Quais as principais políticas públicas indígenas existentes no Brasil?

1 INTRODUÇÃO1

O Brasil é reconhecido como o país de maior diversidade sociocultural na contemporaneidade. Nesse território convivem grupos étnicos ou povos de diferentes origens históricas e tradições culturais, junto a segmentos da sociedade nacional instaurada pelo processo colonial e neocolonial. Em relação aos chamados povos originários, são reconhecidas a existência de 256 etnias indígenas, falantes de 150 línguas específicas.2

Marcados pela heterogeneidade linguística e cultural, pela diversidade socioambiental, de modos e técnicas de produção e ocupação territorial, e por processos de territorialização e relacionamento próprios com a sociedade envolvente, os povos indígenas têm na presença do Estado, a estrutura maior de sua dominação, como também aquela que possibilita sua continuidade étnica, diante da inexorável expansão da sociedade brasileira (OLIVEIRA, 1998).

Este artigo expressa a visão de antropólogos atuantes no Maranhão, sobre a ação do Estado junto aos povos indígenas, nas áreas da educação, proteção e gestão territorial e projetos de desenvolvimento, e sobre as relações entre a política indigenista e os diferentes interesses representados a nível local, regional, nacional e internacional.

Os dilemas das relações entre Estado e povos indígenas no campo da Educação, seja na reflexão sobre projetos pedagógicos junto aos Tenetehar (Guajajara) da Terra Indígena Pindaré (MA), seja na análise crítica sobre a implementação de ações afirmativas que permitiram o acesso dos povos indígenas à Universidade pública, via a chamada “política de cotas” são abordados nesse artigo, por pesquisadores com experiência nessas temáticas.

As relações entre o Estado e os povos indígenas nas últimas décadas, são também analisadas, no tocante às políticas indigenistas voltadas à demarcação e gestão territorial e à mediação de conflitos decorrentes do avanço das fronteiras econômicas sobre os territórios indígenas, através de projetos de desenvolvimento regional vinculados à produção de energia, mineração, agronegócio e indústria e seus impactos sobre esses povos, bem como ações e projetos de mitigação, especialmente, através do etnodesenvolvimento.

Finalmente, é analisada a perspectiva do Governo Jair Bolsonaro em relação aos povos indígenas no Brasil. Tanto ao nível do discurso, como das ações concretas, o novo governo, tem prezado por marcar a ruptura com as últimas gestões presidenciais, estabelecendo um prognóstico renovado, ao passo que, por essa nêmesis, retoma antigas perspectivas de “emancipação”. Os “novos” discursos e medidas administrativas são articulados com o passado da política indigenista de modo a refletir sobre as perspectivas atuais de disciplinamento das práticas sociais e culturais dos povos indígenas.

2 OUTROS REGIMES DE CONHECIMENTO, NOVAS PAISAGENS: OS POVOS INDIGENAS NA UNIVERSIDADE3

Neste tópico iremos levantar desafios que a universidade passa a ter ao adentrar em seu mundo os estudantes indígenas com toda a sua multiplicidade ontológica desestabilizando o ensino superior.

Os povos indígenas possuem seus regimes de conhecimentos próprios (CARNEIRO DA CUNHA, 2009), suas teses, seus pressupostos, princípios e resultados baseados em experiências empíricas e guardadas na memória coletiva (LÉVI-STRAUSS, 2012). No entanto, ainda são compreendidos como não conhecimentos, não reconhecidos enquanto saberes em sua complexidade, sistematicidade e rigor4.

Após 13 anos de tramitação no Congresso Nacional, o projeto de Lei 180/2008 que cria uma política de ação afirmativa nas instituições federais de ensino foi aprovado e sancionado pela Presidenta da República em agosto de 2012 na forma da Lei 12.711/2012. A diferenciação étnico-cultural ocorre de forma única e exclusivamente ao entrar na universidade através das vagas.

Esta Lei estabelece a obrigatoriedade da reserva de vagas nas Universidades e Institutos Federais, combinando frequência à escola pública com renda e cor (etnia). Vincular os índios a um critério de densidade demográfica é achatar a diversidade cultural e linguística desses povos unificando em uma única sigla “PPI – pretos, pardos e indígenas” uma multiplicidade que a transborda.

Nessa relação entre o Estado e os povos, entre o Uno e o Múltiplo, há uma sobreposição do primeiro sobre o segundo, pois os povos passam a ser “índios brasileiros” unificados na generalidade por um poder transcendente para melhor serem (des)multiplicados, homogeneizados, abrasileirados, como afirma Viveiros de Castro (2017):

O Estado, ao contrário, dos povos, só consiste no singular da própria universalidade. O Estado é sempre único, total, um universo em si mesmo. Ainda que existam muitos Estados-nação, cada um é uma encarnação do Estado Universal, é uma hipóstase do Um. O povo tem a forma do Múltiplo. (VIVEIROS DE CASTRO, 2017, p.189).

Uma maneira de homogeneizar a multiplicidade singular dos povos é através das políticas de Estado, em particular, a que esse tópico se propõe a analisar ‒ as ações afirmativas. Esta política possui como objetivo principal reparar injustiças a grupos específicos, que se formaram à margem da sociedade majoritária, com o intuito de incluí-los, torná-los brasileiros, como no caso dos negros, pobres e de pessoas com deficiência.

Entretanto, em relação aos ameríndios a lei de cotas desconsidera as especificidades e o direito à uma educação básica diferenciada garantida constitucionalmente. Como afirma Gallois et al (2016, p. 44) em sua análise sobre a Lei de Cotas e o tratamento dado aos povos indígenas:

Desse modo, o tratamento direcionado aos povos indígenas é o mesmo que a outras ´minorias´, que apresentam acesso desigual ao ensino superior público brasileiro. Trata-se, portanto, nessas políticas, de defender a igualdade de acesso a um direito, que tem sido desigualmente alcançado. Mas não se trata de reconhecer as especificidades dos povos indígenas e todo o histórico de construção do debate a respeito da educação escolar diferenciada e das propostas de interculturalidade.

O acesso democrático à universidade deveria levar em consideração alguns aspectos específicos e diferenciados de suas realidades socioculturais, políticas, demográficas e, sobretudo, seus processos próprios de educação, amparados pela Constituição Federal. Estes povos desejam formação superior em seus termos, ou seja, para atender suas demandas, realidades, projetos e filosofias de vida (BANIWA, 2013).

Até o momento, existem dois caminhos de ingresso no ensino superior público para os povos indígenas. Um caminho é através da reserva de vagas via cotas e o outro através dos cursos de licenciaturas interculturais. O projeto de uma universidade indígena ainda não saiu do papel, mas surgiram propostas nos estados do Mato Grosso, Amazonas (Rio Negro) e Acre (Universidade da Floresta) (SANTOS, 2016).

No Estado do Maranhão, na Universidade Federal do Maranhão, existe a reserva de vagas desde 20075. Os indígenas adentram nos cursos mais diversos como odontologia, direito, engenharia, entre outros.

Um primeiro limite e desafio da universidade: a indianidade limitada à reserva de vagas. Não se tem um edital para os povos indígenas levando em consideração suas línguas indígenas, seus deslocamentos da aldeia para a cidade onde será realizada a prova, sua formação nas escolas indígenas e suas dificuldades.

Segundo limite e desafio: a universidade não teve um debate entre professores, setores da instituição e funcionários, nem estudantes de uma forma geral acerca dos povos indígenas que vivem no estado, suas línguas, culturas, tradições e costumes. Nem ocorreu um debate com os próprios povos indígenas localizados no estado sobre a abertura de reserva de vagas nos cursos da universidade federal.

Um terceiro limite é posto: como as comunidades indígenas e suas lideranças podem se informar sobre as vagas destinadas a eles, os cursos que a universidade federal oferece, quais setores da instituição eles podem se informar? Os indígenas que enfrentam todas as dificuldades anteriormente colocadas e ingressam na universidade vivenciam esses espaços de forma mais individualizada, solitária. Na universidade federal não houve um encontro ou mobilização dos jovens indígenas em torno da posição de estudante indígena apesar deles se conhecerem, se encontrarem e conversarem.

A universidade é um espaço fechado para a multiplicidade étnico-cultural, cosmológica e ontológica para a qual ela indiretamente se abriu ao implementar as ações afirmativas para os povos indígenas. Estes enquanto estudantes universitários passam a enfrentar os desafios da vida universitária como qualquer outro aluno.

Uma das principais controvérsias (LATOUR,1994) que está presente nessa paisagem é a relação entre ação afirmativa e meritocracia. O princípio que permeia a universidade é o princípio da meritocracia, isto é, “vence o melhor”. Tal princípio não considera as condições de formação de possibilidades desses candidatos, nem dos ditos “melhores”.

Dentro dessa relação ocorre uma discrepância entre os povos indígenas e a universidade, pois os códigos exigidos pela universidade não fazem parte dos códigos exigidos pelas sociedades indígenas. A universidade possui sua própria linguagem que fazem sentido apenas no seu próprio mundo: possui uma linguagem própria: “a linguagem acadêmica”; possui um estilo próprio de escrever: “estilo formal”; leituras específicas daquela disciplina: “os clássicos da área”.

E, por fim, um tempo próprio contabilizado pelo fim das disciplinas, pelas entregas de trabalhos, período de provas até o trabalho de conclusão de curso e, em especial, uma domesticação do corpo que passa horas assistindo aula de matérias diferentes, professores diferentes e conteúdos diferentes. Este é o mundo da universidade.

Todo estudante passa por dificuldades em entender e compreender esse mundo universitário em que ele deve se adaptar para poder sobreviver nele. Para os estudantes indígenas esse mundo é duplamente violento, pois não considera o conhecimento indígena enquanto válido e, ao mesmo tempo, que impõe “um único” conhecimento como verdadeiro, o do não indígena.

O grande desafio é como esta instituição superior formadora pode possibilitar a circulação e a validação de outros saberes, pautados em outras bases cosmológicas, filosóficas e epistemológicas (BANIWA, 2013). Nessa relação universidade e povos ameríndios, ocorre um embate em termos de direitos: os direitos indígenas no Brasil são coletivos, por isso o direito coletivo à terra, bem como, a indianidade que é coletiva (VIVEIROS DE CASTRO, 2005). A lei de cotas considera o direito de ingresso ao ensino superior para índios de forma individualizada. A individualização dos indígenas é uma violência aos seus princípios e modos próprios de existência. Do ponto de vista dos direitos coletivos dos povos indígenas, as vagas reservadas nas universidades são das comunidades indígenas (BANIWA, 2013).

Em relação aos índios, as ações afirmativas ganham um caráter ambíguo, pois por definição elas tendem à homogeneização. No entanto, os povos indígenas ao demandar e acessar tais políticas não estão se permitindo ‘achatar’ na generalidade do Uno. É uma relação de tensão constante entre o Estado e os índios. Eles se utilizam de “táticas de guerrilha simbólica, jurídica, mediática, contra o Aparelho de Captura do Estado-nação” (VIVEIROS DE CASTRO, 2017, p.192).

3 EXPERIÊNCIAS PEDAGÓGICAS NA ELABORAÇÃO DO PROJETO PEDAGÓGICO DA ESCOLA INDÍGENA JANUÁRIA, DO POVO TENTEHAR (GUAJAJARA) DO PINDARÉ6

No âmbito educacional, é garantido e assegurado às comunidades indígenas a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.7 A comunidade da Aldeia Januária e as demais da Terra Indígena Rio Pindaré (MA), tem demonstrado não só interesse, como tem adotado medidas e estratégias para a preservação da sua língua. É no contexto da escola, que o idioma indígena tem sido trabalhado pontualmente, sobretudo, no âmbito da escrita e da leitura. É nesse sentido que a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), se posiciona em seu artigo 28, item 3: “deverão ser adotadas disposições para se preservar as línguas indígenas dos povos interessados e promover desenvolvimento e prática das mesmas.”

O Projeto Pedagógico tem como um dos objetivos, ser a expressão das aspirações educacionais dos Tentehar (Guajajara) do Pindaré. Tais aspirações podem ser entendidas pela expectativa de uma educação que valorize, respeite, promova, ressignifique e resgate os preceitos culturais, materiais e imateriais. Ao mesmo tempo, que seja uma educação de qualidade, cujos níveis alcance os mesmos (e quiçá supere) da educação escolarizada dos não índios, colocando os indígenas em condições de igualdade com os outros segmentos da comunidade escolar regional e nacional.

A educação escolarizada destinada aos Povos Indígenas, terá os melhores efeitos, se contar com a participação efetiva de tais Povos. Participação efetiva significa a garantia de poder falar, opinar, sugerir, propor. Significa ser escutado com atenção. Significa também a possibilidade de experimentar, de colocar em execução seus projetos, seus experimentos, frutos de suas falas, de suas vozes, de suas sugestões e experiências.

A elaboração do Projeto Pedagógico, tentou caminhar nesse sentido: de ouvir os indígenas, suas falas, suas sugestões e proposições. Nesse sentido, as vozes vieram dos mais diferentes e variados integrantes da comunidade. Estudantes: adolescentes, jovens e adultos. Docentes, tanto indígenas, quantos não indígenas. Anciãs e Anciãos, conhecidos pelos Tentehar, em sua língua8, como Zaryi, termo utilizado para a mulher idosa e avó. E Tumui, termo referente ao homem idoso e avô, também foram ouvidos. Caciques e Lideranças falaram, assim também como pais e mães de estudantes.

Refletimos e discutimos acerca das variadas proposições que apresentaram, exatamente na proposição que consta no texto da LDB: “Os programas serão planejados com audiência das comunidades indígenas”9. O Projeto Pedagógico, portanto, pode ser visto como um projeto a ser executado, oriundo das vozes participativas dos indígenas.

O Projeto Pedagógico, adotou algumas ações no âmbito da prática pedagógica, no sentido da valorização e da expressão oral em Língua Tentehar. O Objetivo é o uso do idioma indígena, utilizando variadas expressões do cotidiano, como saudações, pedido de licença para entrar e sair da sala de aula, de compreensão ou não do assunto discutido durante a aula, etc. A utilização de tais expressões, conforme pactuado em um dos momentos de elaboração do Projeto Pedagógico, é estendê-la a todos os docentes e suas disciplinas, ou seja, além da disciplina Língua Indígena, cuja tarefa é dar os esclarecimentos, quanto a correta pronúncia e os incentivos para docentes e discentes pratiquem a fala da Língua Indígena. A ideia principal é o exercício do bilinguismo, como um dos princípios da educação escolar indígena.

O Projeto Pedagógico, tem como entendimento os pressupostos teóricos de Celestin Freinet, pedagogo francês. Freinet postula uma pedagogia de valorização do ser humano, seu trabalho manual, sua vivência em seu meio de habitação e a livre expressão. A escola que propõe Freinet, é em espaço que se aproxima da vida. Para isso, é necessário fazer observações objetivando conhecer o contexto da vida social, vida ambiental, vida econômica e vida cultural do contexto da escola.

Outro aspecto de destaque na pedagogia de Celestin Freinet é a afetividade. Segundo ele, é de suma importância a atividade física por um lado e a afetividade e o pensamento, por outro. Esse conjunto ajuda na formação integral do ser humano. De um modo geral, os Povos Indígenas do território brasileiro, sofreram e ainda sofrem discriminação, preconceitos e outras formas de diminuição de suas humanidades. No contexto da educação, ressaltamos ser de fundamental importância a ênfase na afetividade e esta deve permear todo o trabalho pedagógico direcionado aos discentes indígenas (FREINET, 2004).

Outro marco teórico que sustenta esse Projeto Pedagógico é o pensamento de Demerval Saviani. De acordo com a Pedagogia de Saviani, é papel do educador procurar conhecer a realidade dos estudantes. Esse conhecimento, entendido como um mapeamento, facilita na compreensão acerca do prévio conhecimento de alunos e alunas, facilitando assim na preparação dos assuntos a serem trabalhados. Segundo Saviani, a educação é vista como uma produção do saber, e o ensino, como integrante da ação no processo de educação, tem no professor seu principal representante (SAVIANI, 1991). Nesse sentido, o professor é o produtor do saber e o estudante o seu consumidor imediato.

A educação escolarizada vai ganhando espaço, segundo Mariano Enguita, refletindo sobre a educação e a mudança social: “[...] Quando as velhas gerações já não podem introduzir as mais novas no mundo que as espera, as instituições naturais, especificamente a família e a comunidade imediata, perdem em grande parte suas funções educativas”. (ENGUITA, 2004, p.17). Ainda segundo ele, vão se requerendo novas instituições e agentes próprios dessas instituições, ou seja, os docentes, que são os especialistas desses novos locais do saber: a escola e o magistério. Os espaços onde a educação não especializada era reproduzida vai perdendo espaço, os agentes reprodutores dessa educação, cujo conteúdo não seguia nenhuma sistemática, pois a base era a experiência, também vão perdendo espaço. É nesse contexto que surge a escola, e seus respectivos especialistas: os docentes.

A educação protagonizada hoje pelos indígenas, tem dado mostras de muita maturidade e inovação, numa simbiose de tradição e, digamos, modernidade. Eles têm sabido manter a interação, numa convivência entre os elementos essenciais inerentes ao seu modo de vida, e as demandas que a educação escolar tem suscitado.

A escola indígena da Aldeia Januária, por exemplo, tem sido promotora do ensinamento dos cantos sagrados da cultura Tentehar. Os especialistas, aqueles na cultura dos Tentehar, que conforme salienta Enguita, detém um “saber especializado, como os do Xamã”, tem sido protagonista na preparação de crianças e jovens no ensinamento dos cantos sagrados. Os cantos, embora restritos ao repertório dos Xamãs, cantadores, e mestres de cerimônias, tem sido popularizados entre outros integrantes da comunidade indígena, sobretudo os da comunidade escolar, o que eu chamo de “Popularização dos Cantos Tentehar”. Entretanto, isso não significa a perda da notabilização, do cerimonialismo ritual dos cantos, mas a popularização se converteu numa maior apreciação, num envolvimento maior de uma outra parcela da comunidade, resultando em importância dos cantos entre os jovens e as crianças.

Eles (os cantos), não deixaram de ser sagrados, muito menos o caráter de mistérios, e nem de serem restritos a pessoas especiais, escolhidas para entoá-los, porém, se reconfiguraram, se transmutaram em um aprendizado e ensinamento (feito por seus especialistas), proporcionando mais participação entre os jovens, adolescentes e crianças sobre alguns aspectos sensíveis da cultura Tentehar. Esse fato reverbera no entendimento e conscientização da importância da continuidade desse elemento cultural, agora ao alcance de mais pessoas.

Em nossas escolas, de forma diferente, o folclore não é ensinado, ele é apresentado como uma peça de espetáculo, algo para ser contemplado, de uma certa forma, pra ser consumido, como um produto cultural, semelhante aos postulados da Escola de Frankfurt10, acerca da indústria cultural.

O que observamos é que os professores e professoras da educação infantil tem desenvolvido a docência de modo que todo o conteúdo dessa modalidade de ensino, seja repassado 100% em língua indígena, cujo esforço é para a inversão da situação linguística da comunidade, cuja língua mais falada é a portuguesa. E é exatamente a partir daí, que os postulados da cultura são repassados.

Em tempos passados, os indígenas não tiveram participação efetiva acerca do que gostariam de aprender na escola a que foram submetidos. Hoje, tem demonstrado maturidade e sinalizam para uma compreensão em torno do destino que a escola dever ter para sua comunidade. O Projeto Pedagógico deu sinais evidentes da conscientização dos indígenas acerca da perspectiva de futuro que a educação lhes remete.

4 POLÍTICAS INDIGENISTAS, DESENVOLVIMENTO, CONFLITOS TERRITORIAIS E POVOS INDÍGENAS NO CERRADO MARANHENSE11

O centro-sul do Maranhão, território tradicional dos Apanjekrá e Ramkokamekrá-Canela, foi ocupado, a partir das décadas de 1960-70 por uma frente desenvolvimentista implementada na Amazônia, durante o Regime Militar. Implantando eixos rodoviários e ferroviários e projetos de exploração mineral, industrial e agropecuários, essa frente impôs mudanças econômicas e socioambientais na região, impactando povos indígenas e comunidades locais.

A implantação do Projeto Ferro-Carajás (PFC) e do Programa Grande Carajás (PGC), estimulou a ocupação de antigas áreas de criação extensiva no cerrado maranhense por produtores e grupos econômicos do sul, sudeste e centro-oeste do Brasil, através da compra de “benfeitorias” e da “grilagem” de terras. Diante dos “impactos” produzidos pelo PFC e PGC, o Banco Mundial (BIRD), principal financiador desse empreendimento, condicionou novos recursos ao Governo Brasileiro, ao apoio a povos indígenas localizados na região.

Surgiu então, o “Convênio CVRD-FUNAI: Apoio às Comunidades Indígenas” (CVRD-FUNAI, 1982), com investimento de mais de U$ 13 milhões, através do qual foram implantados subprojetos junto a grupos indígenas localizados em áreas de “impacto direto” – ao longo do Corredor Carajás – e de “impacto indireto”, situação em que foram enquadrados os grupos no centro-sul maranhense (OLIVEIRA, 2018)12.

Seguindo o modelo definido pela FUNAI desde a década de 1970, os “projetos de desenvolvimento comunitário” tinham por objetivo a produção de itens alimentares e excedentes comercializáveis, introduzindo junto aos grupos indígenas, valores e práticas da economia de mercado. Os Apaniekrá e Ramkokamekrá-Canela e outros grupos na região, receberam investimentos em infraestrutura (reforma e construção de postos indígenas, escolas e enfermarias, aquisição de veículos), assistência à educação e saúde, além de projetos econômicos – roças comunitárias, criação de gado e outros.

A implementação do PFC e PGC intensificou o processo de mudanças econômicas e socioambientais na região deflagrada, na década anterior, pelo agronegócio. Nesse processo, núcleos sertanejos e fazendas de criação extensiva deram lugar a "projetos" agropecuários (soja, arroz, criação e outros). Em meados da década de 1990, esses empreendimentos alcançaram o entorno das Terras Indígenas Kanela e Porquinhos, demarcadas aos Ramkokamekra e Apaniekrá-Canela, gerando impactos ambientais e socioculturais sobre esses e outros grupos indígenas na região (OLIVEIRA, 2011).

Com a expansão do agronegócio e o crescimento demográfico dos Apaniekrá e Ramkokamekrá-Canela, a FUNAI iniciou, na década seguinte, a revisão demarcatória das Terras Indígenas Kanela e Porquinhos. Implementou, ainda, projetos de etnodesenvolvimento voltados à criação de animais, à produção de frutas e outros, visando a sustentabilidade alimentar desses grupos.

A partir de 2010, o Governo Federal procedeu a uma “reforma administrativa” na FUNAI extinguindo os postos indígenas, o que resultou na intensificação de invasões em terras indígenas, por segmentos locais e do agronegócio. A ausência de agentes do Estado nestas áreas favoreceu a extração clandestina de madeiras, a construção de fornos e grandes desmatamentos para a produção de carvão vegetal, além de outras violações.

Na Terra Indígena Porquinhos, ocorreram desmatamentos nas nascentes do Rio Corda – principal fonte de água potável aos Apaniekrá, e a construção de carvoarias, transformando a vegetação do cerrado em carvão às usinas de ferro-gusa da região. Impactos semelhantes ocorreram na Terra Indígena Kanela, com a extração de madeira e caça clandestinas e a implantação de lavouras de soja. O trânsito de caminhões madeireiros tornou-se comum nas estradas da região, escoando toras ilegalmente extraídas nessas terras indígenas.

Nesse quadro, a revisão demarcatória das Terras Indígenas Kanela e Porquinhos acirrou o potencial de conflitos interétnicos na região. A implantação de marcos dos novos limites dessas T.I’s por agentes da FUNAI, gerou a reação de fazendeiros e moradores do sertão cordino, com ações concretas de interrupção do processo demarcatório. Na possibilidade dessas terras serem desapropriadas para a ampliação das Terras Indígenas Kanela e Porquinhos, pequenos agricultores e criadores da região passaram a vender suas “benfeitorias” a compradores de terras e a migrar para cidades como Barra do Corda e Grajaú.

Uma mobilização da população sertaneja do entorno das Terras Indígenas Kanela e Porquinhos, foi promovida por líderes políticos locais (prefeitos e vereadores), a fim de reverter o processo de revisão demarcatória dessas terras indígenas, o qual levaria à ampliação física das Terras Indígenas Kanela e Porquinhos e o consequente aumento dos recursos naturais nelas contidos, gerando melhoria na sustentabilidade destes grupos.

Esse processo levou à intensificação dos conflitos entre os Canela e sertanejos no entorno destas T.I’s, remetendo ao histórico das relações interétnicas na região. Os Apaniekrá relataram haver recebido ameaças, através de telefonemas anônimos, onde foram lembrados esses conflitos históricos e alertados para novos “massacres” de índios, caso se concretizasse a revisão demarcatória e a consequente ampliação da Terra Indígena Porquinhos.

Conflitos entre agências governamentais vinculadas à questão indígena e agrária, também marcaram esse processo. Enquanto a FUNAI implementava a revisão demarcatória das Terras Indígenas Kanela e Porquinhos, outras agências federais e estaduais (INCRA e ITERMA) promoviam a titulação de terras em áreas que seriam incluídas na ampliação dessas terras indígenas, a fim de garantir a permanência de comunidades sertanejas e de pretensas propriedades particulares estabelecidas no mesmo território13.

Projetos de assentamento rural também foram implementados por essas agências, em áreas previstas para a ampliação das Terras Indígenas Kanela e Porquinhos, favorecendo a atuação de lideranças políticas locais e regionais, as quais moveram ações judiciais para reverter a revisão demarcatória dessas terras indígenas. Instituições políticas favoráveis aos interesses anti-indígenas foram mobilizadas, por criadores locais e agentes do agronegócio14.

A perda gradativa do controle sobre as Terras Indígenas Kanela e Porquinhos e da autonomia econômica pelos Apaniekrá e Ramkokamekra-Canela, através de atividades autossustentáveis seria “compensada” pelo crescimento do “mercado de projetos” (ALBERT, 2000) e pela ampliação junto a esses povos, de serviços vinculados às políticas de compensação social, mantidas pelo Governo Federal.

À medida em que as atividades econômicas tradicionais realizadas pelos Apaniekrá e Ramkokamekra-Canela - caça de animais silvestres, coleta de frutos e raízes, agricultura familiar e outras, tornaram-se restritas ou inviabilizadas pela exploração e esgotamento de seus territórios e pelo crescimento demográfico desses grupos, intensificaram-se os recursos introduzidos pelo Estado e agentes privados, através de políticas previdenciárias e assistenciais, projetos de etnodesenvolvimento e outros.

Uma análise sobre os ‘projetos de etnodesenvolvimento’ implementados a partir da década de 1980, aponta para situações recorrentes. Esses projetos, cuja nomenclatura e propósitos se alteram conforme o período, os interesses e agências financiadoras, de maneira geral, fracassaram. Isso significa que, em nenhuma das situações observadas, os grupos indígenas envolvidos adquiriram, com esses projetos, sustentabilidade alimentar.

O “Projeto Mentwayê”, implementado junto aos Apaniekrá nos anos de 2008 e 2009, com recursos da Companhia Nacional de Abastecimento (CONABA), vinculada ao Ministério das Minas e Energia, exemplifica essa situação. Esse projeto foi justificado como um estímulo à sustentabilidade alimentar do grupo, a partir da pequena produção agrícola, da criação de aves para produção de ovos, da implementação de pomares e coleta de frutas para aproveitamento na forma de polpas.

Um dos objetivos seria garantir a “merenda escolar” aos alunos da Escola Indígena “Moisés Canela”. A produção e diversificação alimentar dos Apaniekrá e o treinamento de jovens desta etnia no domínio das técnicas e tecnologias utilizadas estavam na pauta desse projeto. Entretanto, verificou-se que dois anos após sua implementação, este projeto fora inviabilizado. Nesse momento, a infraestrutura implantada – casa de farinha, usina de arroz, um pequeno trator, despolpadeira de frutas e outros – já não se encontravam em operação.

Para o representante da Associação Apanjekrá, a continuidade do projeto foi inviabilizada pela falta de treinamento aos jovens Apaniekrá na utilização desses equipamentos. A interrupção no repasse dos recursos destinados à produção de polpas de frutas, arroz, farinha e outros produtos, teria, ainda, resultado no sucateamento dessa estrutura produtiva e na situação de abandono a que o projeto foi relegado.

Assim, se reproduziu junto aos Apaniekrá, como em outros casos de implementação de ‘projetos de etnodesenvolvimento’, situações de interrupção do fluxo de recursos por parte das agências financiadoras, tornando estes projetos quase sempre inacabados. Nesse contexto, a busca pela sustentabilidade por esses projetos, acaba por tornar-se um discurso legitimador à sua implementação, mas que na prática, raramente é verificada.

Ao impor os valores de mercado junto aos Apaniekrá e Ramkokamekra-Canela e a outros grupos indígenas, os projetos de etnodesenvolvimento, tem resultado na desarticulação da economia tradicional destes grupos e na apropriação dos seus recursos naturais e de sua força de trabalho, pela economia capitalista (ESCOBAR, 1996).

5 DO “DESERTO VERDE” AO “ZOOLÓGICO”: perspectivas renovadas de “emancipação”15

Nos primeiros dias do “novo” governo de Jair Bolsonaro uma série de atos administrativos confirmou o receio de grande parte dos povos indígenas e de seus aliados quanto aos rumos da política indigenista no Brasil16. Desconsiderando todos os apelos e manifestações públicas de indigenistas, lideranças e organizações indígenas e de movimento sociais17 para manter a FUNAI no Ministério da Justiça (MJ), a Medida Provisória (MP) nº 870, de 1º de janeiro de 201918, e seu detalhamento nos Decretos nº 9.667 e 9.673, de 2 de janeiro de 2019, estabeleceu a mudança de vinculação administrativa da FUNAI e o desmembramento de suas ações. Após mais de 30 anos sob atribuição do MJ, o órgão indigenista oficial era mais uma vez desmembrado e apensado em dois “novos” ministérios. O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), pasta chefiada pela pastora “terrivelmente cristã” Damares Alves.19 E o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), chefiada pela representante dos interesses do agronegócio no Mato Grosso do Sul, Tereza Cristina (DEM-MS).

Durante o discurso de posse da ministra Tereza Cristina em nenhum momento os indígenas são citados, não foi dito uma única palavra sobre a questão indígena e a política indigenista, mesmo tendo o Decreto nº 9.667 estabelecido nos Artigos 1°, 11° e 14°, anexo 1, a competência por “identificar, delimitar, demarcar terras tradicionalmente ocupadas por indígenas”, assim como de se manifestar sobre obras que “afete direta ou indiretamente as terras indígenas e quilombolas” (BRASIL, 2019). A ministra ressaltou a importância da titulação de terras para agricultores familiares, mas se eximiu de falar sobre demarcação de terras indígenas. Mencionou a importância de o Ministério englobar mais uma vez áreas afins como pesca e agricultura familiar, antes separadas, contudo, não comentou, talvez por desconhecimento, o retorno do órgão indigenista oficial à pasta da Agricultura, onde o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) fora subordinado por quase toda a sua existência.

O SPI (1910-1967), órgão que antecedeu a FUNAI, foi gestado concomitante e subordinado ao Ministério de Agricultura, Indústria e Comércio (1910-1930) dentro de um mesmo contexto político que buscava realizar “a dupla tarefa de integrar território e população” (SOUZA LIMA, 1995, p. 102). Após 20 anos esse ministério se tornou Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio (1930-1934) – momento de declínio na hierarquia burocrática do órgão indigenista, funcionando não mais como um Serviço independente, mas como de uma seção de um departamento“inteiramente estranho ao problema indígena”, como descreve o próprio Diretor interino do SPI, José Bezerra Cavalcanti, à época (cf. SOUZA LIMA, 1995, p. 257-265).20 A seguir, o SPI seguiu subordinado à Inspetoria especial de Fronteiras, vinculado ao Ministério da Guerra (1934-36)21 e logo depois integrou-se ao Estado maior do Exército (1936-39). Sob a justificativa de erradicação do nomadismo indígena, de disciplinar os espaços geográficos e ter mais bem definido as atribuições de ordem fundiária, o SPI retorna para o Ministério da Agricultura, onde permanecerá até 1967. Portanto, dos 57 anos de existência do SPI, 48 anos foram vinculados à pasta da agricultura, tendo como horizonte “expandir o controle governamental sobre o território e as populações nele dispersas” (SOUZA LIMA, 1995, p. 113).

O Decreto nº 1736, de 3/11/1939, que recoloca o SPI nas atribuições do M.A., sustenta

[...] que o problema da proteção aos índios se acha intimamente ligado à questão de colonização, pois se trata, no ponto de vista material, de orientar e interessar os indígenas no cultivo do solo, para que se tornem úteis ao país e possam colaborar com as populações civilizadas que se dedicam às atividades agrícolas (SOUZA LIMA, 1995, p. 286, grifo meu).22

A ideia de ser “útil ao país”, colaborando com as “populações civilizadas”, é um antigo ideal que sempre se fez presente na política indigenista. Diferentes planos e práticas foram instituídos para fazer do nativo um vassalo da coroa portuguesa, um civilizado, ou integrante da comunidade política nacional, um articulador e gestor etnoambiental e territorial e, como agora, um empreendedor de commodities (FOLHES, 2018). O mito modernizador de transformar os indígenas em civilizados pelo trabalho ganha renovado fôlego com o “novo” governo. A partir de contextos próprios de nossa época, essa ideologia pode ser observada em uma postagem do presidente no seu tuite (local de excelência política do presidente), no dia 02 de janeiro, dizia ele:

Mais de 15% do território nacional é demarcado como terra indígena e quilombolas. Menos de um milhão de pessoas vivem nestes lugares isolados do Brasil de verdade, exploradas e manipuladas por ONGs. Vamos juntos integrar estes cidadãos e valorizar a todos os brasileiros (grifo meu).

No país da suposta “democracia racial”, a democracia nacional-bolsonarista opera com a ideia de que todos somos seres humanos iguais e brasileiros, e, para tanto não há a necessidade de existir territórios indígenas separados do conjunto da população.23 Declarações, ainda em campanha, de que em seu governo nenhum centímetro de terra indígena seria demarcado e de que os índios seriam “integrados a sociedade nacional” soavam como uma “velha” e boa novidade a setores ruralistas. Já eleito, Bolsonaro manteve as declarações de que existe “muita terra pra pouco índio” e reclassificou o conceito de terra indígena, entendendo-a como um “zoológico”.24

É emblemático que o governo federal defina que a política indigenista retornará à perspectiva de “integração”. Nos anos de 1970, a geopolítica para a Amazônia seguiu a noção criada pelo general Golbery do Couto e Silva (um dos protagonistas do golpe de 1964 e fundador do SNI) que a observara como um grande “deserto verde” e, segundo a qual, dizia ele, “nos cumpre incorporar realmente à nação”. Os lemas "integrar para não entregar", “uma terra sem homens para homens sem terra" imbricavam-se nas noções de “deserto verde” e “vazio demográfico”, emplacados pelos governos militares. Essa narrativa construíra a percepção do espaço amazônico, na perspectiva de uma geografia econômica, com o objetivo de promover uma política de ocupação desconsiderando os povos indígenas que ali habitavam. O resultado dessa política foi extremamente perverso para os povos indígenas amazônicos e de outras regiões onde se pensava ser o “Brasil marginal”, tal como definira Golbery do Couto e Silva.

Observamos hoje, uma releitura do envolvimento estatal em questões ambientais do espaço, “orientada e dirigida para a exploração do potencial de recursos naturais do país”25 para o que restou do “deserto verde”, compreendido pela noção bolsonarista de “zoológico” de índios. Desde quando eleito, o presidente tem insistido na ideia de que as “reservas indígenas” precisam deixar de ser “zoológicos” indígenas. E para transformá-los em humanos, o governo federal tem se empenhado em regulamentar o garimpo e o agronegócio em terras indígenas. Com isso, todos os esforços criados desde a Eco-92 e de todos os acordos estabelecidos nos demais encontros da ONU foram relegados ao esquecimento, vide o corte do Fundo Amazônia. Vários projetos que nos últimos 20 anos foram sendo aperfeiçoados dentro de uma perspectiva de “desenvolvimento sustentável” pelos povos indígenas tornaram-se irrelevantes. Por detrás da controversa de humanização dos indígenas, no sentido de livrá-los de suas jaulas e de seu passado primitivo, está a perspectiva, ou a retrospectiva, de trazer os índios a “comunhão nacional”. Isso significa “emancipar” os índios de políticas públicas diferenciadas.

Com esse intuito, Bolsonaro afirma que as “políticas indigenistas e ambientais não trabalham em prol do Brasil” (coletiva de imprensa no dia 01 de dezembro). Seriam elas políticas diferenciadoras em relação ao imaginado conjunto da população, limitado e soberano, que subjaz a ideia de nação. O Messias, sua equipe e seus ideólogos, estão em busca de recriar uma identidade nacional, apagando as minorias sociais e étnicas. É com esse discurso que se prega a assimilação dos indígenas e se justifica a não demarcação de terras indígenas e a abertura das existentes à atividade produtiva do agronegócio – nas palavras da ministra Tereza Cristina, agronegócio 4.0 – e da mineração.

6 CONCLUSÃO

Os autores desse trabalho analisaram, sob diferentes perspectivas, as relações entre o Estado, os povos indígenas e segmentos e organizações da sociedade nacional. Em relação ao campo educacional, foram questionados os critérios de entrada e permanência dos povos ameríndios na Universidade. Ao contrário da perspectiva meritocrática e individualizante que marca a legislação e os critérios de acesso ao ensino universitário no Brasil, se propõe que os jovens indígenas que pleiteiam esse acesso sejam vistos como agentes políticos de suas respectivas comunidades.

O direito de acesso à Universidade deve ser considerado em termos coletivos, pois a indianidade tem como característica a relação com a terra, com a ancestralidade, com a memória coletiva de um povo nativo. Enquanto a Universidade tenta invisibilizar os indígenas que entram em seus espaços, individualizando-os, desterritorializando-os, tornando “o Múltiplo em Uno”, nos termos de Clastres (2013a), ou ainda, reduzindo-os a números, quantificados num coletivo, negando a sua multiplicidade e eliminando a diferença em favor de uma abstração unitária, os povos ameríndios, que buscam a universidade nos seus próprios termos e para seus interesses, continuam num processo constante de diferenciação.

A partir da implementação de um projeto pedagógico junto aos Tenetehar (Guajajara) na Terra Indígena Pindaré, constatou-se que esses projetos se desenvolvem num jogo entre continuidade e descontinuidade, o que requer uma reflexão por parte dos agentes da educação escolar indígena, bem como a avaliação e, se necessário, a redefinição desses projetos, de acordo com as especificidades étnicas e as demandas de cada povo ou grupo indígena.

O projeto pedagógico constitui um processo humano, sujeito a transformação. Se propõe também a ser contínuo, mas pode haver descontinuidade, o que servirá para nova retomada, novo recomeço. Assim, o projeto pedagógico constitui o Norte para as escolas, pois sinaliza o caminho, e indica os valores de pertencimento e fortalecimento do ser Tentehar (Guajajara).

Foram, ainda, analisadas as políticas indigenistas, no campo da gestão territorial, bem como a ação das frentes desenvolvimentistas e sua relação com as forças políticas presentes no Estado e na sociedade nacional. A análise dos conflitos entre os Apaniekrá e Ramkokamekra-Canela, segmentos locais e agentes do desenvolvimento no centro-sul do Maranhão demonstrou as dificuldades desses povos em relação à capacidade e ao interesse do Estado e às agências tutelares e do desenvolvimento, em responder positivamente às suas demandas no campo assistencial e de proteção e gestão territorial.

Essa desarticulação das políticas e ações do Estado em relação aos povos indígenas reflete uma questão central na contemporaneidade. As redefinições nas políticas indigenistas podem ser pensadas como parte de um movimento colonizador de longo alcance, que não toma os povos indígenas como agentes de sua história, mas como objetos ou adendos da história da formação da sociedade brasileira.

Por fim, foi analisada a configuração da política indigenista do Governo Jair Bolsonaro. Até meados de 2019, a FUNAI ainda não havia sido pulverizada nos distintos ministérios, apesar dos manifestos descontentes de parlamentares ligados ao capital financeiro extrativista (minerário) e agroindustrial, e ao lobby fundamentalista evangélico. Por duas vezes o governo, através da edição da Medida Provisória (MP) nº 870, de 1º de janeiro de 2019 e sua reedição pela MP nº 886, de 18 de junho de 2019, tentou a mudança de vinculação administrativa da FUNAI e o desmembramento de suas ações para os dois “novos” ministérios.

Diversas ações coletivas tem sido realizadas com o objetivo de defender a inconstitucionalidade da MP 870: como a campanha “FUNAI inteira e não pela metade”, criada por servidores do órgão por meio da entidade Indigenistas Associados (INA), a constituição da Frente Parlamentar de Defesa dos Povos Indígenas, apoiada pela Nota Técnica da 6ª Câmara da PGR, e diversas mobilizações dos movimentos indígenas em âmbito nacional e regional, com destaque para o Acampamento Terra Livre e a Marcha das Mulheres Indígenas.

Os chefes que estão hoje à frente da política indigenista personificam os interesses e as forças políticas que levaram a candidatura de Jair Bolsonaro à vitória no pleito presidencial. O arranjo entre a bancada evangélica, a bancada do agronegócio e as forças armadas se constitui nos novos desafios à política indigenista participativa, democrática, e garantidora de direitos assegurados na Constituição. Um ingrediente novo, pelo menos enquanto representação política nacional e não enquanto realidade nas aldeias de muitos povos indígenas, é a presença dos fundamentalistas evangélicos na discussão da política indigenista. Ainda não está claro o projeto que será colocado em prática, mas a depender do resultado do campo de disputas em jogo, certo está que o cenário é de muita luta para os povos indígenas e seus aliados.

REFERÊNCIAS

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Notas

[1] Artigo resultante dos trabalhos apresentados na Mesa Temática Coordenada homônima durante a IX Jornada Internacional de Políticas Públicas, entre 20 e 23 de agosto de 2019.

2 https://pib.socioambiental.org/pt/Quem_s%C3%A3o. Acesso em 24/01/2020.

3 Por Ana Caroline Amorim Oliveira (PPGCULT/UFMA) . A antropologia, tendo como objetivo principal compreender como outros povos pensam, tem uma vasta produção etnográfica sobre como é constituído o conhecimento, seus princípios, seus critérios, taxonomias, etc. (PEIRANO, 2000)

4 A antropologia, tendo como objetivo principal compreender como outros povos pensam, tem uma vasta produção etnográfica sobre como é constituído o conhecimento, seus princípios, seus critérios, taxonomias, etc. (PEIRANO, 2000)

5 Na Universidade Estadual do Maranhão-UEMA teve início em 2016 a licenciatura intercultural para educação básica indígena tendo como público-alvo os professores indígenas das escolas nas aldeias.

6 Por Rogério Tavares Pinto (PPGSOC-UFMA)

8 Os Tentehar (Guajajara) falam a Língua Tentehar, que de acordo com linguistas está classificada como pertencente ao Tronco Tupi Guarani.

10 A Escola de Frankfurt, reuniu intelectuais alemães que discutiam variados temas, sob os auspícios da teoria marxista. Um dos tais, versava sobre cultura, onde apontaram diversas críticas direcionadas ao sistema capitalista, responsabilizando-o por mercantilizar a cultura, tornando-a um mero produto a ser explorado pelo lucro.

11 Por Adalberto Luiz Rizzo de Oliveira (DESOC/UFMA). Pesquisa realizada com apoio da FAPEMA.

12 O “Corredor Carajás” constituiu uma faixa de 100 quilômetros ao longo da Ferrovia Carajás, ligando a Serra dos Carajás ao Porto de Itaqui, em São Luís, onde foram implementados indústrias de ferro-gusa e outras vinculadas ao PFC e ao PGC (CEDI, 1986).

13 O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), então vinculado ao Ministério do Desenvolvimento Social do Governo Federal, e o Instituto de Terras do Maranhão (ITERMA), vinculado ao Governo do Estado do Maranhão, são agências atuantes no centro-sul maranhense.

14 O Supremo Tribunal Federal suspendeu, em 2015, a Portaria da Presidência da FUNAI que determinava a ampliação da Terra Indígena Porquinhos, de cerca de 80 mil hectares para cerca de 301 mil hectares.

15 Por Rodrigo Teophilo Folhes. 16 Tomo a expressão política indigenista tal qual Souza Lima para designar “as medidas práticas formuladas por distintos poderes estatizados, direta ou indiretamente incidentes sobre os povos indígenas” (1995, p.15). 17 Ver os sítios eletrônicos da APIB, CIMI, INA, ABA. Para declarações de repudio ao discurso de Bolsonaro em Roraima sobre Raposa Serra do Sol, ver https://cimi.org.br/2016/11/39056/

16 Tomo a expressão política indigenista tal qual Souza Lima para designar “as medidas práticas formuladas por distintos poderes estatizados, direta ou indiretamente incidentes sobre os povos indígenas” (1995, p.15).

17 Ver os sítios eletrônicos da APIB, CIMI, INA, ABA. Para declarações de repudio ao discurso de Bolsonaro em Roraima sobre Raposa Serra do Sol, ver https://cimi.org.br/2016/11/39056/

18 A MP 870/2019, por meio do Art. 21, Inciso I, a um só tempo, desvincula a FUNAI do MJ e retira dela a atribuição pela identificação e demarcação de terras indígenas e de se manifestar acerca de todo e qualquer licenciamento de obras que afetem direta ou indiretamente as terras e os povos indígenas. Trata-se de duas atribuições das mais sensíveis e complexas do órgão indigenista.

19 Cofundadora da ATINI – voz pela vida - entidade alvo de inúmeras polemicas relacionadas ao infanticídio indígena, de incitar ódio racial contra os povos indígenas, entre outras acusações. A assessora parlamentar Damares Alves, participou ativamente do Projeto de Lei nº 1.057/2007, intitulado “Lei Muwaji”, que trata da questão do infanticídio indígena, foi aprovado na Câmara dos Deputados e se encontra, atualmente, em tramitação no Senado Federal.

20 Guardadas as devidas proporções, trata-se de uma situação muito próxima à diminuição institucional que se quer da FUNAI no governo atual. 21 O período de transição do SPI para o Ministério da Guerra (1934-36) e seu lugar no organograma do exército podem ser considerados partes da conjuntura que projetaria os militares no centro decisório dos poderes estatizados (SOUZA LIMA, 1995, p. 269).

21 O período de transição do SPI para o Ministério da Guerra (1934-36) e seu lugar no organograma do exército podem ser considerados partes da conjuntura que projetaria os militares no centro decisório dos poderes estatizados (SOUZA LIMA, 1995, p. 269).

22 Ver também: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1930-1939/decreto-lei-1736-3-novembro-1939-411705-publicacaooriginal-1-pe.html.

23 Claro, que no projeto de poder do governo Bolsonaro os latifundiários não estão classificados como seres humanos, mas extra-humanos, divindades que possuem direitos diferenciados e específicos. A esses é permitido grandes porções de terra.

24 É evidente que chamar as terras indígenas no Brasil de zoológico é uma declaração extremamente forte e desqualificada, contudo seu caráter ofensivo e preconceituoso não é nenhuma novidade para o conjunto do imaginário que construímos acerca da presença indígena no Brasil, bem como das ações voltadas para os povos indígenas aqui existentes. Nesse sentido, a fala do presidente pode ser entendida como uma reprodução das ideias dominantes que são apropriadas de diferentes maneiras em diferentes épocas.

25 Documento elaborado, em 1969, pela Secretaria-Geral do Conselho de Segurança Nacional (SG/CSN) para o SNI com o conjunto de diretrizes que deveriam nortear as ações da ditadura (cf. VALENTE, 2017, p. 26). O Conceito Estratégico Nacional era uma prerrogativa do CSN para a formulação da Política de Segurança Nacional, estabelecida no art. 8 do Decreto-Lei nº 348, de 4 de janeiro de 1968, publicado pelo então presidente Costa e Silva.

Quais são as políticas públicas indígenas?

Duas vertentes políticas foram adotadas pelo Estado na aplicabilidade da legislação educacional aos indígenas no processo educacional brasileiro: a primeira, de dominação por meio da integração e homogeneização cultural, e a segunda, de pluralismo cultural, garantida a partir da Constituição de 1988.

Quais as políticas públicas focadas nos índios no Brasil?

POLÍTICAS PÚBLICAS FOCADA NOS ÍNDIOS NO BRASIL No País a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) é quem exerce coordenação e é quem executora a política indigenista do Governo Brasileiro. Sua missão institucional é proteger e promover os direitos dos povos indígenas no Brasil.

Quais são as principais políticas públicas indígenas existentes no Brasil e como elas são implementadas?

São reconhecidos como campos das políticas indigenistas: a legislação; o processo de reconhecimento e regulamentação jurídica das Terras Indígenas; a organização do atendimento à saúde dos índios; a formulação de políticas educacionais específicas e diferenciadas; a proteção e defesa de grupos ameaçados por frentes de ...

Que políticas existem hoje no Brasil com o objetivo de proteger os indígenas?

Atualmente, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, os direitos indígenas são garantidos, prevendo o respeito aos povos indígenas e à sua organização social, cultural, língua, crenças e tradições.