecados, mas com discri��o e cautela. Pecados s�o a��es, inten��es ou omiss�es graves; n�o se devem contar todas, nem integralmente, mas s� a parte que menos pesa � alma e n�o faz desmerecer uma pessoa no conceito dos homens. N�o especifico, por n�o perder tempo, e quem se despede, mal pode dizer o essencial. O essencial aqui � dizer que n�o fa�o confiss�o alguma, nem do mal, nem do bem. Que mal me saiu da pena ou do cora��o? Fui antes pio e eq�itativo que rigoroso e injusto. Cheguei � elegia e � l�grima, e se n�o bebi todos os Cambar�s e Jata�s deste mundo, � porque espero encontr�-los no outro, onde j� nos aguardam os xaropes do Bosque e de outras partes. L� ir� ter o grande Kneipp, e anos depois o kneippismo, pela regra de que primeiro morrem os autores que as inven��es. H� mais de um exemplo na filosofia e na farm�cia.

N�o tireis da �ltima frase a conclus�o de ceticismo. N�o achareis linha c�tica nestas minhas conversa��es dominicais. Se destes com alguma que se possa dizer pessimista, adverte que nada h� mais oposto ao ceticismo. Achar que uma coisa � ruim, n�o � duvidar dela, mas afirm�-la. O verdadeiro c�tico n�o cr�, como o Dr. Pangloss, que os narizes se fizeram para os �culos, nem, como eu, que os �culos � que se fizeram para os narizes; o c�tico verdadeiro descr� de uns e de outros. Que economia de vidros e de defluxos, se eu pudesse ter esta opini�o!

Adeus, leitor. For�a � deitar aqui o ponto final. A mim, se n�o fora a conveni�ncia de ir para a rede, custar-me-ia muito pingar o dito ponto, pelas saudades que levo de ti. N�o h� nada como falar a uma pessoa que n�o interrompe. Diz-se-lhe tudo o que se quer, o que vale e o que n�o vale, repetem-se-lhe as coisas e os modos, as frases e as id�ias, contradizem-se-lhe as opini�es, e a pessoa que l�, n�o interrompe. Pode lan�ar a folha para o lado ou acabar dormindo. Quem escreve n�o v� o gesto nem o sono, segue caminho e acaba. Verdade � que, neste momento, adivinho uma reflex�o tua. Est�s a pensar que o melhor modo de sair de uma obriga��o destas n�o difere do de deixar um baile, que � descer ao vesti�rio, enfiar o sobretudo e sumir-se no carro ou na escurid�o. Isto de empregar tanto discurso faz crer que se presumem saudades nos outros, al�m de ser fora da etiqueta. Tens raz�o, leitor; e, se fosse tempo de rasgar esta papelada e escrever diversamente, cr� que o faria; mas � tarde, muito tarde. Demais, a frase final da outra semana precisava de ser explicada e cumprida; da� todos estes suspiros e curvaturas. Falei ent�o na confus�o da minha alma, e devia dizer em que � que ela consistia e consiste, e cuja era a causa. A causa est� dita; � a natural melancolia da separa��o. Adeus, amigo, at� a vista. Ou, se queres um jeito de falar mais nosso, at� um dia. Creio que me entendeste, e creio tamb�m que me aplaudes, como te anunciei na semana passada. Adeus!

1900

4 de novembro

Entre tais e t�o tristes casos da semana, como o terremoto de Venezuela, a queda do Banco Rural e a morte do sineiro da Gl�ria, o que mais me comoveu foi o do sineiro.

Conheci dois sineiros na minha inf�ncia, ali�s tr�s, ― o Sineiro de S�o Paulo, drama que se representava no Teatro S�o Pedro, ― o sineiro da Notre Dame de Paris, aquele que fazia um s� corpo, ele e o sino, e voavam juntos em plena Idade M�dia, e um terceiro, que n�o digo, por ser caso particular. A este, quando tornei a v�-lo, era caduco. Ora, o da Gl�ria, parece ter lan�ado a barra adiante de todos.

Ouvi muita vez repicarem, ouvi dobrarem os sinos da Gl�ria, mas estava longe absolutamente de saber quem era o autor de ambas as falas. Um dia cheguei a crer que andasse nisso eletricidade. Esta for�a misteriosa h� de acabar por entrar na igreja e j� entrou, creio eu, em forma de luz. O g�s tamb�m j� ali se estabeleceu. A igreja � que vai abrindo a porta �s novidades, desde que a abriu � cantora de sociedade ou de teatro, para dar aos solos a voz de soprano, quando n�s a t�nhamos trazida por D. Jo�o VI, sem despir-lhe as cal�as. Conheci uma dessas vozes, pessoa velha, p�lida e desbarbada; cantando, parecia mo�a.

O sineiro da Gl�ria � que n�o era mo�o. Era um escravo, doado em 1853 �quela igreja, com a condi��o de a servir dois anos. Os dois anos acabaram em 1855, e o escravo ficou livre, mas continuou o of�cio. Contem bem os anos, quarenta e cinco, quase meio s�culo, durante os quais este homem governou uma torre. A torre era ele, dali regia a par�quia e contemplava o mundo.

Em v�o passavam as gera��es, ele n�o passava. Chamava-se Jo�o. Noivos casavam, ele repicava as bodas; crian�as nasciam, ele repicava ao batizado; pais e m�es morriam, ele dobrava aos funerais. Acompanhou a hist�ria da cidade. Veio a febre amarela, o c�lera-morbo, e Jo�o dobrando. Os partidos subiam ou ca�am, Jo�o dobrava ou repicava, sem saber deles. Um dia come�ou a guerra do Paraguai, e durou cinco anos; Jo�o repicava e dobrava, dobrava e repicava pelos mortos e pelas vit�rias. Quando se decretou o ventre livre das escravas, Jo�o � que repicou. Quando se fez a aboli��o completa, quem repicou foi Jo�o. Um dia proclamou-se a Rep�blica, Jo�o repicou por ela, e repicaria pelo Imp�rio, se o Imp�rio tornasse.

N�o lhe atribuas inconsist�ncia de opini�es; era o of�cio. Jo�o n�o sabia de mortos nem de vivos; a sua obriga��o de 1853 era servir � Gl�ria, tocando os sinos, e tocar os sinos, para servir � Gl�ria, alegremente ou tristemente, conforme a ordem. Pode ser at� que, na maioria dos casos, s� viesse a saber do acontecimento depois do dobre ou do repique.

Pois foi esse homem que morreu esta semana, com oitenta anos de idade. O menos que lhe podiam dar era um dobre de finados, mas deram-lhe mais; a Irmandade do Sacramento foi busc�-lo � casa do vig�rio Molina para a igreja, rezou-se-lhe um responso e levaram-no para o cemit�rio, onde nunca jamais tocar� sino de nenhuma esp�cie; ao menos, que se ou�a deste mundo.

Repito, foi o que mais me comoveu dos tr�s casos. Porque a queda do Banco Rural, em si mesma, n�o vale mais que a de outro qualquer banco. E depois n�o h� bancos eternos. Todo banco nasce virtualmente quebrado; � o seu destino, mais ano, menos ano. O que nos deu a ilus�o do contr�rio foi o finado Banco do Brasil, uma esp�cie de sineiro da Gl�ria, que repicou por todos os vivos, desde Itabora� at� Dias de Carvalho, e sobreviveu ao Lima, ao �Lima do Banco�. Isto � que fez crer a muitos que o Banco do Brasil era eterno. Vimos que n�o foi. O da Rep�blica j� n�o trazia o mesmo aspecto; por isso mesmo durou menos.

Ao Rural tamb�m eu conheci mo�o; e, pela cara, parecia sadio e robusto. Posso at� contar uma anedota, que ali se deu h� trinta anos e responde ao discurso do Sr. J�lio Otoni. Ningu�m me contou; eu mesmo vi com estes olhos que a terra h� de comer, eu vi o que ali se passou h� tanto tempo. N�o digo que fosse novo, mas para mim era nov�ssimo.

Estava eu ali, ao balc�o do fundo, conversando. N�o tratava de dinheiro, como podem supor, posto fosse de letras, mas n�o h� s� letras banc�rias; tamb�m as h� liter�rias, e era destas que eu tratava. Que o lugar n�o fosse prop�cio, creio; mas, aos vinte anos, quem � que escolhe lugar para dizer bem de Cam�es?

Era dia de assembl�ia geral de acionistas, para se lhes dar conta da gest�o do ano ou do semestre, n�o me lembra. A assembl�ia era no sobrado. A pessoa com quem eu falava tinha de assistir � sess�o, mas, n�o havendo ainda n�mero, bastava esperar c� embaixo. De resto, a hora estava a pingar. E n�s fal�vamos de letras e de artes, da �ltima com�dia e da �pera recente. Ningu�m entrava de fora, a n�o ser para trazer ou levar algum papel, c� de baixo. De repente, enquanto eu e o outro convers�vamos, entra um homem lento, aborrecido ou zangado, e sobe as escadas como se fossem as do pat�bulo. Era um acionista. Subiu, desapareceu. �amos continuar, quando o porteiro desceu apressadamente.

― Sr. secret�rio! Sr. secret�rio!

� J� h� maioria?

� Agora mesmo. Metade e mais um. Venha depressa, antes que algum saia, e n�o possa haver sess�o.

O secret�rio correu aos pap�is, pegou deles, tornou, voou, subiu, chegou, abriu-se a sess�o. Tratava-se de prestar contas aos acionistas sobre o modo por que tinham sido geridos os seus dinheiros, e era preciso espreit�-los, agarr�-los, fechar a porta para que n�o sa�ssem, e ler-lhes � viva for�a o que se havia passado. Imaginei logo que n�o eram acionistas de verdade; e, falando nisto a algu�m, � porta da rua, ouvi-lhe esta explica��o, que nunca me esqueceu:

― O acionista, disse-me um amigo que passava, � um substantivo masculino que exprime �possuidor de a��es� e, por extens�o, credor dos dividendos. Quem diz a��es diz dividendos. Que a diretoria administre, v�, mas que lhe tome o tempo em prestar-lhe contas, � demais. Preste dividendos; s�o as contas vivas. N�o h� banco mau se d� dividendos. Aqui onde me v�, sou tamb�m acionista de v�rios bancos, e fa�o com eles o que fa�o com o j�ri, n�o vou l�, n�o me amolo.

― Mas, se os dividendos falharem?

― � outra coisa, ent�o cuida-se de saber o que h�.

Pessoa de hoje, a quem contei este caso antigo, afirmou-me que a pessoa que me falou, h� trinta anos, � porta do Rural, n�o fez mais que afirmar um princ�pio, e que os princ�pios s�o eternos. A prova � que aquele ainda agora o seria, se n�o fosse o incidente da corrida dos cheques h� dois meses.

― Ent�o, parece-lhe...?

― Parece-me.

Quanto ao terceiro caso triste da semana, o terremoto de Venezuela, quando eu penso que podia ter acontecido aqui, e, se aqui acontecesse, � prov�vel que eu n�o tivesse agora a pena na m�o, confesso que lastimo aquelas pobres v�timas. Antes uma revolu��o. Venezuela tem vertido sangue nas revolu��es, mas sai-se com gl�ria para um ou outro lado, e algu�m vence, que � o principal; mas este morrer certo, fugindo-lhes o ch�o debaixo dos p�s, ou engolindo-os a todos, ah!... Antes uma, antes dez revolu��es, com trezentos mil diabos! As revolu��es servem sempre aos vencedores, mas um terremoto n�o serve a ningu�m. Ningu�m vai ser presidente de ru�nas. � s� trapalhada, confus�o e morte ingl�ria. N�o, meus amigos. Nem terremotos nem bancos quebrados. Vivem os sineiros de oitenta anos, e um s�, perp�tuo e �nico badalo!

11 de novembro

Eu gosto de catar o m�nimo e o escondido. Onde ningu�m mete o nariz, a� entra o meu, com a curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto. Da� vem que, enquanto o tel�grafo nos dava not�cia t�o graves como a taxa francesa sobre a falta de filhos e o suic�dio do chefe de pol�cia paraguaio, coisas que entram pelos olhos, eu apertei os meus para ver coisas mi�das, coisas que escapam ao maior n�mero, coisas de m�opes. A vantagem dos m�opes � enxergar onde as grandes vistas n�o pegam.

N�o nego que o imposto sobre a falta de filhos e o celibato podia dar de si uma p�gina luminosa, sem ali�s tocar na estat�stica. S� a parte c�vica. S� a parte moral. Dava para elogio e para descompostura. A grandeza da p�tria, da ind�stria e dos ex�rcitos faria o elogio. O reg�men de opress�o inspirava a descompostura, visto que obriga casar para n�o pagar a taxa; casado, obriga a fazer filhos, para n�o pagar a taxa; feitos os filhos, obriga a cri�-los e educ�-los, com o que afinal se paga uma grande taxa. Tudo taxas. Quanto ao suic�dio do chefe de pol�cia, s�o palavras t�o contr�rias umas as outras que n�o h� crer nelas. Um chefe de pol�cia exerce fun��es essencialmente vitais e alheias � melancolia e ao desespero. Antes de se demitir da vida, era natural demitir-se do cargo, e o segundo decreto bastaria acaso para evitar o primeiro.

Deixei taxas e mortes e fui � casa de um leiloeiro, que ia vender objetos empenhados e n�o resgatados. Permitam-me um trocadilho. Fui ver o martelo bater no prego. N�o � l� muito engra�ado, mas � natural, exato e evang�lico. Est� autorizado por Jesus Cristo: Tu es Petrus, etc. Mal comparando, o meu ainda � melhor. O da Escritura est� um pouco for�ado, ao passo que o meu, ― o martelo batendo no prego, ― � t�o natural que nem se concebe dizer de outro modo. Portanto, edificarei a cr�nica sobre aquele prego, no som daquele martelo.

Havia l� broches, rel�gios, pulseiras, an�is, bot�es, o repert�rio do costume. Havia tamb�m um livro de missa, elegante e escrupulosamente dito para missa, a fim de evitar confus�o de sentido. Valha-me Deus! at� nos leil�es persegue-nos a gram�tica. Era de tartaruga, guarnecido de prata. Quer dizer que, al�m do valor espiritual, tinha aquele que propriamente o levou ao prego. Foi uma mulher que recorreu a esse modo de obter dinheiro. Abriu m�o da salva��o da alma, para salvar o corpo, a menos que n�o tivesse decorado as ora��es antes de vender o manual delas. Pobre desconhecida! Mas tamb�m (e � aqui que eu vejo o dedo de Deus), mas tamb�m quem � que lhe mandou comprar um livro de tartaruga com ornamenta��es de prata? Deus n�o pede tanto; bastava uma encaderna��o simples e forte, que durasse, e feia para n�o tentar a ningu�m. Deus veria a beleza dela.

Mas vamos ao que me p�e a pena na m�o; deixemos o livro e os artigos do costume. Os leil�es desta esp�cie s�o de uma monotonia desesperadora. N�o saem de cinco ou seis artigos. Raro vir� um bin�culo. Neste apareceu um, e um despertador tamb�m, que servia a acordar o dono para o trabalho. Houve mais uns cinco ou seis chap�us-de-sol, sem indica��o do cabo... Deus meu! Quanto teriam recebido os donos por eles, al�m de algum magro tost�o? R�amos da mis�ria. � um derivativo e uma compensa��o. Eu, se fosse ela, preferia fazer rir a fazer chorar.

O lote inesperado, o lote escondido, um dos �ltimos do cat�logo, perto dos chap�us-de-sol, que vieram no fim, foi uma espada. Uma espada, senhores, sem outra indica��o; n�o fala dos copos, nem se eram de ouro. � que era uma espada pobre. N�o obstante, quem diabo a teria ido pendurar do prego? Que se pendurem chap�us-de-sol, um despertador, um bin�culo, um livro de missa ou para missa, v�. O sol mata os micr�bios, a gente acorda sem m�quina, n�o � urgente chamar a vista as pessoas dos outros camarotes, e afinal o cora��o tamb�m � livro de missa. Mas uma espada!

H� dois tempos na vida de uma espada, o presente e o passado. Em nenhum deles se compreende que ela fosse parar ao prego. Como iria l� ter uma espada que pode ser a cada instante intimada a comparecer ao servi�o? N�o � mister que haja guerra; uma parada, uma revista, um passeio, um exerc�cio, uma comiss�o, a simples apresenta��o ao ministro da guerra basta para que a espada se ponha a cinta e se desnude, se for caso disso. Eventualmente, pode ser �til em defender a vida ao dono. Tamb�m pode servir para que este se mate, como Bruto.

Quanto ao passado, posto que em tal hip�tese a espada n�o tenha j� pr�stimos, � certo que tem valor hist�rico. Pode ter sido empregada na destrui��o do despotismo Rosas ou L�pez, ou na repress�o da revolta, ou na guerra de Canudos, ou talvez na funda��o da Rep�blica, em que n�o houve sangue, � verdade, mas a sua presen�a ter� bastado para evitar conflitos.

As cr�nicas antigas contam de bar�es e cavaleiros j� velhos, alguns cegos, que mandavam vir a espada para mir�-la, ou s� apalp�-la, quando queriam recordar as a��es de gl�ria, e guard�-la outra vez. N�o ignoro que tais her�is tinham castelo e cozinha, e o triste reformado que levou esta outra espada ao prego pode n�o ter cozinha nem teto. Perfeitamente. Mas ainda assim � imposs�vel que a alma dele n�o padecesse ao separar-se da espada.

Antes de a empenhar, devia ir ter a algu�m que lhe desse um prato de sopa. �Cidad�o, estou sem comer h� dois dias e tenho de pagar a conta da botica, que n�o quisera desfazer-me desta espada, que batalhou pela gl�ria e pela liberdade...� � imposs�vel que acabasse o discurso. O botic�rio perdoaria a conta, e duas ou tr�s m�os se lhe meteriam pelas algibeiras dentro, com fins honestos. E o triste reformado iria alegremente pendurar a espada de outro prego, o prego da mem�ria e da saudade.

Catei, catei, catei, sem dar por explica��o que bastasse. Mas eu j� disse que � faculdade minha entrar por explica��es mi�das. Vi casualmente uma estat�stica de S�o Paulo, os imigrantes do ano passado, e achei milhares de pessoas desembarcadas em Santos ou idas daqui pela Estrada de Ferro Central. A gente italiana era a mais numerosa. Vinha depois a espanhola, a inglesa, a francesa, a portuguesa, a alem�, a pr�pria turca, uns quarenta e cinco turcos. Enfim, um grego. Bateu-me o cora��o, e eu disse comigo; o grego � que levou a espada ao prego.

E aqui v�o as raz�es da suspeita ou descoberta. Antes de mais nada, sendo o grego n�o era nenhum brasileiro, ― ou nacional, como dizem as not�cias da pol�cia. J� me ficava essa dor de menos. Depois, o grego era um, e eu corria menor risco do que supondo algum das outras col�nias, que podiam vir acima de mim, em desfor�o do patr�cio. Em terceiro lugar, o grego � o mais pobre dos imigrantes. L� mesmo na terra � paup�rrimo. Em quarto lugar, talvez fosse tamb�m poeta, e podia ficar-lhe assim uma can��o pronta, com estribilho:

Eu c� sou grego,

Levei a minha espada ao prego.

Finalmente, n�o lhe custaria empenhar a espada, que talvez fosse turca. About refere de um general, Hadji-Petros, governador de L�mia, que se deixou levar dos encantos de uma mo�a f�cil de Atenas, e foi demitido do cargo. Logo requereu � rainha pedindo a reintegra��o: �Digo a Vossa Majestade pela minha honra de soldado que, se eu sou amante dessa mulher, n�o � por paix�o, � por interesse; ela � rica, eu sou pobre, e tenho filhos, tenho uma posi��o na sociedade, etc.� V�-se que empenhar a espada � costume grego e velho.

Agora que vou acabar a cr�nica, ocorre-me se a espada do leil�o n�o ser� acaso alguma espada de teatro, empenhada pelo contra-regra, a quem a empresa n�o tivesse pago os ordenados. O pobre-diabo recorreu a esse meio para almo�ar um dia. Se tal foi, fa�am de conta que n�o escrevi nada, e v�o almo�ar tamb�m, que � tempo.

Qual desses tipos de crônica o texto Amai o próximo tem mais proximidade?

A crônica amar o próximo possui proximidade a uma crônica ficcional, propondo a reflexão, a autoanálise.

Qual é o foco narrativo ou seja o ponto de vista?

O foco narrativo designa o ponto de vista daquele que narra a história. Dessa forma, ele pode ser em primeira pessoa, isto é, quando pertence a uma das personagens (principal ou coadjuvante), e também pode ser em terceira pessoa, ou seja, quando não pertence a uma das personagens, localizando-se fora da história.

O que é o tema de uma crônica?

A crônica é um gênero textual muito presente em jornais, revistas, portais de internet e blogs. Esse tipo de texto se destaca por abordar aspectos do cotidiano. Ou seja, questões comuns do nosso dia a dia.

Que tipo de linguagem é usada na crônica?

A linguagem da crônica costuma ser coloquial e simples. A leveza na linguagem é típica do gênero. Normalmente, as crônicas são publicadas em jornais, revistas e blogs.