Senhores, damas, officiaes, soldados, actores, padres, coveiros, marinheiros, mensageiros, creados, etc. Show ACTO PRIMEIROSCENA IElsenor, a explanada do castelloFRANCISCO de sentinella, BERNARDO vem encontrar-se com elle BERNARDOQuem vem l�? viva quem? FRANCISCOResponde tu primeiro, faze alto, deixa-te reconhecer. BERNARDOViva o rei. FRANCISCOBernardo? BERNARDOEu mesmo. FRANCISCO�s pontual. BERNARDOAcaba de dar meia noite; vae descansar, Francisco. FRANCISCOAgrade�o-te de me teres vindo render; faz um frio glacial, e come�ava a sentir-me incommodado. [8] BERNARDON�o houve novidade emquanto estiveste de sentinella? FRANCISCONem sequer ouvi correr um rato. BERNARDOEnt�o boas noites; se vires Horacio e Marcello, que tambem est�o de guarda, dize-lhes que se aviem. Chegam HORACIO e MARCELLO FRANCISCOCreio ouvil-os, fa�am alto, quem vem l�? HORACIOAmigos da patria. MARCELLOSubditos do rei de Dinamarca. FRANCISCOSantas noites. MARCELLOViva, meu valente soldado, quem te rendeu? FRANCISCOBernardo est� agora de sentinella. Boa noite. (Retira-se.) MARCELLOOl�, Bernardo? BERNARDON�o � Horacio que eu vejo? HORACIOElle mesmo em corpo e alma. BERNARDOBemvindo sejas, Horacio, e tu tambem, amigo Marcello. MARCELLODize-me, j� viste a appari��o esta noite? [9] BERNARDOAinda nada vi. MARCELLOHoracio diz que � effeito da minha imagina��o, e nega-se a acreditar na vis�o temerosa, de que j� por duas vezes fomos testemunhas; pedi-lhe portanto que viesse comnosco, para que se o phantasma de novo apparecer, elle possa testemunhar a verdade do que afian��mos e dirigir-lhe a palavra. HORACIOHistorias, qual apparecer! BERNARDOSentemo-nos um instante, e vamos repetir-te a narra��o do que temos presenceado duas noites consecutivas e a que prestas t�o pouco credito. HORACIOCom todo o gosto, e deixemos fallar Bernardo. BERNARDOA noite passada, � hora em que esta estrella que v�em ao poente do polo descreve o seu giro e vem illuminar esta parte do firmamento, em que ora brilha, no momento em que na torre soava uma hora, Marcello e eu... MARCELLOSilencio, eil-o que apparece. Apparece a sombra do REI BERNARDOAssimilha-se ao defunto rei. MARCELLOTu que estudaste, Horacio, falla-lhe. BERNARDON�o � verdade que se parece com o defunto rei? Observa bem, Horacio. HORACIOA similhan�a � espantosa; a surpreza e o terror paralysaram-me. [10] BERNARDOParece esperar que lhe fallem. MARCELLOFalla-lhe, Horacio. HORACIOQuem quer que �s, que a esta hora da noite usurpas a f�rma magestosa e guerreira, debaixo da qual se mostrava o meu defunto soberano, em nome do c�u, falla, ordeno-to eu! MARCELLOParece descontente. BERNARDOEil-o que se afasta, caminhando lenta e gravemente. HORACIODetem-te, falla, falla, intimo-te a que falles. (A sombra afasta-se.) MARCELLOFoi-se sem responder. BERNARDOEnt�o, Horacio, que � essa tremura e pallidez; n�o haver� alguma cousa mais do que um effeito de imagina��o, que dizes agora? HORACIOPelo Deus do c�u, n�o o acreditava sem o testemunho positivo e irrecusavel dos meus proprios olhos. MARCELLON�o se parece com o rei? HORACIOComo tu te pareces comtigo mesmo, era a armadura que usava quando combateu o ambicioso norueguez; tinha aquelle ar amea�ador, no dia em que no seu proprio carro, atacou, por causa de uma acalorada porfia, o guerreiro polaco, e o prostrou no g�lo para nunca mais se levantar. � assombroso! MARCELLOAssim � que elle j� duas vezes passou pelo nosso posto de observa��o com o seu caminhar grave e marcial. [11] HORACIOCom que designio, ignoro-o, mas em minha opini�o � um presagio para o estado de alguma grande catastrophe. MARCELLOPois bem, sentemo-nos, e aquelle d'entre v�s todos que o souber, diga porque fatigam, com guardas vigilantes e rigorosas, os subditos d'este reino; para que esta fundi��o diaria de canh�es de bronze, estas compras de armamentos e muni��es no estrangeiro; para que se enchem de operarios os nossos arsenaes maritimos; porque este augmento de trabalho, que nem os dias santos s�o respeitados; para que esta actividade de dia e de noite? O que ser�? Qual de v�s m'o poder� dizer? HORACIOPosso eu, ao menos, referir os boatos. Nosso ultimo rei, cuja imagem ainda ha pouco vimos, foi, segundo dizem, convocado a campo fechado por Fortimbraz de Noruega, que um cioso orgulho tinha levado a esse acto. N'esse combate o nosso valente Hamlet, e era justa a sua reputa��o, matou a Fortimbraz. Ora em virtude de uma declara��o authentica, sanccionada pelas leis da cavallaria, se Fortimbraz succumbisse, todos os seus estados pertenceriam ao vencedor. Por sua parte o nosso rei tinha empenhado da mesma f�rma a sua palavra; e no caso de elle ser vencido, uma igual por��o de territorio pertenceria a Fortimbraz. Assim, em virtude d'este pacto reciproco, a success�o do vencido pertencia de direito a Hamlet. Comtudo o joven Fortimbraz, ardente e sem experiencia, reuniu nas fronteiras de Noruega um exercito de aventureiros, promptos e resolvidos pela soldada aos mais audaciosos commettimentos. O seu projecto, segundo o nosso governo est� informado, � nada menos do que retomar � viva for�a e de m�o armada esse territorio que seu pae perdeu com a vida: eis-aqui, na minha fraca opini�o, a ras�o principal dos preparativos que fazemos, das guardas a que somos obrigados, e d'esta actividade tumultuosa que se nota em todo o paiz. BERNARDOTambem eu julgo ser esse o motivo; isto explica-nos porque vemos passar diante dos postos de guarda a sombra do rei, [12] com a sua armadura e com o seu porte magestoso, d'esse rei que foi e � o causador d'esta guerra. HORACIO� um argueiro nos olhos da intelligencia para lhes perturbar a vista. Nos tempos mais gloriosos e florescentes de Roma, pouco antes da morte do grande Julio, abriram-se os tumulos, e os mortos, nas suas mortalhas, divagaram pela cidade, soltando gritos amea�adores; viram-se estrellas deixar ap�s si rastos luminosos, choveu sangue, desastrosos signaes appareceram no c�u, e o astro humido, sob cuja influencia est� o imperio de Neptuno, eclipsou-se; todos julgavam ser o fim do mundo. Estes mesmos signaes precursores de acontecimentos terriveis, correios de maus destinos, preludios de grandes catastrophes, o c�u e a terra os fizeram apparecer nos nossos climas, aos olhos impressionaveis dos nossos compatriotas. A sombra reapparece HORACIO continuandoMas silencio, olhem, eil-o que volta. Vou interpellal-o, embora elle me fulmine. P�ra. Illus�o. Se tens o dom da palavra, se p�des articular sons, falla; se ha alguma boa ac��o cujo cumprimento te possa alliviar e contribuir para a minha salva��o, responde-me: se �s sabedor de alguma desgra�a que ameace a tua patria, e que um aviso opportuno possa desviar... Oh falla! ou se em tua vida confiaste �s entranhas da terra riquezas mal adquiridas; e a maior parte das vezes � por isso que v�s, os espiritos, divagaes depois da morte, dil-o. (O gallo canta.) Detem-te e falla. Veda-lhe o caminho, Marcello. MARCELLODevo servir-me da minha partazana? HORACIOServe-te se n�o parar. BERNARDOPara c�? HORACIOPor acol�. (A sombra afasta-se.) [13] MARCELLOPartiu!—que presen�a magestosa!—s�o desacertadas estas demonstra��es violentas! � invulneravel como o ar, e os nossos golpes n�o s�o sen�o o ridiculo esfor�o de uma colera impotente. BERNARDOIa fallar quando cantou o gallo. HORACIOEstremeceu como um culpado que uma intima��o subita aterra. Ouvi dizer que o gallo, que � o clarim da aurora, acorda o Deus da manh� com a sua voz sonora e penetrante, e que a esse signal todos os espiritos errantes no mar, no fogo, na terra ou no ar se apressam em voltar aos seus respectivos dominios. A prova est� no que acab�mos de presencear. MARCELLOO gallo cantou, e elle desappareceu. Algumas pessoas dizem que na vespera do dia em que se celebra a natividade do Salvador do mundo, o arauto da manh� canta toda a noite sem interrup��o; pretendem ent�o que nenhum espirito ousa sa�r da sua mans�o, que as noites s�o salubres, que nenhuma estrella exerce influencia maligna, nenhum maleficio surte effeito, que nenhuma feiticeira exercita os seus feiti�os, tanto esse dia � bento, e est� sob o imperio de uma gra�a celeste. HORACIOAssim o ouvi dizer, e acredito-o. Mas eis que no oriente, acol� no fundo, por detr�s dos outeiros, surge a manh�, vestida de purpura por entre o orvalho. Demos fim � nossa vigilia, e vamos dar parte ao joven Hamlet do que vimos esta noite; porque, por vida minha, creio que este espirito, mudo para todos, lhe fallar�. Approvam esta confidencia, que nos imp�e o nosso dever e a nossa affei��o? MARCELLOVamos sem deten�a; sei onde o acharemos, e onde lhe poderemos fallar sem constrangimento. (Retiram-se.) [14] SCENA IIUma sala apparatosa no castelloEntram o REI e a sua comitiva, a RAINHA, HAMLET, POLONIO, LAERTE, VOLTIMANDO, CORNELIO e CORTEZ�OS O REIA morte de Hamlet, nosso amado irm�o, ainda � t�o recente, que pareceria justo, que nossos cora��es estivessem immersos na tristeza e saudade, e que uma nuvem de dor cobrisse o solo d'este reino; comtudo, a ras�o combateu os impulsos da natureza, tanto que enfre�mos a nossa dor, e embora ainda esteja bem viva a recorda��o, pens�mos tambem em n�s. Portanto, com um prazer incompleto, confundindo os sorrisos com as lagrimas, a alegria com o luto; unindo o dobrar dos sinos aos canticos nupciaes, tom�mos por esposa aquella que outr'ora era nossa irm�, e fizemol-a compartir comnosco a cor�a d'este bellicoso paiz. N'esta conjunctura ouvimos primeiro os vossos illustrados conselhos, livremente enunciados. Somos-lhes gratos. Quanto ao joven Fortimbraz, fazendo seguramente uma fraca id�a do nosso poder, ou imaginando que a morte de nosso chorado irm�o lan�asse o estado na dissolu��o e na anarchia, embalando-se em chimerica esperan�a, ousou mandar-nos mensagem ap�s mensagem, intimando-nos a restituir-lhe o territorio perdido por seu pae, e legalmente adquirido por nosso valoroso irm�o; isto por o que lhe respeita. Fallemos agora de n�s e do motivo d'esta reuni�o. O motivo � este. Pelas presentes escrevemos ao rei de Noruega, tio do joven Fortimbraz, que jazendo enfermo n'um leito, mal conhece os projectos de seu sobrinho, pedindo-lhe que ponha o seu veto � empreza, porque � de entre os seus subditos que se fazem as levas de soldados e os alistamentos. Encarreg�mo-vos, Cornelio e Voltimando, de apresentar as nossas sauda��es ao idoso monarcha norueguez, e � nossa vontade, que nas negocia��es vos conformeis adstrictamente �s instruc��es que junto com a nossa carta recebereis. Adeus; a celeridade do resultado prove a dedica��o dos negociadores. CORNELIO e VOLTIMANDOSenhor, a nossa dedica��o e obediencia n�o tem limites. [15] O REI continuandoNem o duvid�mos. Recebam um cordeal adeus. (Cornelio e Voltimando s�em.) Agora, tu, Laerte, que pretendes? Disseram-nos que nos querias fazer uma supplica? Qual �? Tu n�o podes fazer ao monarcha dinamarquez um pedido que n�o seja rasoavel, e n�o recorres a elle em v�o. Que poderias desejar, Laerte, a que n�o estejamos promptos a annuir, mesmo antes de conhecer a pretens�o. A cabe�a n�o � mais sympathica ao cora��o, a m�o n�o � mais prompta em servir a b�ca do que o throno de Dinamarca � dedicado a teu pae. Que desejas pois, Laerte? LAERTEMeu augusto soberano, a vossa licen�a e o vosso consentimento, para voltar a Fran�a. Gostosamente vim a Dinamarca para assistir � vossa coroa��o, mas, cumprido esse dever, confesso-o, os meus desejos e a minha vontade me chamam a Fran�a, e supplico a vossa magestade que me conceda partir. O REIJ� alcan�aste o consentimento de teu pae? o que diz Polonio? A RAINHAArrancou-me o meu consentimento, tanto me importunou; acabei por ceder, mau grado meu, aos seus desejos. Supplico-lhe, pois, senhor, que lhe conceda a licen�a pedida. O REIPodes partir quando te aprouver, Laerte; deixo-te a liberdade de dispores do teu tempo e da tua pessoa. Ent�o, Hamlet, meu primo, meu filho? HAMLET � parteAindaque mui proximos parentes n�o somos primos. O REIPorque essas nuvens que pesam sobre a tua fronte? HAMLETEngana-se, senhor, como p�de haver nuvens, quando brilha o sol. A RAINHAQuerido Hamlet, despe essas roupas de d�, e lan�a um olhar [16] amigavel para o rei de Dinamarca. Descrava os teus olhos do ch�o; pareces procurar as pegadas do teu glorioso pae. Sabes bem que � um destino invariavel; tudo quanto vive ha de morrer, e este mundo � uma ponte para a eternidade. HAMLETSim, senhora, � um destino commum. A RAINHASe � assim, o que te parece a ti t�o extraordinario? HAMLETSenhora, n�o me parece, �-o na verdade. O parecer para mim nada vale. Minha m�e, n�o s�o nem esta capa negra, nem estas vestes obrigadas nos lutos solemnes, nem os suspiros que mal p�de soltar um peito opprimido, nem torrentes de lagrimas, nem o semblante macerado, nem todas as manifesta��es de uma dor pungente, que podem exprimir e revelar o que eu sinto. Todos estes signaes podem parecer dor; � um papel facil de representar, mas n�o s�o verdadeira dor, s�o como o fato para o comediante; mas eu (pondo a m�o sobre o cora��o) sinto aqui, o que n�o ha palavras que o expressem. O REINada ha na verdade, Hamlet, mais commovente e louvavel do que os deveres funebres prestados � memoria de um pae. Mas lembra-te que teu pae j� perd�ra o seu, e que esse tambem j� perd�ra o pae. E para o sobrevivente um dever de piedade filial, dar durante um certo praso provas de uma dor respeitosa; mas perseverar n'uma afflic��o obstinada, � mostrar uma teima impia; � uma dor cobarde, � a prova de uma vontade rebelde aos decretos da providencia, de um cora��o sem energia, de uma alma incapaz de resigna��o, de uma intelligencia pobre e limitada. Porque nos deve impressionar a tal ponto um acontecimento, que sabemos ser uma necessidade, e que se repete t�o frequente, quanto as occorrencias mais vulgares; � uma triste indocilidade. Que!! � uma offensa a Deus, uma offensa aos finados, uma absurda offensa � natureza, que n�o tem em seus fastos mais vulgar acontecimento, que a morte de um pae; a qual, desde o primeiro cadaver at� [17] ao homem que hoje se finou, nunca deixou de nos clamar: Assim estava escripto. Supplico-te, portanto, abandona essa afflic��o impotente, e v� em n�s um segundo pae; porque queremos que todos saibam que tu �s o mais proximo ao nosso throno, e que a affei��o mais terna que um pae tem a seu filho, tenho-a eu a ti. Quanto � tua inten��o de voltar a Wittemberg, para continuares os teus estudos, nada ha mais opposto aos nossos desejos; conjur�mos-te que fiques aqui, s� o prazer de nossos olhos, o primeiro da nossa c�rte, nosso sobrinho, nosso filho. A RAINHAHamlet, far-te-ha tua m�e uma supplica baldada? pe�o-te fica comnosco, n�o v�s para Wittemberg. HAMLETFarei o que pod�r, para em tudo vos provar obediencia. O REIEis emfim uma resposta affectuosa e comedida. Ser�s na Dinamarca um segundo Eu. (� rainha) Venha, senhora, este acto de deferencia de Hamlet, cumprido t�o naturalmente e sem esfor�o, enche de jubilo o meu cora��o. Para o celebrar o rei de Dinamarca n�o libar� uma ta�a, sem que a voz do canh�o o transmitta �s nuvens. A cada ta�a quero que o c�u o annuncie, repercutindo o estrondo dos raios da terra. Vamos agora. (Todos s�em excepto Hamlet.) HAMLET s�Ah! porque n�o poder� esta carne t�o solida fundir-se e tornar-se orvalho. Ah que se o Eterno n�o tivesse fulminado como reprobo o suicida... Senhor Deus, meu Deus, como s�o insipidos, fastidiosos e v�os os gosos do mundo. Que pena! Elle � um jardim inculto que s� tem plantas grosseiras e maleficas. Pois ser� possivel que ousassem tanto? Morto ha dois mezes! que digo? Nem dois mezes ainda. Um rei t�o bom, que tanta similhan�a tinha com este como Hyperion com um Satyro, todo ternura para minha m�e, a ponto de n�o querer que uma brisa mais fresca a�outasse o seu rosto! C�us e terra! e deverei eu recordar-me? Parecia que a vida de um era a vida do outro! Comtudo, passado apenas um mez—n�o posso nem quero pensal-o—, fragilidade � synonymo de mulher. S� um mez, sem [18] ainda ter gasto o cal�ado que usava acompanhando o feretro do marido, banhada em lagrimas como uma Niobe, ella mesma, essa mulher, oh c�us! um animal privado do soccorro da ras�o teria prolongado o seu luto; essa mulher desposou meu tio, o irm�o de meu pae, mas que tem tanto de meu pae como eu de Hercules. No fim de um mez, antes que seccassem as suas hypocritas lagrimas, casou. Oh criminosa precipita��o! Voar com tanto afan a um leito incestuoso, � horrivel! E ser� possivel que o c�u o tolere? Despeda�a-te cora��o, j� que for�oso � calar. Chegam HORACIO, BERNARDO e MARCELLO HORACIODeus guarde a Vossa Alteza. HAMLETQuanto folgo de te ver de boa saude. �s tu, Horacio, n�o me engano. HORACIOEu mesmo, o vosso servo fiel at� � morte. HAMLETQueres dizer amigo; de hoje em diante dar-te-hei este nome. Mas que fazes tu longe de Wittemberg, Horacio? Marcello. MARCELLOMeu principe! HAMLETAlegro-me de te ver, bons dias. (A Horacio.) Mas, francamente, que motivo te obrigou a voltar de Wittemberg? HORACIOTudo dissipei. HAMLETNunca consentiria que um teu inimigo assim fallasse a teu respeito; e n�o me obrigar�s a for�ar a minha ras�o a crer no que o meu cora��o se nega a acreditar. Accusares-te d'esta maneira a ti mesmo... tu n�o �s dissipador. Que motivo t�o forte te p�de pois trazer a Elsenor, tu m'o contar�s mais tarde, entre dois copos de vinho generoso, antes da tua partida. [19] HORACIOSenhor, vim prestar a ultima homenagem a seu augusto pae. HAMLETPe�o-te, meu camarada de estudos, que n�o zombes; creio antes que vieste assistir ao casamento de minha m�e. HORACIOVerdade � que n�o houve quasi intervallo. HAMLETPor alvitre economico, Horacio. O banquete funerario ainda subministrou as iguarias e as viandas para o festim nupcial. Antes quizera encontrar no c�u o meu mais encarni�ado inimigo, do que ter visto despontar um tal dia, Horacio. Meu pobre pae, parece-me que o estou vendo! HORACIOOnde, senhor? HAMLETNa minha imagina��o, Horacio. HORACIORecordo-me de o ter visto, era um grande rei. HAMLETEra um homem que, bem considerado, n�o tinha rival na terra. HORACIOJulgo tel-o visto a noite passada. HAMLETViste, quem? HORACIOAlteza, vi o rei seu pae. HAMLETO rei meu pae? HORACIOSenhor, acalme esta agita��o e espanto, e preste atten��o, emquanto eu, fundado no testemunho ocular d'estes senhores, vou relatar esse prodigio. [20] HAMLETFalla, pelo amor de Deus, sou todo ouvidos. HORACIODurante duas noites consecutivas, no meio das trevas e do silencio, emquanto estes senhores estavam de sentinella, eis o que lhes aconteceu. Uma figura parecida com seu pae, armada da cabe�a aos p�s, lhes appareceu caminhando lenta e magestosamente. Tres vezes, atemorisados e attonitos, o viram passar � distancia do bast�o de commando que empunhava, emquanto elles, fulminados pelo terror, ficaram mudos, nem ousaram fallar. Confiaram-me, debaixo de segredo, tremulos ainda, o que tinham presenceado. Na noite seguinte entrei com elles de sentinella, e confirmando a verdade das suas palavras, � hora por elles indicada, debaixo da f�rma por elles descripta, voltou a appari��o. Reconheci seu pae; as minhas duas m�os n�o s�o mais parecidas. HAMLETMas em que sitio appareceu? MARCELLOSenhor, na explanada, onde estavamos de sentinella. HAMLETFallaram-lhe. HORACIOFall�mos, mas n�o respondeu. Comtudo uma vez pareceu-me que movia a cabe�a, como quem quer fallar; mas n'esse momento cantou o gallo matinal; ao som do canto afastou-se o espectro apressadamente, e n�s perdemol-o de vista. HAMLETNa verdade � incomprehensivel. HORACIOSenhor, juro-lhe pela minha vida que � verdade, e julg�mos nosso dever informar Vossa Alteza. HAMLETN�o posso dissimular a minha inquieta��o! Est�o de guarda esta noite? [21] TODOSSim, Alteza. HAMLETArmado, disseram? TODOSArmado, meu senhor. HAMLETDa cabe�a aos p�s? TODOSTal qual. HAMLETViram-lhe as fei��es? TODOSVimos, tinha a viseira levantada. HAMLETTinha physionomia carregada? TODOSA express�o era antes triste que colerica. HAMLETPallido ou c�rado? TODOSMuito pallido. HAMLETO seu olhar fixou-se em algum de v�s? TODOSConstantemente. HAMLETQueria l� ter estado. HORACIOO seu espanto teria sido igual ao nosso. HAMLET� mais que provavel. Demorou-se muito? HORACIOO tempo necessario para contar at� um cento, sem parar. [22] MARCELLO e BERNARDOMuito mais, muito mais. HORACION�o a vez que o vi. HAMLETA barba era grisalha, n�o � verdade? HORACIOEra, como em sua vida, de um negro prateado. HAMLETVelarei tambem esta noite, talvez que volte. HORACIOSem duvida alguma. HAMLETSe se me apresentar debaixo da figura de meu pae, fallar-lhe-hei, embora o inferno me ordenasse o silencio, pelas suas horrendas fauces. Pe�o-vos, portanto, que se at� hoje tendes guardado um segredo tal a respeito da appari��o, de hoje em diante sejaes ainda mais cautelosos em conservar o sigillo; e aconte�a o que acontecer esta noite, reflex�o e silencio: serei grato a esta prova de affei��o. Assim, pois, adeus, encontrarme-hei comvosco na explanada entre as onze horas e a meia noite. TODOSOs nossos respeitos, principe. HAMLETSempre amigos, adeus. (Horacio, Marcello e Bernardo s�em.) (Continuando.) A sombra de meu pae, porque apparece armada? Haver� algum perigo. Suspeito alguma trai��o. Espero impacientemente a noite. At� ent�o, socega cora��o. N�o ha crimes t�o occultos, que o homem n�o possa descobrir. (S�e.) [23] SCENA IIIUm quarto em casa de PolonioEntram LAERTE e OPHELIA LAERTEJ� embarcaram os meus creados e roupas. Adeus, minha irm�; quando ventos propicios encherem as v�las ao navio que me leva, espero que com a minha ausencia n�o esfriar� a tua amisade, e que me dar�s novas tuas. OPHELIADuv�das porventura, irm�o? LAERTEQuanto ao que respeita a Hamlet e � sua frivola amisade, considera-a como uma moda ephemera, um capricho dos sentidos, uma violeta da primavera, precoce mas passageira, suave mas fenecendo ao desabrochar, e cujo perfume dura um minuto apenas. OPHELIAS� um minuto? LAERTES�, acredita-me, porque o teu desenvolvimento n�o � s� nos musculos e no corpo; � medida que o templo toma propor��es mais vastas, tambem se expande o espirito e a alma. � possivel que te ame agora, que nenhuma macula, nenhuma deslealdade offusque a pureza dos seus sentimentos; mas acautela-te, porque na posi��o que occupa �-lhe vedada a propria vontade, � escravo do seu nascimento. N�o p�de, como os outros homens, escolher s� por affei��o, porque � sua escolha est�o ligados o bem-estar e a salva��o do estado; por isso deve subordinal-a ao voto e � approva��o da na��o de que � chefe. Se, pois, te fallar de amor, assisadamente usar�s, n�o acreditando sen�o o que a sua posi��o lhe permitte offerecer, vistoque a sua vontade deve ser a vontade da na��o. Pensa bem, que mancha para a tua reputa��o, se prestasses ouvidos por demais credulos, ao encanto das suas fallas, se envenenasses tua alma, se abrisses o cofre da castidade �s suas audaciosas instancias. [24] Acautela-te, Ophelia, acautela-te, querida irm�, luta com a tua affei��o para vencer as settas e os perigos dos desejos. A virgem prudente j� � ass�s prodiga se patenteia a sua belleza aos raios lunares; a propria virtude n�o escapa aos golpes da calumnia; o verme roe as filhas predilectas da primavera, antes das flores desabrocharem; e � na aurora da vida, regada pelo puro e limpido orvalho, que ha mais perigo para a flor da castidade. S�, pois, circumspecta, a melhor protec��o � o receio do perigo; a juventude � para si mesma um perigo, se n�o trava luta com outros maiores. OPHELIAEm meu cora��o encerrarei, como um preservativo, a tua salutar li��o. Mas, querido irm�o, n�o sejas tu, como certos pastores sem virtude, que indicam �s suas ovelhas o caminho escarpado e espinhoso que conduz ao c�u, emquanto elles, libertinos, fogosos e sem pudor, trilham o caminho das flores, da licen�a, e s�o a antithese das suas palavras. LAERTEDe mim n�o te arreceies: j� devia ter partido; eis meu pae. Entra POLONIO Uma dupla ben��o � um beneficio duplo; aben��o a occasi�o de me despedir segunda vez de ti. POLONIOAinda aqui, Laerte? para bordo, para bordo. N�o te envergonhas? Teu navio s� te espera para velejar. Recebe a minha ben��o, e grava na tua memoria os seguintes preceitos. Guarda para ti o pensamento, e n�o d�s execu��o apressadamente aos teus projectos; medita-os maduramente. S� lhano sem te esqueceres de quem �s. Quando tomares um amigo cuja affei��o tenhas experimentado, liga-o a ti por vinculos de a�o; mas n�o d�s confian�a irreflectidamente. Faze por evitar quest�es; mas se o n�o pod�res conseguir, conduze-te de maneira que fiques sempre superior ao teu adversario. Ouve a todos, mas s� avaro de palavras; escuta o conselho que te derem, forma depois o teu juizo. No teu trajar s� t�o sumptuoso, quanto t'o permittam os teus meios, mas nunca affectado; rico, mas n�o offuscante; o porte d� a conhecer o homem, e n'esse ponto, as pessoas de [25] qualidade em Fran�a revelam um gosto primoroso, e o mais fino tacto. N�o emprestes, nem pe�as emprestado: quem empresta perde o dinheiro e o amigo, e o pedir emprestado � o primeiro passo para a ruina. Mas sobre tudo s� verdadeiro para a tua consciencia, e assim como a noite se segue ao dia, seguir-se-ha tambem, que o teu cora��o jamais abrigar� falsidade. Adeus, que a minha ben��o selle em teu cora��o os meus conselhos. LAERTEDespedindo-me, humildemente vos beijo a m�o, meu pae. POLONION�o tens tempo que perder, teus creados esperam-te. LAERTEAdeus, Ophelia, recorda-te das minhas palavras. OPHELIAFechei-as no meu cora��o; dou-te a chave, guarda-a. LAERTEAdeus. (S�e.) POLONIOQue te disse elle, Ophelia? OPHELIACom licen�a de meu pae, fallou-me a respeito de Hamlet. POLONIOFolgo que o fizesse. Disseram-me que ultimamente Hamlet tem tido comtigo frequentes entrevistas, e que tu n�o te esquivas �s suas frequentes visitas. Se assim �, e creio na informa��o que me deram, devo dizer-te que n�o encaras a tua posi��o com a lucidez que convem a minha filha, e que a tua honra exige. Dize-me a verdade, o que ha? OPHELIAProtestos de amor. POLONIODe amor! como inexperiente fallas, conservas as illus�es todas. D�s tu porventura credito aos seus protestos, como tu lhe chamas? [26] OPHELIANem sei, senhor, o que devo pensar. POLONIOPois bem, eu t'o digo. � necessario que sejas bem crean�a para crer uma realidade os seus protestos, de cuja sinceridade dev�ras duvido. N�o te deprecies assim; seria uma loucura. OPHELIAO seu respeito foi inseparavel das suas phrases de amor. POLONIOE tu acreditas, pobre louca. OPHELIAFirmou as suas palavras com os juramentos mais sagrados. POLONIOAssim arma o ca�ador os la�os � avesinha innocente e incauta. Sei que, quando o sangue ferve, a nossa b�ca nunca se nega a protestos e juramentos. Minha filha, estes lampejos que d�o mais luz que calor, e cujo brilho � ephemero, nunca os tomes por verdadeira chamma de amor. A datar de hoje, n�o malbarates tanto a tua presen�a virginal; difficulta mais as entrevistas, que n�o baste pedir para as obter. Quanto ao sr. Hamlet e � confian�a que n'elle podes ter, considera que � joven, e que p�de tomar liberdades de que depois tenhas que te arrepender. N'uma palavra, Ophelia, descr� dos seus juramentos, porque n�o s�o verdadeiros; interpretes de desejos profanos, revestem-se da linguagem da mais santa sinceridade. Uma vez por todas, e franqueza, filha, prohibo-te toda e qualquer conversa com o sr. Hamlet. Pensa bem. Ordeno-t'o. OPHELIAObedecerei, meu pae. (S�em.) [27] SCENA IVA explanada do castello de ElsenorChegam HAMLET, HORACIO e MARCELLO HAMLETQue frio horrivel, g�lo. HORACIOO ar est� dev�ras glacial. HAMLETQue horas s�o? HORACION�o deve tardar a meia noite. MARCELLOEst� dando meia noite. HORACIOJ�! n�o ouvi, em todo o caso approxim�mo-nos da hora a que costuma apparecer o phantasma. (Ouvem-se ao longe tangeres de instrumentos, e o troar de artilheria.) Que rumor � este? HAMLETO rei consagra esta noite ao prazer, est� bebendo, e a cada copo de vinho do Rheno, os timbales e clarins proclamam o brinde que levantou. HORACIOIsso � costume? HAMLETSim �, mas apesar de eu ter nascido n'este paiz, e estar acostumado a estes usos, ha emquanto a mim mais gloria em infringil-os, do que em observal-os. Estas orgias abjectas trazem-nos, do oriente ao occidente, o desprezo das outras na��es, que nos qualificam de ebrios, e juntam aos nossos nomes os epithetos mais grosseiros. Este defeito emba�a as nossas mais brilhantes qualidades, e tira-lhes todo o valor. O mesmo acontece aos individuos. Se ao nascerem, receberam da natureza alguma macula original, de que n�o s�o culpados, poisque o nascimento � independente da nossa vontade; se os [28] afflige algum vicio de temperamento contra o qual todos os esfor�os da ras�o s�o impotentes, algum costume que desagrade nos seus modos destruindo-lhes o encanto; acontece a esses homens, tendo o estigma de um defeito unico, libr� da natureza, s�llo da sua estrella, acontece, digo, que todas as suas virtudes, fossem ellas puras como a gra�a celeste, infinitas quanto comporta � humanidade, ficariam manchadas na opini�o, publica por esse defeito unico. Basta uma mollecula de liga para depreciar esse metal. Apparece a sombra HORACIOSenhor, eil-o. HAMLETAnjos do c�u, poderes misericordiosos, protegei-nos. Genio bemfazejo, ou demonio infernal, que exhalas os perfumes celestes, ou as emana��es do averno; que sejam sinistras ou caridosas as tuas inten��es, appareces-me debaixo de uma f�rma t�o grata que te quero fallar. Interrogo-te, Hamlet, senhor, meu pae, rei de Dinamarca, oh! responde-me, n�o me deixes, na ignorancia, morrer de emo��o; mas dize-me, porque teus bentos ossos encerrados no ataude romperam os sellos; porque te levantaste do tumulo em que te haviamos depositado; porque se ergueu a lapide sepulchral para te lan�ar a este mundo? Como, cadaver inanimado, vestindo a tua armadura de a�o, vagueias tu � duvidosa claridade da lua, imprimindo � noite um caracter de horror, lan�ando-nos, fracos ludibrios da natureza, nas ancias do terror; e fazendo surgir em nossas almas pensamentos que excedem o nosso alcance? Responde. Porque? Com que fim? Que exiges? HORACIOFaz-vos signal de o seguir, como se quizesse fallar-vos a s�s. MARCELLOVeja, principe, o gesto cheio de cortezia e dignidade, com que o convida a seguil-o a logar mais remoto; mas n�o v�. HORACIOSenhor, pelo amor de Deus. [29] HAMLETQuer-me fallar, pois bem, seguil-o-hei. HORACION�o fa�a tal, senhor. HAMLETPorque? que tenho eu a receiar, importa-me tanto a vida, como se fosse um alfinete; quanto � minha alma, nada p�de contra ella, porque � immortal, como elle �. Repete o signal, vou seguil-o. HORACIOE se elle vos attrahisse ao Oceano ou ao pincaro escarpado de algum rochedo saliente e sobranceiro ao mar; e se tomasse alguma f�rma horrivel, cuja vista vos varresse a ras�o tornando-vos demente? Pensae bem, senhor, n�o receiaes alguma vertigem ao contemplar de alto a immensidade debaixo de vossos p�s? HAMLETContinua a fazer-me signal. Caminha, sigo-te. MARCELLON�o ha de ir, senhor. HAMLETNinguem me detenha. HORACIOSeja rasoavel, principe, n�o v�. HAMLETOu�o a voz do meu destino; brada alto, e cada um dos meus musculos adquiriu o vigor dos do le�o de Nemea. (A sombra faz-lhe signal de a seguir.) Chama-me outra vez, deixem-me, senhores (escapa-se-lhes dos bra�os.) Por Deus, que n�o viver�, quem ousar opp�r-se-me. Afastem-se, j� disse. (� sombra.) Caminha, sigo-te. (A sombra e Hamlet afastam-se.) HORACIOApoderou-se d'elle o delirio. MARCELLOSigamol-o; desobedecer-lhe � for�oso n'estas circumstancias. [30] HORACION�o o abandonemos. Qual ser� o resultado! MARCELLOAlgum vicio ha na constitui��o da Dinamarca. HORACIOO c�u prover� o que for melhor. MARCELLOSigamos o principe. (S�em todos.) SCENA VUma parte mais afastada da explanadaChegam HAMLET e a SOMBRA HAMLETOnde pretendes conduzir-me; mais adiante n�o irei. A SOMBRAEncara-me, Hamlet. HAMLETQue queres? A SOMBRAApproxima-se a hora em que me devo recolher �s chammas sulphureas e ardentes. HAMLETPobre alma! A SOMBRAN�o me lastimes, mas presta atten��o ao segredo que te vou revelar. HAMLETFalla, � meu dever escutar-te. A SOMBRADever tambem � vingar-me depois de me teres ouvido. HAMLETQue ou�o! [31] A SOMBRASou a alma de teu pae, condemnada a penar durante um tempo certo, a jejuar n'um carcere de chammas, at� que as culpas que mancharam a minha vida estejam completamente expiadas e purificadas pelo fogo. Se n�o me fosse defezo revelar os segredos do meu carcere, far-te-�a uma narrativa de que cada palavra encheria de terror a tua alma, gelaria o teu sangue, os olhos quaes estrellas brilhantes sa�riam das suas orbitas, os anneis do teu cabello desfazer-se-�am em completa desordem, e cada cabello ficaria hirto como as cerdas do javali; mas estes mysterios eternos n�o s�o para ouvidos profanos de carne e de sangue. Escuta, escuta, oh escuta-me! se alguma vez amaste teu carinhoso pae... HAMLETOh c�us! A SOMBRAVinga a sua morte, causada por um assassinio, cob�rde, infame e nefando. HAMLETUm assassinio? A SOMBRAInfame! todos os assassinios o s�o, mas nunca houve nenhum mais infame, inaudito e horrendo do que este. HAMLETApressa-te em desvelar-m'o, para que prompto, como a medita��o, ou como o pensamento de amor, possa saciar a minha vingan�a. A SOMBRAGrato sou ao teu empenho, Hamlet; era preciso que fosses mais apathico do que a planta grossa e crassa que immovel e inerte apodrece nas margens do Lethes, se n�o sentisses n'este momento commo��o alguma. Agora, ouve-me. Espalhou-se que emquanto dormia no meu jardim, uma serpente me mord�ra; � assim que uma fallaz narrativa enganou a Dinamarca sobre a causa da minha morte. Sabe tu pois a verdadeira, nobre mancebo: a serpente cujo dardo matou teu pae, cinge hoje a cor�a d'este reino. HAMLETOh meus propheticos presentimentos, meu tio! [32] A SOMBRASim, esse monstro, incestuoso, adultero pela magia das palavras, pelos dotes insidiosos. Oh loquela perversa, oh dotes nefarios, poisque tem tal poder de seduc��o, e conseguiu inspirar essa vergonhosa paix�o a minha mulher, apparentemente t�o virtuosa. Oh! Hamlet, que degrada��o! Descer de mim, cujo amor nobre e digno n�o tinha desmentido um instante o juramento prestado junto ao altar, a um miseravel, entre cujas qualidades naturaes e as minhas havia um abysmo! Mas assim como a virtude resiste inabalavel �s tenta��es do vicio, aindaque debaixo da f�rma da Divindade lhe apparecesse, assim tambem a impudicicia, embora associada a um anjo celeste de luz, cansa-se da santidade do leito conjugal, para ir habitar o mais desprezivel prostibulo. Mas j� sinto a frescura da aurora, for�oso � que eu termine. Emquanto dormia no meu jardim, era esse o meu costume todas as tardes; teu tio, aproveitando a minha inconsciencia, approximou-se de mim, munido de um frasco de meimendro, e lan�ou-me n'um ouvido o conte�do. � um veneno t�o activo para o sangue humano, que com a subtileza do mercurio corre e se infiltra em todos os canaes, em todas as veias, coalhando e alterando o sangue pela sua ac��o energica: o mais puro e limpido n�o lhe resiste, � como uma gotta de qualquer acido n'uma ta�a de leite. Tal foi o seu effeito, que uma lepra instantanea cobriu meu corpo de uma crosta impura e infecta. Eis como durante o meu somno, tudo me foi arrebatado de uma vez, e pela m�o de um irm�o, vida, cor�a e consorte. A morte surprehendeu-me em estado flagrante de peccado; sem sacramentos, sem me reconciliar, nem com Deus, nem com a minha consciencia; tinha que comparecer perante o Juiz Supremo vergando sob o peso das minhas iniquidades. Horror, horror, cumulo de horror! Se em teu cora��o vibra a fibra da sensibilidade, n�o o toleres. N�o consintas que o leito do rei de Dinamarca se transforme em mans�o da luxuria e do incesto. Mas seja qual for a tua vingan�a, conserva-te moral e puro, e poupa tua m�e. Entrega o seu castigo ao c�u, e aos espinhos do remorso que lhe dilaceram o cora��o. Adeus, cumpre-me deixar-te; a luz do perilampo, cujo fogo sem calor come�a a esmorecer, annuncia a approxima��o da aurora. Adeus, adeus, adeus. Recorda-te sempre de mim. (A sombra retira-se.) [33] HAMLETOh! santas legi�es do c�u, oh! terra, que mais? Invocarei o inferno? Oh! opprobrio; cont�m-te, ah! cont�m-te, meu cora��o, e v�s, meus musculos, n�o percaes o vigor, e redobrae de for�a e energia para me suster. Recordar-me de ti? Sim, sombra infeliz, emquanto a memoria n�o abandonar este meu cerebro desordenado. Recorda-te de mim; sempre! quero varrer da minha memoria todas as recorda��es frivolas, todas as maximas colhidas nos livros, todos os vestigios, todas as impress�es do passado, tudo quanto a juventude e a observa��o coordenaram, e em sua vez dar s� lugar, sem rivaes, juro-o pelo c�u, aos teus preceitos. Oh! mulher perversa, oh infame e damnado monstro! oh memoria, grava bem o seguinte, que nos sorrisos do homem se p�de occultar um crime; assim � na Dinamarca (escreve n'uma carteira). Meu tio, espere-me. A minha senha ser� de hoje em diante. Adeus, adeus, adeus. Recorda-te de mim. Jurei-o. HORACIO ao longeSenhor, senhor? MARCELLO ao longeSenhor Hamlet? HORACIOQue o c�u o proteja. HAMLETAssim seja. MARCELLO ao longeOl�, ol�, senhor! HAMLETPousa meu falc�o, pousa. (Imita o canto do falc�o e o chamamento do falcoeiro.) Chegam HORACIO e MARCELLO MARCELLOO que se passou, senhor? HORACIOQue novas, senhor? HAMLETAs mais extraordinarias. HORACIOConte-nol-as, principe. [34] HAMLET� um segredo. HORACIOE n�o sou eu capaz de o guardar? O principe conhece-me. MARCELLOE eu? HAMLETQue me dir�o quando o souberem: que cora��o humano o teria pensado. Juram-me segredo? HORACIO e MARCELLOJur�mos. HAMLETN�o ha em toda a Dinamarca um scelerado igual. HORACIOEra necessario que um espectro sa�sse do tumulo para nol'o dizer? HAMLET� verdade, t�em ras�o. Basta de palavras, um aperto de m�o, e cada um volte onde o chamam os negocios e as suas inclina��es, porque todos t�em inclina��es e negocios, sejam quaes forem: eu, pobre p�ria do mundo, vou orar. HORACIOS�o palavras incoherentes e sem sentido, alteza. HAMLETPeza-me que te offendesses, peza-me dev�ras. HORACIOEm que, senhor? HAMLETPor S. Patricio, que te offendi e gravemente. Quanto � appari��o de inda agora, � um phantasma honesto, digo-t'o eu. Quanto ao desejo de conhecerem, senhores, o que entre n�s se passou, reprimam-n'o. E agora, meus bons amigos, em nome da nossa amisade, da nossa camaradagem de estudos e de armas, fa�am-me um favor. [35] HORACIOQual �? N�o hesit�mos. HAMLETNunca digam o que viram esta noite. AMBOSConte com a nossa palavra, principe. HAMLETQuero um juramento. HORACIOPrometti o segredo. MARCELLOJ� jur�mos. HAMLETMas jurem sobre a minha espada. A SOMBRA (debaixo da terra)Jurem. HAMLETAh! ah! meu camarada, �s tu que fallas; est�s ahi, meu valente, approxima-te; ouvem a sua voz, prestem o juramento. HORACIODiga-nos a formula, principe. HAMLET (afastando-se um pouco com elles)Jurem sobre a minha espada, que guardar�o sigillo do que viram e ouviram. A SOMBRA (debaixo da terra)Jurem. HAMLETHic et ubique. Vamos para mais longe. (Afastam-se um pouco.) Approximem-se, e estendendo a dextra sobre a minha espada, jurem por este gladio nunca revelar o que viram e ouviram. A SOMBRA (debaixo da terra)Jurem pela sua espada. HAMLETBravo, velha toupeira, como caminhas depressa subterraneamente, [36] que bello mineiro! Afastemo-nos mais uma vez, meus bons amigos. HORACIOPor vida minha, � prodigioso! HAMLETAcolh�mol-o como se acolhe um estrangeiro. O c�u e a terra encerram mais mysterios, que os conhecidos pelos philosophos; mas venham. Notem o que notarem nos meus modos, se eu julgar necessario affectar maneiras extravagantes, jurem-me pela sua salva��o que nunca cruzar�o os bra�os, meneando a cabe�a, nem lhes escapar�o palavras ambiguas, como por exemplo: Muito bem, muito bem—j� sabemos—ou—se quizessemos fallar—ou—ainda ha pessoas que se ousassem—ou outras express�es equivocas, dando a perceber que est�o na confidencia; jurem que nada far�o; e possa, quando mais precisarem, n�o lhes faltar a gra�a divina. A SOMBRA (debaixo da terra)Jurem. HAMLETAcalma-te, alma penada. Assim, senhores, recommendo-me � vossa affei��o, e tudo quanto um homem t�o debil como Hamlet possa fazer para lhes provar o seu affecto, fal-o-ha com a ajuda de Deus. Retiremo-nos juntos, e silencio; pe�o-lh'o eu. Ha no mundo alguma grande perturba��o. Maldi��o. Porque serei eu o eleito para a terminar? Vamos, part�mos juntos. Fim do acto primeiro [37] ACTO SEGUNDOSCENA IUma sala em casa de PolonioEntram POLONIO e RINALDO POLONIORinaldo, entrega a meu filho este dinheiro e estas letras. RINALDOSim, meu senhor. POLONIOMas antes de o procurar, obrar�s assisadamente tomando informa��es a seu respeito. RINALDOEra essa a minha inten��o. POLONIOBem, muito bem; toma antes todas as informa��es pelos dinamarquezes que est�o em Par�s, v� as suas rela��es, e com quem se d�o, quaes os seus gastos; depois de te assegurares pelas tuas perguntas que conhecem meu filho, procura colher informa��es mais exactas, sem comtudo o dar a entender. Dissimula que o conheces perfeitamente, dizendo, por exemplo: Conhe�o o pae e a familia, mas d'elle n�o tenho conhecimento algum. Entendes, Rinaldo? [38] RINALDOPerfeitamente, senhor. POLONIODe todo n�o me � desconhecido, p�des acrescentar. Conhe�o-o pouco � verdade, comtudo aquelle de quem fallo � um dissipador com todos os seus defeitos; imputa-lhe ent�o todos os vicios que te parecer, excepto aquelles que podem deshonrar um homem, toma conta n'isso; s� as loucuras e imprudencias proprias de um joven que se sente livre de todo o constrangimento paterno. RINALDOO jogo, talvez? POLONIOBem, e as bebidas, a esgrima, as pragas, o genio buli�oso, a convivencia do prostibulo, � at� onde te auctoriso que chegues. RINALDOActos s�o, na verdade, que n�o deshonram. POLONIOSabes bem como te deves haver fazendo estas imputa��es. N�o aggraves os factos accusando-o de devassid�o continua e habitual; n�o pretendo tal; censura-o mas com discri��o; exprime-te como se attribuisses as suas faltas aos defeitos inherentes � mocidade, ao abuso da liberdade, ao arrebatamento de um espirito fogoso, � effervescencia de um sangue ardente. RINALDOMas, senhor? POLONIOPorque ser� conveniente obrar assim. RINALDOPara lh'o perguntar estava eu. POLONIO� onde eu queria chegar, e na minha opini�o � um ardil sem igual. Depois de teres imputado a meu filho esses ligeiros defeitos, que se podem considerar quando muito como imperfei��es n'uma bella obra; se o teu interlocutor, aquelle que queres sondar, notou no joven a que te referes algum dos vicios [39] mencionados, est� certo que responder� immediatamente: Meu caro senhor, ou meu amigo—ou meu cavalheiro—segundo o costume do individuo, ou o uso do paiz... RINALDOProsiga, senhor. POLONIOEnt�o... que estava eu dizendo? pela santa missa—que queria eu dizer? o que era? RINALDOFallava da resposta... POLONIOQue te dar�o, � isso, e n�o deixar�o de responder: Conhe�o esse mancebo, vi-o ainda hontem, ou outro qualquer dia, em tal epocha, com estes ou com aquelles, surprehendi-o jogando, ou n'uma orgia ou numa rixa, ou ainda, vi-o entrar n'uma casa suspeita; ou outras cousas similhantes: agora v�s como com a mentira se colhe a verdade. � assim que n�s, as pessoas entendidas, empreg�mos a miudo o embuste e a falsidade para descobrir a verdade. Ahi est� o caminho que seguir�s para saber o comportamento de meu filho. Percebes agora? RINALDOSim, meu senhor. POLONIOO Senhor seja comtigo, boa viagem. RINALDOMeu amo! POLONIOObserva tu mesmo as suas inclina��es. RINALDOFal-o-hei, senhor. POLONIOMas n�o o distr�ias da sua vida. RINALDOBem entendo. POLONIOAdeus. (Rinaldo s�e.) [40] Entra OPHELIA POLONIOQue te traz por aqui, Ophelia? OPHELIAMeu pae, meu pae, ainda tremo. POLONIOPorque? Falla por piedade. OPHELIAQuerido pae, estava no meu quarto trabalhando em costura, quando de repente deparo com o sr. Hamlet, mas em que estado! as vestes em desordem, o cabello em desalinho, as meias ca�das arrastavam pelo ch�o, pallido e branco como uma mortalha, tremiam-lhe as pernas, o rosto tinha a express�o do desespero, qual profugo do inferno mensageiro de novas horriveis. POLONIOEnlouqueceria por tua causa? OPHELIAN�o sei, meu pae, mas receio-o dev�ras. POLONIOQue te disse elle, Ophelia? OPHELIATomou-me os pulsos, apertando-os convulsivamente, depois afastando-se � distancia do seu bra�o, levando a m�o � testa, fitou os olhos no meu rosto, como se me quizesse retratar. Assim se demorou por largo tempo, por fim saccudindo-me levemente o bra�o, levantando e baixando por tres vezes a cabe�a, suspirou t�o profundamente, que todo o seu corpo estremeceu, parecia o prenuncio da morte. Feito isto, deixou-me, partiu e desviando a cabe�a, como um homem que para achar caminho n�o precisa o auxilio da vista, transpoz a porta; mas ent�o o seu olhar estava fito em mim. POLONIOSegue-me, filha, vou procurar o rei. � o delirio do amor; a [41] sua violencia mata-o, e imp�e � sua vontade actos de desespero, que nenhuma outra paix�o humana excitaria. Peza-me sinceramente. Dize-me, ter-lhe-�as tu dirigido ultimamente alguma palavra cruel. OPHELIAN�o, meu pae; mas obedecendo �s suas ordens, recusei as suas cartas e evitei a sua presen�a. POLONIOEis o que perturbou a sua ras�o. Doe-me de o n�o ter conhecido melhor: receiei que as suas inten��es n�o fossem serias, e que s� pretendesse consummar a tua ruina. Arrependo-me do fundo de alma das minhas desconfian�as. Parece que o confiar cegamente na previdencia � o apanagio da minha idade, como o contrario � o defeito da mocidade. Vem, dirij�mo-nos ao rei, convem que elle nada ignore; porque o sigillo d'este amor poderia acarretar mais desgra�as do que a sua revela��o resentimentos. (S�em ambos.) SCENA IIUma sala no castello de ElsenorEntram o REI, a RAINHA, as suas comitivas, ROSENCRANTZ e GUILDENSTERN O REISejam bemvindos, caros Rosencrantz e Guildenstern. Independentemente do gosto de os ver, a necessidade do seu prestimo me obrigou a chamal-os a esta c�rte sem demora. Ouviram seguramente fallar da transforma��o de Hamlet; digo transforma��o, porque j� n�o � o mesmo homem, nem moral nem physicamente. S� a morte do pae p�de ser a causa do transtorno da sua ras�o, n�o posso conceber outra. Educados com elle desde a infancia, sympathisando entre si pela idade e pelo caracter, pe�o-lhes que permane�am algum tempo na c�rte, procurem inspirar-lhe o gosto e prazer da sua convivencia, aproveitem todas as occasi�es para descobrir se a sua afflic��o n�o tem alguma causa desconhecida, cuja revela��o nos permittisse dar-lhe remedio. [42] A RAINHABastante tem fallado nos senhores, e estou convencida que ninguem no mundo lhes � mais affei�oado. A liberalidade do rei compensar� largamente os seus servi�os e os seus incommodos. Esper�mos dos senhores esta prova de affei��o. ROSENCRANTZVossas magestades s�o nossos soberanos, e os reis n�o pedem, mandam. GUILDENSTERNEstamos promptos a obedecer; disponham de n�s, senhores. Depondo aos p�s dos reis os nossos servi�os e a nossa dedica��o, pedimos-lhes s� que ordenem. O REIObrigado, senhores. A RAINHAObrigada tambem eu; v�o ter com meu filho: infelizmente mal o reconhecer�o. (� sua comitiva) Alguns d'estes senhores conduzam estes cavalheiros junto de Hamlet. GUILDENSTERNPraza a Deus, que a nossa presen�a lhe seja agradavel e os nossos cuidados um lenitivo. A RAINHADeus queira. (Rosencrantz e Guildenstern s�em seguidos de alguns cortez�os.) Entra POLONIO POLONIOSenhor, regressaram de Noruega os embaixadores, satisfeitos com o resultado da sua miss�o. O REI�s sempre correio de boas novas. POLONIOSenhor! esteja vossa magestade certo que a minha alma p�e a par a dedica��o ao meu rei e o respeito e amor ao meu Deus. A menos que a minha sagacidade habitual me enganasse, descobri a verdadeira causa da loucura do senhor Hamlet. [43] O REIEstou ancioso por conhecel-a. POLONIOPrimeiro os embaixadores, depois eu. O REIRecebe-os, e encarrego-te de os introduzir � nossa presen�a. (Polonio s�e.) (� rainha.) Annunciou-me, querida Gertrudes, que conhece a causa da doen�a de seu filho. A RAINHAReceio bem que a morte de seu pae e o nosso precipitado consorcio sejam as causas unicas. O REISabel-o-hemos em breve. Entram POLONIO, VOLTIMANDO e CORNELIO O REIBemvindos sejam, amigos. Falla tu, Voltimando; que novas trazes de nosso irm�o de Noruega? VOLTIMANDOEnvia-vos seus cumprimentos e sauda-vos cordealmente. Mal nos ouviu, ordenou ao sobrinho que pozesse fim aos seus preparativos guerreiros. Julgava-os dirigidos contra a Polonia; mas convencido por um detido exame que eram contra vossa magestade, e indignado por Fortimbraz se prevalecer do estado precario, a que a idade e a doen�a o tinham reduzido, ordenou-lhe que comparecesse na sua presen�a. Fortimbraz obedeceu � ordem intimada, e depois de severamente reprehendido pelo rei de Noruega, prestou nas m�os de seu tio o juramento de nada emprehender contra vossas magestades. O idoso monarcha, para provar o seu jubilo, concedeu-lhe uma pens�o annual de tres mil escudos, e licen�a para combater os polacos com as tropas alistadas. Ao mesmo tempo pede-vos pelas presentes (entrega as cartas), que concedaes �s suas tropas livre passagem pelo vosso territorio nas condi��es estipuladas n'este escripto. [44] O REIEste resultado enche-nos de satisfa��o; quanto ao pedido, lel-o-hemos, e depois de maduramente examinado, responderemos. Agradecemos-lhes os seus valiosos servi�os. Descansem agora; juntos ceiaremos logo. (Voltimando e Cornelio s�em.) POLONIOFelizmente est� terminado este negocio. Senhor e senhora; discutir o que constitue a auctoridade, e em que consiste a obediencia dos subditos, porque a noite � noite, o dia � dia, e o tempo � tempo, seria perder sem proveito a noite, o dia e o tempo; por isso, visto que a concis�o � a alma do espirito, emquanto que a prolixidade � s� o corpo ou o involucro exterior, serei breve: Vosso nobre filho est� louco, digo louco, porque haveria falta de ras�o em querer definir o que constitue verdadeiramente loucura. Passemos adiante... A RAINHAMenos estylo, Polonio. POLONIOSenhora, n�o fa�o estylo, juro-o. Seu filho est� louco; � triste, mas � verdade. � verdade que � uma lastima, mas � uma lastima que seja verdade; � uma estulta antithese, mas tal qual � acceite-a; n�o emprego arte. Est� louco; resta-nos procurar a causa d'esse effeito, ou antes defeito, porque for�osamente a deve ter. Siga bem o meu raciocinio: Tenho uma filha, tanto a tenho, que me pertence. Minha filha, fiel ao dever e � obediencia que me deve, note bem, entregou-me este escripto. (Mostra um papel.) Reflicta e depois tire a conclus�o. (L�.) Ao idolo da minha alma, � celeste Ophelia, � belleza personificada... � uma desgra�ada e estulta express�o. Conserva preciosamente estas linhas, no teu seio alabastrino... A RAINHA� de Hamlet a Ophelia. POLONIOEspere um momento, senhora, cito textualmente. (L�) Duvida que do c�u a abobada azulada [45] Querida Ophelia, n�o sou poeta, n�o sei modular suspiros com arte, mas podes acreditar que te amo, mais que tudo n'este mundo. Adeus, a ti, para sempre minha vida, a ti emquanto esta machina mortal me pertencer.==Hamlet.==Eis-ahi o que, por obediencia, minha filha me entregou. J� antes ella me tinha confiado as tentativas de Hamlet, � propor��o que renovava as suas instancias amorosas. O REIComo p�de ella acolher este amor? POLONIOEm que conta me tem, senhor? O REINa de um homem leal e honrado. POLONIOFarei por merecer sempre esse conceito a vossa magestade; mas que pensaria o rei de mim, se vendo despontar esse amor, e j� o tinha adivinhado antes da confiss�o de minha filha, que pensariam o rei e a rainha, se me calasse, e me tornasse mudo confidente do seu amor; se, testemunha da sua paix�o, tivesse imposto silencio ao meu cora��o, ou se a considerasse com indifferen�a? m� id�a por certo fariam de mim. N�o perdi um momento, disse a minha filha: O senhor Hamlet � um principe collocado f�ra da tua esphera; isto n�o p�de ser.—Ordenei-lhe ent�o que evitasse a sua convivencia, e que nunca mais recebesse nem mensagens nem dadivas. Seguiu o meu conselho, e para abreviar a minha narra��o, o principe, vendo-se assim repellido, ca�u primeiro n'uma profunda tristeza, em seguida repugnaram-lhe os alimentos, mais tarde teve insomnias, depois abatimentos e fraqueza intellectual, finalmente, e sempre gradualmente, chegou � demencia e ao delirio. Deplor�mol-o todos. O REIE pensas ser essa a causa? A RAINHA� muito provavel. [46] POLONIOQuizera me dissessem, se aconteceu alguma vez affirmar eu alguma cousa que n�o fosse certa. O REINunca que eu saiba. POLONIOSe n�o � verdade o que disse (mostrando a cabe�a), que esta role a seus p�s. Basta-me a mais simples circumstancia para descobrir a verdade, aindaque estivesse occulta nas entranhas da terra. O REIPor que modo nol-o poder�s tu provar. POLONIOVossa magestade n�o ignora que o sr. Hamlet algumas vezes passeia quatro horas consecutivas n'esta galeria. A RAINHA� certo. POLONIOQuando ali estiver, enviar-lhe-hei minha filha, e n�s, occultos por detr�s d'esta cortina, seremos testemunhas da entrevista. Se n�o a ama, se n�o foi o amor a causa da sua loucura, deixe eu de pertencer aos conselhos de vossa magestade, e fa�a de mim um quinteiro, um hortel�o ou um abeg�o. O REITentemos a experiencia. HAMLET entra lendo A RAINHAA leitura � a unica distrac��o d'este infeliz. POLONIORetirem-se ambos por piedade. Vou fallar-lhe. Confiem em mim. (O rei e a rainha s�em) Como se sente o sr. Hamlet? HAMLETBem, Deus louvado. [47] POLONIOConhece-me, principe? HAMLETSe conhe�o, �s um vendilh�o de peixe. POLONIOEngana-se, senhor. HAMLETN'esse caso, queria que ao menos fosses t�o honrado. POLONIOHonrado? HAMLETSim; pelo caminho em que vae o mundo, custa achar um homem honrado entre dez mil. POLONIO� uma triste verdade. HAMLETOra o sol gera vermes no animal putrefacto, e embora divindade, acaricia o cadaver. Tens uma filha, n�o � verdade? POLONIOSim, meu senhor. HAMLETN�o a deixes caminhar ao sol, a concep��o � um beneficio do c�u, mas como tua filha p�de conceber, cuidado... meu caro. POLONIOQue quer dizer, principe? (� parte) minha filha � a sua constante preoccupa��o, mas n�o me reconheceu logo, tomou-me por um vendilh�o de peixe. O seu cerebro est� gravemente atacado; verdade �, que na minha mocidade o amor algumas vezes me reduziu a um estado similhante a este. Dirij�mos-lhe de novo a palavra. Que est� lendo, senhor? HAMLETPalavras e mais palavras, s� palavras. POLONIODe que se trata, senhor? [48] HAMLETQuem, o que? POLONIOPergunto o que cont�m o livro que est� lendo. HAMLETCalumnias, nada mais. O satyrico auctor tem a impudencia de dizer que nos velhos a barba � grisalha, a pelle rugosa, e que seus olhos distillam ambar e gomma em fus�o; que o espirito est� caduco, as pernas n�o os sust�em; tudo cousas que creio em minha consciencia, mas que se n�o devem escrever. Quanto ao senhor, poderia ter a minha idade, se podesse andar para tr�s como os caranguejos. POLONIO (� parte)Aindaque louco p�de coordenar as id�as. (Alto.) Quer vir tomar ar, meu senhor? HAMLETQue ar? o do tumulo? POLONIO (� parte)Que agudeza e que verdade na replica. �s vezes as palavras dos loucos t�em mais conceito que as dos s�os. Vou deixal-o, e preparar a sua entrevista com minha filha. Senhor, tomo a liberdade de me retirar. HAMLETNada podia tomar, que eu d�sse com mais gosto; excepto a vida, excepto a vida, excepto a vida. POLONIOAdeus, meu senhor. HAMLET (� parte)Que imbecil e fastidioso velho. Entram ROSENCRANTZ e GUILDENSTERN POLONIOProcuram o sr. Hamlet, eil-o. ROSENCRANTZ (a Hamlet)Deus seja comvosco, senhor. (Polonio s�e) [49] GUILDENSTERNMeu nobre senhor. ROSENCRANTZQuerido principe. HAMLETMeus bons e queridos amigos, como est�o, tu Guildenstern e tu tambem Rosencrantz, meus caros, como passam. ROSENCRANTZNem bem, nem mal. GUILDENSTERNN�o nos peza demasiado a nossa felicidade, e n�o toc�mos o ponto culminante da fortuna. ROSENCRANTZNem temos tambem ras�es de queixa. HAMLETNo meio est� a virtude, � quando chovem as gra�as. GUILDENSTERNVivemos familiarmente com ella. HAMLETEst�o pois na intimidade da fortuna; n�o me admira, � uma cortez�. Que novas ha? ROSENCRANTZNenhumas, senhor, a n�o ser que este mundo se tornou virtuoso. HAMLETEm tal caso o seu fim est� mui proximo, mas o que dizes � falso. Permittam-me uma pergunta que lhes diz respeito. Digam-me, que mal fizeram � fortuna para ella os enviar para este carcere? GUILDENSTERNCarcere, senhor? HAMLETA Dinamarca tambem � carcere. ROSENCRANTZEnt�o �-o o mundo todo. [50] HAMLETSim, uma vasta pris�o que em si encerra um grande numero de carceres, dos quaes o peior � de certo a Dinamarca. ROSENCRANTZN�o somos da mesma opini�o, principe. HAMLETPara os senhores n�o ser� uma pris�o a Dinamarca, porque o bem ou o mal n�o existem sen�o quando assim o julg�mos. Para mim �. ROSENCRANTZA ambi��o faz parecer a Dinamarca uma pris�o a vossa alteza, n�o cabe n'ella a sua alma. HAMLETAcharia vasto reino uma casca de noz, se n�o fossem os meus terriveis sonhos. ROSENCRANTZS�o justamente esses sonhos que constituem a ambi��o, porque toda a substancia do ambicioso � a sombra de um sonho. HAMLETAssim os mendigos s�o corpos, e os monarchas e os heroes ambiciosos n�o s�o sen�o a sua sombra. Querem que vamos � c�rte? porque sinceramente n�o me sinto disposto a discutir. AMBOSEstamos �s suas ordens, principe. HAMLETN�o o comprehendo eu assim, n�o o quero confundir com o resto dos meus creados; porque, para lhes dizer a verdade, sou pessimamente servido. Mas, com franqueza, amigos, o que os trouxe a Elsenor. ROSENCRANTZUnicamente visitar a vossa alteza, nenhum outro motivo. HAMLETEstou t�o pobre, t�o alheio ao reconhecimento! mas recebam os meus agradecimentos pelo pre�o que valem. N�o os [51] mandaram chamar? Foi por motu proprio que vieram? � a affei��o que aqui os trouxe? Vamos, sejam francos, vamos, fallem. ROSENCRANTZQue quer que dig�mos, senhor? HAMLETTudo quanto lhes aprouver, mas respondam � minha pergunta. Mandaram-os chamar? Leio nos seus olhos uma confiss�o, que a sua candura n�o sabe dissimular. Sei que o nosso bom rei e a nossa excellente rainha os mandaram chamar. ROSENCRANTZCom que fim, senhor? HAMLETOs senhores � que o poder�o dizer; mas imploro-lhes, pelos direitos da nossa amisade, pelas sympathias da nossa idade, pelos deveres que nos imp�e a nossa verdadeira affei��o, emfim por todas as ras�es as mais convincentes que podesse allegar o mais habil orador, sejam francos e sinceros commigo; mandaram-os chamar? Sim ou n�o. ROSENCRANTZ (a Guildenstern)Que devemos responder? HAMLET (� parte)N�o os perderei de vista. (Alto.) Se dev�ras me t�em affei��o, expliquem-se com franqueza. GUILDENSTERNPois bem, senhor, mandaram-nos chamar. HAMLETE eu dir-lhes-hei porque; d'est'arte a minha confiss�o preceder� as suas investiga��es, e o segredo promettido ao rei e � rainha, n�o ser� nem de leve violado. Ultimamente, nem sei por que, perdi toda a minha alegria, renunciei a toda a especie de exercicio; e sinto na alma uma tal tristeza, que esta maravilhosa machina, a terra, me parece um esteril promontorio, este esplendido docel, o c�u, esse magnifico firmamento suspenso sobre nossas cabe�as, essa abobada sumptuosa, onde [52] brilha o oiro de innumeras estrellas, tudo me parece um infecto monturo de vapores pestilentes. Que obra prima dos homens! que eleva��o na sua intelligencia! quanto s�o infinitas as suas faculdades! como a sua f�rma � imponente e admiravel, como os seus actos approximam os homens dos anjos, e a sua ras�o os approxima de Deus! s�o a maravilha do mundo, os reis da crea��o animada, e comtudo o que vale a meus olhos essa quinta essencia do p�? Aborre�o os homens e as mulheres, embora os seus sorrisos incredulos, senhores, digam o contrario. ROSENCRANTZN�o tinhamos em nosso pensamento tal inten��o. HAMLETEnt�o porque se riram quando disse que aborrecia os homens? ROSENCRANTZ� que eu pensava que, se os homens lhe s�o odiosos, triste acolhimento receberiam os actores que encontr�mos no caminho e que vem offerecer a vossa alteza os seus servi�os. HAMLETBemvindo ser� o que representa os reis; tributarei a sua magestade as minhas homenagens; o cavalleiro andante manejar� adaga e escudo, debalde n�o suspirar� o namorado, o comico declamar� em paz a sua parte; o bobo provocar� o riso aos mais hypocondriacos, emfim a namorada estropiar� os versos para n�o deixar de dizer o que cumpre sinta no cora��o. Que actores s�o? ROSENCRANTZS�o os tragicos da cidade, que lhe agradavam tanto. HAMLETPorque se tornaram actores ambulantes? Com a permanencia na cidade, auferiam de certo maior honra e lucros. ROSENCRANTZInnova��es recentes foram a causa d'isso. HAMLETAinda gosam da mesma reputa��o que tinham quando eu [53] habitava a cidade? As suas representa��es ainda s�o muito concorridas? ROSENCRANTZPouco, senhor. HAMLETPorque ser�? Ter�o elles desmerecido no seu modo de representar? ROSENCRANTZN�o, meu senhor; o seu z�lo n�o arrefece: mas vossa alteza de certo saber�, que appareceu um enxame de crean�as, apenas sa�das da primeira infancia, que declamam o dialogo o mais simples, no tom o mais elevado, e por isso s�o calorosamente applaudidas. S�o moda, e lan�aram um tal desfavor sobre os actores ordinarios, como ellas lhe chamam, que muitos homens valentes no campo da batalha, mas que temem as pennas agu�adas, n�o ousam frequentar o verdadeiro theatro. HAMLETComo? pois s�o crean�as? Quem as protege? quem lhes paga? querer�o unicamente seguir a sua profiss�o emquanto conservarem a sua voz aflautada? E se um dia pela for�a das circumstancias se tornarem actores ordinarios, n�o ter�o direito ent�o de se arrependerem, de terem acceitado os encomios das pennas que bem mau servi�o lhes prestaram, quando se voltarem contra elles as armas de que se serviram para mal dos outros. ROSENCRANTZN�o luctaram pouco entre si, e a na��o inteira animou a contenda. Houve um momento em que a receita do emprezario dependia de brigarem os actores e auctores. HAMLETSer� crivel? ROSENCRANTZHouve mais de uma cabe�a quebrada. HAMLETE foram as crean�as que venceram? ROSENCRANTZSim, meu senhor. Venceram o proprio Hercules com o seu globo. [54] HAMLETNada me admira, sendo meu tio rei de Dinamarca. Os que o evitavam em vida de meu pae, pagam agora o seu retrato em miniatura, por vinte, cincoenta e cem ducados. Por vida minha que ha alguma cousa sobrenatural em tudo quanto presence�mos, e que em verdade a philosophia devia esmerar-se por descobrir. (Ouve-se o som de uma musica de clarins ao longe.) GUILDENSTERNChegam os actores. HAMLETSenhores, bemvindos sejam em Elsenor. As suas m�os que eu as aperte. O que distingue um bom acolhimento s�o os cuidados e as atten��es polidas; deixem-me recebel-os assim para n�o parecer que a cortezia para com os actores, com os quaes � minha inten��o ter a maior, ultrapassa a que lhes testemunho pessoalmente aos senhores. Bemvindos sejam, mas o tio que tenho por padrasto, e a m�e que tenho por tia est�o completamente enganados a meu respeito. GUILDENSTERNEm que se enganam elles? HAMLETS� estou louco quando o vento sopra do nor-noroeste, em soprando do sul, distingo uma gar�a de um falc�o. Entra POLONIO POLONIOSaudo os senhores. HAMLETEscuta, Guildenstern, (a Rosencrantz) e tu tambem: a bom entendedor meia palavra basta; esta crean�a que v�em ainda usa coeiros. ROSENCRANTZTalvez que os torne a usar; a velhice �, segundo dizem, uma segunda infancia. HAMLETAposto que me vem fallar nos actores; v�o ver. Tem ras�o, senhor, foi effectivamente na manh� de segunda feira. [55] POLONIOTrago uma nova para vossa alteza. HAMLETTenho tambem uma para o senhor. Quando Roscio era actor em Roma... POLONIOOs actores acabam de chegar. HAMLETN�o � verdade. POLONIOPalavra de honra. HAMLETCada actor vir� montado n'um jumento. POLONIOS�o os melhores actores do mundo para a tragedia, comedia, drama historico e pastoril, pastoral comica e historica, pastoral tragico-comico-historica, com ou sem unidade do logar da ac��o. Para elles n�o ha difficuldades, s�o tristes com Seneca, folgas�os com Plauto. N�o t�em rivaes quanto ao estylo e � express�o. HAMLET� Jephth�, juiz em Israel, que thesouro possuias! POLONIOQue thesouro possuia elle, senhor? HAMLETMas... Uma filha, uma s�, mas essa encantadora POLONIO (� parte)Ainda minha filha. HAMLETN�o tenho eu ras�o, velho Jephth�? POLONIOSe me chama Jephth�, � porque tenho uma filha que estreme�o. [56] HAMLETN�o � consequencia. POLONIOEnt�o qual � a consequencia? HAMLETEil-o. Mas Deus sabe porque o conto � memoravel! Conhece o seguimento? Um dia aconteceu... o que era mais provavel. Para o final recorde-se da primeira parte d'estas trovas, porque eis quem me obriga a terminar. Entram tres ou quatro ACTORES HAMLET (continuando)Bemvindos todos, bemvindos sejam. Estou encantado de te ver de boa saude, bemvindos sejam, amigos. Ah, meu amigo, que mudan�a! j� com barba! Querer�s tu fazer-me sombra em Dinamarca? Ah eis-vos tambem aqui, minha menina! Por nosso senhor, depois que vos vi, subistes apenas um degrau para o c�u. Deus queira que a vossa voz, moeda de liga mutavel, n�o se deprecie de mais com o tempo. Senhores, para mim s�o todos bemvindos; mas vamos direitos ao assumpto, como os falcoeiros francezes, que largam o falc�o � primeira pe�a de ca�a que se apresenta, mostrem-me a sua pericia; vamos, um trecho bem pathetico. PRIMEIRO ACTORQue trecho preferis, senhor? HAMLETOuvi-te um dia declamar um trecho de uma pe�a nunca representada em scena, ou quando muito uma unica vez, porque, se bem me lembro, a pe�a n�o agradou a todos; era caviar para o geral do publico: mas, segundo a minha opini�o e das pessoas que n'este assumpto t�em voz mais auctorisada do que a minha, era uma pe�a excellente, bem conduzida e escripta com tanta decencia como arte. Pelo que me lembro, diziam que os versos n�o eram bastante picantes para compensar a [57] insipidez da ac��o, seu estylo na verdade nada tinha de affectado, mas que quanto ao resto a pe�a, escripta com tanta simplicidade como methodo, era natural, agradavel, e sem pretens�o. Havia sobretudo um trecho que me agradou, era, na falla de Eneas a Dido, o ponto em que lhe refere a morte de Priamo. Se ainda te recordas, come�a n'esta phrase, espera, deixa-me ver se me lembro. Pyrrho, Pyrrho feroz como o tigre da Hyreania N�o � isso—come�a por Pyrrho. Este ouri�ado Pyrrho havia uma armadura Contin�a tu agora. POLONIOBoa declama��o na verdade, com as medidas e intona��es proprias. PRIMEIRO ACTOR O velho, j� cansado, POLONIOParece-me demasiado longo. HAMLETPara o encurtar manda-se a um barbeiro ao mesmo tempo que a tua barba. (Ao actor.) Contin�a, pe�o-to eu; se n�o lhe apresentam um bailado grutesco, ou uma scena immoral adormece logo. Contin�a, pois, cheg�mos a Hecuba. PRIMEIRO ACTOR Mas quem visse, oh, quem visse a rainha embu�ada! HAMLETA rainha embu�ada. POLONIOOptimo, embu�ada � bom. PRIMEIRO ACTOR Correndo, nus os p�s; com lagrimas que chora [59] POLONIOVejam, empallidece, o pranto inunda-lhe os olhos. Basta, pe�o-to. HAMLETEst� bem, o resto m'o recitar�s n'outra occasi�o; (a Polonio) queira prover que estes actores sejam bem tratados, percebeu? que nada lhes falte, porque s�o a chronica resumida e viva da epocha. Mais lhe valeria, Polonio, um mau epitaphio depois da sua morte, do que o seu vituperio em vida. POLONIOTratal-os-hei segundo os seus merecimentos. HAMLETMelhor, meu caro, melhor; se se tratasse cada um segundo os seus merecimentos, de poucos se faria caso. Trate-os como o deve � jerarchia e � sua propria dignidade. Quantos menos titulos tiverem � sua benevolencia, mais se deve esmerar no seu tratamento. Agora p�de-se retirar com elles. POLONIOVenham, senhores. HAMLETSigam-o, meus amigos, �manh� teremos a representa��o, (Polonio s�e com os actores, menos um a quem Hamlet faz signal que fique.) HAMLET (continuando)Dize-me, meu caro amigo, poderias representar a morte de Gonzaga? PRIMEIRO ACTORCom mil vontades, senhor. HAMLETEnt�o �manh�. Dize-me mais, poderias tu aprender de c�r, sendo preciso, doze ou dezeseis linhas que eu desejava intercalar na pe�a? p�des, n�o � verdade? PRIMEIRO ACTORPosso perfeitamente, meu senhor. [60] HAMLETFica pois ajustado, segue aquelle senhor, e s� te pe�o que n�o zombes d'elle. (O actor s�e.) HAMLET (a Rosencrantz e Guildenstern)Meus bons amigos, at� � noite, estimei vel-os em Elsenor. ROSENCRANTZMeu senhor. (S�e com Guildenstern.) HAMLETFinalmente estou s�. Que miseravel eu sou! Pois n�o ser� monstruoso que este actor, n'uma fic��o, na express�o de uma dor simulada, podesse elevar a sua alma, identificando-se com a sua parte, exaltando-se a ponto de empallidecer, de lhe borbulhar o pranto nos olhos, de se lhe pintar o desespero nas fei��es, entrecortada est� a sua voz, e o seu todo faz uma verdade, de que n�o � sen�o uma situa��o fingida! E tudo, por quem? por Hecuba; que � Hecuba para elle, ou elle para Hecuba, para que a sua memoria lhe arranque lagrimas t�o sentidas? Que faria elle no meu logar, se tivesse tantos motivos de dor, quantos eu tenho. Inundava de pranto a scena, aterrava os espectadores pela sua express�o terrivel, fulminava o culpado, atemorisava o innocente; attonitas ficavam as almas simples, e a commo��o aos sentidos da vista e do ouvido seria geral. E eu, alma tibia, intelligencia confusa, fico n'uma estupida inac��o, indifferente � minha propria causa, e nada acho que dizer, nada, mesmo nada a favor de um rei que perdeu a cor�a e a vida pelo mais inaudito attentado! Ah como sou cobarde! Infame me deveriam chamar, esbofetear-me, arrancar-me as barbas, lan�ar-m'as ao rosto com o desprezo; insultar-me deveriam todos, dizer-me que pela gorja menti, e obrigar-me a soffrer calado todos os vilipendios possiveis. Quem quer fazel-o. Por vida minha que era justo; � for�oso que eu seja inoffensivo como uma pomba sem fel, para levantar uma offensa, para n�o ter feito pasto dos abutres as entranhas d'esse miseravel, sanguinario e impudico scelerado. Monstro de perfidia, juntas ao assassinio o adulterio! Como sou estupido! � bello na verdade ver-me, a mim, o filho de um rei e pae assassinado, a quem c�us e terra instigam � vingan�a, gastar a minha indigna��o em palavras e v�s impreca��es, como a [61] mais vil e desprezivel prostituta. Que vergonha!! Procuremos Uma id�a... (depois de uma pausa prolongada) Eil-a, achei. Ouvi dizer que criminosos, assistindo a representa��es dramaticas, de tal modo se perturbaram vendo a sua culpa em scena, que espontanea e immediatamente fizeram confiss�o do seu crime, porque o assassino embora mudo trahe-se e falla. Quero que os actores representem, na presen�a de meu tio, a morte de meu pae, observarei as suas fei��es, sondarei as suas impress�es; se se perturbar, sei o que me cumpre fazer. O espirito que me appareceu talvez seja um demonio, porque p�de revestir-se da f�rma de um objecto amado, tem poder sobre as almas melancholicas, e quem sabe se na minha fraqueza e dor acha os meios para me perder, condemnando-me para sempre. Quero ter a certeza completa; o drama em quest�o ser� o la�o armado � consciencia do rei. (S�e.) Fim do acto segundo [63] ACTO TERCEIROSCENA IUma sala no castello de ElsenorEntram o REI, a RAINHA, POLONIO, OPHELIA, ROSENCRANTZ e GUILDENSTERN O REIEnt�o ainda n�o poderam, nas suas conversas com elle, descobrir a causa da desordem da sua intelligencia; d'aquella perigosa e turbulenta demencia que se apoderou do seu espirito e lhe rouba o descanso? ROSENCRANTZConfessa sentir esva�r-se-lhe a ras�o; mas n�o conseguimos que elle nos revelasse a causa. GUILDENSTERNParece pouco disposto a deixar sondar os seus sentimentos. Na sua loucura n�o o abandona um resto de sagacidade; conserva-se na defensiva todas as vezes que tent�mos encaminhal-o a uma confiss�o tocante ao seu estado. A RAINHARecebeu-os bem ao menos? ROSENCRANTZCom toda a affabilidade de um homem bem educado. [64] GUILDENSTERNMas evidentemente constrangido. ROSENCRANTZPerguntando pouco, mas respondendo �s nossas perguntas com a maior naturalidade. A RAINHAE experimentaram algum divertimento para o distrahir? ROSENCRANTZO acaso fez-nos encontrar no caminho alguns actores; fall�mos-lhe n'elles, esta nova pareceu agradar-lhe. Est�o aqui no palacio, e creio j� terem recebido ordem para representarem esta noite na sua presen�a. POLONIO� verdade, e pede a vossas magestades que assistam � representa��o. O REICom o maior prazer; estimo v�l-o assim disposto. Queiram estimulal-o, senhores, e dirigir a actividade do seu espirito para estes divertimentos. ROSENCRANTZAssim o faremos. (S�e com Guildenstern.) O REIDeixa-nos tambem, querida Gertrudes. Mand�mos chamar secretamente a Hamlet, para como por acaso o p�r na presen�a de Ophelia. Seu pae e eu, legitimos espias, collocar-nos-hemos de maneira que, sem sermos vistos, assistamos � entrevista e possamos julgar pelas suas palavras, se � um amor infeliz que assim o faz padecer. A RAINHAObede�o retirando-me. Quanto a ti, Ophelia, desejo ardentemente que os teus encantos sejam a feliz causa da demencia de Hamlet; porque terei ent�o esperan�a que as tuas virtudes o restituir�o, a contento de ambos, ao primitivo estado. OPHELIAQuanto o desejo, senhora. [65] POLONIOOphelia, passeia aqui n'esta sala; (ao rei) vamo-nos collocar, senhor; (a Ophelia) l� n'este livro; esta leitura simulada servir� de pretexto � tua solid�o. Engan�mo-nos tantas vezes, e qu�o frequentemente acontece, com uma capa de santidade e attitude reservada conseguirmos fazer um santo do proprio demonio! O REIOh � bem verdade; que pungente dor esta observa��o inflige � minha consciencia! O rosto da prostituta n�o � mais asqueroso debaixo da mascara do seu arrebique, do que o � o meu crime debaixo do falso verniz do meu discurso. Oh peso terrivel! POLONIOHamlet approxima-se, retiremo-nos, senhor. (O rei e Polonio occultam-se atr�s da cortina.) Entra HAMLETSer ou n�o ser, eis o problema. Uma alma valorosa, deve ella supportar os golpes pungentes da fortuna adversa, ou armar-se contra um diluvio de dores, ou p�r-lhes fim, combatendo-as? Morrer, dormir, mais nada, e dizer que por esse somno pomos termo aos soffrimentos do cora��o e �s mil dores legadas pela natureza � nossa carne mortal; e ser� esse o resultado que mais devamos ambicionar? Morrer, dormir, dormir, sonhar talvez; terrivel perplexidade. Sabemos n�s porventura que sonhos teremos, com o somno da morte, depois de expulsarmos de n�s uma existencia agitada? E n�o deverei eu reflectir? � este pensamento que torna t�o longa a vida do infeliz! Quem ousaria supportar os flagellos e ultrages do mundo, as injurias do oppressor, as affrontas do orgulhoso, as ancias de um amor desprezado, as lentezas da lei, a insolencia dos imperantes, e o desprezo que o ignorante inflige ao merito paciente, quando basta a ponta de um punhal para alcan�ar o descanso eterno? Quem se resignaria a supportar gemendo o peso de uma vida importuna, se n�o fosse o receio de alguma cousa alem da morte, esse ignoto paiz, do qual j�mais viajante regressou? Eis o que entibia e perturba a nossa vontade; eis o que nos faz antes supportar as nossas dores presentes do que procurar outros males que n�o conhecemos. Assim, somos cobardes todos, mas pela consciencia; assim a brilhante c�r da [66] resolu��o se transforma pela reflex�o em pallida e livida penumbra, e basta esta considera��o para desviar o curso das emprezas mais importantes, e fazer-lhes perder at� o nome de ac��o. Mas silencio, vejo a linda Ophelia. Joven beldade, lembra-te dos meus peccados nas tuas ora��es. OPHELIAComo tem vossa alteza passado estes dias ultimos? HAMLETBem, agrade�o-te do cora��o. OPHELIASenhor, tenho dadivas e lembran�as suas que ha muito lhe desejava restituir. Permitta-me que lh'as devolva. HAMLETEu! de certo que n�o, nunca te dei nada. OPHELIAO principe sabe perfeitamente que me fez essas dadivas, e as doces palavras que as acompanharam ainda lhes real�aram o valor; agora que perderam todo o seu perfume, tome-as, principe, porque para uma alma nobre, as mais ricas dadivas perdem o seu valor, no momento em que aquelle que nol-as fez s� nos mostra indifferen�a. Receba-as, pois, senhor. HAMLETAh, ah, �s virtuosa. OPHELIAMeu senhor. HAMLET�s bella. OPHELIAQue diz vossa alteza? HAMLETDigo que se �s virtuosa e bella, deves evitar toda a communica��o entre a tua virtude e a tua belleza. OPHELIAQue melhor commercio ha para a belleza que o da virtude? [67] HAMLETA influencia da belleza ser� mais prompta em metamorphosear a virtude em vil cortez�, do que a for�a da virtude em transformar a belleza � sua imagem. Antigamente seria paradoxo, hoje � um facto provado. Amei-te n'outro tempo, � verdade. OPHELIAVossa alteza bem m'o fez acreditar. HAMLETFizeste mal em acreditar. Porque embora a virtude se inocule na nossa primitiva natureza, sempre nos ficam restos d'ella. Nunca te amei. OPHELIAMaior foi o meu engano. HAMLETProfessa, Ophelia, encerra-te n'um claustro. Para que queres continuar uma ra�a de peccadores; quanto a mim julgo-me ainda ass�s honesto; e comtudo podia formular contra mim taes accusa��es, que melhor teria valido, que minha m�e me n�o tivesse dado � luz. Sou orgulhoso, vingativo e ambicioso; gero no meu cerebro tantas ac��es m�s, que o meu pensamento n�o basta para as distinguir, nem a minha imagina��o para lhes dar uma f�rma, e falta-me o tempo para as executar. Que vantagem haver� pois que seres como eu se rojem como reptis entre o c�u e a terra? Todos somos infames, n�o te fies em nenhum homem; vae, recolhe-te a um claustro. Onde est� teu pae? OPHELIAEm casa, meu senhor. HAMLETQue lhe fechem as portas para impedir que represente de louco f�ra de casa. Adeus. OPHELIADeus misericordioso, tende piedade de Hamlet. HAMLETSe alguma vez te casares, dar-te-hei como dote esta triste verdade. S� tu fria como o g�lo; se fores pura como a neve a calumnia n�o te poupar�. Entra para um claustro, professa, adeus. [68] Mas se absolutamente precisas um marido, ent�o escolhe um louco, porque os homens assisados sabem em que monstros v�s as mulheres os tornaes. Professa, recolhe-te a um convento, mas avia-te. Adeus. OPHELIAPoderes celestes, restitui-lhe a ras�o! HAMLETTambem ouvi fallar da vossa loquacidade. Deus deu-vos um porte e v�s o transformaes por vossa culpa. Saltitaes, requebrae-vos; gestos e affabilidade s�o artificio, zombaes das creaturas de Deus, e fazeis passar por ignorancia o que � simples e pura affecta��o. Nem quero pensar em v�s, mulheres; foi o que me enlouqueceu. Digo que n�o teremos mais casamentos, todos que est�o casados viver�o, excepto um, os outros ficar�o como est�o. Professa, entra para um convento, vae. Adeus. (Hamlet s�e.) OPHELIA (s�)Oh que nobre intelligencia est� ali desthronada. A perspicacia do homem de c�rte, a espada do guerreiro, a palavra do sabio, o futuro d'este reino, o espelho do bom tom, o typo dos modos nobres, o modelo em que todos fictavam os olhos, tudo destruido e destruido sem esperan�a; e eu, a mais afflicta e infeliz das mulheres, eu que saboreei a inebriante ambrosia dos seus juramentos de amor, estou condemnada a ver essa potente e elevada ras�o, similhante ao bronze fendido, n�o dar sen�o sons falhos e dissonantes; e tanta belleza e juventude crestadas pelo s�pro da demencia! Oh infeliz, oh desgra�ada, que vi o que vi, e vejo o que vejo!!! S�em de tr�s da cortina o REI e POLONIO O REIO amor! n�o � a ella que elle dedica a sua affei��o; alem d'isso o seu fallar, aindaque um pouco falto de logica, n�o tem cunho de loucura. Ha na sua alma alguma dor secreta. Receio algum perigo que nos seja fatal. Para prevenir esse resultado, eis o plano que formei e no qual assentei. Quero que Hamlet parta sem demora para Inglaterra, para reclamar o tributo a que esse paiz se nega e a que � obrigado. Talvez que o mar, a mudan�a de clima, a vista de objectos novos, lhe restituam [69] a ras�o, expulsando do seu cora��o aquella obstinada preoccupa��o. Que lhe parece? POLONIOParece-me acertado. Comtudo persisto na minha id�a, que um amor desprezado � a causa unica da sua dor. (A Ophelia) N�o precisas referir-nos o que te disse o sr. Hamlet. Tudo ouvimos. (Ao rei) Senhor, fa�a o que lhe parecer conveniente, mas se me quer dar ouvidos, diga � rainha, que, depois da representa��o, o chame a s�s e inste para conhecer d'elle a causa da sua m�gua; por�m cumpre que lhe falle severamente: com o vosso assentimento ouvirei escondido toda a conversa��o. Se a rainha n�o pod�r penetrar aquelle espirito rebelde a toda a confidencia, ordene-lhe ent�o a partida, e desterre-o, senhor, para o logar que a prudencia lhe dictar. O REIConcordo plenamente comtigo; nos grandes � que a demencia deve ser mais vigiada. (S�em todos.) SCENA IIUma sala no castello de ElsenorEntram HAMLET e differentes actores HAMLET (a um dos actores)N�o esque�as de dizer aquelle trecho, tal qual o declamei na tua presen�a; mais que tudo fogo e energia; mas se o recitares como a maior parte dos actores, mais me valeria ouvir a minha prosa na b�ca de um pregoeiro. N�o movas descompassadamente os bra�os, acciona moderadamente; no meio mesmo da torrente, da tempestade, do tuf�o, da paix�o, procura ser comedido. Nada impressiona mais desfavoravelmente, do que ver homens robustos reduzirem a p� uma paix�o e escorchar os ouvidos dos assistentes, que, pela maior parte, n�o merecem sen�o uma declama��o absurdamente arrebatada e uma ac��o desordenada. A�outados mereciam esses actores, cujo accionado mais parece renhida batalha, e que mais crueis se fingem que um Herodes de comedia. Pe�o-te que evites esses defeitos. [70] PRIMEIRO ACTORPela minha parte, prometto-lh'o, senhor. HAMLETN�o v�s tambem ca�r no excesso contrario, sirva-te de guia a tua intelligencia. Accommoda a ac��o �s palavras, as palavras � ac��o, tendo sempre em vista a naturalidade; s� � proprio da scena intelligente, que foi e � o espelho em que se deve reflectir a natureza, mostrar a virtude tal qual �, a vaidade sem v�u, e cada tempo e cada idade com a sua physionomia propria e com o cunho de verdade. Se se excede, ou se fica �quem do fim proposto, poder� excitar-se a hilaridade do homem ignorante, mas afflige-se o sensato, cujo juizo vale mais que o suffragio de uma sala inteira. Oh! vi representar e ouvi elogiar actores, que, Deus me perd�e, nada tinham de christ�o na voz, nada de christ�o, pag�o ou mesmo humano no porte, e que se estorciam e bramavam de tal modo, que sempre os julguei obra de algum aprendiz da natureza, que, querendo fabricar homens, errou a voca��o, e n�o tinha produzido sen�o uma desgra�ada imita��o da humanidade. PRIMEIRO ACTOREspero em Deus, que vossa alteza n�o nos poder� notar taes defeitos; entre n�s, senhor, est�o banidas de todo as exagera��es. HAMLETMas que o estejam na verdade; que os bobos n�o digam mais do que ao que s�o obrigados pela sua parte; alguns ha que introduzem alguma facecia para excitar o riso dos espectadores ignaros no ponto em que mais atten��o se reclama da parte do publico. � um desacerto, e o bobo que recorre a esses expedientes, mostra uma pretens�o desgra�ada. V�o-se agora preparar. (Os actores s�em.) Entram POLONIO, ROSENCRANTZ e GUILDENSTERN HAMLET (a Polonio)Ent�o o rei est� decidido � nossa pe�a? POLONIOCom certeza, e a rainha tambem. N�o tardam. [71] HAMLETDiga ent�o aos actores que se aviem. (Polonio s�e.) HAMLET (continuando, a Rosencrantz e Guildenstern.)Querem fazer-me o favor de tambem ir apressar os preparativos. AMBOSSim, meu senhor. (S�em.) Entra HORACIO HAMLETAh, �s tu, Horacio? HORACIOEstou sempre �s suas ordens, meu senhor. HAMLETMeu caro Horacio, �s a flor dos homens, cujo trato tenho cultivado. HORACIOMeu querido senhor. HAMLETN�o julgues que te lisonjeio; que posso eu esperar de ti, cujas unicas rendas s�o a jovialidade e a honestidade. Quem lisonjeia um pobre? N�o, que a lisonja roja-se aos p�s da opulencia estupida, e o servilismo curva o joelho, � espera do comprador. Escuta, depois que a minha alma p�de livremente escolher e soube distinguir os homens, marcou-te com o s�llo da predilec��o, porque reconheceu em ti um homem que n�o se abate pelos revezes; um homem que acceita com a mesma indifferen�a os favores e os rigores da fortuna; felizes os mortaes em quem o juizo e as paix�es t�em igual imperio, e n�o s�o um joguete nas m�os da fortuna. Mostrem-me um homem que n�o seja escravo das paix�es, e ter� conquistado, como tu, o meu cora��o, e abrir-lhe-hei o santuario da affei��o mais �ntima. Basta sobre o assumpto. Deve-se hoje representar na presen�a do rei um drama, no qual ha uma scena, que � a historia da morte de meu pae, cujos pormenores j� em tempo te contei. Quando se approximar a scena, observa meu tio, com toda a vigilancia que auctorisam as minhas suspeitas; se o segredo do seu crime se n�o revelar por alguma palavra, ent�o [72] era a appari��o obra do demonio, e as minhas imagina��es s�o mais negras que as lavas e cinzas de um vulc�o. Tu observa-o attentamente, eu n�o o perderei de vista; depois, juntando os nossos juizos, concluiremos conforme ao que virmos. HORACIOMuito bem, senhor, t�o firme estarei no meu posto de observa��o, que juro por Deus, que me n�o escapar� um movimento, uma impress�o da sua alma. HAMLETEil-os que chegam para a representa��o; agora, cumpre-me ser espectador indifferente. (Ouve-se a marcha real e clarins.) Entram o REI, a RAINHA, POLONIO, OPHELIA, ROSENCRANTZ, GUILDENSTERN e a CORTE O REIComo passa nosso sobrinho Hamlet? HAMLETMelhor n�o p�de ser; em verdade passei a viver como os camale�es, nutro-me s� de ar, e alimento-me de promessas, as iguarias mais finas n�o me satisfariam melhor. O REIA tua resposta �-me inintelligivel; n�o � de certo a mim que ella � dirigida. HAMLETPois nem a mim. (A Polonio.) N�o me disse que j� tinha representado uma vez, quando cursava a universidade? POLONIO� verdade, senhor, e era reputado um habil actor. HAMLETQue parte representou? POLONIOA de Julio Cesar; assassinaram-me no capitolio; Bruto apunhalava-me. [73] HAMLETQue brutalidade apunhalar, e n'aquelle logar, um t�o excellente bezerro. Os actores j� est�o promptos? ROSENCRANTZSim, meu senhor, esperam s� as ordens. A RAINHAVem, meu Hamlet, sentar-te a meu lado. HAMLETN�o, minha m�e; (mostrando Ophelia) este metal tem mais for�a de attrac��o. POLONIOQue me diz agora, senhor? HAMLETSer-me-ha permittido estar a vossos p�s, senhora? (Senta-se no ch�o aos p�s de Ophelia.) OPHELIAN�o, meu senhor. HAMLETQueria dizer, recostar a cabe�a sobre vossos joelhos. OPHELIASim, meu senhor. HAMLETPensaveis talvez que tivesse outra id�a? OPHELIANada pensava. HAMLET� um pensamento este digno de um cora��o de donzella. OPHELIAO que, senhor? HAMLETNada. OPHELIAVejo-o hoje alegre, senhor. [74] HAMLETQuem, eu? OPHELIASim, vossa alteza. HAMLETSou o seu bobo e nada mais. Cousa alguma ha melhor para o homem do que a alegria. Repare, veja como minha m�e est� hoje muito alegre, e ainda n�o ha duas horas que meu pae morreu. OPHELIAVossa alteza engana-se por certo; ha mais de duas vezes dois mezes. HAMLETTanto tempo!! n'esse caso use o demonio o lucto, eu quero vestir-me de arminhos. Oh c�us, morto ha dois mezes, e ainda n�o esquecido, n�o � ent�o de estranhar que a recorda��o de um grande homem dure mais de seis mezes; mas, pela Virgem Santa, deve ent�o ter edificado igrejas, ali�s arriscava-se a que o esquecessem, como aquelle a quem lavraram este epitaphio: Aqui jaz esquecido um cavallo de pau. Soam os clarins, come�a a pantomima (Um rei e uma rainha entram em scena, o seu aspecto � de namorados, abra�am-se. A rainha ajoelha aos p�s do rei, mostrando pelos seus gestos que lhe protesta o mais vivo amor. O rei levanta-a, e inclina a cabe�a sobre o seu hombro; depois deita-se n'um banco coberto de flores. A rainha vendo-o adormecido, s�e. Apparece um personagem que lhe tira a cor�a e a leva aos labios, lan�a veneno n'um ouvido do rei, e s�e em seguida. Volta a rainha, acha o rei morto, e d� mil signaes de desespero. O envenenador seguido por duas ou tres pessoas, chega e parece lamentar-se com a rainha. O cadaver � levado da scena. O envenenador requesta a rainha, d�-lhe presentes. Ella mostra a principio repugnancia, mas acaba por acceitar o amor offerecido. S�em.) OPHELIAQue significa esta scena, senhor? HAMLETNada que seja bom, � um la�o armado ao crime. OPHELIAEsta pantomima indica sem duvida o entrecho da pe�a? [75] Entra o PROLOGO HAMLETVamos sabel-o, os comediantes n�o podem guardar um segredo, t�em por costume fallar sempre. OPHELIAExplicar� elle o que significa a pantomima? HAMLETSem duvida, n�o s� essa, mas todas as que lhe quizer apresentar, qualquer que seja a sua especie, e ter� a explica��o prompta. OPHELIAO principe � mau, deixe-me seguir a pe�a. O PROLOGO Pedimos, para n�s, toda a vossa indulgencia; HAMLETParece antes divisa de annel do que prologo. OPHELIAT�o curto, senhor. HAMLETComo o amor de uma mulher. Entram um REI e uma RAINHA O REI DA PE�A Trinta vezes
de Phebo o carro luminoso A RAINHA DA PE�A Possamos lua e sol, ver outras tantas vezes, O REI DA PE�A Bem cedo � for�a, amor, que d'este mundo eu parta, A RAINHA DA PE�A Oh! basta, senhor, basta! HAMLETIsto � absintho, e que absintho! A RAINHA DA PE�A Poisque motivo arrasta a viuva ao casamento? O REI DA PE�A Creio bem, que pensaes o que dizeis, se creio?! A RAINHA DA PE�A Negue-me a terra o p�o, e a luz o firmamento! HAMLETE se lhe acontecer violar o juramento? O REI DA PE�A Solemne juramento!... Amor, deixa-me agora; A RAINHA DA PE�A Que um somno brando e doce embale a tua mente HAMLETSenhora, como acha esta pe�a? A RAINHAA rainha parece-me que faz demasiados protestos. HAMLETMas dada a palavra, n�o p�de faltar. [78] O REIConhece a pe�a? n�o cont�m nada reprehensivel? HAMLETAbsolutamente nada; tudo quanto cont�m � s� gracejo, at� se envenena por gracejo. � a pe�a mais inoffensiva que p�de haver. O REIQue titulo tem? HAMLETO La�o, j� se sabe, por metaphora. O assumpto da pe�a � um assassinio commettido em Vienna. O rei chama-se Gonzaga, sua mulher Baptista. Vae ver, um crime horrivel. Mas que importa a vossa magestade e a mim, que temos a consciencia pura e que nada temos a receiar! O peior � para aquelles a quem punge algum espinho, a n�s nada nos pesa na consciencia. Entra LUCIANO HAMLET (continuando)� este um chamado Luciano, sobrinho do rei. OPHELIAVossa alteza faz o servi�o do c�ro. HAMLETPodia at� servir de ponto n'uma conversa sua com o seu amante; o caso era eu ver manobrar os dois titeres. OPHELIASois na verdade mordaz, principe; sois bem mordaz. HAMLETA sua pena seria que eu deixasse de o ser. OPHELIADe bem para melhor, de mal para peior. HAMLET� a sorte que a espera na escolha de um marido! Come�a, [79] assassino. P�e de parte esses horriveis tregeitos, avia-te, come�a. Eis o corvo que avan�a, LUCIANO O pensamento negro, o bra�o bem disposto, (Deita veneno n'um ouvido do rei adormecido.) HAMLETEnvenena-o no jardim, para se apoderar da cor�a. O nome do rei � Gonzaga; � uma historia authentica escripta no mais elegante italiano. Ver�o como logo o assassino obtem o amor da mulher de Gonzaga. OPHELIAO rei levantou-se. HAMLETQu�!! um pequeno clar�o apenas, j� o assusta? A RAINHAQue tem, senhor? POLONIOCesse a pe�a. O REITragam luzes. Sai�mos. POLONIOLuzes, venham luzes, luzes. (Todos s�em, excepto Hamlet e Horacio.) HAMLET Sim! que fuja e que chore o cervo mal ferido, Se alguma vez a fortuna me maltratar, n�o bastaria uma scena de effeito como esta, acrescentando-lhe um chap�u ornado de pennas, e duas rosas de Proven�a nos la�os dos sapatos, para que me admittissem n'uma companhia dramatica. [80] HORACIOTalvez o admittissem, mas com meia paga. HAMLETOu inteira. Porque sabes, Damon, bem sabes tu que outr'ora HORACIOFoi pena n�o rimar. HAMLETMeu querido Horacio, aposto mil libras esterlinas, em como a sombra fallou s� a verdade. Reparaste? HORACIOEm tudo reparei, senhor. HAMLETQuando se tratava do envenenamento? HORACIOTudo observei. HAMLETAh! ah! ah! quero musica, tanjam as charamelas. Porque, se da comedia o rei n�o gosta nada, Venha a musica, quero muita musica. (Entram Rosencrantz e Guildenstern.) GUILDENSTERNSenhor, permitta-me que lhe d� uma palavra. HAMLETMil at�, se n'isso fizer gosto. GUILDENSTERNSenhor... o rei... HAMLETQue �?... que me vem dizer d'elle? GUILDENSTERNRetirou-se aos seus aposentos, estranhamente indisposto. [81] HAMLETPelo vinho? GUILDENSTERNN�o, senhor, mas pela colera. HAMLETMais assisado seria terem chamado um medico. Eu n�o faria sen�o exacerbar a sua colera com a minha presen�a. GUILDENSTERNQueira, senhor, ter mais nexo nos seus discursos, e n�o se afastar assim t�o bruscamente da quest�o. HAMLETEscutal-o-hei tranquillamente. Falle. GUILDENSTERNA sua rainha e m�e me envia a vossa alteza. HAMLETBemvindo seja. GUILDENSTERNSenhor, essa polidez � mal cabida n'esta occasi�o. Se me promette responder rasoavelmente, executarei ent�o as ordens de sua m�e, quando n�o, retiro-me pedindo desculpa a vossa alteza. HAMLETN�o posso. GUILDENSTERNO que, meu senhor? HAMLETResponder rasoavelmente; a minha intelligencia enfermou, no emtanto dar-lhe-hei uma resposta, ou antes como ordena a minha m�e, a melhor que pod�r. Diga-me agora, que pretende de mim a rainha? ROSENCRANTZEncarregou-nos de lhe dizer, principe, que o seu comportamento lhe causou espanto e dor. HAMLETAh! sou pois um filho t�o extraordinario que causo espanto e dor a minha m�e! Nada mais lhe disse? Fallem. [82] ROSENCRANTZDeseja fallar-lhe, alteza, no seu quarto, antes de o principe se deitar. HAMLETObedecer-lhe-hemos, aindaque fosse dez vezes nossa m�e. Tem mais alguma cousa a dizer? ROSENCRANTZHouve tempo em que o principe era meu amigo. HAMLETAinda hoje o sou, juro-o por estes dez dedos. ROSENCRANTZSenhor, qual � a causa da sua dor profunda? � impor-se um constrangimento inutil, guardar esse segredo para comnosco, que somos t�o seus amigos. HAMLETInquieta-me o meu futuro! ROSENCRANTZComo p�de isso ser, pois o rei j� o escolheu para successor ao throno de Dinamarca? HAMLET� verdade; mas guardado est� o bocado... o proverbio � antigo. Entram differentes actores cada um com uma charamela HAMLETAh! chegam as charamelas, d�-me uma. (Tira a charamela a um dos actores.) Quer que o acompanhe? ent�o deixe de me perseguir como o ca�ador persegue a ca�a. GUILDENSTERNSe o meu z�lo, senhor, me faz obstinado, � porque a affei��o me torna importuno. HAMLETN�o o posso comprehender, faz-me favor de tocar n'esta charamela. [83] GUILDENSTERNSenhor, eu n�o sei! HAMLETPe�o-lhe. GUILDENSTERNCreia-me, senhor, n�o posso. HAMLETSupplico-lhe. GUILDENSTERNSe nunca soube tocar tal instrumento! HAMLETPois mais difficil � mentir. Com os quatro dedos e o pollegar tapam-se e destapam-se por sua vez os orificios; sopre, e ver� que encantadora harmonia produz. Vamos. GUILDENSTERNMas, senhor, eu n�o posso nem sequer tirar um som d'este instrumento; falta-me o talento. HAMLETQue especie de imbecil me julga ent�o? Sou a seus olhos um instrumento de que pretende tirar sons, e que parece conhecer t�o bem. Pretende sondar at� ao fundo da minha alma, para descobrir o meu segredo; queria ent�o fazer vibrar todas as cordas do meu sentimento. D'este pequeno instrumento (Mostrando-lhe a charamela) tiram-se sons e notas as mais melodiosas; e comtudo nas suas m�os n�o p�de fallar. Pela Virgem santa, sou ent�o mais facil de tocar do que uma flauta? O que lhe asseguro � que se me julga um instrumento nas suas m�os, nunca conseguir� fazel-o fallar. Est� muito enganado commigo. Entra POLONIO HAMLET (continuando)Guarde-o Deus. POLONIOSenhor, a rainha deseja fallar-lhe immediatamente. [84] HAMLET (approximando-se de uma janella)V� acol� aquella nuvem que tem quasi a f�rma de um camello? POLONION�o ha duvida, dir-se-ia effectivamente um camello. HAMLETParece-se mais com uma doninha. POLONIO� verdade! tem o feitio da doninha. HAMLETOu de uma baleia? POLONIORealmente, com o que se parece � com uma baleia. HAMLETAgora vou ter com minha m�e, h�o de acabar por enlouquecer-me dev�ras. Vou j�. POLONIOVou communical-o � rainha. (Polonio s�e.) HAMLETJ�! � facil dizel-o. Deixem-me s�s, meus amigos. (S�em todos excepto Hamlet.) HAMLET (s�)� esta a hora da noite propria dos mysterios da magia, a hora em que os tumulos se abrem, em que o inferno exhala sobre a terra o seu sopro contagioso; agora sinto-me capaz de beber sangue ainda fumegante, e commetter actos que o dia consternado n�o poderia presencear sem terror! Prudencia! Vamos ao quarto de minha m�e. Oh! meu cora��o, n�o dispas o teu vigor; firmeza agora, mas que o cora��o de Nero nunca entre em meu peito. Sejamos inflexiveis, mas n�o filho desnaturado; seja a minha lingua um punhal, mas minha m�o esteja desarmada; e n'esta occasi�o sejam a minha b�ca e o meu cora��o obrigados pela ras�o a dissimular. Por mais violentas que sejam as minhas palavras, dae-me for�a, meu Deus, para que sejam sempre comedidas, assim como os meus actos. (S�e.) [85] SCENA IIIUm quarto no castello de ElsenorEntram o REI, ROSENCRANTZ e GUILDENSTERN O REIHa n'elle alguma cousa que me desagrada, e creio que haveria perigo para n�s em n�o vigiar a sua loucura; fa�am pois todos os preparativos de viagem. Vou dar as ordens, e quero que parta sem demora para Inglaterra acompanhado pelos senhores. O interesse da nossa cor�a me veda o expor-me aos continuos perigos com que a sua demencia me amea�a. GUILDENSTERNVamo-nos preparar. � um receio santo e salutar o que tem por objecto assegurar a salva��o de innumeras existencias, que depende da vida de vossa magestade. ROSENCRANTZ� um dever que toca a cada um na sua esphera individual, o applicar todas as suas for�as e toda a energia para defender a propria vida contra qualquer ataque; quanto mais obrigado a fazel-o � aquelle de cuja vida dependem tantas existencias! Quando um rei morre, n�o morre s�, � um turbilh�o que attrahe tudo quanto encontra no caminho, ou lhe fica proximo: roda colossal fixada no cume de uma elevada montanha, cujos gigantescos raios est�o carregados de innumeros accessorios, e cuja qu�da os impelle for�osamente a um desastre commum. Quando o rei padece, padecem todos. O REIPreparem-se, pe�o-lh'o, para uma partida immediata, porque estamos resolvidos a p�r um termo �s causas de inquieta��o que demasiado livremente se d�o n'este paiz. AMBOSN�o nos faremos esperar. (S�em.) [86] Entra POLONIO POLONIOSenhor, Hamlet entrou agora para o quarto de sua m�e; occultar-me-hei cuidadosamente para ouvir a sua conversa. Asseguro a vossa magestade que a rainha o vae reprehender severamente. � conveniente, como el-rei muito bem disse, que outros ouvidos que n�o sejam os de m�e, naturalmente propensos � indulgencia, ou�am o que se disserem mutuamente. Adeus, meu senhor; virei aos seus quartos antes que vossa magestade se recolha, e o rei ser� sabedor de tudo quanto se passou. O REIObrigado, Polonio. (Polonio s�e.) O REI (s�)O meu crime j� n�o tem perd�o no c�u, est� marcado pelo estigma da maldi��o divina, como o foi o primeiro fratricida. Apesar de todos os meus desejos, n�o posso orar; pare�o um homem que duas occupa��es reclamam, e que, n�o sabendo por qual optar, n�o escolhe nenhuma. Poisque, quando sobre esta m�o maldita se formasse uma crosta de sangue mais espessa que a propria m�o, n�o teria o c�u bastante misericordia para que a onda da sua gra�a a purificasse e a tornasse branca como a neve? Para que serve a bondade divina, sen�o para remir as nossas culpas? De que vale a ora��o, se n�o tem a dupla virtude de prevenir a nossa qu�da, ou obter o perd�o depois d'ella? Dirij�mos as nossas supplicas ao c�u, j� que n�o podemos evitar o crime consummado. Mas, infeliz, como hei de orar? Perdoae-me, Senhor, o meu crime nefando. N�o posso, poisque possuo os objectos que me induziram ao assassinio, cor�a, throno e consorte. Poder-se-ha obter o perd�o, quando se conservam os fructos do crime? N'este mundo corrompido, a iniquidade p�de a pre�o de oiro desviar o curso da justi�a, e com o producto do crime comprar a impunidade; mas o c�u � justo, todo o subterfugio � inutil; ali os nossos actos s�o justamente avaliados e os nossos crimes conhecidos. Que devo fazer? Nada me resta. Tentemos o arrependimento. Grande � a sua efficacia; mas que p�de n'aquelle a quem mesmo o arrepender-se � vedado? Oh! deploravel condi��o, oh! consciencia negra como a morte, oh! minha alma, n�o tens perd�o, e quanto [87] mais te esfor�ares por obtel-o, mais aggravas a tua situa��o. Anjos do c�u, vinde em meu auxilio, tentae um esfor�o supremo. Dobrae-vos, joelhos rebeldes. E tu, meu cora��o, que as tuas fibras de a�o voltem ao estado primitivo das do recem-nascido. Ainda me resta esta ultima esperan�a. (Retira-se a um lado da scena, ajoelha e ora.) Entra HAMLET HAMLET (vendo o rei)A occasi�o � propicia, est� orando. Coragem, Hamlet. Sim, mas salvar-se-�a a sua alma, e n�o � essa a minha vingan�a desejada. Reflict�mos; um scelerado assassina meu pae, e eu, seu filho unico, abro as portas do c�u a esse infame! Seria uma recompensa e n�o um castigo. Assassinou meu pae, entregue �s preoccupa��es da carne, quando seus peccados mais vivazes estavam, como as flores na primavera; e quem sabe, a n�o ser o c�u, que contas daria ao Creador? as penas eternas, de certo, n�o o pouparam. Seria uma vingan�a immolar este scelerado, quando a sua alma deve estar pura, quando est� preparado para a sua ultima viagem? N�o! Entra na tua bainha, minha espada, e espera para ferir, golpe mais terrivel e justo. Quando estiver ebrio ou adormecido, ou encolerisado, ou immerso nos prazeres de um leito incestuoso, ou absorvido pelo jogo, ou blasphemando, ou praticando algum acto contrario � salva��o da sua alma, ent�o fere, que as penas do inferno ser�o poucas para um tal crime. (Olhando para o rei.) Prolonga ainda os teus dias enfermos: adiar n�o � desistir. (S�e.) O REISobem as minhas palavras, o pensamento n�o, e as palavras sem o pensamento n�o chegam ao c�u. (S�e.) SCENA IVUm quarto no castelloEntram a RAINHA e POLONIO POLONIOO sr. Hamlet n�o tarda. Reprehenda-o asperamente; diga-lhe que os seus atrevimentos excedem os limites da paciencia, [88] e que vossa magestade j� teve que se interpor entre elle e a colera do rei. Nada mais digo, senhora, pe�o s� que falle com firmeza. A RAINHAFallar-lhe-hei com firmeza, esteja descansado. Afaste-se, ou�o os seus passos. (Polonio esconde-se.) Entra HAMLET HAMLETQue me quer, minha m�e? A RAINHAHamlet, offendeste gravemente teu pae. HAMLETMinha m�e offendeu gravemente meu pae! A RAINHAComo insensato fallas. HAMLETA rainha falla como culpada! A RAINHAQue queres tu dizer, Hamlet? HAMLETO que �, senhora? A RAINHAEsqueces quem eu sou? HAMLETPela cruz do Redemptor, que n�o. Rainha �, foi esposa do irm�o de seu marido, e prouvera a Deus que n�o o fosse, mas � minha m�e! A RAINHAMandar-te-hei alguem que melhor do que eu te saiba fallar. HAMLETVamos, sente-se, minha m�e. N�o se mover�, n�o sa�r� d'aqui emquanto eu n�o tiver posto diante dos seus olhos um espelho em que possa ver at� �s profundidades da sua alma. [89] A RAINHAQue pretendes de mim? queres tu porventura assassinar-me? Acudam � rainha, acudam! POLONIO (por detr�s do reposteiro)O que �! ol�, soccorro! HAMLET (desembainhando a espada)Que � isso? Um rato? (Dando-lhe uma estocada.) Aposto um ducado em como o matei! POLONIO (atr�s do reposteiro)Mataram-me, eu morro. (C�e para f�ra do reposteiro e morre.) A RAINHAQue fizeste, infeliz? HAMLETIgnoro-o; seria o rei? (Levanta o reposteiro e puxa pelo cadaver de Polonio.) A RAINHAQue acto de crueldade e de sangue! HAMLETDe sangue; quasi t�o reprehensivel, minha m�e, como assassinar um rei e desposar o irm�o! A RAINHAAssassinar um rei? HAMLETSim, um rei, foi o que eu disse. (A Polonio.) Quanto a ti, pobre diabo, louco, temerario e indiscreto, as nossas contas est�o ajustadas, aprendeste � tua custa o perigo que corre quem se intromette nos negocios dos outros. (� rainha.) Cesse de estorcer-se. Silencio, sente-se, quero torturar o seu cora��o, e fal-o-hei, se ainda possue alguma sensibilidade, e o habito do crime n�o a bronzeou a ponto de ser insensivel a toda a especie de emo��o. A RAINHAQue fiz eu, Hamlet, para que me falles n'esse tom amea�ador? [90] HAMLETUma ac��o que mancha o rubor e a gra�a do pudor; que transforma a virtude em hypocrisia; que arranca � fronte innocente do amor a sua cor�a de rosas, e a substitue por uma chaga asquerosa; que torna os juramentos do hymeneu t�o falsos como os do jogador! Oh! uma ac��o que rouba ao corpo dos contratos a santidade, que � a sua alma, e faz da religi�o uma rapsodia de palavras. Indigna-se o c�u, contrista-se o globo solido e compacto, l�-se-lhe nas faces a consterna��o como se fosse o ultimo dia do mundo. A RAINHAQual � pois a ac��o que denunciam este amea�ador preludio e esta express�o fulminante? HAMLET (mostrando dois retratos em p� que ornam as paredes)Veja bem esses dois retratos, s�o as imagens de dois irm�os. Veja que gra�a impressa n'estas fei��es: o cabello annellado de Apollo; a fronte do proprio Jupiter; o olhar de Marte, onde se l� a commando e a amea�a; o porte de Mercurio, o mensageiro celeste, quando apenas pousa o alado p� sobre o cimo das nuvens; uma t�o feliz reuni�o das f�rmas perfeitas, que cada um dos deuses parecia ter contribuido com o seu quinh�o, como se quizessem mostrar ao mundo o modelo do verdadeiro homem! Esse era o seu primeiro esposo. Volva agora os olhares para este lado. Eis o que � o seu segundo esposo! que, similhante � espiga mangrada, pelo seu contacto causa a morte a sua irm� a espiga s�. E saber� ver? Como p�de ent�o abandonar as ferteis e salubres collinas, para se immergir n'este immundo paul!! Se ainda tem olhos, senhora, n�o p�de imputar ao amor o seu comportamento; na sua idade j� se acalmou a effervescencia do sangue, e a paix�o obedece � ras�o. E qual seria a creatura racional, que ousasse trocar o seu primeiro marido por este segundo? � sem duvida dotada de sensibilidade, ali�s n�o seria um ser animado; mas na senhora est�o paralysados todos os sentimentos, porque n�o ha demencia que n�o deixe ao que verga sob o seu peso uma por��o bastante de discernimento, para saber escolher entre objectos t�o dissimilhantes. Que demonio a perturbou a ponto de lhe vendar os olhos? A vista sem o tacto, o tacto sem o auxilio da vista, o ouvido sem o uso das m�os e dos olhos, o olfato s� por si, [91] uma por��o mesmo alterada de um verdadeiro sentido, n�o podiam ter-se enganado t�o estultamente. Oh! vergonha! onde est� o teu rubor? Inferno rebelde, que assim p�des atear a revolta nos sentidos de uma mulher, ha muito esposa e m�e. Que admira que, para a ardente juventude, a virtude seja como a cera, que se derrete � chamma que alimenta; que n�o seja vergonha ceder quando nos arrasta a paix�o, poisque o proprio crystal se funde e a ras�o prostitue aos desejos os seus vergonhosos servi�os. A RAINHAOh! Hamlet, cessa por piedade, obrigas o meu olhar a volver-se todo para a minha alma, e n'ella descubro m�culas t�o negras e t�o profundamente impressas, que nada j� as p�de lavar. HAMLETViver no suor impuro de um leito infecto, sobre o esterco da corrup��o, revolver-se no loda�al de um asqueroso amor. A RAINHACala-te, Hamlet, as tuas palavras s�o outras tantas punhaladas. Piedade! querido filho! HAMLETUm assassino, um scelerado, um miseravel, que n�o vale a centesima parte do seu primeiro marido, um rei de comedia, um ladr�o, que empalmou o poder, e que achando a cor�a debaixo de m�o, a roubou e a metteu no bolso! A RAINHAHamlet! HAMLETUm palha�o! Entra a SOMBRA HAMLETProtegei-me e abrigae-me sob vossas azas, anjos do c�u. (� sombra) Que pretendes de mim, sombra querida? A RAINHAInfeliz! enlouqueceu. [92] HAMLET (� sombra)Vens tu reprehender a tibieza de teu filho, que, deixando passar o tempo, arrefecer a sua indigna��o, n�o se apressou em cumprir os teus terriveis preceitos? Falla! A SOMBRARecorda-te que o unico fim d'esta minha appari��o � atear em ti o fogo da resolu��o. Mas v�, tua m�e est� succumbida, interp�e-te entre ella e os seus remorsos; � nas mais debeis organisa��es que mais estragos causa a imagina��o. Falla-lhe tu, Hamlet. HAMLETComo se sente, minha m�e? A RAINHAEu � que te devia fazer essa pergunta! Por que est� teu olhar fito no espa�o? por que conversas com seres immateriaes? Teu olhar indefinido revela a lucta da tua alma; como um soldado acordado em sobresalto; teus cabellos, como se a vida os animasse, levantam-se e ouri�am-se sobre a tua fronte. Oh! meu querido filho, apaga a chamma da tua colera, com as tranquillas e limpidas aguas da paciencia! Mas para onde olhas tu? HAMLET� elle! Elle! Como est� pallido! O seu aspecto, e o motivo que aqui o traz, commoveriam as proprias pedras. (� sombra) Descrava de mim os teus olhos, receio que me fene�a a resolu��o, vendo teu triste e commovente olhar; que se transforme o caracter dos meus actos talvez em lagrimas em vez de sangue. A RAINHAMas, filho, a quem fallas assim? HAMLETN�o v� nada, minha m�e? A RAINHANada, sen�o tudo quanto existe n'esta camara. HAMLETE nada ouviu? [93] A RAINHACousa alguma, a n�o ser as tuas palavras. HAMLETMas olhe, minha m�e, n�o v� como elle se afasta, triste e pensativo? � meu pae, vestido como trajava em sua vida. Eil-o, transp�e agora mesmo a porta. Sa�u. (A sombra s�e.) A RAINHA� � exalta��o da tua imagina��o e ao delirio que de ti se apoderou, que s�o devidas estas crea��es phantasticas. HAMLETO delirio! Senhora, apalpe o meu pulso, e conhecer� que n�o est� menos tranquillo que o seu. N�o fallei influenciado pelo delirio. Interrogue-me; em vez de divagar, repetir-lhe-hei textualmente as minhas palavras; n�o estou louco; engana-se, minha m�e. Por Deus, n�o se embale, no pensamento falso, que � o meu delirio e n�o a sua culpa que me faz fallar! Seria cicatrizar exteriormente a chaga, que a consciencia nunca deixaria de augmentar interiormente. Confesse-se ao c�u, arrependa-se do passado, premuna-se para o futuro, e n�o d� pasto ao verme do remorso, que acabar� por totalmente corroer o seu cora��o e obliterar a sua consciencia. Perdoe � minha virtude, porque n'este mundo sordido e venal a virtude deve implorar o perd�o do vicio e pedir o favor de poder fazer o bem. A RAINHAOh! Hamlet! Dilaceras-me o cora��o. HAMLETExpulse a parte corrompida, e com a outra metade viva tranquilla e pura. Boa noite; evite meu tio, e se n�o pod�r ser virtuosa, ao menos pare�a-o. O habito, esse monstro, que destroe e neutralisa em n�s toda a sensibilidade, esse demonio do habito, � anjo n'isto, porque consente � virtude e �s boas ac��es as suas vestes proprias. N�o veja hoje o seu esposo, tornar-lhe-ha mais facil a absten��o futura; o habito tudo p�de, muda a natureza individual, doma o demonio, e expulsa-o com o seu maravilhoso poder. Boas noites mais uma vez! e quando sentir a necessidade da ben��o divina, ent�o [94] pedir-lhe-hei a sua. (Mostrando Polonio.) Quanto a este homem, arrependo-me do que fiz; mas obedeci ao c�u; assim o quiz tornando-me instrumento das suas vingan�as, punindo-o por mim, a mim por elle. Sepultem-no, eu responderei pela morte que lhe dei! Adeus, pois. Cumpre-me ser cruel por humanidade; o primeiro mal est� feito, o maior ainda ha de vir. Uma palavra ainda. A RAINHAQue devo fazer? HAMLETNada do que eu lhe disse! Receba as caricias do avinhado monarcha, preste as suas faces aos seus osculos, ou�a-lhes as palavras de amor; ent�o n'um diluvio de ardentes osculos, entre as mais lubricas caricias, confesse-lhe, revele-lhe tudo, diga-lhe que nunca estive louco, que o fingi, fa�a-lhe essa confidencia. Qual seria a rainha, bella, sensata e honesta, que hesitasse em confiar �quelle animal immundo e repellente, asqueroso reptil, t�o importantes segredos? Quem guardaria silencio? Ninguem. Depois, olvidando o bom senso e a discri��o, abra a gaiola e deixe voar as avesinhas, e seguindo o exemplo do bugio da legenda, por simples experiencia, introduza-se na gaiola e rompa o pesco�o ca�ndo! A RAINHAAcredita, Hamlet, que se as palavras se compozessem de f�lgo e o f�lgo de vida, eu n�o teria vida para articular as que tu me disseste. HAMLETDevo partir para Inglaterra; sabe-o sem duvida, minha m�e? A RAINHAInfeliz! Tinha-me esquecido; pois isso est� definitivamente determinado? HAMLETHa cartas selladas, e os meus dois companheiros de estudos, nos quaes me fio tanto como na innocencia dos envenenados dardos das viboras, s�o os portadores da ordem! S�o elles que me h�o de aplanar o caminho, e se encarregar�o de me conduzir ao la�o armado pela mais negra trai��o. Deixemos caminhar os acontecimentos. Causa dev�ras prazer ver rebentar nas m�os do proprio artifice a bomba que para outrem [95] preparava. Nada ha, senhora, que nos d� mais gosto do que combater a trai��o, contraminando-a pela sagacidade. A morte de Polonio apressar� a minha partida. Levemos o seu cadaver para a camara vizinha. Boas noites, minha m�e. Este conselheiro est� agora verdadeiramente a sangue frio, discreto e grave; em vida era dotado de estupida garrulice. Agora basta, acabemos por uma vez. Boas noites. Adeus, minha m�e. (A rainha s�e por um lado, Hamlet pelo outro, arrastando o cadaver de Polonio.) Fim do acto terceiro [97] ACTO QUARTOSCENA IUm quarto no castello de ElsenorEntram o REI, a RAINHA, ROSENCRANTZ e GUILDENSTERN O REIEsses suspiros, esse difficil arfar do peito, tudo deve ter uma causa. Queremos conhecel-a e pelos senhores. Onde est� nosso filho? A RAINHA (a Rosencrantz e Guildenstern)Deixem-nos s�s um momento. (Os dois s�em.) (Ao rei) Ah! senhor, que noite esta! O REIQue ha de novo, Gertrudes; em que estado achaste Hamlet? A RAINHAT�o revolta est� a sua ras�o, como o mar e o vento, quando entre si luctam, disputando a sua for�a. N'um dos seus arrebatamentos do delirio, ouvindo mexer atr�s de uma cortina, exclamou: Um rato, um rato, e desembainhando a espada, cravou-a no peito d'aquelle excellente anci�o. O REIOh! triste acontecimento! Igual sorte teria tido se ali me [98] achasse; livre, corremos o maior risco, mesmo tu; todos, emfim. Que ras�es daremos para explicar este acto sanguinario? Taxar-nos-h�o de imprevidentes, a responsabilidade toda ca�r� sobre n�s; dir�o que deviamos ter isolado esse insensato, mas era t�o grande a nossa affei��o, que n�o comprehendemos o que a prudencia nos aconselhava. Obr�mos como um homem atacado de um mal vergonhoso, que para guardar segredo deixa enraizar-se esse mal e destruir toda a seiva vital. Onde est� Hamlet? A RAINHAPondo em logar seguro o cadaver d'aquelle a quem deu a morte. No meio mesmo da sua demencia, conserva-se pura e intacta a sua intelligencia, como um metal precioso encravado em rocha bruta. Rebenta-lhe o pranto ao lembrar-se da ac��o que commetteu. O REISai�mos, Gertrudes. Quando o sol tocar o cume das montanhas, j� Hamlet dever� ter embarcado; logo em seguida partir� para Inglaterra. Quanto a esta odiosa ac��o precis�mos achar na nossa auctoridade e no nosso engenho alguma desculpa que a releve aos olhos do mundo. Ol�, Guildenstern? (Entram outra vez Guildenstern e Rosencrantz.) O REI (continuando)Meus amigos, procurem pessoas que os ajudem e auxiliem. Hamlet, na sua demencia, matou Polonio, cujo cadaver levou para f�ra da camara de sua m�e. Tratem de descobrir onde o occultou, encarrego-os d'esta miss�o. Nada digam que possa irritar Hamlet, e levem o corpo do infeliz Polonio para a capella; pe�o-lhes s� que se aviem. (S�em Rosencrantz e Guildenstern.) O REI (continuando)Vamos, Gertrudes, convoquemos os nossos mais doutos amigos, demos-lhe a conhecer o nosso designio e a desgra�a acontecida. Precavendo-nos d'este modo, talvez a calumnia, que arremessa o seu dardo envenenado de uma extremidade do mundo � outra, e cujos tiros s�o t�o certeiros, como os do mais perfeito canh�o, poupe o nosso nome, perdendo-se na immensidade do espa�o. Sai�mos d'aqui. Na minha alma n�o sinto sen�o perturba��o e terror! (S�em.) [99] SCENA IIOutro quarto no castelloEntra HAMLET HAMLETDuvido que o encontrem. VOZES DE F�RAHamlet? senhor Hamlet? HAMLETDe vagar. Que rumor � este? Quem ousa chamar Hamlet? Ah! eil-os que chegam. (Entram Rosencrantz e Guildenstern.) ROSENCRANTZSenhor? que fez vossa alteza do cadaver? HAMLETEntreguei-o ao p� de que sa�u. ROSENCRANTZMas em que logar para o podermos levantar e depositar na capella? HAMLETN�o pensem em tal. ROSENCRANTZQue devemos, pois, pensar? HAMLETQue pouco me importo com a sua cabe�a, mas muito com a minha. Interrogado de mais a mais por uma esponja! Que resposta lhe p�de dar o filho de um rei? ROSENCRANTZ� a mim que chama esponja? HAMLETA quem havia de ser? sim a ti, que bebes os favores, as [100] recompensas e o poder real. Mas, no fim de contas, taes officiaes prestam ao monarcha relevantes servi�os, s�o para elle como o fructo que o bugio conserva na b�ca para depois o engulir; quando necessitar do que tem arrecadado, espreme-os como uma esponja, e ficar�o completamente enxutos. ROSENCRANTZN�o comprehendo, senhor! HAMLETEstimo muito. As palavras do traficante s� tem por domicilio os ouvidos do tonto. ROSENCRANTZDiga-nos onde est� o cadaver, e siga-nos � presen�a do rei. HAMLETOnde est� o rei existe um corpo, mas o rei n�o est� n'esse corpo. O rei � uma creatura. ROSENCRANTZUma creatura, senhor? HAMLETUma creatura que nada vale! Conduzam-me � sua presen�a. Vamos jogar as escondidas. (S�em todos.) SCENA IIIUma sala no castelloEntra o REI com a sua comitiva O REIMandei chamar Hamlet e procurar o cadaver. Que perigo deixar livre um tal homem; mas n�o podemos fazer pesar sobre elle todo o rigor das leis. A multid�o insensata estima-o, decidindo-se mais pela vista do que pela ras�o; n'estas circumstancias o que devemos pensar � o castigo dos culpados, nunca o crime s� por si. Para prevenir qualquer descontentamento � for�oso que este precipitado exilio pare�a consequencia de madura reflex�o. Para males desesperados [101] remedios energicos, ou nenhuns. (Entra Rosencrantz.) Ent�o que aconteceu? ROSENCRANTZNada podemos saber da sua b�ca relativamente ao cadaver. O REIOnde est� Hamlet? ROSENCRANTZNo quarto vizinho, esperando debaixo de segura guarda as ordens de vossa magestade. O REIQue venha � nossa presen�a. ROSENCRANTZOl�, Guildenstern. Conduze Hamlet a este aposento. (Entram Hamlet e Guildenstern.) O REIHamlet, onde est� Polonio? HAMLETN'um banquete. O REIN'um banquete?! onde? HAMLETOnde n�o come, mas � devorado. Uma multid�o de vermes politicos disputa o seu cadaver. O verme � o monarcha dos comedores. Engord�mos todas as creaturas para nos engordarmos, e engord�mo-nos para pasto dos vermes. Um rei gordo e um mendigo magro s�o duas iguarias differentes, comtudo h�o de ser servidas � mesma mesa. Esta � a verdade. O REIInfelizmente assim �! HAMLET� possivel que se pesque, com um verme creado em cadaver real, um peixe, e que se coma depois o peixe que enguliu o verme. O REIQue significam as tuas palavras? [102] HAMLETNada; apenas as transforma��es pelas quaes p�de passar um rei para penetrar nos intestinos do pobre. O REIOnde est� Polonio? HAMLETNo c�u. Mande ali o seu mensageiro procural-o, e se n�o o achar, procure-o ent�o o rei no sitio opposto. Em todo o caso se n�o o acharem at� d'aqui a um mez, o olfato o denunciar� junto � escada da galeria. O REI (� sua comitiva)Procurem-o j�. HAMLETEsperal-os-ha com certeza. (S�e a comitiva do rei.) O REIHamlet, no interesse da tua saude, que nos � t�o cara, quanto dolorosa a ac��o que commetteste, � for�oso que partas com a maior brevidade; vae, pois, preparar-te. O navio est� prompto e o vento sopra propicio; os teus companheiros esperam-te, e tudo est� disposto para a tua viagem a Inglaterra. HAMLETA Inglaterra? O REISim, Hamlet. HAMLETEst� bem. O REIO mesmo dirias conhecendo todos os meus projectos. HAMLETDescubro um anjo que os v�. Mas part�mos para Inglaterra. Adeus, minha querida m�e. A RAINHAE teu pae que te estremece? HAMLETN�o, minha m�e; pae e m�e s�o marido e mulher, marido [103] e mulher s�o uma e mesma carne. Assim, pois, adeus, minha m�e. Vamos para Inglaterra. (S�e.) O REI (a Rosencrantz e Guildenstern)Sigam-o passo a passo, fa�am-o embarcar promptamente, n�o ha tempo que perder. Quero que j� esta tarde esteja afastado d'estes sitios. V�o! Tudo quanto respeita a este negocio foi j� expedido e sellado com as nossas armas. Aviem-se, pe�o-lh'o. (S�em.) (Continuando) Rei de Inglaterra, sabes at� onde chega o meu poder; as feridas infligidas pelo ferro dinamarquez ainda sangram, e teu respeito nos presta livre homenagem. Se, pois, prezas a minha benevolencia, n�o receber�s friamente as ordens soberanas contidas nas minhas cartas e que exigem a morte de Hamlet. Obedece-me, rei de Inglaterra, porque Hamlet � febre que requeima o meu sangue, e tu � que me deves curar d'ella. N�o terei um dia de prazer e descanso emquanto n�o souber a completa execu��o das minhas ordens, aconte�a o que acontecer. (S�e.) SCENA IVUma planicie na DinamarcaChega FORTIMBRAZ � frente das suas tropas FORTIMBRAZ (a um dos seus officiaes)Capit�o, sa�de da minha parte o rei de Dinamarca e diga-lhe, que, em conformidade com a sua promessa, Fortimbraz lhe pede livre passagem pelo seu territorio; sabe o ponto em que nos devemos encontrar. Se sua magestade desejar fallar-me, irei prestar-lhe as minhas homenagens. Diga-lh'o da minha parte. O OFFICIALAs suas ordens ser�o cumpridas, meu senhor! FORTIMBRAZ (�s suas tropas)Avancemos em attitude pacifica. (Fortimbraz e as suas tropas afastam-se. O official fica.) [104] Chegam HAMLET, ROSENCRANTZ, GUILDENSTERN e mais pessoas HAMLET (ao official)Que tropas s�o essas, meu amigo? O OFFICIAL� o exercito norueguez, senhor! HAMLETQual � o seu destino? O OFFICIALUm ponto do territ�rio da Polonia. HAMLETQuem o commanda? O OFFICIALFortimbraz, sobrinho do rei de Noruega. HAMLET� contra a Polonia toda, ou s� contra um ponto determinado da fronteira que marcham? O OFFICIALSe quer que lhe diga a verdade, march�mos contra uma parte da Polonia, cuja conquista ser� para n�s gloria, sem proveito algum. Estou certo que a sua renda n�o vale cinco ducados, e se se vendesse ninguem daria mais. HAMLETSe assim �, os polacos n�o devem offerecer resistencia? O OFFICIALPelo contrario, at� j� o guarneceram. HAMLETDuas mil almas e vinte mil ducados chegar�o apenas para t�o futil empreza; � um d'estes abcessos que resultam de uma demasiada e prolongada prosperidade que rebenta internamente, sem que nada indique exteriormente a sua ac��o mortal. Obrigado, amigo. [105] O OFFICIALDeus seja comvosco, senhor. (Afasta-se.) ROSENCRANTZO principe quer que continuemos o nosso caminho? HAMLETP�de ir indo, em breve o alcan�arei. (S�em Rosencrantz e Guildenstern.) (Continuando.) Como sempre tudo me accusa e me excita � tardia vingan�a. O que � o homem, se o seu primeiro bem, o maior negocio da sua vida, consiste em comer e dormir! � um animo brutal, nada mais. Seguramente, que aquelle que nos dotou com essa vasta comprehens�o, capaz de abra�ar o passado e o futuro, n�o nos deu essa intelligencia, esse admiravel raciocinio, para que ficassemos ociosos e sem emprego. Quer seja estulto esquecimento, quer cobarde escrupulo, medito demasiado na ac��o que tenho que commetter, pensamento composto de uma quarta parte de siso e tres quartas partes de cobardia. Como me espanto a mim mesmo quando repito: Eis o que devo fazer, j� que me sobram os motivos, tenha eu ao menos vontade, for�a e energia para o executar. Incitam-me os mais irrecusaveis exemplos; testemunho este numeroso exercito, capitaneado pelo seu joven principe, cujo genio intrepido, soprado por uma ambi��o divina, affronta, rindo, as eventualidades de um porvir invisivel, expondo uma vida mortal e incerta, a tudo quanto podem ousar a fortuna, a morte e os perigos, e tudo por nada, por uma bagatella. A verdadeira grandeza consiste, n�o s� em commover-se com grandes e poderosas ras�es, mas tambem em achar n'uma bagatella ras�es de conflicto, cuja verdadeira causa � o pundonor. Que posi��o pois a minha, eu que tenho um pae assassinado, uma m�e deshonrada; eu que tenho tantos motivos de colera e que tudo deixo adormecer, emquanto que para minha vergonha vejo vinte mil homens, por uma louca esperan�a de gloria exporem-se � morte, caminharem para o tumulo, como caminhariam para o leito; irem combater para conquistar um quinh�o de terra insufficiente para caberem n'elle, e cujo terreno seria uma sepultura acanhada para os mortos. Ah! quanto se revelam sanguinarios os meus pensamentos, ou ent�o nada. (Afasta-se.) [106] SCENA VUma sala no castello de ElsenorEntram HORACIO e a RAINHA A RAINHAN�o lhe quero fallar. HORACIOPede-o encarecidamente. Verdade � que ella perdeu a ras�o; o seu estado � digno de compaix�o. A RAINHAO que pretende ella? HORACIOFalla sempre no pae, pretende terem-lhe dito que n'este mundo se commettem bem m�s ac��es, suspira, bate no peito, exaspera-se sem motivo. Profere palavras equivocas e sem sentido. Nada diz, comtudo quem ao ouvil-a n�o teria vontade de a comprehender. Aquelles que a ouvem procuram adivinhar o sentido, e preenchendo as lacunas, tentam completar o sentido das suas fallas. Vendo os movimentos que faz, acompanhando as palavras, todos lhe supp�em um pensamento, um sentido, e provavelmente tem-no, mas de certo bem sinistro. A RAINHA� conveniente fallar-lhe, porque poderia impressionar malevola e perigosamente os espiritos. Que venha. (Horacio s�e.) (Continuando) Ah! minha alma enferma! Ser� uma condi��o do crime, que a menor bagatella pare�a sempre a precursora de alguma grande calamidade? Tal � a desconfian�a em uma consciencia culpada, que se trahe a si mesma com o receio de se trahir. HORACIO entra com OPHELIA OPHELIAOnde est� a bella rainha de Dinamarca? A RAINHAOphelia? [107] OPHELIA Como hei de eu conhecer o bem amado A RAINHAInfeliz Ophelia! Que significam esses versos? OPHELIAPergunta-mo? Escute ent�o... Levaram-no bem morto ao cemiterio! Ai de mim! (Chora.) A RAINHAOphelia, querida Ophelia? OPHELIAOu�a mais, pe�o-lh'o... Branca de neve a frigida mortalha... Entra o REI A RAINHAVeja, senhor! OPHELIA � como um prado em flor O REIComo est� bella, Ophelia? OPHELIABem, louvado Deus, dizem que a coruja f�ra outr'ora filha de um padeiro. Meu Deus, n�s sabemos o que somos, mas nunca o que poderemos vir a ser. Que Deus aben��e a sua mesa. O REIRecorda-se do pae? [108] OPHELIAN�o fallemos mais n'isso, mas se me perguntam o que significa, dir-lhes-hei o que �. Respondam. S�o Valentim! dizes-me a minha sina? O REIEncantadora Ophelia! OPHELIAEm verdade vou terminar sem juramento. Por Jesus! pela santa caridade! O REIHa quanto tempo � que este infeliz estado se apoderou d'ella? OPHELIATudo vae bem! � preciso ter paciencia; n�o posso reter o pranto, pensando que est� debaixo da terra fria e humida. Meu irm�o ha de sabel-o, obrigada pelo conselho. Chegue a minha carruagem. Boa noite, minhas senhoras, boa noite, bellas senhoras, Adeus, boas noites! (S�e correndo.) O REI (a Horacio)Siga-a, n�o a perca de vista, vigie-a cautelosamente, pe�o-lh'o eu! (Horacio s�e.) (Continuando) Oh! � aquelle o veneno de uma dor profunda, causada pela morte do pae. Ah! Gertrudes, Gertrudes, quando as dores nos assaltam, nunca � isoladamente, � como se viessem em tropel. Primeiro a morte do pae, depois a partida de Hamlet, que t�o violentamente decretou o proprio exilio; o povo alvoro�ado e descontente, commenta malevola e [109] insidiosamente a morte de Polonio, e n�s obr�mos pouco assisadamente ordenando o prompto enterro; a infeliz Ophelia, inconsciente do seu estado, est� privada da ras�o, sem a qual somos simples estatuas, creaturas brutas. Para cumulo de desgra�a esta vale todas as outras, seu irm�o voltou secretamente de Fran�a, embrenha-se no labyrintho de noticias, e mantem-se occulto. N�o deixar� por certo de haver b�cas malevolas, que por occasi�o da morte de seu pae, envenenem seus ouvidos com insinua��es perfidas, e a calumnia, na carencia de outro assumpto, n�o nos poupar� com os seus dardos envenenados e mortiferos. Ah! querida Gertrudes; tudo isto, similhante a um instrumento de morte, vibra-me mais golpes que os necessarios para p�r termo � minha vida. (Ouve-se um grande rumor f�ra da sala.) A RAINHAQue rumor � esse? O REIOl�, venha alguem. (Entra um official do palacio.) O REI (continuando)Onde est�o os meus suissos? Que defendam as portas. Dize-me j� o que ha. O OFFICIALFuja, senhor; o oceano, rompendo os diques, n�o invade com mais violencia a campina, do que o joven Laerte, � frente da rebelli�o, derruba a resistencia dos vossos officiaes. O povo chama-lhe soberano, e como se fosse no come�o do mundo, sem tradi��es, nem passado, nem usos, sobre que tudo se firma, ou as tivesse esquecido, exclama: Elej�mos um rei! Laerte ser� o nosso rei? Todos se descobrem e agitam os gorros, todas as m�os applaudem, todas as vozes repetem: Laerte ser� rei. Viva o rei Laerte! A RAINHACom que prazer esta matilha segue uma pista falsa! Enganam-se! Dinamarquezes ingratos! O REIEntraram � for�a. (Redobra o rumor. Entra Laerte seguido por muito povo dinamarquez.) LAERTEOnde est� esse rei? Senhores, retirem-se para f�ra. [110] O POVONada! Queremos todos entrar. LAERTEFa�am o que lhes pe�o. O POVO� justo! � justo! (S�em.) LAERTEObrigado, senhores; guardem as portas. (Ao rei.) Infame! entrega-me meu pae. O REISocegue, meu caro Laerte. LAERTESe uma s� gota do meu sangue n�o fervesse, essa gota proclamar-me-�a bastardo, attestaria a deshonra de meu pae, e imprimiria na casta fronte de minha adorada m�e um estigma indelevel de infamia. O REIO que deu azo, Laerte, a uma rebelli�o, que assumiu propor��es t�o colossaes? Est� tranquilla, Gertrudes, por n�s nada receies; gra�as ao caracter sagrado que protege os reis, a trai��o n�o lan�a sen�o um olhar timido e incerto para o resultado que anhelam os seus desejos, e os effeitos est�o longe de corresponder � sua esperan�a. Dize-me, Laerte, o motivo d'esta irrita��o violenta. Nada receies, Gertrudes. Falla, Laerte. LAERTEOnde est� meu pae? O REIMorreu. A RAINHAMas o rei est� innocente. O REIDeixa-me interrogal-o � minha vontade. LAERTEComo morreu elle? N�o admitto duvidas, dispenso juramentos; leve o demonio a f� jurada, sepultem-se no abysmo a consciencia e a fidelidade. Affrontarei a condemna��o, declaro-o [111] formalmente; renuncio a tudo n'este e no outro mundo, aconte�a o que acontecer, comtanto que vingue de um modo bem patente a morte de meu pae. O REIE quem t'o impede? LAERTEA minha vontade s� e n�o a do universo inteiro; quanto aos meios de que disponho, empregal-os-hei de modo que com recursos limitados tire d'elles o maior proveito. O REIComprehendo, querido Laerte, que queiras saber a verdade toda a respeito da morte de teu estremecido pae. Mas est�s tu resolvido a confundir amigos e inimigos, aquelles que perderam e aquelles que ganharam com a sua morte? LAERTEUnicamente os inimigos quero punir. O REIE queres conhecel-os? LAERTEQuanto aos seus amigos, abro-lhes os bra�os com alvoro�o; e similhante ao pelicano que rasga o seio, para com o sangue alimentar os filhos, estou prompto a por elles dar o meu sangue todo. O REIAinda bem; fallas agora como bom filho e homem honrado. Sou innocente na morte de teu pae, e deploro-a amargamente; demonstral-o-hei � tua ras�o com provas t�o claras como a luz do dia. O POVO (de f�ra)Deixem-a entrar. LAERTEO que �? Que rumor � esse? (Entra Ophelia estranhamente enfeitada com flores na cabe�a e palhas entran�adas nos cabellos.) (Continuando.) Meu pobre cerebro! Sequem-se as minhas lagrimas, que, sete vezes corrosivas, queimam meus olhos e afastam d'elles o sentido da vista! Por Deus! A tua demencia ser� paga com usura, at� que o nosso peso fa�a baixar uma das conchas da balan�a. [112] Rosa de primavera, filha querida, carinhosa irm�, boa Ophelia! Oh! ceus! pois ser� possivel que a ras�o de uma jovem mulher seja t�o fragil como a vida do anci�o! A natureza tem no seu amor um perfume subtil e raro, cujas emana��es se infiltram no objecto amado. OPHELIA Levaram-no em mesquinha padiola LAERTEPossuisses tu toda a tua ras�o, animasses-me tu � vingan�a, n�o conseguias crear em mim uma emo��o. OPHELIAFor�oso � que eu cante e tu tambem: Abaixo! Abaixo! Devias ouvir cantar �s fiadeiras; � a can��o do intendente desleal, que raptou a filha de seu amo. LAERTEEstes nadas tudo me dizem. OPHELIA (a Laerte, dando-lhe uma flor)Toma, � rosmaninho a flor da lembran�a. Lembra-te de mim, pe�o-t'o, meu querido; estes s�o amores perfeitos, � para que sempre viva no teu cora��o de irm�o. LAERTEHa sentido no seu delirio. Acaba de distinguir acertadamente a lembran�a e o pensamento. OPHELIA (ao rei)Aqui tendes, senhor, estas symbolicas flores. (� rainha) Para v�s, senhora, � arruda e tambem para mim; para v�s ser� a herva da ventura, para mim a da dor. Eis um malmequer. Queria dar-vos violetas, mas feneceram todas quando meu pae morreu; dizem que teve o fim do justo. Porque era o bom Robim minha alegria [113] LAERTEA melancolia, a afflic��o, a colera, o proprio inferno, tudo � divino proferido por ella. OPHELIA E nunca mais vir�?! Assim como de todas as almas christ�s, assim o pe�o a Deus, e elle seja comvosco. (S�e.) LAERTEV�em? Meu Deus!... O REIDeixa-me, Laerte, fallar-te no teu infortunio; � um direito que me pertence e que me n�o p�des negar sem injusti�a. Reune em particular os teus amigos mais assisados; elles nos ou�am, e depois julguem entre n�s dois. Se culpado me acharem, directa ou indirectamente, entrego-te, em expia��o da minha culpa, reino, cor�a e vida, e tudo quanto possa dizer meu; no caso contrario, pe�o-te s� paciencia, e de accordo obraremos para te alcan�ar uma completa satisfa��o. LAERTEConsinto. As circumstancias da sua morte, o seu funeral obscuro, em que nem troph�us, nem espada, nem braz�o figuraram, a ausencia de toda a ceremonia funebre no sa�mento do seu corpo, s�o como um aviso do c�u, que me clama pela voz celeste: Indaga como foi. O REIFa�a-se pois um inquerito, e o cutelo do algoz puna o culpado. Agora pe�o-te, Laerte, que me sigas. (S�em ambos.) [114] SCENA VIUm quarto no castello de ElsenorEntram HORACIO e um CREADO HORACIOQuem � que me pretende fallar? O CREADOMarinheiros... e dizem que t�em cartas que lhe s�o dirigidas. HORACIOQue entrem pois; (o creado s�e) (s�) n�o percebo de que canto do mundo se lembraram de me escrever. S� se for Hamlet. Entram os MARINHEIROS PRIMEIRO MARINHEIROGuarde-o Deus, senhor! HORACIOIgualmente a ti! PRIMEIRO MARINHEIROFal-o-ha, se for da sua vontade. (Entrega uma carta) Aqui tem esta carta, � do embaixador que foi mandado a Inglaterra; o senhor, segundo me asseguraram, chama-se Horacio, n�o � verdade? (D�-lhe outra carta.) HORACIO (abrindo a carta, lendo)�Horacio, quando receberes esta carta, proporciona a estes homens o fallarem ao rei; t�em cartas para lhe entregar. Mal tinhamos dois dias de viagem, um corsario armado at� aos dentes deu-nos ca�a; vendo n�s que elle era mais veleiro, fizemos das fraquezas for�as, e encet�mos combate. Na abordagem, saltei-lhe na tolda, mas n'aquelle momento afastaram-se os dois navios, e eu achei-me s� e prisioneiro. Comportaram-se commigo como corsarios humanos, mas sabiam o que faziam, porque contam pedir avultado resgate. Faze chegar �s m�os do rei a carta que lhe envio, depois vem ter commigo, com a celeridade que porias em evitar a morte. Tenho que confiar aos [115] teus ouvidos palavras que te emudecer�o de espanto, e comtudo ainda s�o fracas para a gravidade do assumpto que devem exprimir. Estes marinheiros te conduzir�o ao sitio onde me acho. Rosencrantz e Guildenstern navegam para a Inglaterra. Tenho muito que te contar a esse respeito. Adeus. Aquelle que sabes ser teu do cora��o==Hamlet.� Venham, vou facilitar-lhes a entrega das cartas, depois conduzam-me o mais prompto que pod�rem junto d'aquelle que lh'as entregou. (S�em todos.) SCENA VIIOutro quarto no castelloEntram o REI e LAERTE O REIDevo estar illibado aos teus olhos, e deves ver em mim um amigo sincero, agora que j� deves ter percebido que o assassino de teu pae tambem queria a minha morte. LAERTEParece-me evidente! Mas diga-me porque, depois de actos t�o graves e criminosos por sua natureza, n�o perseguiu o auctor, como era obrigado a fazel-o, por sua dignidade, pela sua salva��o, pela sua prudencia, por tudo emfim? O REIAh! por duas ras�es, que provavelmente achar�s sem valia, mas que a meus olhos t�em toda a gravidade. A rainha sua m�e idolatra-o, � a existencia d'ella esse filho; eu por minha parte n�o sei se deva considerar isto como virtude ou como desgra�a; mas ella est� t�o intimamente ligada � minha alma, qual satellite ao seu planeta, que s� por ella e para ella vivo. O outro motivo que me impede de formular contra elle uma accusa��o publica, � a immensa affei��o que o povo lhe consagra; affei��o que desculpa todas as suas faltas, e similhante a essas fontes que transformam em pedra a madeira, converteria as suas cadeias em aureola de gloria. N'estas circumstancias, pois, as minhas frechas demasiado tenues para romperem t�o forte vento, em vez de tocarem no alvo, voltando-se, feririam s� o que as despediu. [116] LAERTEAssim perdi meu nobre pae, e vejo minha estremecida irm� na mais desordenada demencia! Mas se � permittido elogiar o que j� passou, ella excedia em perfei��es as creaturas da sua idade, e n�o me hei de eu vingar? O REIEssa m�gua n�o te perturbe o somno; n�o me julgues de um caracter t�o pusillanime e estulto, que um perigo, que tanto me impressionou, seja por mim tratado de bagatella. Brevemente saber�s ainda mais. Eu estremecia o teu pae; n�s somos dev�ras amigos, agora deves acreditar que... Entra um MENSAGEIRO O REIQue queres? que ha de novo? O MENSAGEIROSenhor, cartas de Hamlet; esta para vossa magestade, est'outra para a rainha. O REIDe Hamlet!! quem as trouxe? O MENSAGEIRODisseram-me que uns marinheiros, eu n�o os vi. Estas cartas foram-me entregues por Claudio, que as recebeu do portador. O REI (pegando na carta)Ouvir�s, Laerte, o seu conte�do. (Ao mensageiro) Retira-te (o mensageiro s�e) (abre a carta e l�): �Alto e poderoso monarcha, depozeram-me em territorio vosso, n�; �manh� solicitarei o comparecer na vossa presen�a, e ent�o se me for permittido referir-vos-hei o que deu causa ao meu estranho e inesperado regresso.==Hamlet�. Que significa isto? voltariam todos, ser� engano, ser� tudo falso? LAERTEConhece a sua letra? O REI� a letra de Hamlet. N�, e n'um post-scriptum acrescenta s�. Poder�s tu dizer-me o que tudo isto significa? [117] LAERTENada sei responder; mas que venha. Sinto renascer a chamma no meu cora��o abatido, pensando que lhe poderei dizer cara a cara: Foste tu o assassino de meu pae. O REISe assim �, Laerte, n�o p�de nem poderia ser de outra maneira; queres tu seguir um meu conselho? LAERTESim, comtanto que n�o me aconselhe a paz. O REIPois que fa�as pazes com o teu cora��o � que eu quero: se � verdade que regressou, o que indica que Hamlet rec�a diante da viagem e renuncia a ella, suggerir-lhe-hei uma aventura, cujo plano est� maduro no meu espirito, e em que n�o poder� deixar de succumbir, e sem que a sua morte possa ser attribuida a pessoa alguma intencionalmente; tanto que sua propria m�e limitar-se-ha a lastimar o occorrido, vendo s� uma fatalidade. LAERTESeguirei gostosamente os seus conselhos, e ainda de melhor vontade, se pod�r combinar de modo que eu seja o agente principal. O REIVejo que os nossos desejos se combinam completamente. Frequentemente, desde as tuas viagens, t�em-me gabado por excederes a todos no exercicio de uma arte. Todas as tuas qualidades reunidas excitaram em Hamlet menos ciumes do que esta s�; � comtudo talvez a menos importante. LAERTEE qual � essa qualidade? O REIUm la�o de fitas no chap�u da juventude, mas um enfeite necessario; porque n�o lhe fica menos bem um ornamento um pouco frivolo mesmo, do que convem � idade madura as vestes encorpadas e serias que lhe imp�em a saude e a gravidade. Ha dois mezes esteve aqui um cavalleiro normando; tenho visto francezes e combatido com elles, e s�o dev�ras habeis, [118] mas a habilidade d'esse homem parecia ter o poder da magia. Parecia arroscado � sella, e guiava o cavallo t�o prodigiosamente, que pareciam um s� e o mesmo animal intelligente. Excedeu tudo quanto se p�de imaginar na arte de cavallaria e volteio, t�o perfeita era a execu��o. LAERTEUm cavalleiro normando, disse? O REIUm normando. LAERTEEnt�o era Lamond; n�o p�de ser outro. O REIElle mesmo. LAERTEBem o conhe�o, � a phenix, a perola da sua patria. O REIFallou de ti vantajosamente, fez os maiores elogios da tua pericia no manejo das armas, sobretudo da espada, declarando ser impossivel achar outro igual, e jurando que os jogadores de espada francezes perderam agilidade, posi��o e golpe de vista depois que comtigo se mediram. Estes elogios que elle te dispensava, de tal modo exasperaram o ciume de Hamlet, que anhelava s� pelo teu regresso para comtigo combater, e transformaram o ciume em furia. Tirando pois partido d'estas circumstancias... LAERTEQue partido poderemos n�s tirar? O REILaerte, amavas tu realmente teu pae, ou n�o era a tua dor sen�o um simulacro, toda exterior e nada interior? LAERTEPorque esta pergunta? O REILonge de mim o pensar que n�o amavas teu pae; mas a affei��o � um sentimento que se gera em n�s, e a experiencia [119] de todos os dias nos faz ver que o tempo destempera a sua vivacidade e o seu ardor. Mesmo na chamma do amor ha �s vezes uma mancha que a amortece, e cousa alguma se conserva permanentemente bella, porque o bom, pelo crescimento degenera em plethora, e parece abafado pela demasiada nutri��o. O que pretendemos fazer, devemos fazel-o na occasi�o propria, porque a vontade tambem muda; tantas s�o as suas mudan�as, quantas as linguas, m�os e outros accessorios que se cruzam no seu caminho, e ent�o a execu��o n�o � mais que um dever, cujo cumprimento, similhante aos demasiado frequentes suspiros, nos mag�a, alliviando-nos. Mas entremos francamente na quest�o. Hamlet regressa. Que est�s tu disposto a fazer, para te mostrares digno filho de teu pae, n�o com palavras, mas com obras? LAERTEAssassinal-o-�a mesmo no templo do Senhor. O REIEffectivamente o assassino n�o rec�a perante o santuario, quando pretende saciar a vingan�a. Mas, querido Laerte, queres seguir o meu conselho? Encerra-te nos teus aposentos. Hamlet, regressando, saber� da tua estada n'estes logares; farei com que exaltem na sua presen�a os teus talentos, e que encare�am os elogios mais que os francezes o fizeram; por este meio seguir-se-h�o um desafio e apostas sobre a pericia dos contendores. Elle que est� desprevenido e � generoso e de nada desconfia, n�o examinar� os floretes; de modo que, com alguma habilidade da tua parte, poder�s escolher um florete sem bot�o, e por meio de uma bem dirigida estocada fazer-lhe pagar a morte de teu pae. LAERTEComo o rei disse, Laerte o far�; mesmo envenenarei a ponta do meu florete. Comprei a um empirico uma droga mortal. Por pouco que a ponta de um punhal esteja n'ella banhada, por leve que seja o ferimento, n�o ha balsamo precioso, embora composto dos mais energicos contravenenos, que possa salvar da morte inevitavel e rapida o ferido. Assim, prepararei a ponta do meu florete, para que mesmo leve arranhadura lhe seja fatal. O REITornaremos ao assumpto, e combinaremos o momento e maneira [120] mais facil e favoravel para a sua execu��o. Se tivesse que falhar este nosso plano, mais valeria nada tentar. Mas � necessario que esta primeira combina��o se firme n'uma segunda, que a substitua, no caso da arma se quebrar no primeiro encontro. Um momento... Vejamos. Faremos apostas importantes sobre a respectiva pericia de ambos. Quando, no calor do combate, estiverem afogueados e sedentos, para conseguir o intento n�o poupes o teu adversario, ataca-o com vigor. Hamlet, sem duvida, pedir� uma bebida; ser-lhe-ha ent�o apresentada uma, de antem�o preparada, e uma s� gota bastar�, se a tua espada te trahir, para conseguirmos o fim desejado. Mas silencio! Que rumor � este? (Entra a rainha.) Que ha de novo, querida Gertrudes? A RAINHAAccumulam-se as desgra�as, e repetem-se com assustadora rapidez. Laerte, tua irm� suicidou-se, afogando-se. LAERTEOnde? A RAINHANa margem da vizinha ribeira cresce um salgueiro, cuja prateada folhagem se reflecte nas aguas crystallinas. Tua irm� approximou-se d'aquelle sitio, sempre tecendo grinaldas de rainunculos, ortigas, malmequeres, e d'essas flores a que os nossos pastores d�o um nome bem grosseiro, mas que as nossas castas donzellas denominam poeticamente dedo da morte. Quando procurava ornar com as suas innocentes grinaldas as argenteas frondes do salgueiro, oh! desgra�a! descuidosa foi envolvida na corrente, cercada dos ornatos que lhe serviam como de cor�a virginal. Algum tempo suspensa pelas vestes sobre a corrente, assimilhava-se � sereia, cantando incoherentes trechos, inconsciente do proprio risco, como se estivesse no seu nativo elemento. Mas tudo tem um fim, e em breve, sossobrando pelo peso das encharcadas vestes, cessou de cantar, e tornou-se cadaver levado pela corrente. LAERTEOh! desgra�ada! afogada!! A RAINHASim, Laerte! [121] LAERTESequem-se as minhas lagrimas; j� tiveste agua em demasia, infeliz Ophelia! Mas porque? Mais for�a tem a natureza do que a vontade; todos lhe devemos obediencia. Para que uma falsa vergonha? Rolem, pois pelas faces lagrimas santas, e arrebatem na sua corrente a minha ultima fraqueza. Adeus, senhor! As minhas palavras de fogo tornar-se-�am embravecido vulc�o, se as lagrimas do cora��o o n�o apagassem. (S�e.) O REISig�mol-o, Gertrudes. Quanto me custou a serenar a sua colera! Receio bem que estas novas desgra�as lhe despertem em toda a sua plenitude a sanha da vingan�a. Sig�mol-o, pois. Fim do acto quarto [123] ACTO QUINTOSCENA IUm cemiterioEntram DOIS COVEIROS com enxadas PRIMEIRO COVEIRODever-se-ha enterrar em ch�o sagrado aquelle que voluntariamente procurou a sua salva��o no suicidio? SEGUNDO COVEIROEu c� digo que sim; avia-te em cavar a cova, o magistrado viu e decidiu que aqui fosse sepultada. PRIMEIRO COVEIROIsso n�o p�de ser, a menos que n�o se afogasse involuntariamente. SEGUNDO COVEIROJ� est� reconhecido e decidido. PRIMEIRO COVEIROAs probabilidades todas s�o que pereceu se offendendo. Ninguem � capaz persuadir do contrario. V� tu como eu o provo. Se me afogar voluntariamente existe um acto; ora, um acto subvide-se em tres ramos: a ac��o, o cumprimento e a execu��o; ergo, afogou-se voluntariamente. SEGUNDO COVEIROAssim ser�, mas escuta-me ao menos. [124] PRIMEIRO COVEIROOuve-me ainda; a agua est� aqui, o homem est� acol�; muito bem, o homem vae encontrar a agua e se afoga; for�osamente morre por seu motu proprio; nota isto bem. Mas se, pelo contrario, � a agua que vem encontrar o homem, e elle se afoga, ent�o j� n�o � elle que procura a morte; ergo, aquelle que n�o � culpado na sua morte, n�o poz termo voluntariamente � vida. SEGUNDO COVEIROMas ser� lei? PRIMEIRO COVEIRO� a lei que preside ao inquerito do magistrado. SEGUNDO COVEIROQueres que te diga o que penso? Se a defunta n�o fosse senhora de qualidade, de certo n�o a enterravam em ch�o sagrado. PRIMEIRO COVEIRO� bem verdade o que dizes; � triste que as pessoas de qualidade tenham, a mais dos outros christ�os seus iguaes, o direito de se afogarem e de se enforcarem. Vamos sempre cavando! N�o ha nobreza mais antiga que a dos jardineiros, lavradores e coveiros; seguem a profiss�o de Ad�o! SEGUNDO COVEIROPois Ad�o era nobre? PRIMEIRO COVEIROO primeiro que usou armas! SEGUNDO COVEIRODeixa-te d'isso, n�o consta que as tivesse! PRIMEIRO COVEIROSempre �s um pag�o! como comprehendes tu ent�o a escriptura sagrada? A escriptura diz que Ad�o trabalhava o solo; como poderia elle trabalhar sem p� ou enxada? Essas eram as suas armas. Vou fazer-te outra pergunta, se n�o me responderes com acerto, n�o �s mais que um.... SEGUNDO COVEIROAsno! contin�a. [125] PRIMEIRO COVEIROQuem � que construiu mais solidamente que o pedreiro, carpinteiro e constructor de navios? SEGUNDO COVEIROO constructor do cadafalso, porque sobrevive a innumeros hospedes. PRIMEIRO COVEIROBoa resposta, palavra de honra. Cadafalso � bem achado; mas para quem se fez o cadafalso? para os que fazem o mal; ora, tu fizeste mal em dizer que o cadafalso � mais solido que a igreja, logo merecias o cadafalso. Vamos, procura e responde. SEGUNDO COVEIROAgora eu! Quem � que construiu mais solidamente do que o pedreiro, carpinteiro e constructor de navios? PRIMEIRO COVEIRODize tu primeiro, eu c� j� sei. SEGUNDO COVEIROTambem eu. PRIMEIRO COVEIROVejamos. SEGUNDO COVEIRONada, n�o atino. HAMLET e HORACIO apparecem ao fundo PRIMEIRO COVEIROBasta de tratos ao teu cerebro; escusas de pensar mais, ficas sempre na mesma. Quando alguma vez te fizerem essa pergunta, responde: �� o coveiro; as moradas que construe duram at� ao dia de juizo�. Agora vae a casa de Vaughan e traze-me um copo de licor.(O segundo coveiro s�e, cantando.)
Quando eu era mancebo e quando amava HAMLETPois este homem n�o ter� consciencia do que est� fazendo, cantando assim, quando cava uma sepultura? [126] HORACIOO habito tudo p�de. HAMLETE verdade, a m�o pouco afeita ao trabalho tem o tacto mais delicado! PRIMEIRO COVEIRO (cantando) Mas a idade chegou, passo furtivo HAMLET (apontando para uma caveira)Houve tempo em que esta cabe�a tinha uma lingua e cantava; agora este rustico fal-a rolar pelo solo, como se fosse a mandibula de Caim, o primeiro homicida. O craneo que este imbecil trata com t�o pouco respeito, era talvez de algum profundo politico, que se julgava at� capaz de impor a sua opini�o ao proprio Deus, n�o � verdade? HORACIOTudo p�de ser, senhor. HAMLETOu talvez de algum cortez�o cujo prestimo unico fosse repetir: �Deus seja comvosco, como est�, meu senhor?� � talvez o craneo do sr. fulano, que gabava o cavallo do sr. cicrano, com a id�a que este lh'o d�sse, n�o � verdade, Horacio? HORACIOSim, meu senhor! HAMLETDeve assim ser! Agora pertence aos vermes; n�o tem nem pelle, nem sangue, nem carne, e este coveiro fende-o com a sua enxada. Eis uma estranha revolu��o, assim a comprehendessemos bem. Joga-se a bola com esses ossos, como se nada tivessem custado a formar. Sinto estalar os meus s� pensando-o. PRIMEIRO COVEIRO (cantando) Uma enxada e uma p� logo em seguida, HAMLETEis um outro craneo; quem sabe se n�o seria de um jurisconsulto. [127] Agora acabaram as trapa�as, as distinc��es subtis, as causas, as auctoridades legaes e as finuras. Em vida, de certo n�o consentia sem um processo que este imbecil lhe percutisse o craneo com a enxada. Porque n�o lhe intenta agora uma ac��o por vias de facto e sevicias? Quem sabe, talvez fosse um nedio comprador de bens immoveis, com os seus direitos, rendas, privilegios, hypothecas e contratos. Eil-o agora elle mesmo hypothecado, tem o privilegio commum a todos os mortaes, de ver a sua cabe�a coberta de p� e terra. Pois que! todas as acquisi��es t�o bem garantidas, n�o ter�o outro complemento sen�o assegurar-lhe um espa�o apenas igual � superficie de dois contratos de venda? Todos os seus titulos mal caberiam n'este cofre, e comtudo � hoje a sua unica propriedade. Ah! HORACIOUnica, senhor! HAMLETHoracio, o pergaminho faz-se de pelles de carneiro, n�o � verdade? HORACIOTambem de bezerro. HAMLETS�o pois os carneiros e bezerros que fazem f� em taes titulos. Vou interrogar este rustico. A quem pertence essa cova? PRIMEIRO COVEIROA mim! (Cantando) Um buraco depois feito no lodo, HAMLETEffectivamente, creio ser tua, pois que est�s dentro d'ella. PRIMEIRO COVEIROO senhor est� f�ra, logo n�o � sua; mas apesar d'ella n�o me ser destinada, � comtudo minha. HAMLETMentes, � para um morto, e n�o para um vivo. PRIMEIRO COVEIROEis um desmentido prompto e que n�o admitte replica. [128] HAMLETPara que homem cavas essa cova? PRIMEIRO COVEIROSenhor, n�o � para um homem! HAMLETPara que mulher ent�o? PRIMEIRO COVEIRONem t�o pouco para uma mulher! HAMLETQuem ser� pois depositado n'esta cova? PRIMEIRO COVEIROUma pessoa que foi mulher, hoje � defunta; Deus se compade�a da sua alma. HAMLETQue agudeza no seu positivismo! � preciso fallar-lhe com toda a clareza, para n�o ser por elle enredado. Por Deus, Horacio, que noto ha tres annos que o mundo se torna retrogrado, e o rustico se approxima tanto do cortez�o, que quasi se confundem. Ha quanto tempo �s coveiro? O COVEIRODei-me a este officio desde o dia em que o defunto rei Hamlet venceu a Fortimbraz. HAMLETQuanto tempo haver�? O COVEIRON�o o sabe? Pois n�o ha imbecil que lh'o n�o diga. Foi no mesmo dia em que nasceu o joven Hamlet, aquelle que enlouqueceu, e foi mandado para Inglaterra. HAMLET� isso; e porque o mandaram para Inglaterra? O COVEIROOra, porque? porque estava louco; talvez l� recupere a ras�o, e se n�o a recuperar, tambem n�o se perde muito. [129] HAMLETE porque? O COVEIRON�o ser� visto aqui, e l� todos s�o t�o loucos como elle. HAMLETComo enlouqueceu elle? O COVEIRODe um modo bem estranho, segundo dizem. HAMLETMas de que modo? O COVEIRO� claro, perdendo a ras�o. HAMLETE qual foi o motivo? O COVEIROUm motivo dinamarquez, um motivo d'este paiz em que sou coveiro desde a infancia, ha trinta annos. HAMLETDize-me, quanto tempo p�de um homem estar enterrado, antes de apodrecer? O COVEIROSe n�o est� j� podre antes de morrer (porque temos n'esta epocha muito corpo gangrenado, que mal supporta a inhuma��o), p�de conservar-se de oito a nove annos; um surrador conserva-se nove annos. HAMLETPorque mais tempo que os outros? O COVEIROO exercicio da sua profiss�o cortiu-lhe de tal modo a pelle, que fica impermeavel por muito tempo, e de certo sabe que a agua � o mais activo destruidor dos cadaveres. V� esta caveira? Ficou vinte e tres annos debaixo da terra. HAMLETDe quem era? [130] O COVEIRODe um typo original; ora, quem lhe parece que seria? HAMLETComo posso eu sabel-o? O COVEIROLeve-o o diabo. Lembro-me ainda do dia em que me vasou sobre a cabe�a um frasco de vinho do Rheno. Esta caveira, senhor, era de Yorick, o bobo do rei. HAMLETEste craneo? O COVEIROSim, este mesmo. HAMLET (pegando na caveira)D�-m'o, deixa-me vel-o. Pobre Yorick! Conheci-o, Horacio, era uma mina inexgotavel de ditos engra�ados; tinha uma imagina��o viva e fecunda! quantas vezes me levou aos hombros! agora ao pensal-o annuvia-se-me o cora��o. Aqui estavam os seus labios, em que tantos osculos depuz. Onde est�o agora os teus sarcasmos, as tuas replicas, as tuas can��es, esses rasgos de alegria, que promoviam a hilaridade de todos os convivas? Que! pois ninguem j� p�de rir com as tuas facecias? Descarnadas est�o as faces. Vae, entra como agora est�s, na alcova de alguma beldade da moda; dize-lhe ent�o que arrebique e enfeites nada lhe valem, porque um dia ser� igual a ti. Fal-a rir, dizendo-lh'o. Dize-me tu, Horacio... HORACIOO que, meu senhor? HAMLETJulgas tu que Alexandre, depois de enterrado, se parecesse com Yorick? HORACIODe certo! HAMLETE que tivesse t�o mau cheiro? F�ra! (Deita f�ra o craneo.) HORACIOSem duvida alguma, senhor. [131] HAMLETA que destinos grosseiros � possivel baixarmos, Horacio? Quem sabe se, proseguindo nas suas successivas transforma��es, as cinzas de Alexandre n�o est�o hoje empregadas em tapar um barril? HORACIOSeria entrar n'um exame demasiado minucioso. HAMLETN�o concordo. Podemos seguir seriamente esse exame, e com probabilidades de obter um resultado. Por exemplo, Alexandre est� morto, Alexandre est� sepultado, Alexandre tornou-se p�; o p� � terra, da terra tira-se argilla, e quem impede que esta argilla, ultima metamorphose de Alexandre, seja empregada como batoque n'um barril de cerveja? O imperial Cesar, morto, tornou-se p�, e serve talvez para vedar uma fenda e interceptar a passagem do ar; e essa argilla, que espalhava o terror sobre o universo, vae calafetar um muro para impedir que o vento passe. Mas, silencio: afastemo-nos, chega o rei: (Entram processionalmente padres, levando � m�o o caix�o de Ophelia; segue-se Laerte e o cortejo funebre, mais atr�s o rei, a rainha e a c�rte) e tambem a rainha! toda a c�rte! A quem prestar�o os ultimos deveres? De quem ser� este funeral incompleto? Tudo denuncia um suicidio. Deve por�m ser pessoa de categoria! Occultemo-nos e observemos, Horacio. (Afastam-se um pouco Hamlet e Horacio.) LAERTEQue ceremonias falta cumprir? HAMLETOlha, � Laerte, um nobre mancebo. LAERTEHa mais alguma cousa que fazer? PRIMEIRO PADREFizemos j� para o seu funeral tudo quanto nos era licito fazer; a sua morte tinha um caracter suspeito, e se ordens superiores n�o tivessem imposto silencio aos canones da Igreja, teria sido sepultada em ch�o profano, onde teria ficado at� que a acordasse o clarim do juizo final. Em vez de orar por ella, [132] teriamos lan�ado sobre o seu corpo ti��es, entulho e pedras; e comtudo coroaram-n'a como virgem, e flores cobriram a sua campa, e o tanger do bronze sagrado acompanhou-a � sua ultima morada. LAERTEEnt�o nada mais se p�de fazer? PRIMEIRO PADREMais nada; profanariamos o rito sagrado se entoassemos um requiem, ou se implorassemos para ella o repouso destinado �s almas que voaram ao c�u santamente. LAERTESeja pois o seu corpo depositado na campa, e possam d'elle e da sua carne, pura e sem manha, desabrochar violetas! Sou eu que t'o digo, padre sem alma, minha irm� gosar� no c�u a bemaventuran�a eterna, emquanto que tu extorcer-te-has no inferno nas convuls�es do supplicio dos condemnados. HAMLETQue? � pois a bella Ophelia? A RAINHA (lan�ando flores sobre a campa)Flores para esta joven flor. Adeus! Esperava ver-te esposa do meu Hamlet; contava, encantadora donzella, enfeitar o teu leito nupcial; nunca pensei espargir flores sobre a tua sepultura. LAERTEOh! que uma triplice e dez vezes triplice maldi��o c�ia sobre a cabe�a do scelerado que commetteu t�o negra ac��o, e provocou a perda da sua ras�o. Esperem que, antes que a terra a cubra, a estreite mais uma vez nos meus bra�os (salta para dentro da cova). Agora enterrem conjunctamente vivos e mortos, elevem sobre n�s uma montanha que exceda em altura o antigo P�lion, ou o azulado Olympo, cujo cimo vem beijar as nuvens. HAMLET (adiantando-se)Quem � que na sua dor se exprime com tanta emphase; cuja voz detem os astros no seu giro, attonitos de o ouvirem? Sou Hamlet, o dinamarquez! (Arremessa-se � cova.) [133] LAERTE (lan�ando-se a elle)O inferno se apodere da tua alma! HAMLET� um abominavel desejo: larga-me a garganta, retira as m�os, abaixo, aconselho-t'o eu; n�o sou nem mau, nem arrebatado, mas � perigoso excitar-me, e obrar�s assisadamente pensando assim. Abaixo as m�os! O REISeparem-os. A RAINHAHamlet! Hamlet! TODOSSenhores! HORACIOContenham-se. HAMLETPor um tal motivo sinto-me capaz de combater com elle at� ao ultimo alento. A RAINHAMeu filho, qual � o motivo? HAMLETAmava Ophelia, e as affei��es juntas de quarenta mil irm�os n�o poderiam igualar a minha; (a Laerte) e que serias tu capaz de fazer por ella? O REIDeixa-o, Laerte, est� louco. A RAINHAPelo amor de Deus, n�o fa�a caso das suas palavras. HAMLETVamos, dize-me, que tencionas tu fazer? Prantear, combater, jejuar, rasgar tuas proprias carnes, beber o Issel todo, devorar um crocodilo? Tudo farei. Vieste aqui para te lamentar, para me desafiar, precipitando-te dentro da sua cova; enterra-te vivo com ella, outro tanto farei; e j� que fallaste em montanhas, accumulem ellas sobre n�s tanta terra, que o cume da nossa pyramide tumular toque a zona ardente, e ao p� d'ella [134] o monte Ossa n�o pare�a mais que uma verruga. P�des encolerisar-te, que n�o me assustam os teus furores. A RAINHA� um accesso de loucura que durar� algum tempo; depois, similhante � meiga pomba acalentando os filhinhos, ficar� silencioso e immovel. HAMLET (a Laerte)Dize-me, porque me tratas assim? Sempre fui teu amigo. Mas n�o importa. Aindaque Hercules se oppozesse, se o gato miasse, o c�o havia de ladrar (afasta-se). O REISiga-o, pe�o-lhe, meu caro Horacio. (Horacio segue Hamlet) (a Laerte) Tem paciencia, lembra-te da nossa conversa��o de hontem, (� rainha) Querida Gertrudes, fa�a com que velem sobre Hamlet; (� parte) � preciso dar como monumento a este tumulo uma victima humana. Cedo estarei descansado; at� ent�o, paciencia! (S�em todos.) SCENA IIUma sala no castelloEntram HAMLET e HORACIO HAMLETBasta sobre esse assumpto; passemos ao outro, recordas-te bem de todas as circumstancias? HORACIOSe me lembro, meu senhor! HAMLETUma especie de lucta apoder�ra-se do meu cora��o, vedava-me o somno, sentia-me peior que um facinora acorrentado! Adoptando comtudo uma resolu��o temeraria, achei na temeridade a minha for�a; lembremo-nos sempre, Horacio, que a imprudencia � muitas vezes o nosso prestante auxiliar, quando os nossos mais profundos calculos s�o impotentes, e isto [135] deve-nos ensinar que ha uma Providencia que aperfei�oa e completa os projectos que imperfeitamente esbo��mos. HORACION�o ha cousa mais certa! HAMLETSa� pois do meu camarote a bordo, e coberto com as roupas de viagem procurei e encontrei pelo tacto, �s escuras, a sua mala; abri-a e revolvi-a toda, em seguida recolhi-me ao meu aposento; ent�o o perigo baniu todo o escrupulo, abri o despacho rompendo o s�llo real! Escuta o que li, Horacio. Oh! perfidia real! Apoiando-se em differentes motivos, a salva��o da Dinamarca e da Inglaterra, e o perigo que para elle havia em eu continuar a viver, o rei ordenava expressamente, que depois da leitura d'essa carta, sem demora alguma, nem mesmo a necessaria para afiar o cutello, eu fosse decapitado. HORACIOSer� possivel? HAMLETAqui tens a carta, l�-a � tua vontade. Mas queres tu saber o que eu ent�o fiz? HORACIODiga, senhor; que foi? HAMLETPara sa�r salvo dos la�os d'esta infame trai��o, appellei para a minha intelligencia, e depressa formei o meu plano. Sentei-me, e redigi um despacho com a melhor letra que pude fazer. Antigamente, assim como os nossos homens d'estado considerava uma vergonha ter boa letra; e se soubesses quanto eu desejei perdel-a! mas n'esta occasi�o foi-me maravilhosamente util. Queres saber o que escrevi? HORACIOCom todo o gosto, senhor. HAMLETDirigindo-se ao monarcha inglez como seu fiel tributario, dizia-lhe o rei de Dinamarca, se queria que se conservasse virente a palma da amisade, a paz se coroasse de espigas e se estreitassem os la�os de uma uni�o duradoura, lhe [136] ordenava que, finda a leitura da sua carta, sem outro exame, sem lhes dar tempo de se confessarem, fizesse suppliciar os portadores do despacho. HORACIOMas com que s�llo fechou esse escripto? HAMLETA Providencia n�o me desamparou ainda n'essa occasi�o; tinha na minha bolsa o s�llo de meu pae, reproduc��o exacta do s�llo do estado. Dobrei pois o meu despacho na f�rma do estylo, subscriptei-o e sellei-o, depois colloquei-o no logar em que estava o outro: o engano n�o foi descoberto. No dia seguinte, em vez de combate sabes o que houve. HORACIOAssim, Rosencrantz e Guildenstern, v�o receber o seu justo castigo? HAMLETProcuraram-n'o por suas proprias m�os; n�o me peza na consciencia. S� de si se podem queixar. � sempre uma desgra�a para vis subalternos acharem-se envolvidos nas contendas de dois poderosos adversarios. HORACIOE � rei? meu Deus! HAMLETO meu dever est� agora claramente indicado. �quelle que assassinou meu pae, deshonrou minha m�e, que se interpoz entre a escolha da na��o e as minhas esperan�as, que attentou contra a minha vida trai�oeira e perfidamente, � justi�a que o meu bra�o o puna. E n�o seria um crime digno da condemna��o eterna, deixar continuar esta ulcera no seu trabalho corrosivo? HORACIOMas dentro em pouco saber� de Inglaterra o desenlace de todo este negocio? HAMLETEm breve o saber�, � verdade, mas o tempo que at� ent�o decorrer, pertence-me, e o fio da vida do homem corta-se em menos tempo do que o preciso para contar at� dois. O que me [137] peza, meu caro Horacio, � ter desattendido Laerte, porque eu tambem sinto o que elle deve sentir. Sempre prezei a sua estima; mas a emphatica exalta��o da sua dor exacerbou-me. HORACIOSilencio, principe; approxima-se alguem. Entra OSRICO OSRICOAlegro-me, principe, que tenha regressado � Dinamarca. HAMLETObrigado, senhor. (A Horacio) Conheces tu esse insecto? HORACION�o, meu senhor. HAMLET�s pois um homem moral, � um vicio conhecel-o. � verdade que possue muitas e ferteis propriedades, mas � um estupido animal, que tem mando sobre os outros, seguro de achar a sua mangedoura na mesa real; � um ente desprezivel, mas, como disse, � senhor de vastos dominios. OSRICOMeu bom senhor, se n�o incommodo vossa alteza, alguma cousa tinha que lhe communicar da parte de sua magestade. HAMLETEscutal-o-hei com prazer. Mas cubra-se j�, que o chap�u foi feito para estar na cabe�a. OSRICOObrigado, senhor, mas faz muita calma. HAMLETFaz muito frio, n�o acha? O vento est� norte. OSRICOEffectivamente, faz bastante frio. [138] HAMLETN�o sei se � effeito de uma predisposi��o particular, mas acho um calor abrasador. OSRICON�o ha duvida, faz tanto calor, que nem posso quasi respirar. Mas, meu senhor, sua magestade encarregou-me de lhe dizer que fez uma aposta consideravel, de que vossa alteza � o motivo. HAMLET (fazendo-lhe signal de se cobrir)Faz favor. OSRICOPerd�o, senhor, mas n�o me incommoda. Vossa alteza de certo � sabedor que chegou a esta c�rte Laerte, um joven mui dextro, dotado das mais raras qualidades, agradavel no trato, um perfeito mo�o. Para fallar d'elle como merece, p�de-se dizer que � o espelho e o almanach do bom tom, porque n'elle est�o reunidas todas as qualidades que deve possuir um perfeito cavalheiro. HAMLETSenhor, n�o encareceu o retrato que d'elle fez; n�o � sufficiente toda a arithmetica da memoria para redigir o inventario especificado de todas as suas perfei��es, e ainda assim o juizo ficaria �quem da verdade. Fallando conscienciosamente, tenho-o na conta de um cavalheiro distincto e de raro merecimento; digo-o sinceramente; para achar outro igual, for�oso � que se olhe no seu espelho: os outros n�o seriam sen�o a sua sombra. OSRICOO principe falla d'elle com a convic��o da estima. HAMLETDe que se trata, pois? Escus�mos emba�ar as suas qualidades com o nosso juizo. OSRICOSenhor! HORACION�o seria possivel fallar uma lingua mais intelligivel? �-o por certo, senhor. HAMLETCom que fim pronunciou o nome d'aquelle cavalheiro? [139] OSRICODe Laerte? HORACIOAcabou-se-lhe o cabedal; ignora completamente o que ha de responder. HAMLET� verdade. OSRICOSei que n�o ignora... HAMLETQueria que assim pensasse a meu respeito; e se assim fosse, fraco elogio para mim seria. Continue agora. OSRICOVossa alteza n�o ignora a superioridade de Laerte? HAMLET� o que n�o affirmo, com o receio de me comparar a elle. Para conhecer um homem a fundo era necessario vestir a sua pelle. OSRICOQuero fallar da sua superioridade em manejar as armas; gosa da reputa��o de n�o ter rival. HAMLETQuaes s�o as suas armas de predilec��o? OSRICOFlorete e adaga. HAMLETS�o s� duas! prosiga. OSRICOO rei apostou seis bellos cavallos da melhor ra�a, contra seis espadas e seis adagas francezas de Laerte, sem contar os cintur�es, talabartes e tudo o mais. Tres dos accessorios sobretudo s�o dignos da aposta e de um trabalho maravilhoso, no estylo mesmo das armas. HAMLETQue chama accessorios? [140] HORACIOBem sabia eu que antes de terminar era infallivel algum reparo do principe. OSRICOOs accessorios, senhor, s�o os enfeites dos cintos e talabartes em que se suspendem as espadas. HAMLETA express�o seria mais exacta se em vez de espada usassemos um canh�o; sirvamo-nos pois do termo cinto na generalidade. Prosiga. Seis bellos cavallos contra seis espadas e seus pertences, incluindo tres cintos, obra prima da arte franceza; � pois a Fran�a contra a Dinamarca. Mas qual � o motivo d'esta aposta? OSRICOO rei apostou que em doze golpes, Laerte n�o tocaria o principe sen�o tres vezes. Laerte apostou que seriam nove em doze. A quest�o ser� promptamente decidida se vossa alteza se dignar responder. HAMLETE se eu responder negativamente? OSRICOQuer dizer, se o principe convier em combater. HAMLETSenhor, vou agora passeiar n'esta sala; costumo todos os dias a esta hora, entregar-me a esses exercicios: depois estou �s ordens do rei. Tragam floretes com a annuencia de Laerte; e se o rei persistir no seu empenho far-lhe-hei ganhar a aposta se pod�r; no caso contrario restam-me os golpes recebidos e a vergonha. OSRICODeverei dar ao rei a sua resposta? HAMLETDisse-lhe o meu pensamento: o seu talento saber� completar a resposta. OSRICOUm servo dedicado de vossa alteza. (S�e.) [141] HAMLETMuito agradecido, obrigado (a Horacio); fez bem de o dizer elle mesmo, ninguem se encarregava por certo de tal miss�o. HORACIOFinalmente, estamos s�s! HAMLETEstou certo que ao collo da ama, antes de o sugar, elogiava a alvura do seu seio; similhante a tantas pessoas da sua tempera, que s�o o encanto dos ignorantes, abra�am as modas do dia, e revestem-se de um falso verniz de polidez, e, gra�as a essa mascara, s�o escutados pelos sensatos; mas experimentem-os, s�o como bolas de sab�o, que se desvanecem ao menor sopro. Entra UM SENHOR O SENHORSenhor! o rei mandou o joven Osrico cumprimentar vossa alteza da sua parte, o qual lhe disse que o principe esperava n'esta sala. El-rei envia-me para saber se � inten��o de vossa alteza combater j�, ou adiar o combate. HAMLETTomei j� a minha resolu��o, e concorda com os desejos de sua magestade. Se Laerte est� prompto, tambem eu o estou; immediatamente, ou quando quizer, comtanto que me sinta sempre t�o bem disposto como agora o estou. O SENHOREm breve chegar�o o rei e a rainha, e toda a c�rte. HAMLETBemvindos sejam! O SENHOR� pedido da rainha que receba cordialmente Laerte, antes de dar principio � contenda. HAMLET� justo o seu conselho. (O senhor s�e.) [142] HORACIOReceio que o principe perca a aposta. HAMLETN�o creias tal; depois que elle partiu, tenho-me continuamente exercitado no jogo das armas: com a vantagem concedida a victoria � certa. Se tu soubesse que dor sinto no cora��o! N�o importa. HORACIOComtudo, senhor! HAMLET� uma loucura, uma leve apprehens�o, que apenas poderia influenciar uma fraca mulher. HORACIOSe sente alguma repugnancia no seu espirito, obede�a-lhe. Vou prevenil-os que n�o venham, que o principe se sente indisposto. HAMLETDe modo nenhum! Luctarei com os meus presentimentos; a Providencia tem j� escripto o meu destino. Se tenho de morrer, nada o evitar�, for�oso � obedecer aos seus decretos; que seja hoje ou �manh�, estou prompto; tenho dito. Poisque o homem n�o � senhor do seu destino, que importa que seja mais tarde ou mais cedo? Ser� o que Deus quizer. Entram o REI, a RAINHA, LAERTE, OSRICO, SENHORES e CREADOS trazendo floretes e luvas e uma mesa com frascos e ta�as HAMLET (a Laerte)Perdoe-me, se o offendi, mas perdoe-me como cavalheiro. Os que nos cercam, sabem-o, e creio que tambem deve saber, que um terrivel desvairamento se apossou de mim. Se alguma cousa fiz que podesse irritar o seu caracter e a sua honra e melindre, proclamo-o bem alto: �Loucura!� Seria ainda Hamlet que offendeu Laerte? Nunca, nunca poderia ser Hamlet. Ent�o n�o era elle, e n�o sendo elle, como offenderia Hamlet a Laerte? � claro, n�o era elle; renego todos esses actos. Quem foi ent�o? a loucura. Sendo assim, Hamlet abra�a o offendido; o verdadeiro inimigo do desditoso Hamlet � a sua loucura. Senhor, depois d'esta confiss�o, em que perante [143] todos renego toda a m� inten��o, poder� ainda a sua generosidade condemnar-me? � como se inconscientemente despedisse por cima de uma casa um dardo, e fosse ferir um irm�o. LAERTEMeu cora��o est� satisfeito; era elle que mais me excitava � vingan�a; mas no campo da honra recuso-me a toda a concilia��o, at� que arbitros mais idosos e de provada lealdade, me imponham, fundados em precedentes, uma senten�a de paz, que ponha o meu nome ao abrigo de toda a suspeita. At� ent�o acceito a amisade que me offerece, e nada farei em seu detrimento. HAMLETAcceito francamente essa promessa, e a lucta fraternal que vamos encetar. Venham os floretes, comecemos. LAERTED�em-me um florete! HAMLETVou ser o seu alvo, Laerte; ao p� da minha inexperiencia vae sobresa�r a sua pericia, como um astro brilhante em noite escura. LAERTEZomba de mim? HAMLETJuro que n�o! O REID�-lhes floretes, Osrico, Primo Hamlet, conheces a aposta? HAMLETPerfeitamente, senhor; aposta demasiado vantajosa para o mais fraco. O REINada receio; j� os conhe�o ambos, e poisque Hamlet � quem mais avantajado est�, a sorte est� pelo nosso lado. LAERTE (examinando um florete)Este n�o, que � muito pesado; outro! HAMLETEste convem-me; os floretes s�o todos iguaes, n�o � verdade? [144] OSRICOSim, meu bom senhor. (Collocam-se.) O REIPonham os frascos sobre a mesa. Se Hamlet o tocar a primeira e segunda vez, ou se elle aparar o terceiro golpe, que as baterias rompam uma salva geral; beberei � saude de Hamlet, e lan�arei na ta�a uma perola mais preciosa que as que usavam nos seus diademas os quatro reis meus predecessores. Venham as ta�as. Que os timbales annunciem aos clarins, os clarins aos canh�es, os canh�es aos c�us, os c�us � terra que o rei brinda por Hamlet. Vamos, senhores, podem come�ar, e v�s juizes, atten��o! HAMLETEm guarda! LAERTEEm guarda, principe! (Come�am.) HAMLETUma! LAERTEN�o tocou. HAMLETOs juizes que decidam! OSRICOTocou, n�o ha duvida. LAERTERecomecemos. O REIEsperem, encham as ta�as. Hamlet, dou-te esta perola, brindo por ti. Offere�am-lhe a ta�a. (Clarins e salvas.) HAMLETPrefiro acabar a contenda, esperem; depois beberei. Vamos, Laerte. Uma! que diz agora? LAERTEFui tocado, confesso-o. O REIHamlet ganha. [145] A RAINHAEst�s fatigado, falta-te o f�lego. Limpa a fronte com o meu len�o. A rainha bebe � tua victoria, Hamlet. HAMLETMinha senhora! O REIN�o bebas, Gertrudes. A RAINHABebo, senhor, desculpe-me, desejo-o. O REI (� parte)Era a ta�a envenenada, j� n�o ha remedio. HAMLETAinda n�o bebo, mais tarde, senhora. A RAINHADeixa-me limpar tua fronte, filho! LAERTE (ao rei, � parte)Senhor, agora ver�. O REIJ� n�o creio. LAERTE (� parte)E, comtudo, diz-me a consciencia que n�o. HAMLETVamos, Laerte, a terceira prova; n�o me poupe, pe�o-lh'o; desenvolva toda a sua pericia, n�o me trate como crean�a. LAERTEQue diz? em guarda, pois. OSRICOAinda nada. LAERTEAgora toquei. (No encarni�ado da lucta trocam os floretes, e Hamlet � ferido e fere Laerte.) O REISeparem-nos, est�o desesperados. [146] HAMLETN�o, recomecemos. (A rainha c�e) OSRICOAcudam � rainha; acudam! HORACIOFeridos ambos!! que � isto, senhor? OSRICOComo est� Laerte? LAERTEColhido no meu proprio la�o, morro pela minha trai��o. HAMLETQue tem a rainha? O REIDesmaiou � vista do sangue. A RAINHAN�o, n�o! a bebida, a bebida! meu Hamlet, a bebida! a bebida! envenenada... (Morre.) HAMLETOh! infamia! fechem as portas, trai��o! quero conhecel-a. LAERTEEu t'o digo, � esta: Hamlet, morres assassinado, nada te p�de salvar; meia hora, quando muito, te resta de vida, na tua m�o ainda conservas a arma da trai��o afiada e envenenada; tambem sou victima da minha perfidia. Escuta, j� sinto a morte, tua m�e envenenada... morro, Hamlet! o rei... s� o rei culpado... (Desfallecendo.) HAMLETA ponta envenenada! veneno, cumpre o teu dever. (Fere o rei.) OSRICO e SENHORTrai��o! trai��o! O REIDefendam-me, � apenas leve ferimento. [147] HAMLETBebe os restos d'esta ta�a, incestuoso assassino, damnado dinamarquez. Procura a perola, achal-a-has seguindo minha m�e. (Vasa � for�a o resto da ta�a pela b�ca do rei, que c�e e morre.) LAERTE (n'um ultimo alento de vida)� justo o castigo; morre pelo veneno que prepar�ras. Hamlet, perdoemo-nos mutuamente, e livres de qualquer reciproco remorso subam nossas almas abra�adas ao c�u. (Morre.) HAMLETAbsolva-te o c�u, como eu te perd�o; sigo-te, Laerte (a Horacio) morro, Horacio. Rainha desgra�ada, adeus. A v�s todos, que ao ver esta catastrophe empallideceis, mudos espectadores d'este drama, se tivesse tempo ainda, se esta ancia terrivel n�o m'o vedasse, poderia dizer... agora, resigna��o. Eu morro, Horacio, tu viver�s, justifica-me, explica o meu odio aos que o ignoram. HORACIOIsso nunca! sou mais romano que dinamarquez, e n'esta ta�a ainda ha liquido. HAMLETSe �s homem, d�-m'a; larga-a, por Deus, quero-a. Vive para revelar um t�o infame crime. Se alguma vez foste meu amigo, n�o apresses a tua felicidade celeste e permanece n'este mundo odioso, conta a minha historia. (Ouve-se uma marcha) Que rumor marcial � este? HORACIO� o jovem Fortimbraz, que regressa victorioso da Polonia, e que sa�da os embaixadores de Inglaterra com esta salva guerreira. (Ouvem-se tiros.) HAMLETMorro, Horacio, triumpha o veneno poderoso; nem j� as noticias de Inglaterra me � dado saber, mas predigo que Fortimbraz ha de reinar; morrendo, voto por elle; conta-lhe mais ou menos os pormenores da causa da minha morte. O resto... �... silencio... (Morre) HORACIOQue nobre alma! Adeus, meu adorado principe, os anjos do c�u o embalem com os seus canticos divinos. Mas porque � esta marcha? (Ouve-se uma marcha militar.) [148] Entram FORTIMBRAZ, os EMBAIXADORES a outras pessoas FORTIMBRAZQue vejo? HORACIOVae sabel-o. Desgra�a ou prodigio, est� patente a seus olhos. FORTIMBRAZQue hecatombe, que horror! Oh! morte, que festim cruento preparavas tu, para precisar de uma s� vez tanto sangue real? PRIMEIRO EMBAIXADORQue horrivel espectaculo! tarde cheg�mos de Inglaterra. J� n�o nos p�de ouvir aquelle de cujas ordens annunciavamos o cumprimento, trazendo a nova da execu��o de Rosencrantz e Guildenstern. Quem nol-o agradecer� agora? HORACIOElle n�o, que os seus labios agora gelidos nunca o ordenaram. Mas, poisque vindes de Inglaterra e de Polonia e presenceaes esta crise sangrenta, ordenae que bem alto, � vista de todos, sejam collocados estes corpos, e eu lhes direi a causa d'estes factos, poisque a ignoram. Ent�o soar�o aos seus ouvidos actos carnaes, incestos, sangue, expia��es, assassinios fortuitos, mortes causadas pela perfidia ou por for�a maior, e para desfecho trai��es que feriram os proprios auctores; eis a minha narra��o, e juro que � verdade. FORTIMBRAZOu��mol-o promptamente, convoquemos os nobres: dolorosamente acceito o meu novo encargo, pois tenho sobre este reino direitos incontestaveis, que � meu dever reivindicar. HORACIOMiss�o tenho de lhe fallar a esse respeito, da parte d'aquelle que vivo teria tido os suffragios do povo. Seja pois rapida a decis�o, antes que os espiritos preplexos sejam dominados por alguma conspira��o ou engano que causem novas desgra�as. FORTIMBRAZSejam por quatro capit�es levados os restos mortaes de Hamlet: [149] fa�am-se-lhe todas as honras militares. Se vivesse teria sido um grande rei. Quando passar, salvem os canh�es. Levem os cadaveres, esta vista � s� propria dos campos de batalha; aqui causa horror! Executem as minhas ordens, rompam as salvas de canh�es e as descargas de fuzilaria, e as marchas funebres. Morreu o que havia de ser rei de Dinamarca. (Desfilam todos com os cadaveres: ouvem-se salvas de artilheria, descargas de fuzilaria e marchas funebres. Cae o panno.) Fim do quinto e ultimo acto O que é o que é doze gostam do dia outros 12 da noite escura seguem umas atrás das outras Ninguém assegura?Resposta: As estrelas.
O que é o que é com a resposta?37- O que é, o que é que sempre anda, mas nunca se cansa? Resposta: O relógio. 38- O que é, o que é que corre, corre, mas está sempre no mesmo lugar? Resposta: O rio.
Onde é possível encontrar as adivinhas?Uma das mais ricas e antigas é a de Nicolas Reusner: Aenigmatographia (1602), mas é possível encontrar adivinhas praticamente em todas as culturas, muitas vezes em contaminação com outras formas de expressão que lhe estão próximas como as fábulas, as parábolas, os enigmas ou os epigramas.
O que é o que é que tem no Centro mas não tem começo nem fim?O círculo possui centro, mas nunca tem começo, nem fim.
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